Filiação e Socioafetividade: Uma Análise da “Adoçaõ à Brasileira” À Luz do Direito Civil Constitucional

AFFILIATION AND SOCIO-AFFECTIVITY: AN ANALYSIS OF THE “ADOPTION TO THE BRAZILIAN ONE” IN THE LIGHT OF THE CONSTITUTIONAL CIVIL LAW.

 

Larissa Silva Nunes [1]

João Santos da Costa [2]

Centro Universitário Santo Agostinho-UNIFSA

 

Resumo: O presente trabalho tem como tema a filiação e socioafetividade, baseado em uma análise da adoção à brasileira à luz do Direito Civil Constitucional. A problematização da pesquisa gira em torno de como o princípio da afetividade contribui para que se resguarde o melhor interesse da criança no caso da adoção à brasileira. O presente trabalho ganha relevância, e por isso, importância, tendo em vista que ressalta a necessidade de que o princípio da afetividade, fundamento da filiação socioafetiva, no caso da prática da adoção à brasileira, sendo esta uma forma de adoção, só que feita de forma ilegal sem observar os requisitos necessários para a prática de tal ato, prevaleça, para que seja promovido o melhor interesse da criança ou adolescente adotado. Acerca dos procedimentos metodológicos, o trabalho se desenvolveu por meio de pesquisas bibliográficas, análise de jurisprudência, bem como o estudo de artigos científicos acerca do tema. Os resultados obtidos com a realização do referido trabalho expressam a aplicação do princípio da sociafetividade em prol da dignidade da pessoa humana do menor e de seu melhor interesse. Em virtude disso, conclui-se que na situação da adoção à brasileira deve ser feita uma análise subjetiva buscando priorizar o que seja melhor, mais justo e mais humano para com os personagens envolvidos.

Palavras-chave: filiação socioafetiva, melhor interesse da criança, prevalência do vínculo afetivo.

 

Abstract: This work has as its theme the following affiliation socio-affectivity, based on an analysis of the adoption of Brazilian law in the light of Constitutional Civil Law. The problematization of the research revolves around how the principle of affectivity contributes to protect the best interest of the child in the case of adoption to the Brazilian. The present work gains relevance, and therefore, importance, taking into account that it emphasizes the need that the principle of affectivity, foundation of the socio-affective affiliation, in the case of the practice of the adoption to the Brazilian one, being this a form of adoption, only that made of illegal form without observing the necessary requirements for the practice of such act, prevails, so that the best interest of the adopted child or adolescent is promoted. Regarding the methodological procedures, the work was developed through bibliographic research, analysis of jurisprudence, as well as the study of scientific articles on the subject. The results obtained with the realization of this work express the application of the principle of sociafetivity in favor of the dignity of the human person of the minor and of his best interest. Because of this, it is concluded that in the situation of adoption to the Brazilian should be made a subjective analysis seeking to prioritize what is better, fairer and more human towards the characters involved.

Keywords: Socio-Affective Affiliation, Best Interest of the Child, Prevalence of the Affective Bond.

 

Sumário: Introdução. 1. Família. 1.1 A família na Constituição Federal de 1988. 1.2 A família no Código Civil de 2002. 2. Filiação. 2.1 Definição de Filiação. 2.2 Evolução da filiação no ordenamento jurídico brasileiro. 3 “Adoção à brasileira” – a afetividade como fundamento para a filiação. 3.1 Socioafetividade. 3.2 Adoção à brasileira.  Conclusão. Referências.

 

 INTRODUÇÃO

A família, de acordo com o artigo 226, caput, da Constituição Federal de 1988, é base da sociedade e tem especial proteção do Estado. Ela é um núcleo central de suma importância para a organização da sociedade. Há um espaço dedicado à ela na CF/88 e no Código Civil de 2002, com disposições que embasam o tratamento dado à essa instituição. Dentre os princípios que regem a família estão presentes a dignidade da pessoa humana, o da igualdade dos filhos e o da afetividade, que são os princípios que no tema em análise estão em evidência.

Com base no princípio da igualdade dos filhos, a CF/88 defende que os filhos, independentemente de sua origem, terão os mesmos direitos e qualificações. As disposições concernentes à filiação ao longo do tempo sofreram várias mudanças, não existindo uma definição única dela, mas em síntese ela pode ser interpretada como uma relação jurídica que decorre do parentesco, seja ele consanguíneo ou de outra origem.

E uma das formas pelas quais se dá a filiação é pela afetividade, fundada no afeto, sem depender da existência de laços consanguíneos. A adoção à brasileira, conduta que é o centro da temática desenvolvida no presente trabalho, é uma forma de filiação socioafetiva. A problemática gira em torno do fato de que ela, compreendida na no ato de registrar como seu o filho de outrem, prevista no artigo 242 do Código Penal, é ilegal. No entanto, o que se defende é que se há boa-fé e intenção de levar amor a outra pessoa por parte de quem a pratica, o afeto deve prevalecer mesmo que a adoção não se tenha dado da forma correta, pois é mais justo priorizar o bem da criança, seu melhor interesse e sua dignidade, assim os princípios basilares da família estão sendo aplicados de forma efetiva.

 

1 FAMÍLIA

1.1 A FAMÍLIA NA CONSTUIÇÃO FEDERAL DE 1988

A família é a base da sociedade e do Estado, é o núcleo essencial sobre o qual a sociedade se organiza, é o grupo onde os indivíduos nascem e crescem, é o “início de tudo”, é um grupo natural da sociedade do qual surgem os demais grupos. É da família que as pessoas retiram os elementos de sua realização material, intelectual e pessoal, sendo uma das principais marcas da família o afeto que um membro possui para com os demais membros dela.

A Constituição Federal de 1988 não traz um conceito de família, mas em âmbito doutrinário encontramos variadas definições de tal instituição, abordando-se em destaque a definição adotada pelo ilustre doutrinador Carlos Roberto Gonçalves:

Lato Sensu, o vocábulo família abrange todas as pessoas ligadas por vínculo de sangue e que procedem, portanto, de um tronco ancestral comum, bem como unidas pela afinidade e pela adoção. Compreende os cônjuges e companheiros, os parentes e os afins. Para determinados fins, especialmente sucessórios, o conceito de família limita-se aos parentes consanguíneos em linha reta e aos colaterais até o quarto grau. (GONÇALVES, 2015, p.17-18).

Já tendo sido abordado um pouco a respeito do que é a família, cabe destacar a forma como a CF/88 a abrange. Inicialmente, ressalte-se um breve histórico da entidade familiar nas Constituições Brasileiras, o tratamento dado a ela e o espaço que ela foi ganhando até chegar na forma como hoje ela está disposta constitucionalmente.

A Constituição de 1934 trouxe pela primeira vez em seu texto um capítulo dedicado exclusivamente à família, dando ênfase para a indissolução do casamento. Por conseguinte, a Constituição de 1937 elencou os deveres dos pais quanto às suas responsabilidades para com seus filhos. Daí em diante, as Constituições que vieram depois continuaram nesse mesmo sentido, com objetivo de assegurar as questões vinculadas às questões familiares.

Destarte, a Constituição Federal de 1988, quando tratou do instituto da família, priorizou a dignidade da pessoa humana e acolheu diversas transformações sociais da família brasileira, causando assim uma revolução no Direito de Família, de tal forma que esse ramo do direito pode ser dividido em antes e depois da CF/88.

A entidade familiar, na Constituição Federal, se encontra prevista nos seus artigos 226 e 227. Esse fundamento constitucional da família encontra amparo em alguns princípios, dentre os quais se destacam o princípio da dignidade da pessoa humana, o da liberdade, o da igualdade, o da afetividade e o princípio do pluralismo das entidades familiares.

O princípio da dignidade da pessoa humana encontra respaldo no artigo 226, § 7°, in verbis:

Art.226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[…]

§7º Fundado nos princípios da dignidade da pessoa humana e da paternidade responsável, o planejamento familiar é livre definição do casal, competindo ao Estado propiciar recursos educacionais e científicos para o exercício desse direito, vedada qualquer forma coercitiva por parte das instituições oficiais e privadas. […]

Percebe-se, portanto, a importância que a CF/88 deu ao referido princípio, colocando-o como fundamento do planejamento familiar, em conjunto com o princípio da paternidade responsável.

Tal dispositivo também trata do princípio da liberdade, determinando que o casal é livre para definir seu planejamento familiar, sendo vedada qualquer imposição estatal à essa decisão familiar. Esse princípio vai além dessa liberdade do casal de definir seu planejamento familiar, ela abrange também a livre aquisição do patrimônio familiar e a livre opção pelo regime de bens.

No que tange à igualdade dentro da entidade familiar, preleciona a CF/88 em seu artigo 226, § 5°: “Os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelo homem e pela mulher”. A Lei Maior também evoca a liberdade, em seu artigo 227, § 6°, referente agora à filiação: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

O princípio da afetividade, que será abordado mais detalhadamente adiante, está também inserido nos dispositivos constitucionais pertinentes à família. A Constituição não traz a palavra afetividade ou afeto, mas a considera em alguns fundamentos, quando por exemplo defende a igualdade dos filhos, independentemente da origem, considerando assim como uma das origens da filiação a afetividade, ínsita na adoção.

Sobre o pluralismo das entidades familiares, este abriu possibilidade para a existência de novos arranjos familiares, não se limitando apenas aos já existentes no Direito de Família. A CF/88 avançou mais um pouco para acompanhar e amparar as mudanças sociais. Como exemplo, podemos citar o que ela dispõe em seu artigo 226, §§ 3° e 4°:

Art. 226. A família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado.

[…]

§3° Para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento.

§4º Entende-se, também, como entidade familiar a comunidade formada por quaisquer dos pais e seus descendentes.

Por fim, sobre o instituto da família na Constituição Federal de 1988, importante ressaltar que ela impõe, em seu artigo 227, como dever da família, da sociedade e do Estado, assegurar à criança e ao adolescente, diversos direitos como o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, entre outros, além de salvá-los da negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

Da forma como coloca, conclui-se que garantir esses direitos é dever não só do Estado, mas também da sociedade e dos membros familiares. Deve haver um agir desses três personagens com vistas a buscar sempre uma proteção à criança e ao adolescente, priorizando acima de tudo, que eles tenham o primordial dos princípios, o da dignidade da pessoa humana.

Para ressaltar a importância do direito de família, insta citar alguns exemplos da influência que ele exerce sobre ramos do direito privado e público, respectivamente:  no direito civil, influencia no direito das obrigações, não obstante este prescreve a necessidade de outorga uxória ou marital para alienar bens imóveis ou direitos reais sobre as coisas alheias (CC, art.1.647); influencia também no direito das sucessões, que na sua maior parte, relativa à sucessão legítima, é aspecto patrimonial post mortem do direito de família.  Na seara do direito público, o direito penal mostra-nos a preocupação do elaborador da norma penal em proteger a família, ao reprimir os crimes contra o casamento (CP, arts. 235 a 239) e contra o estado de filiação (CP, arts.241 a 243). (MARIA HELENA DINIZ, 2019).

É notória, portanto, a importância da disciplina do instituto familiar na CF/88, pois esta, sendo a Lei Maior, ao prevê direitos e garantias à família brasileira, viabiliza sua valorização e busca sua proteção, o que é muito bom, tendo em vista que ela é a base da sociedade e merece assim o referido tratamento, além de contribuir, como visto, para outros ramos do direito.

 

1.2 A FAMÍLIA NO CÓDIGO CIVIL DE 2002

O Código Civil que o antecedeu, o de 1916, abrangia disposições dentro do âmbito familiar que confrontavam o que previa a Lei Maior. Como exemplo de tal divergência pode ser citada a igualdade entre homens e mulheres nas relações conjugais, prevista na CF/88, que não existia no CC de 1916, pelo contrário, este último defendia discriminações e diferenças entre o sexo masculino e feminino. O CC/02 veio e suprimiu tal conflito, defendendo também a igualdade entre homem e mulher, dispondo em consonância com a atual Constituição.

O Código Civil destina, dentro do Livro IV, que trata do Direito de Família, um título para disciplinar o direito pessoal e outro para disciplinar o direito patrimonial da família. Ele trouxe inovações para o direito de família, consagrando diversos arranjos familiares, acompanhando também as evoluções sociais ocorridas no país as longo dos anos, possuindo assim um conteúdo mais moderno e avançado do que o código antecessor.

Ao dispor sobre a família, tendo sempre como objetivo garantir que se concretizem os diversos princípios que a CF/88 prevê para este instituto e os princípios que ele mesmo abrange, o Código Civil rege diversos aspectos, desde a igualdade dos cônjuges até os tipos de regime de bens que podem ser adotados, entre outros.

O CC/02 reforçou o princípio da dignidade da pessoa humana e abrangeu um leque ainda maior de princípios para reger as disposições relativas ao instituto da família. Defende não só a igualdade entre os cônjuges e companheiros, mas privilegia também a isonomia entre os filhos, independente da origem.

A respeito da igualdade dos cônjuges e companheiros, a referida legislação superou o modelo da família patriarcal, onde apenas a figura paterna exercia o poder familiar, era o chefe da família e só ele a comandava. Com a chegada do Novo Código Civil, as mulheres também ganharam espaço dentro do lar e passaram a exercer juntamente com seus maridos ou companheiros o poder familiar.

Essa igualdade, dentro do CC/02, encontra amparo em seu artigo 1.511: “O casamento estabelece comunhão plena de vida, com base na igualdade de direitos e deveres do cônjuge”. Resta evidente, portanto, a importância dessa novidade trazida, pois alcançou as mudanças sociais, onde a mulher foi ganhando espaço na sociedade, em vários setores, e com essa isonomia prevista, ela pôde também assumir um espaço maior dentro da família.

A igualdade jurídica dos filhos, já citada dentro do âmbito constitucional, também foi abrangida pelo CC/02, no artigo 1.596: “Os filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

Percebe-se que o CC/02 possui um arcabouço jurídico recheado, com o intuito de reger essa instituição tão importante, que é basilar da sociedade.

Roberto Gonçalves (2015), sintetiza e destaca os principais aspectos que foram regulamentados pelo CC/02 no que tange ao direito familiar, além do referido diploma ter ainda ampliado o conceito de família. Dentre tais regulamentações podemos destacar algumas: regulou a união estável como entidade familiar, reafirmou a igualdade entre os filhos em direitos e qualificações, como consignado na Constituição Federal, conferiu nova disciplina à matéria de invalidade do casamento, que corresponde melhor à natureza das coisas e introduziu uma nova disciplina do instituto da adoção, compreendendo tanto a de criança e adolescentes como a de maiores, exigindo procedimento especial em ambos os casos.

Vê-se, portanto, que tantas inovações impactaram e revolucionaram a legislação pátria no que tange o direito de família, melhorando ainda mais as disposições realizadas à ele, ainda que deixe a desejar, não restam dúvidas de que o referido diploma deixou sua contribuição.

 

2. FILIAÇÃO

2.1 DEFINIÇÃO DE FILIAÇÃO:

A filiação é um instituto que sofreu várias modificações ao longo do tempo, não se existindo um conceito único de tal instituto, o que contribui para que se tenham diversas definições a respeito dela, que auxiliam na compreensão do que ela é, e de sua importância.

De forma mais sintética, para conceituação da filiação, apresenta-se a definição de Flávio Tartuce:

“A filiação pode ser conceituada como a relação jurídica decorrente do parentesco por consanguinidade ou outra origem, estabelecida particularmente entre os ascendentes e descendentes de primeiro grau. Em suma, trata-se de da relação jurídica entre os pais e filhos”. (TARTUCE, 2019. p.610)

Percebe-se, portanto, que a filiação é uma figura existente dentro do direito de família que é simples, de fácil compreensão, e que é de suma importância, tendo em vista que é por meio dela que a família se desenvolve, cresce.

Ainda sobre uma definição da filiação, interessante o que diz Sílvio Venosa:

Todo ser humano possui pai e mãe. Mesmo a inseminação artificial ou as modalidades de fertilização assistida não dispensam o progenitor, o doador, ainda que essa forma de paternidade não seja imediata. Desse modo, o Direito não se pode afastar a verdade científica. A procriação é, portanto, um fato natural. Sob o aspecto do Direito, a filiação é um fato jurídico do qual decorrem inúmeros efeitos. Sob perspectiva ampla, a filiação compreende todas as relações, e respectivamente sua constituição, modificação e extinção, que têm como sujeitos os pais com relação aos filhos. Portanto, sob esse prisma, o direito de filiação abrange também o pátrio poder, atualmente denominado poder familiar, que os pais exercem com relação aos filhos menores, bem como os direitos protetivos e assistenciais em geral.  (VENOSA, 2011. p.223)

Depreende-se de tal definição, que até mesmo pelo nome, a filiação dá a entender que é a relação entre pais e filhos. O referido termo exprime a relação entre o filho e seus pais, que o geraram ou o adotaram.

Se for realizada uma profunda análise sobre as mais variadas definições de filiação, conclui-se que são definições estritamente ligadas ao casamento, considerado o casamento para tal fim o existente entre homem e mulher. Essa definição baseada nesse tipo de casamento, diante de tantas mudanças sociais ocorridas nos últimos tempos no que tange ao casamento e filiação, torna-se inadequado ou até mesmo “atrasado” pode-se dizer, pois o modelo de casamento que antigamente era o ideal, hoje é apenas mais um dos tipos existentes, não devendo, portanto, ser a única base para que se dê a filiação.

Diante de tal fato e das circunstâncias, resta ao legislador, diante das evoluções no cenário atual da família brasileira, dar às relações baseadas na afetividade a mesma proteção jurídica que concede às relações biológicas entre pais e filhos, porque não há na Constituição Federal tratamento diferenciado entre as famílias formadas pela afetividade e as formadas pela consanguinidade.

Com base no que foi acima elencado, vê-se que não há uma definição do instituto da filiação livre dessas diferenciações, pois todas, de uma forma ou de outra referem-se ao casamento apenas entre o homem e a mulher. A socioafetividade é tida como uma das formas de filiação, mas encontra-se alheia ao conceito desta. O que importa, portanto, é que mesmo não havendo uma definição única do que seja a filiação, que todas as formas pelas quais ela se dá recebam um tratamento jurídico isonômico.

 

2.2  EVOLUÇÃO NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO

Sobre a evolução da filiação no ordenamento jurídico brasileiro, insta tratar inicialmente de sua disposição no Código Civil de 1916. O referido código trazia graves diferenciações quanto aos filhos ao estabelecer suas classificações. Ele a classificava de acordo com a origem, se era advinda ou não do casamento.

Eram considerados legítimos os filhos advindos do casamento, e os que não eram, ou seja, que eram advindos de relacionamento fora do casamento, eram considerados ilegítimos. Os ilegítimos dividiam-se em naturais e espúrios, e estes, por sua vez, dividiam-se em adulterinos e incestuosos.

Ilegítimos naturais eram os nascidos de pais que não estavam impedidos de casar, os ilegítimos espúrios eram os nascidos de pais que não podiam casar, em virtude de impedimento. Os espúrios eram adulterinos quando o impedimento decorria de casamento dos pais, e incestuosos quando o impedimento se dava por causa de parentesco entre os pais.

Observa-se, portanto, como o Código Civil de 1916 trazia diversas diferenciações entre as formas de filiação, abordando de forma discriminatórias os filhos que não eram advindos do matrimônio. Para enfatizar tal discriminação, ressalta-se que havia possibilidade de reconhecimento dos filhos legítimos pelos pais conjunta ou separadamente, exceto dos incestuosos ou adulterinos. Quando reconhecidos, os filhos ilegítimos até eram equiparados aos legítimos, mas não poderiam habitar no lar conjugal sem o consentimento do outro.

Em uma síntese sobre essa discriminação existente no CC/16, ressalta-se que o seu autor, Clóvis Beviláquia não inseriu em seu texto tal tratamento discriminatório, veja-se:

“Outra sorte não teve a matéria no Código Civil de 1916. Muito embora o projeto primitivo, da autoria do professor cearense Clóvis Beviláqua, não trouxesse disposições tão discriminatórias, no Congresso Nacional foi acrescida a proibição de reconhecimento de filhos espúrios – adulterinos ou incestuosos – com base em motivos morais e na manutenção do matrimônio. O mestre Beviláqua, muito pelo contrário, não se conformou com a injustiça cometida com os filhos extrapatrimoniais: A falta é cometida pelos pais e a desonra recai sobre os filhos, que em nada concorreram para ela. E disparou: “O direito moderno ainda mantém resquícios dessas ideias de injusto desconceito, com que se estigmatizam os bastardos”. (citação CRISTIANO CHAVES DE FARIAS)

Ficou claro assim, que todo essa discriminação entre os filhas prevista no referido diploma não estava em seu projeto inicial e que, foi com outras participações, como a do Congresso Nacional, que esse tratamento diferenciado se perpetuou.

A adoção também era uma das formas de filiação dentro do CC/16. Existiam alguns requisitos que deveriam ser preenchidos para que se pudesse adotar: o adotante tinha que ter no mínimo 50 (cinquenta) anos de idade, tal idade foi reduzida para 31 (trinta e um anos) pela Lei 3.133/57 e depois para 21 (vinte e um anos) pela Lei 8.069/90; se a pessoa fosse casada só poderia adotar cinco anos após o casamento; a diferença de idade entre o adotante e o adotado tinha que ser de 18 (dezoito) anos; tinha que ter consentimento do adotado ou seu representante legal,  e escritura pública.

Havia também a presunção de paternidade e maternidade, presunção de que o filho concebido na constância do casamento tem por pai o marido da mãe, que tinha como fundamento a fidelidade conjugal por parte da mulher. Desta forma, presumiam-se concebidos na constância do casamento os filhos nascidos pelo menos 180 (cento e oitenta) dias após a celebração do casamento e os filhos nascidos em até 300 (trezentos) dias após a dissolução da sociedade conjugal, conforme o artigo 338 do CC/16.

Um ponto importante a respeito da filiação que o CC/16 trazia era a impugnação de paternidade, apesar de que o trazia de forma limitada e retrógada, pois dava essa possibilidade apenas ao marido e ainda lhe estipulava um prazo para que pudesse fazê-lo. Se o marido estava presente, a ação para impugnar a paternidade precluía em dois meses contados da data do nascimento da criança, se estava ausente ou se o nascimento da criança lhe fora ocultado o prazo era de três meses, contados da data da ciência do nascimento e da data no retorno do marido, respectivamente.

A delimitação desse prazo tinha como intuito evitar que a situação do filho permanecesse incerta por longo tempo, mas com a promulgação de Constituição Federal de 1988 tais prazos foram extintos, não se impondo mais prazo para a investigação do estado de filiação.

Da mesma forma que era permitida ao pai a investigação de paternidade, ao filho presumido legítimo era dado o direito de buscar seu reconhecimento como filho legítimo mediante ação de filiação. Os filhos ilegítimos poderiam ser reconhecidos mediante ato voluntário ou pelo Judiciário, sendo que o voluntário poderia ser feito pelos pais conjunta ou separadamente, na certidão de nascimento, mediante escritura pública ou testamento.

Já os filhos incestuosos ou adulterinos, como sempre eram tratados como inferiores, não podiam ser reconhecidos, se o fossem, mediante ação de filiação, o ato tornava-se nulo a partir do momento da prova de que o filho era adulterino ou incestuoso.

Por fim, sobre a filiação no CC/16, havia também a investigação de maternidade, que era rara, e ocorria em casos de ocultação de filho, de abandono ou de rapto. Era possível tal investigação desde que não fosse pra atribuir prole ilegítima à mulher casada e incestuosa à mulher solteira, casada ou viúva.

O tratamento jurídico que a Constituição Federal deu à filiação sem dúvidas correspondeu ao fim de um histórico longo de discriminações. Ao dispor sobre o instituto da filiação, acabou com a classificação discriminatória que existia no Código anterior, em seu artigo 227, § 6° ela traz a igualdade entre os filhos:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

[…]

§ 6º – Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Nota-se, portanto, que, diferentemente do CC/16, a Constituição Federal não faz distinção entre filhos advindos do casamento e filhos advindos de relações extraconjugais. Isso porque ela tem como principal fundamento a dignidade da pessoa humana, que permite e determina que os filhos sejam tratados de forma igual independente sua origem, pois todos tem o direito de que promovida e respeitada a dignidade de sua pessoa.

A filiação também tem seu espaço dentro da Lei 8.069/90, o Estatuto da Criança e do Adolescente, que em seus artigos 26 e 27 aborda o reconhecimento da filiação, tendo-o como direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, independentemente da origem:

Art. 26. Os filhos havidos fora do casamento poderão ser reconhecidos pelos pais, conjunta ou separadamente, no próprio termo de nascimento, por testamento, mediante escritura ou outro documento público, qualquer que seja a origem da filiação. Parágrafo único. O reconhecimento pode preceder o nascimento do filho ou suceder-lhe ao falecimento, se deixar descendentes.

Art. 27. O reconhecimento do estado de filiação é direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, podendo ser exercitado contra os pais ou seus herdeiros, sem qualquer restrição, observado o segredo de Justiça.

Conclui-se que o ECA também prioriza a igualdade entre os filhos, permitindo o reconhecimento da filiação de filhos advindos do casamento ou não. E por dá ao reconhecimento de filiação a característica da imprescritibilidade, acaba fazendo com o que o artigo 1.614 do Código Civil de 2002, que traz uma limitação temporal para que haja o reconhecimento, não tenha efetividade.

O Código Civil perpetuou o princípio da igualdade entre os filhos, conservando a redação do artigo 227 §6° da CF/88, em seu artigo 1.597. Trouxe também a presunção de maternidade e paternidade já prevista no código anterior, mas com algumas novidades, como por exemplo a presunção incidente sobre os filhos havidos por fecundação artificial homóloga:

Art. 1.597. Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:

I – nascidos cento e oitenta dias, pelo menos, depois de estabelecida a convivência conjugal;

II – nascidos nos trezentos dias subsequentes à dissolução da sociedade conjugal, por morte, separação judicial, nulidade e anulação do casamento;

III – havidos por fecundação artificial homóloga, mesmo que falecido o marido;

IV – havidos, a qualquer tempo, quando se tratar de embriões excedentários, decorrentes de concepção artificial homóloga;

V – havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.

Essa presunção de maternidade e paternidade foi mantida com vistas a garantir o melhor interesse da criança, seus direitos básicos, como o de receber alimentos de seus pais, para que ele não fique desamparado e tenha um crescimento digno.

O CC/02 dispõe também sobre o reconhecimento de filhos, podendo este ser voluntário ou judicial. O reconhecimento voluntário ou espontâneo da filiação também é chamado de perfilhação, e suas formas aplicam-se especialmente aos filhos havidos fora do casamento, tendo em vista que os filhos advindos do casamento são presumidamente filhos do cônjuge.

Então, não havendo essa presunção de paternidade, pode ser feito o reconhecimento voluntário, nas formas elencadas no artigo 1.609 do Código Civil, quais sejam, no registro do nascimento, por escritura pública ou particular, por testamento, ou por manifestação direta e expressa perante o juiz. Esse tipo de reconhecimento é formal, de livre vontade, irretratável, incondicional e personalíssimo, praticado ordinariamente pelo pai.

A respeito do reconhecimento judicial, tem-se as palavras dos doutrinadores Pablo Stolze Gagliano e Rodolfo Pamplona Filho:

“O reconhecimento judicial do vínculo de paternidade ou maternidade, dá-se especialmente por meio de ação investigatória”.

Mais frequente é a ação investigatória de paternidade, posto também seja possível a investigatória de maternidade, como no caso da troca de bebês em um hospital ou clínica, incidindo, neste caso, o art.1.608, CC-02”. (2014, p.626-627).

Depreende-se ante o exposto, que as presunção de paternidade e maternidade é relativa, pois a ideia de que a maternidade é sempre certa, como visto, pode ser ilidida por meio de ação investigatória.

Havendo o reconhecimento da paternidade ou maternidade, a sentença que a reconhece tem os mesmos efeitos do reconhecimento voluntário, possuindo efeito ex tunc, ou seja, retroagindo, e eficácia erga omnes, para todos. Depois de concretizado o reconhecimento, este é irrevogável, salvo se houver vício material e de manifestação de vontade, além disso, constitui ato jurídico puro, não subordinado a termo ou condição.

Por tudo isso que foi abordado a respeito do instituto da filiação, que é de grande relevância dentro do direito de família brasileiro, nota-se que o ordenamento jurídico busca, eliminando quaisquer distinções entre as origens da filiação, promover o melhor interesse da criança e a sua dignidade da pessoa humana, e para isso sem determinadas circunstâncias, se vale da afetividade, colocando-a em prol do bem da criança, como ocorre no caso da aceitação e reconhecimento da adoção à brasileira, tema analisado mais detalhadamente à diante .

 

3. “ADOÇÃO À BRASILEIRA” – A AFETIVIDADE COMO FUNDAMENTO PARA A FILIAÇÃO

3.1 SOCIOAFETIVIDADE

Inicialmente, para melhor compreensão do instituto jurídico da socioafetividade, insta delimitar sobre o parentesco, que é de onde emana o vínculo socioafetivo, sendo este último uma das espécies do gênero daquele, sendo uma das formas pelas quais se dá a filiação. Esse tipo de filiação e sua importância para o Direito de Família Brasileiro é que será o objeto de estudo no presente momento.

O Código Civil em seu artigo 1.953 determina: “O parentesco é civil ou natural, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem”. Depreende-se da doutrina e jurisprudência que o parentesco “natural”, que resulta da consanguinidade, a que se refere tal artigo é o parentesco decorrente da biologia e da genética, e o parentesco “civil”, resultante de “outra origem”, é o socioafetivo, que abrange a adoção e a filiação oriunda das técnicas de reprodução assistida heterólogas, quais sejam, aquelas em que há participação de um doador de material fecundante estranho ao casal.

No que tange ao parentesco civil, tipo de parentesco na qual se enquadra a socioafetividade, este é estabelecido por força da presunção de paternidade, do reconhecimento voluntário ou mediante sentença, nas hipóteses de adoção ou de reconhecimento judicial. Deve sempre atender aos princípios constitucionais, especialmente ao princípio do melhor interesse da criança e da paternidade responsável.

Adentrando agora de forma mais profunda no assunto em análise, ressalta-se que a socioafetividade é compreendida como uma relação afetiva, sendo uma manifestação do vínculo familiar baseado nos sentimentos, ela ultrapassa a definição do que é o biológico. Sobre a importância do princípio da afetividade destaca-se:

“Daí surge o princípio da afetividade, que decorre do princípio da dignidade da pessoa humana e tem alicerce na ordem constitucional baseado no entendimento de família como grupo social constituído basicamente nos laços afetivos, embora não seja um princípio expresso na Constituição Federal de 1988, a afetividade ganha ênfase nos julgamentos dos tribunais e na doutrina, perpetrando que o fator principal definidor da paternidade não seja mais a origem biológica, mas a afetividade comprovada nas relações”. (ALMEIDA, 2015, p.58)

Constata-se então, que o referido princípio pode ser considerado um dos asilares do direito de família, ganhando destaque no que rege às instituições familiares, especialmente ao tratar da filiação socioafetiva.

A despeito do parentesco socioafetivo, preleciona Heloísa Helena Barboza:

Gerado pela afetividade, o vínculo se externa na vida social, à semelhança de outras relações fundadas no afeto, mediante (pelo menos) reputatio, nominativo e tractatus, que são seus requisitos e que permanecem, mesmo quando findo o afeto, porque construídos na convivência em sociedade. Presentes esses requisitos, a socioafetividade é um dos critérios para reconhecimento do vínculo de parentesco de outra origem, a que se refere o artigo 1.593, do Código Civil.

Na referida definição a autora apresenta os requisitos que devem ser preenchidos para que a afetividade possa ser fundamento para a filiação, por meio do parentesco afetivo. A reputatio é a imagem que é transmitida para a sociedade, que pode também ser chamada de fama, se constrói por meio de elementos exteriores que fazem com que o filho aparente de forma efetivo pertencer àquela família.

O tractatus é o tratamento entre pai e filho, se caracteriza quando o filho é realmente tratado e educado como tal. Este elemento constitui o ponto fundamental no que concerne à caracterização do estado de filho afetivo uma vez que “espelha o exercício fático da paternidade, construída na afetividade e convivência”. A nominatio, por sua vez, é a utilização do nome da família, pela pessoa que é considerada filha, pressupondo assim a existência de uma filiação.

No que tange aos direitos patrimoniais advindos da filiação sociafetiva, estes podem ser destacados na esfera da prestação de alimentos e das sucessões, possuindo os filhos afetivos tais direitos de igual forma que os filhos de outra origem possuem. Sobre isso insta ressaltar (GOULART, 2013, P.9):

Já no caso de estado de filiação, sendo matéria que afeta o Direito de Família e Sucessões por consequência, é inviolável que uma decisão judicial negue a legitimidade da posse de estado de filiação. Devendo, assim, o filho socioafetivo ser considerado como herdeiro necessário, sendo qualificado e portador dos mesmos direitos, conforme o disposto no art. 1.845 do Código Civil de 2002.

Vê-se que o ordenamento pátrio busca sempre tratar de forma isonômica os filhos advindos das diferentes origens, nos mais diversos aspectos, não permitindo uma desvalorização da filiação socioafetiva em prol da filiação biológica, como há muito tempo foi o que predominou no âmbito do Direito de Família brasileiro.

Com o intuito de embasar a relevância que a paternidade socioafetiva possui na legislação cível, especialmente no que tange à instituição familiar brasileira, enfatiza-se que ela nasceu tendo como objetivo a proteção do interesse da criança e do adolescente. Tal fato pode ser constatado quando julgadores, em ações de investigação de paternidade e de negatória de paternidade, em que muitas vezes as crianças eram vítimas de um abandono em decorrência do término do relacionamento de sua genitora com o parceiro, havendo este se tornado pai socioafetivo do menor.

Sobre a produção dos efeitos jurídicos da filiação baseada na socioafetividade, esta somente se efetiva com a observância de alguns requisitos. Inicialmente, cabe dizer que ela deve ser reconhecida por sentença diante da prova concreta de que há o afeto, prova que é de natureza subjetiva, e também da prova dos efeitos sociais daí decorrentes, estes de natureza objetiva. Se forem comprovados tais efeitos, pode ser autorizada a declaração do vínculo de parentesco, mesmo contra a vontade dos pais ou de um dos pais biológicos, que não tem mais afeto por aquele que até então era seu filho (a).

Como o ordenamento trata de forma igualitária os filhos advindo das diversas origens, é de se esperar que o parentesco socioafetivo produz os mesmos efeitos do parentesco natural: a criação do vínculo de parentesco na linha reta e na colateral (até o 4° grau), permitindo a adoção do nome da família e gerando impedimentos na órbita civil, como exemplo desses impedimentos pode-se citar os impedimentos para o casamento; na órbita pública podemos citar os impedimentos para assumir determinados cargos públicos. Além do vínculo de parentesco awcima elencado há também a criação de um vínculo de afinidade.

Inteirando sobre a importância da afetividade como um todo, da afetividade nas relações familiares e a aplicação desta como fundamento para a filiação, vale trazer o que preceitua Belmiro Pedro Marx Welter em sua Teoria Tridimensional do Direito de Família. Ele destaca o fato de que as sociedades antigas (patriarcais) ajustassem a família apenas com base no mundo genético em uma linguagem normatizada e desumanizada, mas que o ser humano está unido pela totalidade dos laços genéticos, afetivos e ontológicos, cuja tridimensionalidade forma um único mundo humano.

A despeito do mundo afetivo ele destaca: “Não apenas no Direito, mas, em praticamente todas as áreas do relacionamento humano, há uma crescente compreensão acerca do acolhimento do afeto como linguagem integrante da condição humana tridimensional”. (BELMIRO PEDRO MARX WELTER, 2009).

Pode-se concluir, portanto, pela relevância atribuída à afetividade, por ela contribuir para a efetivação e promoção de muitos princípios e consequentemente direitos que formam a base do Direito de Família, dentre os quais estão a dignidade da pessoa humana e o melhor interesse da criança. Sendo assim, é plausível que a afetividade ganhe cada vez mais espaço no âmbito do direito familiar, e que, estando em conflito com o aspecto biológico, prevaleça, para que antes de tudo seja priorizado o melhor para aquele que está adquirindo o status de filho.

 

3.2 ADOÇÃO À BRASILEIRA

Antes de adentrar no tema central do presente tópico, vale trazer inicialmente um pouco do instituto da adoção. Podem ser vislumbrados vários motivos que levam ao ato da adoção, a ausência de prole, o amor que se desenvolve por determinada criança, o desejo de ter uma família maior, dentre outros, o que não pode passar em branco, um fato que é relevante para o assunto aqui abordado é o de que o afeto sempre permeou a grande maioria dos atos de adoção. É um ato afetivo que pode, e muito provavelmente muda a vida tanto do adotante como do adotado.

Abordando uma perspectiva jurídica do instituo, cabe trazer o que elenca Fábio Ulhoa Coelho:

A adoção é o processo judicial que importa a substituição da filiação de uma pessoa (adotado), tornando-a filha de outro homem, mulher ou casal (adotantes). Ela está regida, no direito positivo brasileiro, pela Lei n. 8.069/90 (Estatuto da Criança e do Adolescente – ECA), quando o adotado tem até 12 anos de idade incompletos (criança) ou entre 12 e 18 anos de idade (adolescente) (CC, art.1.618). Sendo maior de 18 anos o adotado, a adoção dependerá da assistência efetiva do Poder Público e de sentença judicial, aplicando-se subsidiariamente o ECA (CC, art. 1.619). (COELHO, 2013. p.181)

O Código Civil de 2002 quando entrou em vigor abrangia disposições sobre a adoção que não totalmente compatíveis com o ECA. A doutrina então concluiu que o referido Código não revogou o ECA, tendo em vista que este último é uma lei especial para a infância e adolescência, conquanto que aquele contém normas gerais. Tal situação foi dirimida com a edição da Lei 12.010/09, que revogou as normas específicas do Código Civil sobre a adoção e manteve nele apenas remissões genéricas e supletivas ao ECA.

A adoção à brasileira, instituto mais peculiar e diferente de adoção, se caracteriza quando alguém registra como seu o filho de outra pessoa. Está previsto no artigo 242 do Código Penal como um conduta ilegal: “Dar parto alheio como próprio; registrar como seu o filho de outrem; ocultar recém-nascido ou substituí-lo, suprimindo ou alterando direito inerente ao estado civil”. Tais condutas possuem pena de 2 a 6 anos de reclusão, porém dentre estas, a que tipifica a adoção à brasileira, tema aqui em destaque, é a de registrar como seu o filho de outrem.

Há anos essa conduta é praticada no país, não podendo se falar de forma precisa quando ela se iniciou e quantas pessoas passaram a fazer parte de uma família por meio dela. Insta destacar alguns possíveis motivos que incentivam essa prática. De início, destaca-se que a lei que regula o registro de recém-nascidos feito pelo Cartório de Registro Civil, a Lei 6.915/73 (Lei de Registros Públicos), ao registrar o recém-nascido, não realiza nenhum tipo de investigação para verificar os se existem realmente laços biológicos naquela situação ou se a documentação é verídica. Isso acaba facilitando muito tal conduta.

Existe também o fato de que o processo legal da adoção demanda muito tempo de espera e é muito burocrático, além do receio que muitos adotantes possuem de que, optando pela via legal o juiz competente negue o pedido de adoção feito por eles. Tais fatores terminam, ao invés de facilitar e agilizar o processo da adoção, acabam impondo mais entraves para que ela seja realizada, não contribuindo para a redução do número de crianças e adolescentes de instituições que estão à espera de uma família.

Ainda sobre o que pode levar as pessoas a praticarem a adoção à brasileira, pode-se trazer uma “outra face” de tais fatores, motivos mais relacionados com princípios e sentimento de afeto e desejo de aumentar a família (NASCIMENTO, 2014):

Independentemente do procedimento escolhido para se adotar um estranho e torná-lo como filho, o objetivo da adoção nada mais é do que aumentar a família, seja por amor ou simplesmente em razão de querer continuar com a genealogia; entretanto, mesmo existindo amparo jurídico para a consolidação de tal ato, é importante levarmos em consideração alguns fatores que conduzem a tal prática da adoção ilegal, como o desejo de ter para si um novo membro na família, a sensibilidade em face do abandono infantil que ocorre em nossa sociedade e o afeto com crianças.

Constata-se assim, que é também motivações mais subjetivas para que se opte pelo procedimento da adoção à brasileira, estando presentes a promoção do bem de crianças que não têm uma família, a vontade de perpetuar o legado familiar, de ter uma família maior, enfim, há várias circunstâncias em jogo que não podem ser deixadas se lado.

De acordo com o relatório de pretendentes cadastrados para adoção, disponibilizado pelo site do Conselho Nacional de Justiça, no Brasil há atualmente 46.097 pessoas na fila para adoção e por outro lado há 9.548 crianças cadastradas aguardando para serem adotadas. Percebe-se que há uma grande diferença entre o número de pessoas que querem adotar e o de crianças esperando a adoção, porém, mesmo com tal fato, infelizmente a morosidade do processo legal da adoção e exigências que muitos pretendentes adotantes fazem com relação a alguns aspetos da criança como por exemplo a raça, cor e idade, representam um empecilho para que se opte pelo meio legal, o que incentiva assim a busca de um meio mais fácil de se alcançar tal objetivo.

Não obstante tudo o que foi tratado até aqui, vale lembrar, a importância da afetividade nas relações familiares na atualidade, o instituto da adoção no Brasil com análise mais profunda da adoção à brasileira e de fatores que motivam a sua prática, é congruente trazer o entendimento que os tribunais brasileiros vêm adotando no tocante a adoção à brasileira.

O princípio da afetividade, juntamente com o princípio da dignidade da pessoa humana e do melhor interesse da criança, é o fundamento para que as decisões brasileiras que tornam válida a adoção à brasileira não sejam consideradas contrárias ao ordenamento jurídico pátrio.

Para embasar suas decisões a favor dessa adoção ilegal o que se leva em conta é o fato de que não são só as leis que regem o ordenamento, mas o regem também os princípios, e vale ressaltar que estes últimos são aplicados de forma bem significativa. Sendo assim, os Tribunais de 2° grau e os Tribunais superiores, fazendo uma análise do caso concreto priorizam a afetividade e o melhor interesse da criança, visando promover uma vida digna a elas, podem decidir de modo mais favorável à essa prática.

Entendem que decidir dessa forma não causa nenhuma inconstitucionalidade, tendo em vista inclusive que o artigo 242 do Código Penal permite a diminuição de pena ou até a não aplicação da pena no caso do ato ser praticado por motivo de reconhecida nobreza, devendo haver uma análise em cada caso concreto. Para vislumbrar de forma mais clara o posicionamento dos tribunais sobre tal situação e embasar mais uma vez a importância que há na formação do vínculo afetivo, apresenta-se um caso concreto em que o vínculo afetivo se sobrepôs sobre o biológico.

No caso, que ocorreu no Rio Grande do Sul em 2009, a mãe biológica do menor o entregou a um casal assinando Termo de Compromisso particular atestando sua vontade em fazê-lo. Só quem cinco anos depois, ela arrependeu-se e tentou reaver a criança.

Os motivos que a mãe apresentou foi o de que sempre teve vontade de criar um filho mas que na época não havia condições de criá-lo e que durante seu estado puerperal foi pressionada para que entregasse a criança e eu esta deveria ser criada junto à criança (que nasceu três anos depois). O Tribunal de Justiça do RS não decidiu a seu favor por entender que não seria cabível e conveniente a desconstrução do laço que fora criado durante os cinco anos entre o menor e os pais afetivos, como demonstra a seguir o julgado:

APELAÇÃO CÍVEL. AÇÃO DE ADOÇÃO. MENOR QUE ESTÁ SOB A GURDA FÁTICA DOS AUTORES DESDE O NASCIMENTO. ARREPENDIMENTO MATERNO. ADOÇÃO À BRASILEIRA. VÍNCULO AFETIVO CONSOLIDADO. MELHOR INTERESSE E PROTEÇÃO INTEGRAL À CRIANÇA. Não merece reparo a decisão que destituiu o poder familiar, e concedeu a adoção do menor, que convive com os autores desde tenra idade. Em que pese o arrependimento materno, o infante, atualmente com 5 anos de idade, está adaptado à família adotante, reconhece-os como pai e mãe, já consolidado o vínculo afetivo. Manutenção deste arranjo familiar, considerando o melhor interesse da criança. RECURSO DESPROVIDO. (BRASIL. TRIBUNAL DE JUSTIÇA DO ESTADO DO RIO GRANDE DO SUL. Apelação Cível N° 70062283361. Relatora Liselena Schifino. Data do julgamento: 26/11/2014).

Constata-se no caso concreto acima elencado, que o menor já tinha criado um afeto com os pais adotantes, e tirá-lo do seio familiar no qual ele desde que nasceu estava inserido, sem dúvidas causaria danos emocionais à ele. O judiciário então, visando o bem estar da criança e o seu melhor interesse, optou por manter o vínculo afetivo ao invés de fazer prevalecer o afetivo.

Esse tem sido, portanto, o posicionamento adotado pelos tribunais atualmente. A adoção à brasileira, apesar de ser tida como ilegal é considerada sim como uma forma de adoção e não é passível de punição caso se verifique boas intenções por parte daqueles que a praticam, sendo defendido acima de tudo, o melhor interesse da criança, que é o ponto mais importante de toda essa questão.

 

CONCLUSÃO

Pela observação dos aspectos analisados, o presente trabalho demonstra que, no ordenamento jurídico brasileiro há situações em que, se fazendo uma análise de forma justa, e visando resolver a questão do modo mais satisfatório possível, princípios podem prevalecer estando em confronto com regras, se for pra defender algo que é basilar e de suma importância para a sociedade, como a família brasileira, é muito plausível que a promoção de certos valores se sobreponha ao formalismo exacerbado. Notou-se que o instituto familiar ao longo da história sofreu diversas modificações, iniciando com o modelo patriarcal, com a figura do homem no comando, até que no decorrer do tempo se alcançou a igualdade dos cônjuges. A filiação, que tem significativo espaço no ordenamento, seja em âmbito constitucional ou legal, é uma das formas pelas quais se formam as famílias, como visto, sendo uma delas a adoção à brasileira, considerada uma forma de filiação afetiva. Partindo dessa premissa, a definição da adoção à brasileira pode até de início causar espanto e estranhamento, é difícil vislumbrar que uma conduta prevista no Código Penal como crime seja aceita para como um dos atos de tamanha grandeza que é a adoção. Mas é aí que, diante de alguns empecilhos e fatores que dificultam a realização da adoção, empecilhos que aliás, a própria Lei da Adoção cria ao exigir um procedimento muito burocrático para que se possa adotar, se uma pessoa opta por essa via não legal tendo como intenção formar sua família e levar amor a alguém que precisa, que foi abandonada pelos pais por exemplo, reconhecer como válida essa conduta, retirando a sua ilicitude é decidir de forma justa e humanizada. Impedir que uma criança ganhe uma família só porque algum requisito ou as exigências legais não foram atendidas é uma decisão que vai de acordo com a função precípua do Direito? É nesse sentido que, sendo a criança merecedora de especial a cuidado e atenção, conclui-se que o princípio da afetividade seja o fundamento para que, no caso da adoção à brasileira, se preservem os seus interesses e se promova a sua dignidade da pessoa humana.

 

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[1] Acadêmica do Curso de Direito do Centro Universitário Santo Agostinho – UNIFSA. Email: [email protected]
[2] Bacharel em Direito, mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul-PUCRS. Professor do Centro Universitário Santo Agostinho. E-mail: [email protected].

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