Conjugalidade
O modelo tradicional da família sempre foi a união abençoada pelos sagrados laços do matrimônio entre um homem e uma mulher.
O varão tinha que ser mais alto, mais velho e ganhar mais do que a esposa. A ela bastava manter-se virgem até o casamento. Além de recatada e obediente, somente se preparava para ser uma boa dona de casa. Não precisava ter qualquer preocupação de ordem intelectual ou profissional, pois com o casamento se tornaria a rainha do lar. Sua única obrigação – verdadeira missão – era cuidar do marido e criar os filhos.
Com o casamento a identidade da mulher desaparecia, uma vez que era obrigada a adotar o sobrenome do marido. O regime de bens era o da comunhão universal. Afinal, cabia ao chefe da sociedade conjugal a administração do patrimônio, pois ele era o cabeça do casal.
Aliás, a cerimônia do casamento retrata bem esta realidade: a noiva, vestida de branco – símbolo de sua pureza e castidade – é entregue pelo pai ao futuro marido.
A virgindade da noiva era um atributo ligado à sua própria identidade, tanto que o cônjuge, caso descobrisse que a esposa não era virgem ao casar, tinha o prazo de 10 dias para pedir a anulação do casamento. Tratava-se de verdadeiro erro quanto à pessoa, apesar de tal circunstância não ser uma qualidade em si da mulher. Era exigida somente para dar ao homem a certeza de que os filhos que viessem a nascer eram mesmo dele.
Também o casamento era indissolúvel – até que a morte os separasse. Era não, ainda é, pois para pôr fim ao casamento são impostos prazos ou a identificação de culpados.
O chamado débito conjugal – que nunca esteve na lei – servia para obrigar o cumprimento do designo: crescei e multiplicai-vos. No entanto, a negativa do exercício da sexualidade ainda autoriza a anulação do casamento, por frustrar a “justa” expectativa de quem casa. Pelo jeito, verdadeira afronta ao princípio da confiança, ligada à boa fé-objetiva que proíbe comportamento contraditório, o chamado de venire contra factum proprium.
Mas esse modelo de família, imposto pela igreja, não foi obedecido sequer pelo casal mais famoso do mundo. Maria, ao casar, estava grávida de um filho que não era do marido. Não existia o débito conjugal, pois haviam feito voto de castidade. Como Jesus não era filho de José, é o primeiro caso que se tem notícia de adoção à brasileira, porquanto afirmada a existência do vínculo parental entre ambos.
Assim, a mulher casar grávida, o marido perfilhar o filho dela ou decidir o casal não ter filhos, são arranjos familiares que já se conhece, no mínimo, a dois mil anos.
São realidades que sempre existiram.
Para evitar filhos, substituiu-se o voto de castidade pelos métodos contraceptivos. Ao invés de concepção por revelação, há os métodos de reprodução assistida. E, melhor do que erradamente registrar o filho da mulher em seu nome, a filiação socioafetiva autoriza a adoção unilateral.
Deste modo, apesar de apregoado pelas religiões, o casamento indissolúvel para crescei e multiplicai-vos até que a morte os separe nunca foi o único modelo de família.
Por um punhado de razões a família se afastou do parâmetro convencional.
Não se pode negar a importância do movimento feminista que rompeu o formato patriarcal da família, assegurando à mulher o ingresso no mercado de trabalho. O surgimento dos métodos contraceptivos concedeu-lhe a liberdade sexual.
O papel de conselheiros matrimoniais, que padres, pastores e rabinos desempenhavam junto à família, passou a ser exercido pelos psicólogos, psiquiatras e psicanalistas. Dispensada mais atenção à pessoa do que à sua sujeição ao núcleo familiar, os cônjuges se libertaram para buscarem, sem culpa, a felicidade fora do casamento.
E, diante de todos esses avanços, de nada adiantou dizer a lei que o casamento era indissolúvel. Foi necessário admitir o desquite. Chamar as uniões extramatrimoniais de concubinato não impediu sua existência. Excluir tais realidades do âmbito de previsão legal não fez as pessoas ficarem juntas para sempre.
Foi a justiça que emprestou efeitos jurídicos às uniões extramatrimoniais. Ao distinguir concubinato e companheirismo, passou a reconhecer direitos aos vínculos afetivos informais. Até serem reconhecidas como um núcleo familiar, primeiro foram vistas como relação de trabalho. Depois, identificadas como sociedade de fato, foi deferida à mulher indenização por serviços domésticos.
Assim, novas conformações familiares adquiriram visibilidade e aceitação. As uniões tidas outrora como marginais ganharam reconhecimento não só social, mas também constitucional. Foram admitidas como entidades familiares merecedoras da tutela do Estado, tanto a união estável como a família monoparental. Somente as uniões paralelas, com o nome de concubinato, acabaram relegadas pela lei para fora do âmbito do direito das famílias.
Outros núcleos de convívio que não tiveram medo de dizer seu nome foram bater às portas do Judiciário. Pouco a pouco, a depender tão só da sensibilidade do julgador e de seu grau de comprometimento em cumprir com o seu mister de fazer justiça, as uniões de pessoas do mesmo sexo – com o nome de uniões homoafetivas – estão sendo reconhecidas. Primeiro como sociedade de fato e, a partir do ano de 2001, como entidade familiar.
Mas não se pode dizer que a família está em crise. Crise havia quando a mantença do casamento era imposta a qualquer preço. Os vínculos de filiação eram estabelecidos por meras presunções e o afeto não tinha qualquer relevância jurídica.
Parentalidade
A família deixou de ter o seu conceito limitado ao casamento e percebe-la como um núcleo de afetividade foi o grande mérito do IBDFAM.
Foi a doutrina que acabou impondo o reconhecimento do afeto como o elemento identificador dos vínculos familiares. Esse deslocamento do eixo também atingiu o vínculo de filiação que se desprendeu da verdade biológica e serviu para solver os impasses decorrentes da filiação.
O fato é que filhos concebidos fora do casamento sempre existiram apesar de a lei perversamente os rotular de ilegítimos e negar-lhes reconhecimento. À hipocrisia do legislador reagiu a justiça que não consegue conviver com injustiças. Basta lembrar que se passou a admitir a “investigação” de paternidade da prole extramatrimonial. Ainda que a ação fosse admitida somente para fins alimentares, depois de morto o pai ou dissolvido o seu casamento, o filho podia ser registrado.
Havia uma outra realidade muito recorrente. As chamadas “mães solteiras”, por pressão da família, abriam mão dos filhos para não comprometer a honra familiar. E, quando se arrependiam, buscavam reavê-los.
Diante deste impasse, na hora de decidir, o juiz passou a atentar ao interesse da criança, valorando a posse do estado de filho. E, no confronto com a verdade biológica, prevaleceu a verdade afetiva.
Esse também foi o critério que norteou a construção da jurisprudência impedindo a desconstituição da chamada adoção à brasileira. Quando o homem registra como seu o filho da mulher, no fim do casamento, de nada adianta alegar a inexistência do vínculo biológico para pleitear a anulação do registro. Reconhecida a presença da filiação afetiva é mantida a paternidade e impostas as obrigações decorrentes do poder familiar.
No momento em que a ciência aprendeu a fazer a fertilização de um óvulo em laboratório e conseguiu implantá-lo no ventre da mesma ou de outra mulher, ocorreu a maior revolução que o mundo teve a oportunidade de presenciar no campo da genética. A concepção não mais decorre, necessariamente, de um contato sexual entre um homem e uma mulher. Agora o sonho de ter filhos está ao alcance de qualquer um. Ninguém precisa ter par, manter relações sexuais ou ser fértil para tornar-se pai ou mãe.
As modernas técnicas de reprodução assistida – cada vez mais populares –, permitem que alguém, mesmo sem qualquer participação sua, possa ter filho. Tal trouxe novo desafio à justiça na hora de definir os vínculos parentais.
Afinal, quem é o pai? Quem é a mãe? O que forneceu o espermatozóide? A que cedeu o óvulo? A que gestou? A que desejou o filho?
Mais uma vez socorreu-se a justiça do critério que privilegia o melhor interesse de quem veio ao mundo pelo desejo de alguém.
Homoparentalidade
A faculdade legal da adoção por uma só pessoa, independentemente de estado civil, é que permitiu aos parceiros homossexuais constituírem família com filhos. Era uma solução faz de conta. O par decidia pela constituição da família, mas só um se habilitava, não revelando sua orientação sexual. Também ninguém perguntava. Ou seja, a avaliação era mal feita, pois feita pela metade.
Deste modo, a adoção era deferida a um dos parceiros, mas o filho acabava tendo dois pais ou duas mães. Tal subterfúgio contornava a proibição legal que, de forma categórica, restringia a adoção por duas pessoas aos casados ou a quem convivesse em união estável.
Apesar de conviver com o par, ter dois pais ou duas mães, o filho restava completamente desprotegido com relação a quem não o havia adotado formalmente. Essa hipócrita postura protetiva resultava em total inversão de propósitos, pois acabava por deixar o filho em situação de vulnerabilidade. Apesar de ter dois genitores, só tinha direitos com relação a um deles, o adotante. Seu parceiro, que também assumia os encargos parentais, restava desobrigado de todo e qualquer encargo com relação ao filho. Assim, vindo ele a falecer, o filho nada recebia. E o pior: falecendo o adotante, a criança, na condição de órfã, corria o risco de ser institucionalizada para ser adotada por outrem.
A partir de 2006, a justiça passou a deferir a adoção ao parceiro do adotante. Depois do Rio Grande do Sul, outros estados seguiram a mesma trilha: São Paulo, Pernambuco, Acre, Goiás, Mato Grosso e Paraná. Afinal, admitir a habilitação do casal é a única forma de cumprir o comando constitucional de assegurar proteção integral a crianças e adolescentes.
Agora, em face dos modernos métodos de reprodução assistida, novamente voltou a questão da identificação do vínculo de filiação.
Assim como a adoção pode ser deferida a apenas uma pessoa, a fecundação em laboratório também permite que só uma pessoa realize o sonho de constituir uma família. Conforme resolução do Conselho Federal de Medicina,[1] toda a mulher capaz pode ser receptora das técnicas de reprodução assistida. Somente se for casada ou viver em união estável é que se faz necessária a aprovação do marido ou companheiro.
Deste modo, não existe nenhuma restrição, basta ser maior e capaz para o uso das técnicas reprodutivas. Como o casal formado por pessoas do mesmo sexo não tem capacidade procriativa, os homossexuais passaram a fazer uso das técnicas medicamente assistidas.
Assim, um filho poderia ter quantos pais? É filho de quem cedeu o óvulo, de quem cedeu o espermatozóide, de quem gestou ou de quem quis o filho e orquestrou o seu nascimento?
Mais uma vez é necessário fazer uso do critério da afetividade.
É pai, é mãe quem quis o filho.
Em dezembro de 2008, a justiça gaúcha autorizou o registro dos filhos em nome das duas mães que haviam se socorrido da técnica de reprodução in vitro. Já a justiça paulista indeferiu o pedido de dupla maternidade, ainda que uma das parceiras tenha gestado os óvulos da outra que foram fertilizados em laboratório. Nasceram gêmeos, filhos gestacionais de uma das mães e filhos biológicos da outra. Em face da negativa do registro, não foi estabelecido o vínculo parental com a genitora que forneceu os óvulos. Apesar da identidade genética, o registro foi procedido somente por quem deu à luz . Às claras que a negativa acabou impondo uma solução às avessas, pois a gestação por substituição não configura a vínculo parental.
Os fundamentos para negar o pedido só têm um nome: preconceito.
O primado da afetividade
O alargamento conceitual da entidade familiar acabou ensejando o florescimento de toda uma nova concepção da família com seus diversos matizes.
As mudanças foram de tal intensidade que a Constituição Federal desdobrou o conceito de família e igualou os filhos. Ao dedicar à família especial proteção, a considerando a base da sociedade, abandonou a correlação entre família e casamento. Para isso foi introduzido o conceito de entidade familiar e concedida a mesma proteção tanto à união extramatrimonial entre um homem e uma mulher, como à denominada família monoparental: um dos genitores e sua prole.
E, no momento em que o Estado abandonou a necessidade de sua intervenção para o reconhecimento da família, foi necessário buscar o elemento que permite identificar o seu atual conceito, pois casamento, sexo e procriação não mais são os elementos caracterizadores da família atual. A entidade familiar não é somente a constituída pelo casamento. Também o é a união batizada com o nome de estável. Do mesmo modo, a finalidade procriativa deixou de servir de elemento configurador da família. O envolvimento de ordem sexual não é pressuposto para o seu reconhecimento. Basta atentar que, em face da interdição do incesto, na família monoparental a prática sexual é proibida.
Além de proteger a família – pois faz 20 vezes referência a ela – a Constituição garante a crianças e adolescentes, com absoluta prioridade, o direito à convivência familiar.
Esta dilação do conceito de família corresponde à exigência atual da sociedade, onde o modelo sacralizado da família matrimonializada não é o único espaço em que as pessoas buscam a realização do sonho de felicidade. Para se ter família sequer e necessário ter um par.
A família é a base da sociedade e merece a especial proteção do Estado. Ou seja, e todos têm o direito de conviver em família, sendo imperioso concluir que existe um direito fundamental à convivência familiar.
Como diz Rodrigo da Cunha Pereira, a família deixou de ser um núcleo econômico e de reprodução para ser um espaço de afeto. Transformou-se em uma estruturação psíquica em que cada membro ocupa um lugar, uma função.[2]
Todas essas mudanças impuseram a própria alteração do nome do ramo do direito que passou a ser chamado de Direito das Famílias.
Trata-se de uma nova realidade que é possível flagrar nos álbuns de família. As fotos que retratam a família estampam as mudanças do seu conceito. Tal como ocorreu com a própria fotografia, também a família adquiriu colorido. Seus figurantes não mais pousam de forma convencional, todos sérios e sisudos. Ninguém mais ocupa lugares definidos, tendo o patriarca e a matriarca ao centro cercados de filhos, noras e netos. As vestimentas ganharam leveza, os chapéus desapareceram. Agora a família é fotografada de foram descontraída, as pessoas sorrindo, abraçadas, fazendo questão de demonstrar o envolvimento afetivo que os une. Hoje é a espontaneidade que conta, e quanto mais informais seus figurantes, mais fiel é o retrato do que a família é: uma relação de afeto.
Informações Sobre o Autor
Maria Berenice Dias
Advogada, Ex-Desembargadora do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul. Vice-Presidente Nacional do Instituto Brasileiro de Direito de Família – IBDFAM