Formas de legitimação de atuação do estado no domínio econômico

Resumo: A atuação do Estado no domínio econômico assume papel fundamental para a construção de um Estado Democrático de Direito, sobretudo a partir da estruturação de valores sociais que findam por determinar a necessidade de intervenção do Estado. Entretanto, a própria sociedade, em alguns momentos, ainda atrelada aos ditames liberais, entende como abusiva tal intervenção. Certa ou errada a intervenção estatal, fato o é que ela existe e ocorre, na maior parte das vezes, de forma legítima. Resta então identificar quais são as formas, os fatores que legitimam  e os limites da atuação do estado no domínio econômico. Em se tratando de ato do Estado não poderia deixar de estar substanciado pela lei, mas também é certo que tal legitimação se configura pela sobreposição de princípios, sejam eles legais ou não, como o princípio da subsidiariedade.  

Palavras-chave: Intervenção; Legitimação; Domínio Econômico; Lei; Princípios.

Abstract: The State's action in the economic domain plays a critical role for the construction of a democratic state, especially from the structuring of social values ​​which turned out to determine the need for state intervention. However, society itself, at times, still tied to the dictates liberal  do understand as abusive intervention. Rightly or wrongly state intervention, the fact is that it exists and occurs in most cases, lawfully. Thus necessary to identify what are the forms, the factors that legitimize and the limits of state action in the economic domain. Sure is that when it comes to the state act must be substantiated by law, but also that such legitimacy is shaped by overlapping principles, whether they are legal or not, as the principle of subsidiarity.

Keywords: Intervention; Legitimation; Economic Domain; Law; Principles

Sumário: Resumo. 1. Introdução. 2. A intervenção estatal e o direito. 2.1. Formas de atuação do estado no domínio econômico 2.2. A legislação como fator de legitimação 3. A legislação brasileira. 3.1. A constituição federal de 1988. 3.2. Segurança nacional 3.3 interesse coletivo 3.4 a legislação infraconstitucional 4. O princípio da subsidiariedade. 5. Considerações finais.

I INTRODUÇÃO

A Intervenção do Estado no domínio econômico é prática recorrente, sendo em alguns momentos de maneira mais acentuada e em outros mais branda.Esta pesquisa se propõe a analisar de que forma a intervenção do Estado se torna legítima e quais aspectos desta intervenção que baseiam tal legitimidade.Assim, algumas indagações se tornam indispensáveis, como de que forma o Estado intervém no domínio econômico? Quais as principais consequências desta atuação do estado? Quais os contextos que justificam e legitimam a atuação do estado no domínio econômico?

Em contrapartida, temos a construção de um estado neoliberal em cuja Constituição percebe-se a primazia da defesa da liberdade e da livre iniciativa, o que nos faz questionar até que ponto a atuação do estado no domínio econômico se mantém de forma legítima? E qual a forma de valoração que faz a intervenção tornar-se mais legítima que a própria defesa da liberdade?  

É inegável que a atuação do Estado no domínio econômico vem se acentuando e,  como consequência, sendo positivada no ordenamento jurídico. Porém encontra óbice nos ideais liberais ainda incutidos na sociedade que, em alguns momentos,  vê a atuação do Estado como uma intervenção ilegítima que fere a liberdade, a livre iniciativa e impõe restrições à forma absoluta de propriedade.

Apesar da relutância em aceitar a atuação estatal no domínio econômico, a própria sociedade, ou pelo menos parcelas desta, finda por clamar pela intervenção. Caso comum é o da defesa do hipossuficiente, especialmente nas relações de consumo ou trabalho, em que o Estado de forma direta e indireta acaba por intervir de maneira a criar mecanismos de proteção que equilibrem as relações.

A partir disso surge a atuação do estado legitimada pelo princípio da subsidiariedade, em que o Estado só irá intervir quando o particular não for capaz de regular-se ou manter-se per si.

Por isso, é de suma importância se entender de que forma se dá a intervenção e quais os fatores legitimantes e limitadores dessa atuação estatal.

Este trabalho visa demonstrar a evolução histórica das formas de atuação ou abstenção do Estado na economia; verificar de que forma o Estado pode, atua ou deve atuar no domínio econômico; analisar os fatores que se contrapõe assim como os que justificam tal atuação; discorrer sobre a dualidade da atuação do Estado em face às disposições do ordenamento jurídico brasileiro em especial a Constituição da República de 1988. E, por fim, analisar se a atuação do Estado é compatível com as determinações impostas pela legislação e princípios que regem o Estado, assim como se ela se justifica em face à realidade social contemporânea.

A metodologia a ser utilizada no estudo do tema sob apreço será exploratória, sendo analisado o objeto desta pesquisa através da coleta e estudo de doutrinas, publicações e decisões jurisprudenciais.

Primeiramente, será elaborada uma análise histórica que ampliará a visão da evolução da intervenção estatal, e posteriormente serão estudadas as normas constitucionais e infraconstitucionais que regulam a intervenção.Além disso será elaborada uma análise do princípio da subsidiariedade que norteia a ação do estado.

O estudo se baseará em pesquisa teórica, jurisprudencial e fática, com aplicabilidade do método observacional que será analisado por meio de tópicos redigidos.

II A INTERVENÇÃO ESTATAL E O DIREITO

Com a nova concepção estrutural, ideológica e legal, o Estado passa a exercer uma política de atuação interventiva no Domínio econômico. Esse Estado de Direito  Social e Democrático vem apresentar uma legislação consolidada com um novo papel agregador de modo a garantir o exercício do direito de participação popular bem como uma integração social de interesses individuais e sociais, nesse sentido José Alfredo Baracho:

“As mutações estruturais e qualitativas da sociedade contemporânea conduzem a questionamentos sobre o conceito de “pluralismo”.O pluralismo não é apenas uma maneira nova de afirmar a liberdade de opinião ou de crença. É um sistema que vincula a liberdade na estrutura social não objetiva desvincular o individuo da sociedade. O pluralismo conduz ao reconhecimento da necessidade de um processo de equilíbrio entre as múltiplas tensões na ordem social. O Estado pode chamar a si a tarefa de promover a decisão, assumindo, inclusive, a legitimidade do conflito. O poder do Estado não deve estar assentado em base unitária e homogênea, mas no equilíbrio plural das forças que compõem a sociedade, muitas vezes, elas próprias rivais e cúmplices.”[1]

E vem complementar Eros Roberto Grau:

“Como todo o Direito está jungido ao social e o econômico não é senão uma parcela dele, a afirmação de que o Direito passa a cumprir um novo papel de integração em todos os setores do econômico, encaminha a conseqüente conclusão de que é um novo papel de integração social que o Direito vem a desempenhar. Esta conclusão, todavia, parece paradoxal, eis que, por um lado, o Direito sempre cumpriu papel de integração social – no sentido de harmonizar, compondo, interesses individuais e sociais –  e, por outro, todo individual é potência do social.”[2]

Porém é de se entender que a sociedade contemporânea arraigada pelos princípios capitalistas, sobretudo pelos ideários de Liberdade, reluta em aceitar de maneira absoluta a legitimidade da intervenção estatal no domínio econômico. Em contrapartida a própria sociedade, fracionada em grupos, muitas vezes desorganizados, finda por clamar indiretamente, por uma intervenção do estado que tenha por finalidade manter o equilíbrio das relações.

Assim, surgem os fatores legitimadores da atuação estatal, alguns deles já positivados e, talvez por isso, mais facilmente aceitos, outros principiológicos e que, apesar de abstratos, exercem papel fundamental ao resguardar ao Estado o poder-dever de intervir. Mas antes de analisarmos os legitimadores dessa atuação Estatal no domínio econômico, imperioso entendermos de que formas o Estado vem a intervir.

2.1. Formas de atuação do Estado no Domínio Econômico

A partir de um conceito lato de “domínio econômico” percebe-se que a intervenção do Estado assume várias facetas, atuando de modo direto ou indireto, podendo figurar como agente participativo ou agente regulador. Eros Roberto Grau vem preceituar precisamente sobre de que forma ocorre esta intervenção:

“Afirmada a adequação do uso do vocábulo intervenção, para referir atuação estatal no campo da atividade econômica em sentido estrito(“domínio econômico”), reafirmo a classificação de que tenho me valido, que distingue três modalidades de intervenção: intervenção por absorção ou participação (a), intervenção por direção (b) e intervenção por indução (c).

No primeiro caso, o Estado intervém no domínio econômico, isto é, no campo da atividade econômica em sentido estrito. Desenvolve ação, então, como agente (sujeito) econômico.

Intervirá, então, por absorção ou participação.

Quando faz por absorção, o Estado assume integralmente o controle dos meios de produção e/ou troca tem determinado setor da atividade econômica em sentido estrito; atua em regime de monopólio.

Quando o faz por participação, o Estado assume o controle de parcela dos meios de produção e/ou troca em determinado setor da atividade econômica em sentido estrito; atua em regime de competição com empresas privadas que permanecem a exercitar suas atividades nesse mesmo setor.

No segundo e no terceiro casos, o Estado intervirá sobre o domínio econômico, isto, sobre o campo da atividade econômica em sentido estrito. Desenvolve ação, então, como regulador dessa atividade.

Intervirá, no caso, por direção ou por indução.

Quando o faz por direção, o Estado exerce pressão sobre a economia, estabelecendo mecanismos e normas de comportamento compulsório para os sujeitos da atividade econômica em sentido estrito.

Quando o faz, por indução, o Estado manipula os instrumentos de intervenção em consonância e na conformidade das leis que regem o funcionamento dos mercados.”[3]

De forma simples entendemos que o Estado assume dois papéis interventivos, o de agente atuante, investidor, desenvolvendo ação, sendo sujeito de relações e outro de Estado polícia, intervindo de forma supra relacional, criando normas, fiscalizando e punindo abusos, sendo promovedor do equilíbrio.

2.2. A legislação como fator de legitimação.

As novas prioridades sociais do Estado exigiram uma reformulação do Direito em si, esse novo Estado de Direito exige uma adaptação das normas aos anseios sociais, Eros Grau assim dispõe:

“A contemplação, nas nossas Constituições, de um conjunto de normas compreensivo de uma “ordem econômica”, ainda que como tal não formalmente referido, é expressiva de marcante transformação que afeta o direito, operada no momento em que deixa de meramente prestar-se à harmonização de conflitos e à legitimação de poder, passando a funcionar como instrumento de implementação de políticas públicas(no que, de resto, opera-se o reforço da função de legitimação do poder).”[4]

Sobretudo em um estado atual, em que se busca cada vez mais segurança jurídica e, adstrito ao princípio da legalidade, não há como se apartar a legitimação de uma conduta do Estado, da lei “lato sensu”.

“Com o Estado de Direito, inaugura-se nova fase em que já não se aceita a idéia de existirem leis a que o próprio príncipe não se submeta. Um dos princípios básicos do Estado de Direito é precisamente o da legalidade, em consonância com o qual o próprio Estado se submete às leis por ele mesmo postas.”[5]

Assim o Estado age ou deve agir de acordo com a norma, vindo a lei a ser fator primordial de legitimação da intervenção do Estado no Domínio Econômico, do que decorre que não se pode fugir ao fato de que a Constituição se afirma como expressão maior da lei, é nela em que se percebe a organização e as diretrizes principais de um Estado, como ensina Hans Kelsen:

“Se começarmos por tomar em conta apenas a ordem jurídica estadual, a Constituição representa o escalão de Direito positivo mais elevado”.[6]

E, por isso, deve ser na Carta Magna encontrada a principal fonte normativa que embase a atuação estatal no domínio econômico. Sendo certo que, a Constituição, enquanto direito positivado, deve exercer papel sine qua non na promoção de políticas sociais e econômicas, legitimando assim a intervenção do Estado no Domínio econômico. Sobre o assunto dispõe Eros Grau:

No exercício da função de legitimação o Estado, promovendo a mediação de conflitos de classe, dá sustentação à hegemonia do capital. Atuando como agente unificador de uma sociedade economicamente dividida e, ademais, fragmentada em grupos de interesses adversos, promove – e o direito positivo é instrumento primordial dessa promoção – o que tenho referido como a transformação da luta social em jogo.

Papel dos mais relevantes é desempenhado, nesse contexto, pela Constituição formal, que, enquanto sistema semântico ideologizado, constitui o modo de institucionalização –  porque lhe dá forma –  do mundo capitalista. Constitui, porém, uma interpretação parcial desse mundo, ou seja, da ordem capitalista, que é de ser completada pela Constituição material.”[7]

E ainda vem corroborar José Alfredo Baracho:

“AS constituições contemporâneas resultam de um paralelograma de forças políticas, econômicas e sociais, que atuam no momento de sua elaboração.”[8]

Assim, com a estruturação de um Estado Democrático de Direito, tem-se por necessária uma previsão legal que autorize ao Estado atuar e intervir no domínio econômico.Pois é razoável que um Estado Democrático atue no sentido de amenizar diferenças e promover justiça social, ao passo que em um Estado de Direito, adstrito pelo princípio da legalidade e aspirante à segurança jurídica, haja previsão legal que determine, permita, e em alguns casos, seja per si, forma de intervenção no domínio econômico.

III  A LEGISLAÇÃO BRASILEIRA

É de suma importância uma análise do ordenamento jurídico brasileiro para a compreensão da forma e do por que da intervenção estatal. Sobretudo partindo dos preceitos previstos  ou mantidos pela Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, que virão a compor a “Constituição Econômica” e representar fator maior de legitimação da atuação do estado, inclusive legitimando a criação ou a manutenção de legislações infraconstitucionais que irão sustentar e regulamentar a intervenção estatal. Guilherme Costa Machado vem demonstrar de que forma a Constituição exerce esse papel primário de apresentar princípios e diretrizes que devem orientar a atuação do Estado:

“A Constituição da República trata da intervenção econômica em seu artigo 170, e seguintes, estabelecendo que a ordem econômica fundamenta-se na livre iniciativa e tem como princípio a livre concorrência; todavia, não fornece maiores definições sobre os limites do chamado “domínio econômico”.[9]

E vem complementar Eros Grau :

“Que a nossa Constituição de 1988 é uma Constituição dirigente, isso é inquestionável. O conjunto de diretrizes, programas e fins que enuncia, a serem pelo Estado e pela sociedade realizados, a ela confere o caráter de plano global normativo, do Estado e da sociedade. O seu art. 170 prospera, evidenciadamente, no sentido de implantar uma nova ordem econômica”.[10]

É na Constituição Federal então que encontramos as primeiras diretrizes  da conduta estatal, e percebendo-se a presença de normas e princípios autorizadores da intervenção, teremos a legislação como uma das formas de legitimação da atuação do Estado no domínio econômico.

3.1.  A Constituição Federal de 1988

A partir de uma análise da Constituição brasileira, percebemos a tendência neoliberal em se proteger a livre iniciativa limitada através da positivação de valores sociais e pela soberania do estado. Há reservado na Carta Magna brasileira um título denominado “A Ordem econômica e financeira” que em seu Capítulo I apresenta o princípios gerais da ordem econômica, veja o que determina o art.170:

“Art. 170 A ordem econômica, fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, tem por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, observados os seguintes princípios:

I – soberania nacional;

II – propriedade privada;

III – função social da propriedade;

IV  – livre concorrência;

V  – defesa do consumidor;

VI – defesa do meio ambiente, inclusive mediante tratamento diferenciado conforme o impacto ambiental dos produtos e serviços e de seus processos de elaboração e prestação;

VII – redução das desigualdades regionais e sociais;

VIII – busca do pleno emprego;

IX – tratamento favorecido para as empresas de pequeno porte constituídas sob as leis brasileiras e que tenham sua sede e administração no País”.[11]

Assim podemos perceber a dubiedade dispositiva em que a norma prevê a livre iniciativa ao mesmo tempo em que impõe a necessidade de zelo pelo equilíbrio social. E ainda o art.173 vem exercer papel limitador e ao mesmo tempo legitimante da atuação estatal, determinando que ao Estado só é cabível a intervenção direta em busca da segurança nacional ou dos interesses coletivos. E o art. 174 vem entregar ao Estado o poder dever da intervenção indireta.

Art. 173. Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.

Art. 174. Como agente normativo e regulador da atividade econômica, o Estado exercerá, na forma da lei, as funções de fiscalização, incentivo e planejamento, sendo este determinante para o setor público e indicativo para o setor privado.”[12]

Na decisão da ADI 1950 / SP, julgada pelo Supremo Tribunal Federal,  Relator  Min. EROS GRAU, publicada no DJ 02-06-2006, percebe-se claramente que a aparente  dubiedade constitucional na verdade é composta por preceitos de livre iniciativa e intervenção que vêm se completar e não se contrapor.

“EMENTA: AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. LEI N. 7.844/92, DO ESTADO DE SÃO PAULO. MEIA ENTRADA ASSEGURADA AOS ESTUDANTES REGULARMENTE MATRICULADOS EM ESTABELECIMENTOS DE ENSINO. INGRESSO EM CASAS DE DIVERSÃO, ESPORTE, CULTURA E LAZER. COMPETÊNCIA CONCORRENTE ENTRE A UNIÃO, ESTADOS-MEMBROS E O DISTRITO FEDERAL PARA LEGISLAR SOBRE DIREITO ECONÔMICO. CONSTITUCIONALIDADE. LIVRE INICIATIVA E ORDEM ECONÔMICA. MERCADO. INTERVENÇÃO DO ESTADO NA ECONOMIA. ARTIGOS 1º, 3º, 170, 205, 208, 215 e 217, § 3º, DA CONSTITUIÇÃO DO BRASIL. 1. É certo que a ordem econômica na Constituição de 1.988 define opção por um sistema no qual joga um papel primordial a livre iniciativa. Essa circunstância não legitima, no entanto, a assertiva de que o Estado só intervirá na economia em situações excepcionais. 2. Mais do que simples instrumento de governo, a nossa Constituição enuncia diretrizes, programas e fins a serem realizados pelo Estado e pela sociedade. Postula um plano de ação global normativo para o Estado e para a sociedade, informado pelos preceitos veiculados pelos seus artigos 1º, 3º e 170. 3. A livre iniciativa é expressão de liberdade titulada não apenas pela empresa, mas também pelo trabalho. Por isso a Constituição, ao contemplá-la, cogita também da "iniciativa do Estado"; não a privilegia, portanto, como bem pertinente apenas à empresa. 4. Se de um lado a Constituição assegura a livre iniciativa, de outro determina ao Estado a adoção de todas as providências tendentes a garantir o efetivo exercício do direito à educação, à cultura e ao desporto [artigos 23, inciso V, 205, 208, 215 e 217 § 3º, da Constituição]. Na composição entre esses princípios e regras há de ser preservado o interesse da coletividade, interesse público primário. 5. O direito ao acesso à cultura, ao esporte e ao lazer, são meios de complementar a formação dos estudantes. 6. Ação direta de inconstitucionalidade julgada improcedente.”[13]

Decerto que a outra conclusão não se poderia chegar, a não ser a de que a Constituição Federal de 1988 vem conferir legitimidade à atuação do Estado no Domínio Econômico. O que ocorre na medida em que conjuntamente com a expressão “livre iniciativa”, o caput do art.170 impõe limitação à liberdade privada quando faz uso da expressão “justiça social”, e insere em seus incisos os princípios da função social da propriedade, defesa do consumidor, defesa do meio ambiente, redução das desigualdades e o tratamento favorecido às empresas de pequeno porte.  Ou seja, a própria Constituição vem limitar os preceitos liberais que prevê.

3.2. Segurança Nacional

O citado art.173 da Constituição Federal de 1988 limita e legitima a atuação direta do Estado condicionando esta aos casos de Segurança Nacional e relevante interesse coletivo.

Por “segurança nacional” devemos entender que cabe apenas ao Estado a exploração das atividades que envolvam ou ofereçam risco à defesa nacional à soberania e integridade do Estado.Veja Eros Grau:

“Segurança nacional é, no contexto da Constituição de 1988, conceito inteiramente distinto daquele consignado na Emenda Constitucional n/69.Cuida-se, agora, de segurança atinente à defesa nacional, que, não obstante, não há de conduzir, impositivamente, sempre, à exploração direta, pelo Estado, da atividade econômica em sentido estrito – comprova-o o enunciado do art.171,§1º, haverá exploração direta quando atender a imperativos de segurança nacional.”[14]

Nesta esteira podemos colacionar algumas normas constitucionais que vêm determinar limitação à livre iniciativa tendo em vista a segurança nacional, como na determinação do que Compete à União no art.21 e incisos:

“Art. 21. Compete à União:

II – assegurar a defesa nacional; (…)

VI – autorizar e fiscalizar a produção e o comércio de material bélico; (…)

X – manter o serviço postal e o correio aéreo nacional; (…)

XI – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão, os serviços de telecomunicações, nos termos da lei, que disporá sobre a organização dos serviços, a criação de um órgão regulador e outros aspectos institucionais;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95) (…)

XII – explorar, diretamente ou mediante autorização, concessão ou permissão:

a) os serviços de radiodifusão sonora, e de sons e imagens;(Redação dada pela Emenda Constitucional nº 8, de 15/08/95:)

b) os serviços e instalações de energia elétrica e o aproveitamento energético dos cursos de água, em articulação com os Estados onde se situam os potenciais hidroenergéticos;

c) a navegação aérea, aeroespacial e a infra-estrutura aeroportuária;

d) os serviços de transporte ferroviário e aquaviário entre portos brasileiros e fronteiras nacionais, ou que transponham os limites de Estado ou Território;

e) os serviços de transporte rodoviário interestadual e internacional de passageiros;

f) os portos marítimos, fluviais e lacustres;

XV – organizar e manter os serviços oficiais de estatística, geografia, geologia e cartografia de âmbito nacional;

XVI – exercer a classificação, para efeito indicativo, de diversões públicas e de programas de rádio e televisão; (…)

XIX – instituir sistema nacional de gerenciamento de recursos hídricos e definir critérios de outorga de direitos de seu uso; (…)

XXIII – explorar os serviços e instalações nucleares de qualquer natureza e exercer monopólio estatal sobre a pesquisa, a lavra, o enriquecimento e reprocessamento, a industrialização e o comércio de minérios nucleares e seus derivados, atendidos os seguintes princípios e condições: (…)[15]

A preservação da integridade do Estado sob o prisma da segurança nacional assume papel de suma importância na legitimação da interferência Estatal no domínio econômico, se defrontando inclusive com uma normatização constitucional, em alguns momentos, mais do que legitimadora, impositiva que determina a intervenção do Estado.Vem a ser tão forte este extinto de defesa que de forma paradoxal à livre iniciativa, não apenas limitativa, vem a permitir a criação de monopólios estatais  na exploração de atividades econômicas estratégicas à segurança nacional, como corrobora Eros Grau:

“Penso, assim, que a definição da situação – como de monopólio ou de participação – na qual atuará diretamente o Estado, na exploração de atividade econômica em sentido estrito, há de ser informada pelo tipo de interesse que a justifique. Quando a hipótese de imperativo da segurança nacional, o monopólio, em regra, como vimos, se imporá.”[16]

Portanto, fica claro que a segurança nacional é fator legitimante da atuação do Estado no Domínio Econômico, dado à necessidade natural de o Estado reservar para si a exploração de atividades econômicas que de forma direta ou indireta possam assumir risco à integridade estatal.

3.3. Relevante interesse Coletivo

Por certo o “interesse coletivo” vem a ser um conceito vago, que, a princípio, deixa sua definição à discricionariedade do intérprete, como explica Maria Sylvia Zanella Di Pietro:

“Na Constituição de 1988, a idéia de subsidiariedade está muito menos clara, pois a exploração direta da atividade econômica pelo Estado passou a ser permitida “quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei”.Ambos os fundamentos são expressos por vocábulos indeterminados, que deixam grande margem de discricionariedade para o legislador.”[17]

A Constituição Federal de 1988 em seu art.173 complementa com “conforme definidos em lei”, devendo a definição de relevante interesse coletivo de ser feita por lei, podendo ser esta, lei federal ou estadual, como elucida Eros Grau:

“Daí a conclusão de que essa lei, que definirá relevante interesse coletivo, poderá ser lei federal quanto lei estadual.A esta cumprirá defini-lo desde a perspectiva do interesse (coletivo) predominantemente estadual.”[18]

Mas não pode ficar ao bem querer da administração ou do legislativo ordinário a definição do relevante interesse coletivo que legitimará a atuação do Estado no domínio econômico, tal acepção deverá ser elaborada em consonância com os preceitos e princípios constitucionais que regem a ordem econômica, como explica Eros Grau :

“Quanto ao relevante interesse coletivo, impõe-se muita cautela na apreensão do seu significado. Qual o sentido da expressão? Reporto-me, neste passo, a exposição anteriormente desenvolvida, neste ensaio(v. item 115).A lei ordinária definirá relevante interesse coletivo, cumprindo sejam ponderados, nessa definição os princípios que identifiquei no item 94.”[19]

São estes os princípios da ordem econômica na Constituição de 1988 que Grau vem apontar no item 94:

“- dignidade da pessoa humana (…)

– os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa (…)

– a construção de uma sociedade livre, justa e solidária(…)

– o garantir o desenvolvimento nacional (…)

– erradicação da pobreza e da marginalização e a redução das desigualdades sociais e regionais (…)

– a liberdade de associação profissional ou sindical(…)

– garantia do direito de greve(…)

– Sujeição da ordem econômica aos ditames da justiça social  (…)

– a soberania nacional, a propriedade e a função social da propriedade, a livre concorrência, a defesa do consumidor, a defesa do meio ambiente, a redução das desigualdades regionais e sociais, a busca do pleno emprego e o tratamento favorecido para as empresas brasileiras de capital nacional de pequeno porte (…)

– a integração do mercado interno ao patrimônio nacional (…)”[20]

Assim, percebe-se que a nova concepção social estruturada no Estado Democrático de Direito, advém da necessidade de um novo foco intervencionista que prima pela busca de justiça social, devendo a conceituação de “relevante interesse coletivo” ser construída em lei, em face à realidade que a impõe, tomando-se como diretriz os ditames principiológicos que fomentam a ordem econômica constitucional. Concluí-se que o interesse coletivo, quando observados os fundamentos corretos, vem a ser fator legitimante da atuação do Estado no Domínio Econômico.

 3.5. A legislação infraconstitucional.

Após a compreensão dos dispositivos normativos presentes na Constituição Federal de 1988, que legitimam a atuação do Estado no Domínio Econômico, fica claro que a Carta Magna por si só não é capaz de conferir legitimidade a tal interferência estatal, restando necessária a elaboração de norma infraconstitucional que determine a causa, a forma como se dará e as conseqüências da atuação do Estado.

“De uma banda, é certo que a ordem econômica(mundo do dever ser) não se esgota no nível constitucional. Veja-se, por exemplo, na Constituição de 1988, entre outros, os preceitos inscritos no §2º do art. 171, no § 4º do art. 173 e no art. 186. O elenco das disposições que preenchem totalmente a moldura da ordem econômica (mundo do dever ser) apenas estará completo quando, além de outras, tivermos sob consideração as leis – legislação infraconstitucional, portanto – que definem o tratamento preferencial a ser conferido à empresa brasileira de capital nacional, a repressão ao abuso de poder econômico, os critérios e graus de exigência que afetarão o atendimento de determinados requisitos, pela propriedade rural, a fim de que se tenha por cumprida a sua função social. Além disso, também é certo que nem todas as disposições inseridas no Título A ordem Econômica se compõem no quadro da ordem econômica (constitucional) formal. Exemplifico, na Constituição de 1988, com o preceito do §3º do art.173, entre outros.” [21]

Cabe então ao legislador ordinário a criação de leis infraconstitucionais que determinem a intervenção direta ou indireta do Estado no domínio econômico.

Como intervenção indireta leia-se a intervenção por direção ou indução, ou seja, a criação de normas regulamentadoras da atuação privada no domínio econômico, como, por exemplo, a Lei Antitruste 8884/94 que dispõe sobre a prevenção e a repressão às infrações contra a ordem econômica; a Lei nº 8.176, de 1991, que dispõe sobre os crimes contra a ordem econômica; a lei 8.078 o Código de Defesa do Consumidor que dispõe sobre a proteção do consumidor; e ainda as leis que criam as Agências Reguladoras que visam regulamentar e fiscalizar certas áreas econômicas com a finalidade de fazer cumprir os princípios constitucionais, como a lei 9.427 que criou a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica); a lei 9.472 que criou a ANATEL (Agência Nacional de Telecomunicações; a lei 9.478 que criou a ANP (Agência Nacional do Petróleo).

E como intervenção direta leia-se a intervenção por absorção ou participação que caracterizará a atuação direta do Estado no domínio econômico, tendo como bom exemplo o Decreto Lei 200 de 1967, alterado pelo Decreto Lei 900 que “dispõe sobre a organização da Administração Federal, estabelece diretrizes para a Reforma Administrativa e dá outras providências”, entre elas a definição de Empresa Pública e Sociedade de Economia Mista, como demonstra o art.5º, incisos II e III:

“II – Empresa Pública – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, com patrimônio próprio e capital exclusivo da União, criado por lei para a exploração de atividade econômica que o Governo seja levado a exercer por força de contingência ou de conveniência administrativa podendo revestir-se de qualquer das formas admitidas em direito.

 III – Sociedade de Economia Mista – a entidade dotada de personalidade jurídica de direito privado, criada por lei para a exploração de atividade econômica, sob a forma de sociedade anônima, cujas ações com direito a voto pertençam em sua maioria à União ou a entidade da Administração Indireta”.[22]

De tal modo tem-se que a Constituição Federal, enquanto norma fundamental vem a autorizar a intervenção do Estado no domínio econômico, cabendo às normas infraconstitucionais justificar tal excepcionalidade, bem como determinar a forma de intervenção.

A estruturação de um Estado Democrático de Direito pressupõe a transposição histórica dos paradigmas mercantilistas, para o surgimento de um Estado Liberal cuja liberdade se tornou fomentadora de desigualdades o que, de certa forma, cominou em uma reformulação da política intervencionista estatal resultando no que alguns doutrinadores denominaram de Estado Neoliberal.

   Com a relativa decadência do individualismo, novas imposições sociais passam a ser propostas como foco de atenção do Estado, nem puramente liberal nem puramente intervencionista, busca-se agora um Estado ponderado, que venha a intervir quando necessário. Daí o questionamento da definição de necessidade de intervenção, então primordial se faz a definição dos modos e das formas de se legitimar a atuação do Estado no Domínio Econômico.

Elementar que na construção de um Estado Democrático de Direito o ato estatal deve estar subsidiado pelo Direito em sentido “lato”, deve haver respeito ao princípio da legalidade, em especial defronte à nova faceta social que se desponta, exigindo do Direito um papel agregador que venha legitimar a intervenção do Estado.

  Natural que dessa forma a legislação venha a exercer papel fundamental na legitimação do ato estatal, nesta lógica a Constituição, lei maior do Estado, deve ser a primeira fonte autorizadora da ação estatal no Domínio Econômico.

No Brasil a Constituição Federal de 1988, mesmo não sendo fonte inovadora de permissão para que o Estado intervenha, manteve no ordenamento jurídico a possibilidade e, em alguns casos, a necessidade da atuação direta do Estado no Domínio Econômico, como nos casos de segurança nacional e relevante interesse econômico. É lógico que haja previsão permissionária de intervenção do Estado no Domínio econômico quando da necessidade de se zelar pela segurança nacional, ou seja, para a manutenção da soberania e integridade do Estado e da defesa nacional, instituto que claramente legitima a intervenção estatal. Há ainda a previsão de atuação direta do Estado no Domínio Econômico quando houver relevante interesse coletivo, instituto de significado vago, devendo ser explicitado por lei, porém a construção de seu significado deve obedecer às diretrizes apresentadas pelos princípios constitucionais da ordem econômica, que muitas vezes prevêem a busca de justiça social, o que na concepção moral atual vem legitimar a intervenção estatal.

Cabendo à lei definir segurança nacional e relevante interesse coletivo, tem-se a legislação infraconstitucional fator primordial na legitimação da atuação do Estado no Domínio Econômico.

Entretanto, não se deve admitir apenas a lei como fator de legitimação da ação estatal, pois com o declínio do jus positivismo puro, percebe-se que não é apenas a lei em si que confere legitimidade ao ato, mas sim o conjunto de anseios que envolvem o processo dialético na formação da lei. Daí a importância dos princípios do Direito na construção de um ordenamento que vise aproximar-se ao máximo do conceito de justiça, sendo ao mesmo tempo definido e flexível garantindo segurança jurídica e adaptação legal ao caso concreto.

Assim, o princípio da subsidiariedade assume papel fundamental na legitimação da atuação do Estado no Domínio Econômico, assumindo um significado de supletividade, complementariedade e suplementariedade, permite ao Estado intervir  para subsidiar a iniciativa privada, quando o particular não for capaz de agir ou regular por si só.

A atuação do Estado no Domínio Econômico é uma realidade, concordar ou não é uma questão subjetiva, o que não se pode é negar que ela ocorre ou deve ocorrer de forma legítima, seja a partir da legislação, seja a partir dos princípios que embasam o Estado Democrático de Direito. 

 

Referências bibliográficas
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Venâncio, José Filho “A intervenção do Estado no Domínio Econômico” 2ªedição , pg. 3
 
Notas:
 
[1] José Alfredo Baracho , “O princípio da subsidiariedade”  1997 Ed forense pág 06

[2] Eros Roberto Grau,  “Elementos de Direito Econômico”  Ed Revista dos Tribunais 1981 pg.58 e 59

[3] Eros Roberto Grau , “A ordem econômica na Constituição de 1988 11ª Edição  2006

[4] Eros Grau “A Ordem Econômica na Constituição de 1988” 11ª Edição pág 15

[5] Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Direito Administrativo” 13ª Edição pg 108

[6] Hans Kelsen, “Teoria Pura do Direito” 6ª ed. Tradução de João Batista Machado 1984 pag 322

[7] Eros Grau , “A Ordem Econômica na Constituição de 1988” 11ª Edição pág 40

[8] José Alfredo Baracho, “O Princípio da Subsidiariedade: conceito e evolução” 1997 ed Forense

[9] Guilherme Costa Machado “Contribuições de Intervenção Econômica sobre as Telecomunicações” , Milton Campos 2010 pg 64

[10] Eros Grau ,“A ordem Econômica na Constituição” de 1988, pg 173

[11] Constituição Federal de 1988

[12] Constituição Federal 1988

[13] ADI 1950 / SP, julgada pelo Supremo Tribunal Federal,  Relator  Min. EROS GRAU, publicada no DJ 02-06-2006 .(RT v. 95, n. 852, 2006, p. 146-153

[14] Eros Grau, “A Ordem Econômica na Constituição” de 1988 5ªed. P296

[15] Constituição Federal 1988

[16] Eros Grau, “A Ordem Econômica na Constituição de 1988” 5ª Ed. Pg 299

[17] Maria Sylvia Zanella Di Pietro, “Parcerias na Administração Pública”, 4ªEd, pg 37

[18] Eros Grau, “A Ordem Econômica na Constituição de 1988” p 297

[19] Eros Grau, “A Ordem Econômica na Constituição de 1988”  p 296

[20] Eros Grau “A Ordem Econômica na Constituição de 1988” p 219 e 220

[21] Eros Roberto Grau “A Ordem Econômica na Constituição de 1988” 11ª ed. 2006.Pag 88

[22] Lei 200 de 1967, alterado pelo Decreto Lei 900 art.5º, incisos II e III:


Informações Sobre o Autor

Ana Carolina Pinto Caram Guimarães

Advogada, especialista em Direito Municipal. Sócia- fundadora do escritório de advocacia Pettersen,Guimarães & associados. Membro de Comissões da OAB/MG. Presidente do Instituto Mineiro de Políticas Sociais e de Defesa do Consumidor


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