Função social da ciência jurídica

Resumo: O artigo apresentado tem como objetivo analisar o instituto da função social, desde a etimologia da expressão, passando por sua origem latina, discorrendo sobre sua natureza jurídica e, por fim, demonstrando sua evolução histórica e sua aplicação ao longo do tempo. Sempre esteve presente no ordenamento jurídico brasileiro, contudo, sem muita efetividade já que os institutos jurídicos ainda possuíam um viés individualista herdado  do liberalismo econômico, onde os interesses individuais se sobrepunham aos interesses da coletividade. Importante avanço foi verificado com a positivação da função social em vários diplomas legais e, por fim, sua incorporação gradativa a cada área do Direito.  A análise da Ciência Jurídica, do papel dos juristas e dos aplicadores do Direito fez-se necessária para entender como o desenvolvimento da função social da Ciência Jurídica influenciou na leitura, interpretação e aplicação das normas jurídicas e no regramento de toda a sociedade que espera ter os direitos fundamentais respeitados e efetivados com segurança diante de um ordenamento jurídico dotado de solidez, unicidade, coesão e coerência para a construção de um Estado Social e Democrático de Direito.

Palavras-chave: Função Social. Interesses Sociais. Direitos Fundamentais. Ciência Jurídica. Estado Social e Democrático de Direito.

Abstract: The paper presented aims to analyze the institute of social function, from the etymology of the term, through its Latin origin, discussing their legal nature and, finally, demonstrating its historical evolution and its application over time. It has always been present in the Brazilian legal system, however, without much effectiveness as the legal institutions still had an inherited individualistic bias of economic liberalism, where individual interests overlapped the collective interests. Important progress was checked with positivization social function in legislation and, finally, its gradual incorporation into every area of ​​law. Analysis of Legal Science, the role of lawyers and law enforcers was necessary to understand the development of Legal Science of the social function influenced the reading, interpretation and application of legal rules and the establishment of rules of the whole society that expects to have respected fundamental rights and hired safely before a legal system endowed with strength, unity, cohesion and coherence to the construction of a Social Democratic State and of Law.

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Keywords:  Social Function. Social Interests. Fundamental Rights. Legal Science. Social and Democratic State.

Sumário: Introdução. 1. – Significado da expressão “função social”. 2. – Natureza jurídica da função social. 3 – Evolução histórica da função social. 4. Função Social da Ciência Jurídica. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

O estudo feito tem a pretensão de demonstrar ao estudioso do Direito como a aplicação do princípio da função social descortina um lado não trabalhado dos institutos jurídicos e da ciência jurídica.

Primeiramente, foi exposto de forma objetiva o significado da expressão função social, em seguida apresentada sua origem latina e sua evolução com o passar do tempo e a transformação da sociedade moderna.

Busca-se entender qual a natureza jurídica da função social, se lhe caberia a denominação de princípio e qual a sua real ingerência em todo o ordenamento jurídico e por consequência, na sociedade.

 Procurou-se demonstrar que as sociedades estão em constante evolução e o Direito, que faz o regramento das relações sociais, deve acompanhar esta rápida mudança sendo neste ponto de imensurável importância a aplicação da função social, uma vez que ampliou a efetividade dos institutos jurídicos já existentes para atender os novos anseios da coletividade.

Para atender as novas necessidades sociais o Direito está em constante atualização e por este motivo os juristas devem fazer cumprir a função social da Ciência Jurídica criando sistemas dotados de unicidade para assegurar o cumprimento dos direitos e garantir a dignidade humana necessária para a existência do Estado Social e Democrático de Direito.

1. Significado da expressão “função social”

Para melhor compreensão do sentido da expressão “função social” necessária uma breve passagem pela etimologia das palavras função e social.

O vocábulo função tem sua origem no latim. A palavra functio é derivada do verbo fungor o qual significa exercer uma função, cumprir uma missão, desempenhar um dever ou tarefa, tornar algo funcional.

Função não é atuar para alcançar os objetivos próprios, não é desempenhar uma atividade apenas em seu benefício, é atuar a serviço de algo que transcende a própria pessoa, para fazer funcionar um sistema que depende da atuação de cada um visando o interesse coletivo.

Já a palavra social, está ligada à ideia de sociável, de sociedade. Tudo que está ligado à palavra social tem caráter coletivo, sendo que o coletivo nada mais é do que o conjunto de interesses individuais. Social é aquilo que transcende a esfera individual, é tudo que atende às necessidades de várias pessoas, é a harmonização do interesse individual com o interesse coletivo.

Nos dizeres de Cláudio Luiz Bueno de Godoy, citando Louis Josserand: “As prerrogativas, mesmo as mais individuais e as mais egoísticas, são ainda produtos sociais, seja na forma, seja no fundo: seria inconcebível que elas pudessem, ao grado de seus titulares, se livrar da marca característica original e ser empregada para todas as necessidades, mesmo fossem elas inconciliáveis com sua filiação e com os interesses os mais urgentes, os mais certos, da comunidade que as concedeu[1] (2007, p. 115)”.

Deste modo, a expressão “função social” poderia ser traduzida no exercício do dever de tornar algo funcional para satisfazer o interesse social. O exercício da função social não é uma faculdade, mas sim, um dever imposto a todos, de forma a garantir uma convivência harmônica em sociedade para que ela seja sustentável ao longo dos anos.

2. Natureza jurídica da função social

Questão controvertida na doutrina é a natureza jurídica da expressão “função social”. Alguns autores entendem ser um princípio, outros acreditam ter natureza jurídica de diretriz, ou cláusula geral e há ainda quem defenda ser uma ideia princípio.

Aprofundando na análise da natureza jurídica da expressão “função social” cabe fazer uma breve passagem no campo dos princípios.

Princípios jurídicos são diretrizes dispostas em lei, positivadas, com forma normativa e com função interpretativa, integrativa e norteadora do sistema jurídico. Já os princípios gerais do direito não são normas, não estão positivados, são proposições descritivas e atuam de forma a apontar a tendência do Direito, que é uma ciência em constante evolução. Os princípios gerais do direito são fixados pela doutrina de modo a adequar o sistema às necessidades sociais.

Porém, os princípios gerais do direito podem vir positivados quando formulados pela jurisprudência e o fato de um princípio estar ou não positivado não interfere na sua eficácia. Um princípio expresso não é mais importante que um princípio implícito.

Todos os princípios, implícitos ou explícitos, têm a função de enunciar valores fundamentais para o ordenamento jurídico, pois são o início, a base do sistema, o fundamento para confecção de outras normas. Eles têm uma mesma função que é de dar unidade ao sistema. Desta forma, as normas do sistema jurídico serão ordenadas de acordo com as diretrizes ditadas pelos princípios.

A função social que sempre esteve implicitamente presente em nosso ordenamento jurídico, atualmente, além de continuar gozando da posição de um princípio geral do direito, está prevista expressamente em nosso Código Civil, influenciado pela Constituição Federal.

Na seara da função social uma importante definição de princípio foi dada por Luís Roberto Barroso[2] (2001, p. 358) ao afirmar que os princípios são “comandos de otimização” ao contrário das regras jurídicas positivadas que são “comandos de definição”.

Desta forma, pode-se concluir que o princípio da função social determina uma nova leitura das normas dispostas em nossa legislação, que foram dotadas de otimização por esse princípio, mas não mais no âmbito individual, e sim, no âmbito coletivo, em prol do interesse social, acarretando uma relativização do individualismo.

Leon Duguit entende que o caráter individualista dos direitos deve ser substituído pela ideia de função social dos direitos. Ele sustenta que o sistema individualista é precário, pois o direito subjetivo nada mais é, do que um poder de querer algo, de impor aos outros indivíduos sua vontade, contudo, no momento em que todos exercem esse poder de querer é difícil identificar qual vontade deve prevalecer, gerando conflitos. Considerando que os indivíduos exercem uma função social, não há mais um poder, mas sim, um dever de exercício de sua individualidade física, intelectual e moral da maneira mais vantajosa para toda a sociedade, assim, evitando conflitos sociais [3] (1975, p. 175).

3. Evolução histórica da função social

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A origem da função social dos institutos do direito não pode ser estabelecida com precisão. Muitos sustentam que o exercício da função social estaria inicialmente ligado ao conceito filosófico de felicidade que seria alcançada pela convivência dos indivíduos em uma sociedade harmônica, com atuação direta do Estado garantindo os direitos fundamentais do homem, prevenindo e dirimindo conflitos com o fim de alcançar justiça e paz social. Este sentimento de felicidade, que justificaria o exercício da função social é denominado sentimento eudaimonista teleológico.

Partindo para um plano mais concreto pode-se afirmar que a função social foi traçada no período do jusnaturalismo e do cristianismo.

Atualmente no Brasil pode-se identificar a presença da função social em toda legislação, e em especial, nas normas constitucionais que tratam dos direitos fundamentais, assim como nos mecanismos criados para alcançar e assegurar esses direitos que são peças essenciais para a consolidação de um Estado Democrático e Social de Direito.

A função social, como já se viu, não é criação do legislador moderno, entretanto está mais presente em nosso ordenamento jurídico, devido às necessidades decorrentes da evolução social. Fatores sociais determinaram a necessidade da aplicação da função social dos institutos, para preservar os direitos fundamentais que estavam sendo violados, principalmente pela política de liberalismo econômico e de não intervenção do Estado nas relações particulares. 

Na moderna visão do Direito, a função social é um instituto de inestimável importância. Diversos direitos ganharam nova roupagem com a aplicação da função social dos institutos e pode-se dizer que ela é uma espécie de lente, através da qual, pode-se verificar uma nova dimensão dos direitos.

4. Função Social da Ciência Jurídica

A ciência jurídica tem como objeto o direito e é desenvolvida pelos juristas, que são pessoas versadas na ciência do direito. O jurista faz ciência enquanto o aplicador do direito faz política jurídica. Os juristas comungam do consenso intersubjetivo em torno da validade de um determinado modelo de cientificidade, permitindo estabelecer o que constitui a ciência jurídica, o que está dentro, à margem ou fora das fronteiras da normalidade científica, quem pertence à comunidade jurídica e também qual é o papel de cada um de seus membros.

Com a evolução das relações sociais o ordenamento jurídico tem que se adequar à nova realidade para atender aos anseios da sociedade e esta quebra de paradigmas é em grande parte proporcionada pela participação dos juristas na comunidade jurídica.

No momento em que as respostas não estão sendo dadas satisfatoriamente pelo ordenamento jurídico tem início o processo de quebra de paradigmas e neste mesmo processo pode ocorrer uma transformação das comunidades científicas, das ciências parciais e da própria noção global de ciência.

A ciência jurídica analisa o ordenamento jurídico em seu aspecto estático e dinâmico para criar sistemas que deem eficiência às normas positivadas. Em primeiro lugar o cientista formula juízo de existência, registrando empiricamente os fatos, após descreve objetivamente e sistematicamente os fatos observados e descobre as leis gerais responsáveis por sua conexão, não prolatando juízos de valor.

A sistematicidade configura-se no traço metodológico fundamental da ciência jurídica. Os sistemas jurídicos variam de acordo com as circunstâncias de espaço e tempo, pois os fatos empiricamente registrados e sistematizados em suas conexões se modificam historicamente em decorrência das variadas relações humanas.

A função social da ciência jurídica e consequentemente dos juristas traduz-se na conferência da ordem e da coerência do conjunto de materiais normativos utilizando critérios de cientificidade, dentro de uma postura de imparcialidade ético axiológica na realização do seu registro e da análise exegética resultando em uma ciência parcial, teórico-conceitual e hermética.

O ordenamento jurídico pode ser incoerente, mas o sistema não comporta incoerências sendo tarefa do jurista colocar em ordem o que está em desordem no ordenamento jurídico em busca de uma coerência lógica, para auxiliar a aplicação do direito na interpretação, integração de lacunas e na correção de antinomias.

CONCLUSÃO

Função social é um atributo que deve estar presente em todo instituto jurídico e nas atividades realizadas pelos juristas e pelos aplicadores do direito. É o fim almejado pelo ordenamento jurídico.

Em nada acrescenta à sociedade a existência de um ordenamento jurídico que não atenda às necessidades coletivas, ainda que existam as normas positivadas, elas precisam ser dotadas de efetividade, isto é, cumpridas de forma célere e segura para realmente cumprir sua função.

A função social da ciência jurídica exercida pelos juristas é a sistematização das regras caóticas do ordenamento jurídico para dotá-las de efetividade assegurando o cumprimento de todos os princípios fundamentais e desta forma, garantir a dignidade da pessoa humana.

Um dos principais instrumentos para assegurar a dignidade da pessoa humana é o exercício da função social da ciência do direito, considerado um princípio norteador não só da atividade dos juristas, mas de todo ordenamento jurídico.

 

Referências
BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
BOBBIO, Norberto. A era dos direitos. Rio de Janeiro: Editora Campos, 1992.    
CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional. 6. ed. Ver. Coimbra: Almedina, 1995.
CAHALI, Yussef Said. (org.) Constituição Federal, Código Civil, Código de Processo Civil. 6. ed. rev. São Paulo: RT, 2004.
DUGUIT, Leon. Las transformaciones del derecho (público y privado). Trad. De Adolfo G. Posada e Carlos G. Posada. Buenos Aires: Heliasta, 1975.
FERREIRA, Luís Paulo Pinto. Princípios gerais de direito constitucional moderno. 6. ed. São Paulo: 1983.
GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função social do contrato. 2. ed. São Paulo: Saraiva, 2007.
MACEDO, Sílvio de. Função. In: Enciclopédia Saraiva do Direito. São Paulo: Saraiva, 1979. v. 38.
ROUSSEAU, Jean Jacques. O contrato social. Tradução de Antônio de Pádua Danesi. São Paulo: Martins Fontes, 1989.
SANTOS, Fernando Ferreira dos. Princípio constitucional da dignidade da pessoa humana. São Paulo: Celso Bastos Editor, 1999.
SARLET, Ingo Wolfgang. Dignidade da pessoa humana e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2001.
__________. Eficácia dos Direitos Fundamentais. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 1998.
 
Notas:
[1] JOSSERAND, Louis. (apud GODOY, Cláudio Luiz Bueno de. Função Social do Contrato. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 115). De l’ espirit dês droits et de leur relativité, Paris: Dalloz, 1939, p. 320. Versão original do texto: “(…) lês prérrogatives, même  lês plus individuelles et les plus égoistes, sont encore dês produits sociaux, soit dans la forme, soit dans le fond: Il serait inconcevable qu’elles pussent, au gré de leurs titulaires, s’affranchir de l’empreinte originalle et être employées à toutes besognes, fussent-elles inconciliables avec leur filiation et avec lês intérêts lês plus pressents, lês plus certains, de La communauté qui lês a concedées”

[2] BARROSO, Luís Roberto. Temas de direito constitucional. Rio de Janeiro: Renovar, 2001, p. 358.

[3] DUGUIT, Leon. Las transformaciones del derecho (público y privado). Trad. De Adolfo G. Posada e Carlos G. Posada. Buenos Aires: Heliasta, 1975, p. 175.


Informações Sobre o Autor

Ana Carolina Bergamaschi Arouca

Doutoranda em Direito Civil pela PUC/SP Mestre e Pós Graduada pela Faculdade Autnoma de Direito de São Paulo Pós Graduada em Direito Registral Imobiliário pela PUC/MG Tabeliã de Notas e Protesto da Comarca de Mongaguá – SP


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