Furto de aparelho de som instalado em automóvel

1. Problema jurídico

Ao quebrar o vidro do automóvel subtraindo apenas o aparelho de som nele instalado, o sujeito realiza a conduta típica prevista no art. 155, caput, ou aquela prevista no art. 155, §4º, inc. I, ambos do Código Penal: furto simples ou qualificado?

2. Interpretação doutrinária

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O mencionado art. 155, §4º, inc. I, qualifica o furto se for praticado “com destruição ou rompimento de obstáculo à subtração da coisa”.

“Obstáculo” é termo de uso corrente, significando barreira ou impedimento. No tipo penal, algo utilizado para impedir a subtração da coisa. Podendo ser: externo ou interno, ativo ou passivo, móvel ou imóvel, corpóreo ou semovente etc. Em todas as classificações, a característica essencial é seu emprego para impedir a subtração da coisa.

Partindo desse consenso, a doutrina indica dois conteúdos diferentes para o tipo penal: (a) – somente qualifica o furto se a violência se dirigir contra obstáculo exterior à subtração da coisa; (b) – o obstáculo pode fazer parte da coisa, basta que tenha por finalidade impedir a subtração.

No caso em estudo, pelos dois conteúdos doutrinários, ao quebrar o vidro do automóvel subtraindo apenas o aparelho de som nele instalado, o sujeito realiza furto qualificado pelo rompimento de obstáculo. Pela primeira interpretação, o obstáculo – o vidro – é exterior à subtração da coisa; pela segunda, é indiferente sua exterioridade – em ambas, furto qualificado.

A diferença entre as duas posições doutrinárias somente é notada quando o obstáculo não é exterior. Por exemplo: ao quebrar o vidro, o sujeito subtrai o próprio automóvel. Pela primeira interpretação, o obstáculo – o vidro – não é exterior à subtração da coisa; logo, furto simples. Pela segunda, como é indiferente a exterioridade do obstáculo, furto qualificado.

3. Interpretação jurisprudencial

Para o Superior Tribunal de Justiça, somente a violência contra obstáculo exterior ao objeto qualifica o furto, ou seja: ao quebrar o vidro do automóvel para subtrair apenas o aparelho de som nele instalado, o sujeito pratica furto qualificado. Se subtrair o automóvel, furto simples.

Como exemplo desse entendimento, REsp 743615 / RS, j. 29/08/05: “Esta Corte já firmou posicionamento no sentido de que o rompimento de obstáculo inerente ao objeto do furto não caracteriza a circunstância qualificadora.”

Também, HC 42658 / MG, j. 14/06/05: “Por outro lado, pacífico é o entendimento do Superior Tribunal de Justiça no sentido de que a subtração de objetos situados no interior de veículo, mediante rompimento de obstáculo, no caso vertente o quebra-vento, qualifica o delito de furto.”

Ainda como exemplo, REsp 294.503 / DF, j. 16/04/02: “Dirigindo-se o furto à apropriação do som localizado no interior de automóvel, e não do automóvel em si, considera-se este como obstáculo exterior àquele. (…) O rompimento de obstáculo externo – quebra-vento – ao objeto do furto caracteriza a circunstância qualificadora.”

4. Princípio da proporcionalidade

Como variável da razoabilidade, o princípio da proporcionalidade veda toda sanção injustificável quando comparada com consequência prevista para hipótese mais grave em abstrato (STF-HC 84677. Voto condutor. Min. Cezar Peluso, 23/11/04).

Com a devida vênia, ao considerar vidro como obstáculo, as interpretações doutrinária e jurisprudencial ofendem diretamente o princípio da proporcionalidade.

A pena mais grave não pode ser cominada àquele que, ao quebrar o vidro, subtrai somente o aparelho de som. A pena mais grave, se aplicável, deve ser prevista para a hipótese mais grave em abstrato, ou seja: quando o sujeito furtar o automóvel e levar junto o aparelho ligado na música preferida.

Portanto, inconstitucional a aplicação da pena cominada ao furto qualificado na situação em estudo.

5. Realidade e dogmática

É certo que a construção dos conceitos dogmáticos não deve incorporar metodologicamente os dados da realidade, mas isso não autoriza romper com a realidade. O saber penal tem uma finalidade prática, isto é, ele atua no mundo dos fatos. Não é um saber pelo saber. Por isso, na lição de Zaffaroni e Pierangeli, a dogmática jurídica moderna deve incorporar os dados da realidade sempre que dela notoriamente se separar, sob pena de afetar a segurança jurídica mediante um permanente descrédito do direito.

Notoriamente, vidro não é utilizado como obstáculo. Trata-se de coisa quebradiça, frágil, que no mundo dos fatos não impede furto nenhum e nem é utilizada com essa finalidade. Será que alguém, ao fazer seguro de carro, no questionário de risco, responde que possui dispositivo de segurança contra furto consistente nos vidros do automóvel?!

Conjugando, então, dogmática com realidade, na solução do problema jurídico proposto no início, deve-se observar a realidade que não utiliza vidro como obstáculo à subtração de coisa alguma, principalmente em automóvel.

6. Conclusão

Assim, observando a realidade que a dogmática visa disciplinar, ao quebrar o vidro do automóvel subtraindo apenas o aparelho de som nele instalado, o sujeito realiza a conduta típica prevista no art. 155, caput, do Código Penal (furto simples), porque vidro não é obstáculo à subtração da coisa.

 

Bibliografia
DOTTI, René Ariel. O conceito de obstáculo no furto qualificado. Boletim IBCCRIM. São Paulo, outubro de 2005, edição nº 155, p. 7.
ZAFFARONI, Eugenio Raúl; PIERANGELI, José Henrique. O método e os princípios interpretativos do saber do direito penal. In: Manual de direito penal brasileiro: parte geral. 5ª ed. São Paulo: RT, 2004, p. 165.
Nota:
Texto publicado no BOLETIM IBCCRIM. São Paulo, ano 13, nº 160, p. 11, março / 2006.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Edison Miguel da Silva Jr

 

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Procurador de Justiça em Goiás

 


 

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