Furto mediante fraude e estelinato no uso de cartões de crédido e/ou débito subtraídos ou clonados: tipificação penal, competência e atribuição de polícia judiciária

1 – Introdução

Têm sido cada vez mais comuns as fraudes perpetradas com o uso de cartões de crédito e/ou débito clonados ou subtraídos de seus legítimos titulares.

A reiteração dessas condutas e a imperiosa apuração criminal desses fatos leva à correlata necessidade de correta tipificação, bem como ao estabelecimento da competência jurisdicional e atribuição de polícia judiciária.

É bastante corriqueiro que aconteçam divergências quanto à capitulação jurídico penal dessas condutas criminais, bem como quanto à atribuição de polícia judiciária e de competência jurisdicional para o processo de julgamento dos respectivos feitos.

Assim sendo, pretende-se neste trabalho estabelecer qual o tipo penal adequado a essa espécie de conduta criminosa, além de indicar a competência e atribuição de polícia judiciária, o que se fará pelo estudo dos elementos que compõem a conduta em destaque em cotejo com as figuras tipificas assimiláveis ao caso. Ademais, no que tange à competência e atribuição de polícia judiciária, mister se faz uma análise apurada do momento consumativo da infração penal, o que determinará, em regra, o juízo competente e a circunscrição policial com atribuição para investigação de acordo com as regras do Código de Processo Penal.

2 – Tipificação penal adequada

Em relação à infração penal a ser tipificada nesses casos de fraudes com cartões de crédito e/ou débito subtraídos ou clonados a tipificação que tem sido considerada mais correta pela doutrina e jurisprudência é a de furto mediante fraude (artigo 155, § 2º., II, CP) e não de estelionato (artigo 171, CP). Isso porque o que distingue essas infrações é a participação da vítima na concessão do patrimônio ao fraudador, o que não ocorre nesses casos, já que o autor do ilícito atua à revelia da vítima que, geralmente, vem as saber da lesão patrimonial sofrida somente depois de algum tempo. Portanto, na verdade, o que ocorre é uma fraude para possibilitar uma subtração por parte do agente e não uma fraude para fazer com que a vítima entregue seu patrimônio, fato que configura o furto mediante fraude e descarta a tipificação de estelionato.

Neste sentido manifesta-se Mirabete, expondo as orientações jurisprudenciais sobre a temática:

“Distingue-se o furto mediante fraude, em que o engodo possibilita a subtração, do estelionato, em que  o agente obtém a posse da coisa que lhe é transferida pela vítima por ter sido induzida a erro. Na jurisprudência, apontam-se as seguintes diferenças: no primeiro há tirada contra a vontade da vítima; no segundo, a entrega é procedida livremente; no primeiro, há discordância da vítima; no segundo, o consentimento; no furto, há amortecimento da vigilância; no estelionato, engodo; naquele, o engano é concomitante com a subtração; neste,  é antecedente à entrega; a conduta do furto é de tirar, no estelionato é enganar para que a vítima entregue a coisa”. [1]

Este tem sido o entendimento esposado pelo STJ e pelo STF (v.g. STJ, HC 61.512/;RJ, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª. Turma, DJ 05.02.2007, p. 284;  STJ, HC 60.026/SC, Rel. Min. Gilson Dipp, 5ª. Turma, DJ 09.10.2006, p. 331; STJ, HC 54.544/SC, rel. Min. Gilson Dipp, 5a. Turma, DJ 01.08.2006, p. 490; STF, HC  88.905/GO, rel. Min. Gilmar Mendes, 2a. Turma, DJ 13.10.2006, p. 67).

Observe-se que se o cartão é clonado, a vítima de nada sabe e em nada contribui. Depois o agente, por sua própria conta perpetra a compra, empréstimo ou retirada de dinheiro, de modo que o lesado em nada contribui. O mesmo ocorre quando o cartão é subtraído e usado posteriormente.

3 – Competência jurisdicional e atribuição de polícia judiciária para investigação

É necessário em primeiro lugar observar que são as instituições financeiras e não as empresas de Cartão de Crédito as responsáveis pela emissão, administração, saques, compras, empréstimos e quaisquer outras operações realizadas com cartões, isso mediante um ato de licenciamento celebrado entre a empresa de cartões e a instituição financeira respectiva. Assim sendo, quando há o uso indevido por causa de subtração ou clonagem, o prejuízo se perfaz quando o valor é pago pela instituição financeira e não no local da fraude. Ocorre o pagamento no banco, exatamente na agência onde o titular do cartão o adquiriu e firmou contrato. O pagamento não se perfaz no local da fraude. Exemplificando:

Se um cartão do Banco Santander de Mogi Mirim-SP é subtraído ou clonado e o autor do ilícito faz um saque em São Bernardo do Campo-SP ou faz uma compra usando esse cartão naquela mesma localidade (acaso tenha a função crédito), o prejuízo ocorre em Mogi Mirim-SP, local onde é efetuado o débito em conta corrente ou a cobrança da compra e não em São Bernardo do Campo-SP, onde a fraude se efetivou.

Assim sendo, a lesão patrimonial ocorre na praça do cartão e ali a infração penal se consuma. E onde a infração se consuma deve-se fixar a competência para o processo e julgamento e consequentemente a atribuição para apuração de Polícia Judiciária nos termos dos artigos 4º. c/c 70, CPP. Ademais, considerando essa questão da consumação delitiva na praça do cartão, onde o débito ou o pagamento de compras ocorre, pode-se utilizar por analogia o disposto na Súmula 521, STF. Essa Súmula se refere especificamente ao estelionato com uso de cheque sem fundos, indicando a praça do cheque (onde ocorre a recusa do pagamento pelo sacado) como momento consumativo. Isso porque é ali que o crime patrimonial se consuma com o efetivo prejuízo ao lesado. O mesmo raciocínio pode ser aqui empregado. Onde se perfaz o saque ou pagamento, com lesão do titular do cartão é que se consuma o crime patrimonial e esse local é exatamente o da praça do cartão, da agência bancária à qual é ele vinculado.

Não importa que a ação criminosa tenha se operado em certo local e o resultado (consumação) se perfaça em outro. Com bem destaca Karam:

“Como induvidosamente expressa o disposto no artigo 70, do Código de Processo Penal, o lugar da alegada infração penal, que, em regra, determina o estabelecimento da competência territorial é, portanto,  o lugar onde teria se dado sua consumação, ou seja, o lugar onde alegadamente se deu o resultado que integra a descrição típica, tanto quando este resultado é determinado e precisamente expresso, como quando se traduz na simples manifestação imediata da conduta no mundo exterior, pouco importando que, no primeiro caso, tenha este resultado ocorrido em lugar diferente daquele onde se desenvolveu a ação”. [2]

Esta tem sido a ótica dos tribunais superiores:

“Em se tratando de crime de furto mediante fraude, a competência, como regra geral, será do local onde ocorrer a consumação do delito (art. 70 do PP) (STJ, AgRg. n. CC 110767/SP, Rel. Min. Gilson Dipp, S3, DJe 17.02.2011). [3]

4 – Conclusão

Diante do exposto conclui-se que a prática comum de fraude com uso de cartões de crédito e/ou débito subtraídos ou clonados tem subsunção legal perfeita no crime de furto mediante fraude nos estritos termos do artigo 155, § 4º., II, CP, sendo a competência para o processo e julgamento, bem como a atribuição de polícia judiciária para investigação,  do lugar onde a infração penal se consuma de acordo com as regras dos artigos 4º. c/c 70, CPP. Ora, sendo o crime enfocado patrimonial e material, sua consumação se opera com o efetivo dano patrimonial, o qual se perfaz na praça do cartão, onde se localiza a instituição financeira responsável pela sua administração e, consequentemente, onde se operam os saques e pagamentos com efetiva lesão, inobstante a fraude possa ter se dado em outra localidade.

 

Referências
BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009.
GRECO, Rogério. Código Penal Comentado.  6ª. ed.  Niterói: Impetus, 2012.
KARAM, Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2002.
MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 28ª. ed. São Paulo: Atlas, 2011.
 
Notas:
[1] MIRABETE, Julio Fabbrini, FABBRINI, Renato N. Manual de Direito Penal. Volume II. 28ª. ed. São Paulo: Atlas, 2011, p. 198. Similarmente: GRECO, Rogério. Código Penal Comentado.  6ª. ed.  Niterói: Impetus, 2012, p. 447 – 448. BITENCOURT, Cezar Roberto. Código Penal Comentado. 5ª. ed. São Paulo: Saraiva, 2009, p. 544.

[2] KARAM, Maria Lúcia. Competência no Processo Penal. 3ª. ed. São Paulo: RT, 2002, p. 42.

[3] GRECO, Rogério. Op. Cit., p. 440.


Informações Sobre o Autor

Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia, Mestre em Direito Social, Pós – graduado com especialização em Direito Penal e Criminologia, Professor de Direito Penal, Processo Penal, Legislação Penal e Processual Penal Especial e Criminologia na graduação e na pós – graduação da Unisal e Membro do Grupo de pesquisa em bioética e biodireito do programa de mestrado da Unisal.


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