Resumo: O estudo da democracia como direito fundamental muda o enfoque da análise deste princípio, que deixa de ser concebido como conjunto de procedimentos, para ser reconhecido como valor. O conceito de democracia é abordado em uma perspectiva procedimental e substancial, para tanto apresenta-se os instrumentos democráticos presentes na Carta Magna, além dos conceitos materiais necessárias à compreensão da democracia como valor. Conclui-se que o aspecto procedimental é insuficiente para concretização da democracia como direito fundamental, devendo esta ser concebida numa ótica participativa. [1]
Palavras-chave: democracia – representação – participação – garantias procedimentais – Constituição
Sumário: 1. Democracia representativa e democracia participativa; 2. Instrumentos constitucionais de participação popular direta; 3. Referências.
1. Democracia representativa e democracia participativa
A democracia é um conceito histórico e, portanto, nunca acabado. Etimologicamente a democracia é o governo do povo, contudo o exercício do poder pelo povo deu-se de diversas formas desde sua gênese.
O presente trabalho não objetiva analisar a democracia como conceito universal, ciente de que esta será definida diferentemente em cada comunidade histórica. Limitamo-nos a investigar qual foi a definição de democracia pretendida pelo constituinte brasileiro de 1988, ao eleger o princípio democrático como fundamento do Estado.
José Afonso da SILVA, ao analisar qual é o modelo democrático traçado pela Constituição de 1988, disserta que
“A constituição combina representação e participação direta, tendendo, pois, para a democracia participativa. É o que, desde o parágrafo único do art. 1º, já está configurado, quando, aí, se diz que todo poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos (democracia representativa), ou diretamente (democracia participativa).”[2]
Destarte, abordaremos neste tópico a democracia representativa e a democracia participativa, assim como sua forma híbrida, adotada pela ordem constitucional interna.
Na democracia representativa o povo exerce o poder de forma indireta, sendo que sua participação se dá na eleição dos representantes que irão compor o Parlamento. As eleições dão-se periodicamente, seguindo uma processualística formal, conforme técnicas eleitorais pré-definidas. Conceituando a forma de governo representativa expõe Jorge MIRANDA:
“Governo representativo significa a forma de governo em que se opera uma dissociação entre a titularidade e o exercício do poder – aquela radicada no povo, na nação (no sentido revolucionário) ou na colectividade, e este conferido a governantes eleitos ou considerados representativos da colectividade (de toda a colectividade, e não de estratos ou grupos como no Estado estamental). E é a forma de governo nova em confronto com a monarquia, com a república aristocrática e com a democracia directa, em que inexiste tal dissociação”.[3]
O exercício da soberania popular através de representantes eleitos pelo povo foi um ideal liberal[4], onde a burguesia nascente desejava suplantar o poder soberano do rei e alcançar, assim, poder político. A democracia representativa, portanto, baseia-se na igualdade entre os cidadãos, que exercem o poder político através de seus representantes no Parlamento.
A legitimidade da representação advém da identidade entre a vontade geral e a atuação dos mandatários, ou seja, dos parlamentares, como explicita ZIPPELIUS:
“De acordo com a compreensão democrática, os representantes devem antes ser madatados pelo povo no sentido de ‘exprimir a vontade em seu lugar’. No facto de eles receberem o seu mandato das mãos do povo, reside não só o fundamento legitimador do seu poder de decisão, mas também o instrumento para manter as decisões dos representantes, de forma geral, em harmonia com a vontade da maioria do povo.”[5]
O povo, nesta concepção liberal, não exerce diretamente o poder, mas é soberano para escolher quem o fará. Assim, “muito cedo na história da democracia, um corpo representativo tomou o lugar do povo, passando a agir de forma direta, sendo eleito pelos cidadãos por meio de eleição livre, direta, secreta e igualitária” [6], como expõe SCHOLLER.
Na contemporaneidade, a democracia representativa está presente na maior parte dos países democráticos, como saída para o exercício popular do poder em circunstâncias tais (dimensão territorial e quantidade populacional) que, o exercício do poder direto pelo povo, demonstra-se extremamente dificultoso. Neste sentido explica SCHOLLER:
“O refúgio dos fundamentos da democracia direta continha diferentes causas. A causa mais importante é provavelmente o desenvolvimento de Estado com grandes superfícies, nos quais a participação do cidadão nas decisões imediatas e diretas é difícil. A outra razão reside, acima de tudo, no fato de que os deveres centrais de legislar obrigam o Parlamento a exigir cada vez mais a participação de representantes competentes do povo. Por fim, é necessário considerar o fator tempo, pois é muito comum que uma situação concreta passe a exigir uma ação rápida de um determinado corpo representativo que deve estar a postos de maneira permanente. Isto não vale unicamente para os casos de urgência, mas igualmente para certas decisões cotidianas. Nesta situação, o cidadão se sente alienado pelo Parlamento, que geralmente está localizado longe de seu domicílio e é ocupado por personalidades que não fazem parte do seu círculo de vida, como profissionais ou políticos”[7].
A Constituição Brasileira de 1988 institui a representação popular como uma das formas de exercício da democracia. Os cidadãos (aqueles legitimados a participarem dos pleitos eleitorais) escolhem através do voto direto, secreto e universal, seus representantes no Parlamento e no comando do Poder Executivo.
A democracia representativa, contudo, apresenta-se insuficiente para conceber a soberania popular. Primeiramente porque as pessoas que participam democraticamente na eleição de representantes não correspondem à totalidade de pessoas residentes no território nacional, que são, da mesma forma, destinatários de direitos. Em segundo lugar, o exercício do poder popular através de representantes mostrou-se inconveniente com o distanciamento dos exercentes do mandato dos interesses de seus mandantes, que passam a defender interesses de grupos, com vistas a obter vantagens pessoais, não havendo mecanismos de controle da atividade dos mandatários.
Ademais, possuindo o Poder Executivo todo o poder econômico, este utiliza-se de troca de vantagens e favores para persuadir os parlamentares, fazendo com que fique reduzida a oposição dentro do Parlamento, prejudicando sua função precípua de fiscalizar os atos de governo. A oposição política é essencial à democracia, como explicita EMERIQUE:
“A presença da oposição em um cenário político e o grau de liberdade de que dispõe para atuar na sociedade denotam, em maior ou menor medida, o pluralismo político vivenciado pela comunidade. A oposição é uma expressão do pluralismo, sem a qual um Estado não conta com uma autêntica legitimidade democrática.”[8]
O enfraquecimento do Parlamento como órgão fiscalizador e, sobretudo, como ente máximo de representação da soberania popular, demonstra a insuficiência da participação pela via meramente representativa, o que provoca um agigantamento do Poder Executivo e uma sobrecarga do Poder Judiciário, que faz às vezes de fiscal de atos de governo, numa deformação da concepção clássica liberal de democracia representativa.
Conseqüentemente, pode-se dizer que a democracia representativa em sua concepção liberal clássica encontra-se em crise, uma crise de legitimidade: o povo não se vê representado no Parlamento. Isto tem como implicação a alienação do povo da vida pública.
Esta alienação é perversa para a democracia, pois onde não há participação, não há atuação conjunta para concretização de direitos fundamentais, muito menos fiscalização, deixando com que os governantes se distanciem dos interesses populares, mesmo porque estes não são demonstrados.
SCHOLLER considera que
“um outro elemento de alienação deve ser levado em consideração: o fato de que os representantes do povo tenham se tornado igualmente representantes de interesses organizados, fato este que se apresentou mais claramente nas ultimas décadas. Desta maneira, nasce o sentimento de ser governado por poderes invisíveis e de se estar exposto a decisões tomadas longe dos cidadãos e de seus interesses”.[9]
STRECK e BOSON explicitam a influência do capitalismo na insuficiência da democracia representativa em garantir a igualdade social. Apontam como Macpherson idealizou outra forma de democracia que possibilitava romper com o monopólio do poder pelos grupos econômicos:
“Como contraponto, Macpherson propõe um modelo de democracia onde existia uma diminuição gradual dos pressupostos de mercado e uma ascensão gradual do direito igual de desenvolvimento individual. Para tanto, apresenta um conjunto de pré-condições que seriam as condições sociais de democracia: mudança da consciência do povo e grande diminuição da atual desigualdade social e econômica, eis que a desigualdade exige um sistema partidário não-participativo para manter o status quo. Acentua que há uma espécie de círculo vicioso: n;ao se pode conseguir mais participação democrática sem haver uma prévia mudança da desigualdade social e sua consciência, mas também não se consegue mudar ambas as condições sem um aumento anterior da participação democrática. Daí a prescrição de Macpherson para que se estimulem os procedimentos que viabilizem as propostas tanto de Marx como de J. S. Mill numa democracia que ele chama de ‘participativa’.”[10]
Em contraponto à democracia representativa, surge a idéia da democracia participativa, onde o povo tem vias de acesso direto ao poder, não somente através de seus representantes. Na democracia participativa, o poder é exercido diretamente pelo povo.
A possibilidade de fiscalizar o poder, assim como de exercê-lo diretamente em defesa de assuntos de interesse público, fazem com que a democracia participativa alcance maior legitimidade.
A idéia de participação para concepção deste conceito, é concreta, ou seja, exige o exercício direto da cidadania por parte do povo. SILVA explica que
“qualquer forma de participação que dependa de eleição não realiza a democracia participativa, no sentido atual dessa expressão. A eleição consubstancia o principio representativo, segundo o qual o eleito pratica atos em nome do povo.
O princípio participativo caracteriza-se pela participação direta e pessoal da cidadania na formação dos atos de governo”.[11]
A participação direta do povo nos atos de governo deve operar de forma a refletir a vontade do estado, para que haja uma correspondência entre a vontade popular e a vontade estatal. A participação deve se realizar, precipuamente, nos atos deliberativos, que são aqueles que definem as diretrizes de atuação. Isto porque a função puramente administrativa permanecerá nas mãos dos servidores do Estado, que atuam mediante o uso de poderes instrumentais conferidos pela ordem jurídica[12]. Esta, contudo, deve ser definida pela via da participação popular.
Essencialmente, portanto, a democracia participativa exige que a efetiva participação popular legitime o poder estatal. A forma pela qual se dará esta participação dependerá das contingências de cada Estado.
A Constituição Brasileira de 1988 privilegiou um sistema democrático híbrido, conjugando elementos de democracia representativa com elementos da democracia participativa (art. 1º, parágrafo único).
Cabe aqui colocar por fim que, para BONAVIDES, a democracia como direito fundamental deve ser, necessariamente, uma democracia participativa. Conclusão esta que se torna inevitável frente aos argumentos apresentados que demonstram a insuficiência da democracia representativa.
“A democracia positivada por direito da quarta geração será, de necessidade, tanto quanto possível, uma democracia direta e participativa. Materialmente exeqüível, graças aos progressos da tecnologia de comunicação, e legitimamente sustentável, graças à informação correta e às aberturas pluralistas do sistema, há de ser também democracia isenta já das contaminações da mídia manipuladora, já do hermetismo de exclusão, de índole autocrática e unitarista, familiar aos monopólios do poder”.[13]
Como conceito em construção, a democracia não possui regras delimitadas. Cabe a cada Estado nacional estabelecer como se dará o governo pelo povo, cientes de que, em uma sociedade complexa, composta de milhões de indivíduos, a atuação direta destes nas decisões do Estado torna-se inviável e utópica. Todavia, a máquina estatal deve garantir formas de exercício do poder decisório pelo povo, ou resguardar espaço para participação popular.
Corroborando com esta conclusão está Clèmerson Merlin CLÈVE:
“A questão da democracia não pode ser posta apenas em termos de representatividade. Não há dúvida que em Estados como os modernos não há lugar para a prescindibilidade da representação política. Os Estados modernos, quando democráticos, reclamam pela técnica da representação popular. A nação, detentora da vontade geral, fala pela voz de seus representantes eleitos. Mas a cidadania não se resume na possibilidade de manifestar-se, periodicamente, por meio de eleições para o Legislativo e para o Executivo. A cidadania vem exigindo a reformulação do conceito de democracia, radicalizando, até, uma tendência que vem de longa data. Tendência endereçada à adoção de técnicas diretas de participação democrática. Vivemos, hoje, um momento em que se procura somar a técnica necessária da democracia representativa com as vantagens oferecidas pela democracia direta. Abre-se espaço, então, para o cidadão atuar, direta ou indiretamente, no território estatal”.[14]
Tendo em vista a importância da compreensão da participação popular para o estudo da democracia, especialmente desta como um direito fundamental, como defende BONAVIDES, passaremos agora, no próximo item, a descrever de forma sucinta as várias formas de participação popular nas atividades estatais, previstas pelo texto constitucional de 1988, que concretizam o princípio democrático em seu aspecto procedimental.
2. Instrumentos constitucionais de participação popular direta
O princípio democrático previsto na Constituição da República se concretiza, no aspecto procedimental, através de garantias de participação direita e de representação popular. Os direitos que advém do princípio democrático encontram-se espalhados pelo texto constitucional, sendo que alguns deles encontram-se no Título II, “Dos Direitos e Garantias Fundamentais”.
O conteúdo do princípio democrático não se resume, contudo, aos direitos políticos, expressamente elegidos a categoria de direitos fundamentais. As garantias constitucionais, especialmente aquelas que permitem o exercício da democracia direita, encontram-se difundidas em outros títulos da Carta.
Sistematicamente, a participação do povo no poder dar-se-á no processo legislativo, através da participação na própria atividade administrativa e através da fiscalização das atividades estatais. Identificando os direitos e garantias procedimentais decorrentes do princípio democrático em três grandes grupos, sua previsão encontra-se nos seguintes dispositivos constitucionais:
a) Participação no processo legislativo:
– iniciativa popular – art. 14, III, c/c art. 61, § 2º e art. 29, XIII;
– referendo – art. 14, II, c/c art. 49, XV;
– plebiscito – art. 14, I;
– audiências públicas – art. 58, § 2º, II.
b) Participação na Administração e formação de políticas públicas:
– participação em órgãos públicos e colegiados – art. 10, art. 194, VII, art. 198, III;
– participação na formação das políticas públicas e na administração – art. 29, XII, art. 204, II, art. 206, VI, 227, § 1º.
c) Participação na fiscalização e acesso a dados públicos:
– ação popular – art. 5º, LXXIII;
– fiscalização – art. 29, § 3º, art. 31, § 3º, art. 37, § 3º, I;
– denunciar – art. 58, § 2º, IV, art. 74, § 2º, art. 37, § 3º, III;
– acesso a dados públicos – art. 5º, XXXIII, art. 37, § 3º, II.
O direito à participação popular decorre do princípio democrático. Assim, com vistas a apresentar instrumentos que dão densidade e concretude ao princípio objeto de nossa análise, importa dissertar, mesmo que sumariamente, acerca dos direitos e garantias presentes nos artigos acima referidos. Ressalva-se, entretanto, que a presente exposição não pretende exaurir todas as possibilidades de concretização do princípio democrático presentes na Constituição de 1988.
Primeiramente, abordaremos brevemente os direitos e garantias de participação no processo legislativo.
O povo participa no processo legislativo, indiretamente, uma vez que este é protagonizado por seus representantes eleitos, seja no Congresso Nacional (deputados federais e senadores), na Assembléia Legislativa (deputados estaduais) ou nas Câmaras municipais (vereadores). Contudo, a Constituição de 1988 garante a participação direta de toda a sociedade no processo legislativo, nos três âmbitos federativos de poder, através dos mecanismos previstos nos art. 14, I, II e II, art. 29, XII, art. 49, XV, art. 58, § 2º, II, e art. 61, § 2º.
O plebiscito, mecanismo democrático inserido no conceito de sufrágio universal, previsto no art. 14, I, da Constituição, pressupõe a consulta popular prévia à adoção de alguma medida.
O plebiscito encontra previsão constitucional expressa no art. 18, § 3º e §4º, que dispõe sobre a organização político-administrativa do Estado. Os referidos parágrafos do art. 18 determinam que a população dos Estados-membros e municípios deve ser consultada no caso de incorporação, subdivisão, desmembramento e anexação dos entes federativos[15]. Outra previsão constitucional encontra-se no Ato das Disposições Constitucionais Transitórias, art. 2º, que levou à realização do plebiscito para definir a forma (república ou monarquia) e o sistema de governo (parlamentarismo ou presidencialismo).
Em âmbito nacional, é de competência exclusiva do Congresso Nacional autorizar referendos e convocar plebiscitos, na forma do art. 49, XV. Nas esferas Municipal e Estadual, caberá à Lei orgânica do Município e à Constituição Estadual, respectivamente, dispor sobre a convocação da consulta popular nos assuntos de sua competência.
O sufrágio universal comporta, igualmente, o referendo. Previsto no art. 14, II, o referendo constitui uma consulta popular de cunho normativo, quando a proposição ou norma já se encontra formulada. O referendo terá como efeito a constituição, revogação, conservação ou modificação da norma jurídica[16] posta em deliberação.
A fim de diferenciar o referendo do plebiscito, SGARBI propõe uma diferenciação objetiva, sendo que
“o referendo tem incidência sobre matérias de cunho essencialmente normativo, ou seja, onde a norma é a finalidade da convocação para deliberação do corpo eleitoral. Seu principal objetivo se circunscreve, portanto, na determinação da sorte da norma, lato sensu, concretamente disposta, seja por proposição, seja no seu plano de vigência.”[17]
Já o plebiscito, para o autor, tem incidência sobre matérias em tese, ou seja, fatos, questões abstratas ou hipotéticas, sendo a deliberação sobre o assunto consultado o objetivo principal, mesmo que a decisão ali tomada provoque reflexos normativos.
A Lei Federal que regulamentou o art. 14, I, II e III da Constituição Federal, Lei n. 9.709, de 18 de novembro de 1998, conceituou o plebiscito e o referendo da seguinte forma:
“Art. 2º Plebiscito e referendo são consultas formuladas ao povo para que delibere sobre matéria de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa.
§ 1º O plebiscito é convocado com anterioridade a ato legislativo ou administrativo, cabendo ao povo, pelo voto, aprovar ou denegar o que lhe tenha sido submetido.
§ 2º O referendo é convocado com posterioridade a ato legislativo ou administrativo, cumprindo ao povo a respectiva ratificação ou rejeição”.
As decisões exaradas em plebiscitos e em referendos são vinculativas[18], uma vez que representam o exercício da soberania popular (art. 14, caput). A Constituição não explicita os casos em que a consulta popular deve ser realizada, deixando para lei ordinária dispor sobre o assunto. A Lei n. 9.709/98 trouxe preceito genérico ao dispor que serão objeto de referendo e plebiscito as matérias de acentuada relevância, de natureza constitucional, legislativa ou administrativa. Perceba que a disposição normativa deixa margem para uma ampla utilização dos instrumentos democráticos do referendo e plebiscito, contudo não vincula o Parlamento a sua convocação, que ocorrerá somente se algum dos legitimados no processo legislativo (presidente, parlamentares e cidadãos, quando competentes) propuser a consulta popular, cabendo aos parlamentares avaliarem a sua conveniência[19] (art. 49, XV).
Ainda como forma de participação direta no processo legislativo, a Carta Magna garante a iniciativa popular, nos art. 14, III, c/c art. 61, § 2º e art. 29, XIII.
É certo que a Constituição previu requisitos extremamente dificultosos ao encaminhamento de projetos de lei pela iniciativa popular, quando prescreve que a iniciativa popular pode ser exercida pela apresentação à Câmara dos Deputados de projeto de lei subscrito por, no mínimo, um por cento do eleitorado nacional, distribuído pelo menos por cinco Estados, com não menos de três décimos por cento dos eleitores de cada um deles (art. 61, § 2º). No caso dos Municípios, a propositura popular de projeto de lei depende da manifestação de, pelo menos, cinco por cento do eleitorado, na forma do art. 29, XIII da Carta Constitucional. Nos Estados-membros, a iniciativa popular deverá ser regulamentada por lei (art. 27, § 4º).
Por último, a Constituição prevê a prerrogativa das comissões parlamentares convocarem audiências públicas (art. 58, § 2º, II). Esta é uma maneira democrática das comissões temáticas convocarem a sociedade civil para discutir temas cujas matérias sejam de sua competência. As reuniões podem ser realizadas nos três âmbitos federativos, conforme as disposições dos regimentos internos de cada parlamento.
A realização de audiências públicas perante o Poder Legislativo Federal encontra previsão no Regimento Interno da Câmara dos Deputados (Resolução n. 17/1989), na forma do art. 255, verbis:
“Art. 255. Cada Comissão poderá realizar reunião de audiência pública com entidade da sociedade civil para instruir matéria legislativa em trâmite, bem como para tratar de assuntos de interesse público relevante, atinentes à sua área de atuação, mediante proposta de qualquer membro ou a pedido de entidade interessada”.
A realização da reunião pública, na forma do dispositivo citado, poderá ser proposta pelos membros da comissão, assim como a pedido de entidades interessadas da sociedade civil. Os membros da comissão parlamentar devem garantir que participem dos debates tanto defensores quanto opositores da matéria objeto da discussão pública, assim como autoridades, especialistas e demais pessoas interessadas [20].
Perceba que a previsão constitucional constante no art. 58, § 2º, II, é de extrema importância para a concretude do princípio democrático, posto que abre espaço direito de debate entre os membros do Poder Legislativo e os cidadãos, de forma a aproximar os exercentes do mandato representativo dos legítimos possuidores do poder. É direito de todos, portanto, pedir a realização de audiência públicas no seio de comissões parlamentares, para discutir as matérias objeto de projetos de lei em tramitação ou de outras cujo tema seja de interesse público.
A participação popular direta dá-se, ainda, através da previsão constitucional de direitos e garantias de participação na administração e na formação de políticas públicas.
A democracia participativa propriamente dita pode ser encontrada nos dispositivos constitucionais que garantem a co-gestão pública pelo cidadão, seja através da previsão de conselhos deliberativos compostos pela sociedade civil ou de outros mecanismos de atuação direta da sociedade da Administração.
Como assevera Gustavo Justino de OLIVEIRA “a Administração Pública contemporânea configura a interface entre o Estado e a sociedade” [21]. Desta forma, a participação dos cidadãos na Administração Pública corresponde à participação no próprio Estado.
A democratização da Administração importa
“(i) na substituição das estruturas hierárquico-autoritárias por formas de deliberação colegial, (ii) introdução do voto na seleção das pessoas a quem foram confiados cargos de direção individual, (iii) participação paritária de todos os elementos que exercem a sua atividade em determinados setores da Administração, (iv) transparência ou publicidade do processo administrativo e (v) gestão participada, que consiste na participação dos cidadãos por meio de organizações populares de base e de outras formas de representação na gestão da Administração Pública.”[22]
Os direitos fundamentais, especialmente aqueles que correspondem a prestações, serão viabilizados pela atuação administrativa do Estado. A gestão democrática da administração importa, portanto, na redução da discricionariedade dos gestores e à reaproximação dos cidadãos das decisões de interesse público.
Disserta OLIVEIRA que
“a função administrativa deverá não somente pautar-se em atenção a esse valor [dignidade da pessoa humana], mas também ser desempenhada no sentido de que as decisões tomadas pelos agentes, órgãos e entidades administrativas estejam o mais próximo possível dos anseios do indivíduo e da sociedade. Isto demanda a obrigatória disponibilização de canais participativos aos cidadãos, gerando soluções concertadas, tornando possível a concretização do ideal constitucional da dignidade da pessoa humana”[23].
A relevância do princípio democrático para a salvaguarda dos demais direitos fundamentais, individuais e coletivos, não foi olvidada pelo constituinte de 1988, que introduziu em inúmeros artigos, especialmente naqueles que dispõem sobre direitos sociais (Título VIII, Da Ordem Social), instrumentos de gestão democrática.
A participação popular na Administração, minimamente obrigatória pelo texto constitucional[24], dar-se-á na composição paritária de órgãos públicos colegiados (art. 10, art. 194, VII e 198, III), e na formação das políticas públicas (art. 29, XII, art. 204, II, art. 206, VI, 227, § 1º).
Em âmbito municipal o exercício da democracia diretamente pelos detentores do poder é possível e, desta forma, a participação popular na Administração municipal pode ser muito mais intensa do que em outras esferas federativas, onde os limites territoriais apresentam-se como empecilho. O art. 29, XII, da Carta Magna indica como preceito aos municípios a cooperação das associações representativas no planejamento municipal.
Em âmbito nacional, a participação popular na Administração, como prescrito constitucionalmente, dar-se-á de forma mais fragmentada, através da participação de representantes da sociedade civil em órgãos colegiados ou conselhos deliberativos, nas áreas da saúde, assistência social, cultura, educação, meio ambiente e patrimônio histórico.
Por fim, passaremos a análise dos direitos e garantias de fiscalização da atuação estatal e acesso a dados públicos.
A fiscalização dos gestores estatais pelos cidadãos é inerente ao princípio democrático. Eleger os representantes, contudo sem fiscalizar sua atuação, significaria muito pouco na concretização da soberania popular e na efetividade da democracia.
Ademais, as críticas que se põem a democracia representativa são diretamente conseqüentes do distanciamento dos cidadãos, após as eleições, das atividades de seus representantes. José Afonso da SILVA aponta que, como na democracia representativa o mandatário não possui vinculação com o mandante e a participação popular se resume ao ato individual de comparecimento aos dias das eleições, a representatividade fática tende a restar comprometida. A idéia de que o representante decide pelo povo e sua vontade é a vontade do povo é uma ficção, e este modelo é somente um modelo ideal, “de igualdade abstrata perante a lei” [25].
Perceba que a atuação direta do povo, sendo um poder-dever, é essencial para a consolidação da democracia e, conseqüentemente, de todos os demais direitos fundamentais.
Para que o povo fiscalize a atividade de seus representantes é imprescindível que este tenha acesso a informações sobre a atuação dos administradores e dos parlamentares, onde se percebe a relevância do princípio da publicidade na Administração Pública, previsto no art. 37, caput, sem olvidar do ditame do art. 5º, XXXIII e XXXIV.
CARVALHO FILHO explicita que o principio da publicidade dos atos administrativos pode ser reclamado através de dois instrumentos: o direito de petição (art. 5º, XXXIV, “a”) e as certidões (art. 5º, XXXIV, “b”). Caso estes direitos sejam negados ou a informação pública não for veiculada, poderá o cidadão utilizar-se dos remédios constitucionais do mandado de segurança (art. 5º, LXIX) e o habeas data (art. 5º, LXXII). [26]
A fim de garantir o acesso necessário, a previsão do art. 37, § 3º [27], dispõe sobre a participação do usuário na Administração pública, dotando-lhe de vias de acesso para reclamação, denúncia e informação sobre atos de governo. Este artigo foi introduzido na Carta Magna através da Emenda Constitucional n. 19/98, conhecida como reforma administrativa, visando aproximar o cidadão dos gestores públicos e introduzindo mecanismos democráticos de atuação popular na Administração. A disposição do art. 37, § 3º, I, deu fundamento constitucional para a criação das ouvidorias na Administração Pública[28].
A atuação do ombusdsman já se dava no início do século XIX, na Suécia, sendo identificadas experiências similares em vários países da Europa. Tratava-se de um órgão de proteção dos cidadãos ligado ao Parlamento, atuando no controle da Administração Pública. No Brasil deu-se a criação de instituto similar com as ouvidorias. Estas foram criadas no país em nível de controle interno, ou seja, funcionam dentro da própria estrutura da Administração Pública. Sua função é a de receber denúncias de irregularidades, assim como qualquer outra reclamação quanto à prestação dos serviços públicos por parte dos cidadãos, sendo mecanismo de controle de qualidade da administração estatal.[29]
Na mesma esteira, fruto da reforma da administração pública que passa a ser mais gerencial[30], substituindo o modelo burocrático dominante, o direito de reclamação ganha novos contornos com a redação do art. 37, § 3º, dada pela Emenda Constitucional n. 19/98. Expõe Adriana SCHIER que
“Com a reforma e a tentativa de implantação da administração gerencial, a legitimidade do sistema, como se afirmou, passa a ser conferida pelos resultados eficientes, obtidos, principalmente, através da participação do cidadão na esfera administrativa, seja mediante a interferência nos processos decisórios ou pela fiscalização através dos mecanismos de controle social, dentre eles o direito de reclamação”.[31]
O direito de reclamação, por fim, concretiza o princípio democrático, uma vez que proporciona vias de acesso direito do cidadão à administração estatal, legitimando sua atuação e garantindo que esta zele pelos direitos individuais e pelo interesse público, já que as reclamações direcionadas ao poder público podem ser tanto referentes a assuntos de âmbito individual, como a assuntos de âmbito coletivo ou transindividual.
A fim de possibilitar o controle dos gastos públicos a constituição estabeleceu a obrigatoriedade de os Municípios publicarem suas contas, na forma do art. 31, § 3º. Todo contribuinte [32] tem acesso, por sessenta dias, às contas municipais, a fim de questionar-lhes a legitimidade. Esta publicidade garante o acompanhamento das ações do governo através da análise de seus gastos, o que permite ao cidadão questionar a eleição de prioridades pelo governante em razão dos investimentos realizados. Importante ferramenta de controle social, mas que tem sido de pouca efetividade na concretização democrática devido à complexidade dos balanços publicados, que tornam as informações acessíveis somente a técnicos contábeis.
Atentos ao fato de que as garantias constitucionais não têm previsão para bastarem em si mesmas, mas sim para a realização de princípios fundamentais, a previsão do art. 31, § 3º, da Constituição somente servirá ao princípio democrático se as informações sobre as contas públicas forem disponibilizadas também em linguagem simplificada, de forma a permitir a compreensão dos dados pelos cidadãos[33].
A ação popular garante o exercício fiscalizatório do cidadão, possibilitando acesso direto ao Poder Judiciário para evocar a defesa do patrimônio público, na forma do art. 5º, LXXIII [34]. A ação popular é regulamentada pela Lei n. 4.717, de 29 de junho de 1965.
Lecionando acerca do referido instituto, assevera SILVA:
“Trata-se de um remédio constitucional pelo qual qualquer cidadão fica investido de legitimidade para o exercício de um poder de natureza essencialmente política, e constitui manifestação direta da soberania popular consubstanciada no art. 1º, parágrafo único, da Constituição: todo poder emana do povo, que o exerce por meio de seus representantes eleitos ou diretamente. Sob este aspecto é uma garantia constitucional política. Revela-se como uma forma de participação do cidadão na vida pública, no exercício de uma função que lhe pertence primariamente. Ela dá a oportunidade de o cidadão exercer diretamente a função fiscalizadora, que, por regra, é feita por meio de seus representantes nas Casas Legislativas”.[35]
A ação popular é um procedimento onde todos os cidadãos são legitimados a buscar a tutela jurisdicional em defesa de um interesse coletivo, a fim de anular ato lesivo ao patrimônio público ou de entidade de que o Estado participe, à moralidade administrativa, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural.
A utilização do termo cidadão pela Constituição, para nomear os legitimados a propor a ação popular, importa dizer que podem utilizar-se deste instrumento aqueles que estejam no gozo de seus direitos políticos[36].
A fim de garantir a eficácia da instrução do processo judicial impulsionado pela ação popular, dispõe o regulamento que o cidadão poderá requerer às entidades, a que se refere este artigo, as certidões e informações que julgar necessárias, bastando para isso indicar a finalidade das mesmas (art. 1º, § 4º da Lei 4.717/65), para instruir a inicial.
A Constituição também garante canais direitos de denúncia, pelos cidadãos, de atos lesivos praticados por administradores, que pode ser perante o Tribunal de Contas (art. 74, § 2º) e nas comissões parlamentares (art. 58, § 2º, IV).
Da mesma forma, concretiza o princípio democrático o direito de petição, direito fundamental explícito, presente tanto no art. 5º, XXXIV, como no art. 58, § 2º, IV, sendo este último canal direto de acesso do cidadão ao Parlamento. Analisando os instrumentos de participação popular na esfera estatal SGARBI pontua que
“o direito de petição surge como a faculdade reconhecida ao indivíduo ou grupo de indivíduos de se fazer ouvir por quaisquer autoridades públicas para que se atenda um necessidade de interesse particular ou coletivo, seja com reclamações, seja com solicitações de variada natureza”.[37]
Através do direito de petição todo cidadão pode dirigir a qualquer órgão público, e este não poderá se furtar a responder à petição devidamente protocolada. Em se tratando de direito fundamental, sua eficácia é plena e aplicabilidade imediata, o que desautoriza à administração a negar pedidos por ausência de norma que regulamente o exercício do direito de petição. A Administração, pode, no máximo expedir regulamentos de forma a disciplinar o exercício deste direito, sem, jamais restringi-lo[38].
Comentando acerca do direito de petição no Estado Alemão, SCHOLLER afirma que
“a petição é um dos direitos fundamentais do cidadão, sobretudo do Homem, garantido pela Constituição, e pela qual o cidadão pode se dirigir ao Parlamento para fazer requisições ou reclamações. Pelo caráter próprio do direito fundamental, elas pertencem tanto ao status negativus quanto ao status positivus, à condição em que elas exijam uma ação do Estado e que façam igualmente parte do status activus, ou seja, que participem da formação de vontade da representação popular. Por isso, o direito de petição não pode descolar-se da componente democrática”.[39]
Perceba que a Constituição brasileira de 1988 foi cuidadosa em prever, ao longo de todo o seu texto, mecanismos de participação do cidadão na esfera estatal, de forma a permitir a efetivação da democracia participativa. Todos os instrumentos referidos no presente texto compõem o conteúdo do princípio democrático, pelo menos em seu aspecto procedimental. É salutar ressaltar, entretanto, que a descrição ora apresentada não esgota outras possibilidades interpretativas do texto constitucional que permita indicar outros mecanismos democráticos, pois a enumeração está longe de ser taxativa, ou seja, a todo momento podem ser criados novos mecanismos de participação, assim como aperfeiçoados os já existentes.
Informações Sobre o Autor
Luana Xavier Pinto Coelho
Advogada, especialista em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional, Consultora em Direito Administrativo