Por um especial carinho da família Delmanto, fui assistir à peça “Chicago”, em adaptação da versão norte-americana. Belíssimo espetáculo, por sinal. Os dois melhores personagens, segundo consenso, eram o marido da assassina e a atriz que fazia a carcereira, dotada de voz excelente. A certa altura, ela diz: “– Se tu dá pra Mama, Mama dá pra tu”. Tem a frase um íntimo sabor de reciprocidade mas exibe, igualmente, clonagem de ditado popular: “Quem semeia vento, colhe tempestade”. Creio, até, que uma pesquisa mais acentuada localizaria o preceito na Bíblia sagrada, mas falta tempo para a purgação formal dos meus pecados. Ficam no inconsciente.
De qualquer forma, o recentíssimo episódio da violação de segredos do agora Ministro das Comunicações (um paradoxo, porque quem comunica não deve ter segredos) provocou, segundo o Ministro da Justiça, nosso colega Marcito, declaração ríspida no sentido de já conhecer o caso desde março, estando a apurá-lo em sigilo, constituindo, isso, outra extravagância, na medida em que a violação do sigilo é pesquisada secretamente. Assim, Márcio, constrangido, disse que não podia violar o segredo da apuração da violação do segredo, circunstância que seria cômica, se dramática não fosse. Voltando-se à sabedoria da personagem de “Chicago”: “Se tu dá pra Mama, Mama dá pra tu”. Cuida-se de máxima sacramental. Recolhe-se em igual medida aquilo que se deu, ou que se permitiu acontecer. Na verdade, os espiolhadores profissionais da “big woman” empresa Kroll, defendendo-se da acusação de interceptação, afirmaram que tinham no “pedigree” antecedentes de extrema credibilidade, pois haviam trabalhado para o próprio Governo. Sem intenção de ironia, poder-se-ia dizer que estavam “Abinlitados”, ótima recomendação aliás, porque advinda da Agência de Inteligência da Presidência da República. É o que se pode depreender, porque se a contratação adviesse de outro setor do Governo Federal, anômala seria, pois o normal é que o espião se entenda com quem o entende, ou seja, com outro espia. As arapongas grasnam juntas. Não se pretenderia que um estilista de modas se comunicasse com o açougueiro para planejar o desfile da brasileira Gisele Bundchën.
O desnudamento do segredo do Ministro das Comunicações tem um sabor de “vendetta” mafiosa gerada pela fatalidade. A espionagem é, hoje, rotina brasileira. Permitiu-a a Justiça, sendo, aliás, sua maior incentivadora. É como se num convento de freiras fosse admitida a conduta imoral. O apodrecimento ético é contagioso. Se a madre superiora não toma cuidado, vai na onda e veste, no carnaval, a fantasia da doidivanas. Assim, o Ministério da Justiça está pagando o preço justo daquilo que o próprio Governo estimulou, a partir das priscas eras do autoritarismo, não valendo a tentativa de distinção ou separação entre os motivos. Em outros termos, violar a privacidade alheia seria possível, desde que os intuitos fossem bons. É mais ou menos como praticar a prostituição para doar o resultado a uma creche de crianças carentes, justificando-se, aí, até mesmo a maldade praticada para se fazer o bem. O bom ladrão. O Governo é bom ladrão. De repente, alguém furta os segredos do grande malfeitor. Este repica: eu me conduzia mal para um resultado saudável. O outro infrator responde: – “Mas eu fui contratado, também, para fazer o bem, porque você poderia estar a conduzir-se mal. Aliás, já participei com você de algumas atividades marginais. No fim das contas, estamos de braços dados…”
Nesse bailado cavernoso, resta a tristeza de não se saber, mais, qual dos dois lados pratica o bem porque, afinal, “Se tu dá pra Mama, Mama dá pra tu”. Marcito tenta hoje, consertar o pacote. Vai ser difícil, pois o espião atual foi o santo de anteontem. É preciso cuidado. Melhor seria dormir com o inimigo, dando-lhe um bom tranqüilizante.
Informações Sobre o Autor
Paulo Sérgio Leite Fernandes
Advogado criminalista em São Paulo e presidente, no Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, da Comissão Nacional de Defesa das Prerrogativas do Advogado.