Resumo: O presente artigo tem por escopo avaliar a aplicação do artifício da modulação dos efeitos das decisões exaradas pelo Supremo Tribunal Federal ao julgar, em controle concentrado de constitucionalidade, questões atinentes aos benefícios fiscais de ICMS concedidos unilateralmente pelos Estados-membros e pelo Distrito Federal no âmbito da Guerra Fiscal, tendo em vista os danosos efeitos jurídicos, sociais e econômicos causados pela possível cobrança retroativa de créditos de ICMS.
Palavras-chave: Guerra Fiscal, ICMS, inconstitucionalidade, modulação, efeitos, Supremo Tribunal Federal.
Abstract: This article has the objective of evaluate the implementation of the modulating artifice of the effects of decisions by the Supreme Court to judge, in concentrated control of constitutionality, issues related to the tax benefits of ICMS granted unilaterally by the States and the Federal District in the Tax War due to the damaging legal, social and economic effects caused by possible chargeback ICMS credits.
Key-Words: Tax War, ICMS, unconstitutionality, modulation, effects, Supreme Court.
1. INTRODUÇÃO
O Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação – ICMS – corresponde a um imposto de caráter fiscal, indireto, real e não-cumulativo, previsto no artigo 155, II, da Constituição Republicana de 1988 e incidente, em linhas gerais, sobre operações referentes à mercantilização.
De competência dos Estados e do Distrito Federal e recaindo, principalmente, sobre o consumo, o ICMS é o tributo responsável pela maior parte da renda destes entes federativos, demonstrando-se, então, a sua tamanha importância.
Desta feita, em face da intenção dos Estados brasileiros em ampliarem o desenvolvimento local, atraindo investimentos do setor privado, e em decorrência da competência para regulação, por leis próprias, do ICMS, tais entes federativos entram em uma genuína disputa de concessão de incentivos fiscais e financeiros, denominada de Guerra Fiscal.
Neste espeque, imprescindível questionar se os benefícios fiscais concedidos unilateralmente no âmbito da Guerra Fiscal devem ser julgados inconstitucionais pelo Supremo Tribunal Federal e quais os efeitos que poderiam emanar desta declaração.
O presente artigo tem como objetivo avaliar a aplicação, pelo STF, do instituto da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade dos benefícios fiscais de ICMS concedidos unilateralmente pelos Estados e Distrito Federal, tendo em vista os efeitos jurídicos e econômicos desta declaração.
Existem muitas controvérsias acerca do tema e essa discussão terá como embasamento os entendimentos jurisprudenciais e doutrinários, que em sua grande maioria, consideram a inconstitucionalidade da Guerra Fiscal e a imprescindibilidade de aplicação da modulação dos efeitos das decisões da Corte Superior, conforme veremos adiante.
Nesta senda, o trabalho em comento foi elaborado mediante pesquisa bibliográfica descritiva exploratória, aprofundando o tema através de estudos em doutrinas e jurisprudência. Assim, com a correta pesquisa para coleta dos materiais importantes para a confecção deste trabalho, o mesmo será concluído com a utilização de tudo o que for adequado e necessário.
Para este fim, seguiremos o seguinte roteiro: noções gerais acerca do ICMS; ICMS, Guerra Fiscal a Lei Complementar nº 24/1975; a concessão inconstitucional de benefícios e a posição do Supremo Tribunal Federal; a modulação das decisões do Supremo Tribunal Federal quanto aos benefícios fiscais julgados inconstitucionais; considerações finais.
2. NOÇÕES GERAIS ACERCA DO ICMS
A gênese do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação – ICMS remonta ao antigo Imposto de Vendas e Consignações – IVC, antevisto no bojo da Constituição Federal de 1934, imposto este de caráter estritamente mercantil e incidente em “efeito cascata”, ou melhor, longe da observância do princípio da não-cumulatividade, de forma que o tributo incidia em todas as etapas de circulação da mercadoria (MACHADO, 2002, p. 313-314).
Com o advento da Emenda Constitucional n.º 18, 1º de dezembro de 1965, o IVC é substituído pelo Imposto sobre Circulação de Mercadorias – ICM, trazendo, como grande inovação, a superação da sistemática do “efeito cascata” (passando a seguir o princípio da não-cumulatividade), segundo os moldes dos impostos europeus, de modo que o tributo incidiria somente sobre o valor agregado à mercadoria, valor este encontrado por meio da diferença quantificada entre o montante da operação sujeita à tributação e o valor da operação precedente, sucedendo, portanto, em uma espécie de compensação entre créditos (apurados nas operações anteriores) e débitos (apurados nas operações subsequentes) (MACHADO, 2002, p. 313-314).
Transcorrido o período da Ditadura Militar, a Carta Magna de 1988, ao dispor sobre o novo Sistema Tributário Nacional, veio prenunciar, em substituição ao ICM, a figura do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação – ICMS, com previsão no artigo 155, II, do referido diploma mor, acrescendo dois serviços ao campo de incidência do superado ICM.
De propósito eminentemente fiscal e operando em respeito ao princípio da não-cumulatividade, com possibilidade de ser seletivo em razão da essencialidade das mercadorias e serviços, o ICMS passa a incidir, em breve síntese, sobre operações relativas à circulação de mercadorias (inclusive, a importação destas do exterior) prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal; prestações onerosas de serviços de comunicação; produção, circulação, importação, distribuição ou consumo de petróleo, inclusive lubrificantes e combustíveis líquidos e gasosos dele derivados e energia elétrica e, por fim, extração, circulação, distribuição ou consumo de minerais (CARRAZZA, 2006).
Nesta senda, imperioso registrar que em relação às operações relativas à circulação de mercadorias, a doutrina é uníssona em abraçar o entendimento de que a “operação circulação” à que se refere o texto constitucional corresponde, logicamente, à circulação jurídica, ou melhor, a atos ou negócios jurídicos em que ocorre a transmissão de um direito ou a verdadeira mudança de titularidade, mas não a mera circulação física da mercadoria, sob pena de patente vilipêndio ao princípio da legalidade. Sobre este aspecto, vale trazer à baila a posição largamente seguida de José Eduardo Soares de Melo (2007, p. 214):
“O fato físico da “saída” de mercadoria do estabelecimento, por si só, seria irrelevante para tipificar a hipótese de incidência do imposto, sendo firmada a diretriz de que não constitui fato gerador do ICMS o simples deslocamento de mercadoria para outro estabelecimento do mesmo contribuinte.”
O mesmo entendimento vem seguido pelo Superior Tribunal de Justiça que, ao editar a Súmula 166[1], deixa claro que a “operação de circulação” tratada na Carta Magna não corresponde à simples movimentação física do bem.
No que corresponde ao conceito de “mercadoria”, a melhor doutrina é pacífica na orientação de admitir que este deva ser extraído do Direito Comercial e observando o que preceitua o artigo 110 da Carta Magna, a lei tributária não pode alterar a definição, o conteúdo e o alcance de institutos, conceitos e formas de direito privado, utilizados, expressa ou implicitamente, pela Constituição Federal para definir ou limitar competências tributárias. Logo, “mercadoria” corresponde ao bem móvel submetido à mercancia, isto é, o bem móvel transacionado com habitualidade. É neste sentido a lição de Roque Antônio Carrazza (2006, p. 43-45):
“Não é qualquer bem móvel que é mercadoria, mas tão somente o bem móvel corpóreo (bem material que se submete à mercancia. Podemos, pois, dizer que toda mercadoria é bem móvel, mas nem todo bem móvel é mercadoria. Só o bem móvel que se destina à prática de operações mercantis é que assume a qualidade de mercadoria. […] Daí que a existência de uma mercadoria não está na natureza do bem móvel, mas na sua destinação. […] Para que um bem móvel seja havido por mercadoria, é mister que ele tenha por finalidade a venda ou a revenda. Em suma, a qualidade distintiva entre bem móvel (gênero) e mercadoria (espécie) é extrínseca, consubstanciando-se no propósito de destinação comercial”.
Sublinhe-se que, incidindo diretamente sobre o consumo, o ICMS corresponde a um tributo indireto, ou seja, a carga de ICMS incidente sobre uma mercadoria ou serviço e paga pelo contribuinte de direito (previsto em lei) é embutida no próprio valor da mercadoria ou serviço comercializado e, por fim, repassada ao consumidor final (contribuinte de fato).
Impossível olvidar, pela sua relevância, que, à despeito das considerações expostas alhures, a Carta Suprema prevê expressamente (artigo 155, § 2º, IX, ‘a’) a possibilidade de incidência do imposto ora versado sobre a entrada de mercadorias, bens ou serviços do exterior, qualquer que seja a sua destinação e ainda que o importador não seja contribuinte habitual do imposto[2], desconsiderando, neste particular, a existência ou inexistência do caráter mercantil para fins de incidência do tributo. Nesta situação, considera-se corrido o fato gerador do imposto no momento do desembaraço aduaneiro da mercadoria ou bem importado do exterior.
No campo dos estudos pertinentes à competência tributária, é cediço que a Carta Suprema não cria e nem institui tributos, mas apenas outorga a competência para que os entes da Federação, por intermédio de leis próprias, o façam. Ademais, assim acertadamente obtempera Roque A. Carrazza (2006, p. 478-479):
“Quando afirmamos que a Constituição não criou tributos, estamos emprestando à frase um significado bem preciso. Reconhecemos que ela cuidou pormenorizadamente da tributação, traçando, inclusive, a norma-padrão de incidência de cada uma das exações que poderão ser criadas pela União, pelos Estados, pelos Municípios e pelo Distrito Federal. Para nós, porém, o tributo só nasce a partir do átimo em que uma pessoa pode ser compelida a pagá-lo, por haver acontecido, no mundo fenomênico, o fato hipotetizado na norma jurídica tributária. Ora, isto só se verifica subsecutivamente à edição, pela pessoa política competente, da lei veiculadora desta mesma norma. Antes, não. Com base apenas na Constituição, ninguém poderá ser compelido a desembolsar, a título de tributo, somas de dinheiro, em favor do Fisco ou de quem o represente. Logo, neste sentido, a Constituição não criou tributos, assim como, mal comparando, não criou penas, só porque autorizou o legislador nacional a cuidar do assunto (art. 22, I)”.
Em idêntico espírito, José Souto Maior Borges sustenta (1976, p. 27):
“Uma visão dinâmica, e não estática, do sistema constitucional tributário porá a descoberto que o processo de instituição (criação) do tributo, iniciado com a outorga constitucional da competência tributária, se integra, observadas as respectivas competências, com a superveniência das leis complementares, ordinárias e eventualmente outros atos normativos.”
Sob este prisma, a atual Carta Magna, a respeito da repartição da competência tributária, atribui, com exclusividade, a competência para instituição do ICMS aos Estados-membros e ao Distrito Federal e, por conseguinte, confere a estes a prerrogativa de regular, por intermédio de lei, os elementos essenciais a este imposto, como hipótese incidência, base de cálculo, alíquotas, sujeito ativo e sujeito passivo, sempre em consonância com o que já fora antevisto pela Constituição. Caberá, então, ao Estado ou ao Distrito Federal a função de instituir, arrecadar, fiscalizar e executar leis, atos ou decisões administrativas referentes ao imposto em comento.
Cumpre registrar que, em relação aos Territórios, a criação e cobrança do ICMS compete à União, conforme antevê do artigo 147 da atual Carta Republicana e que esta, adotando o método da participação na arrecadação de impostos de competência alheia, obriga os Estados a repassarem 25% do montante arrecadado a título de ICMS aos seus municípios, conforme previsto no parágrafo único do seu artigo 158 (OLIVEIRA, 2009, p. 8).
Entrementes, impende salientar que a Constituição Federal prevê, no artigo 146, II, ‘a’, a exigência de Lei Complementar para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. Corresponde a um imperativo constitucional que visa, dentro do Sistema Tributário Nacional, dotar o legislador complementar de iniciativa para regrar, de forma geral, os mesmos assuntos delineados nas faixas de competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, conforme exaspera Paulo de Barros Carvalho (2005, p. 207):
“Em poucas palavras, preceituou o legislador constitucional que toda a matéria da legislação tributária está contida no âmbito de competência da lei complementar. Aquilo que não cair na vala explícita da sua “especialidade” caberá, certamente, no domínio da implicitude de sua “generalidade”. Que assunto poderia escapar de poderes tão amplos? Eis aí o aplicador do direito novamente atônito! Pensará: como é excêntrico o legislador da Constituição! Demora-se por delinear, pleno de cuidados, as faixas de competência da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e, de entremeio, torna tudo aquilo supérfluo, na medida em que põe nas mãos do legislador complementar a iniciativa de regrar os mesmos assuntos, fazendo-o pelo gênero ou por algumas espécies que lhe aprouve consignar, esquecendo-se de que as eleitas, como as demais espécies, estão contidas no conjunto que representa o gênero”.
Neste espeque, no âmbito da competência uniformizadora conferida à União e tendo em vista que o Código Tributário Nacional de 1966 (Lei Ordinária recepcionada pela Constituição com status de Lei Complementar), norma geral de regência do Sistema Tributário Nacional, não previu, em seu texto, o ICMS, foi editada, em 13 de setembro de 1996, a Lei Complementar n.º 87, conhecida como “Lei Kandir”, em homenagem ao então deputado federal e criador da lei em comento, Antônio Kandir.
Tal diploma legal veio cumprir a função de padronizar e regular, dentro das prerrogativas delegadas pela Carta Magna, diversos temas pertinentes ao ICMS, como isenções, fato gerador, base de cálculo, substituição tributária, não-cumulatividade e créditos fiscais, e impondo aos Estados e ao Distrito Federal a necessidade da plena observância do disposto neste diploma.
Assim, trilhando o disposto na CF/88 e na Lei Complementar n.º 87/96, o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e prestação de Serviços, em linhas gerais, se sujeita ao lançamento por homologação, terá suas alíquotas estabelecidas pelos entes tributantes, salvo a competência do Senado Federal para estabeleceras alíquotas aplicáveis às operações e prestações, interestaduais e de exportação, as alíquotas mínimas nas operações internas, e fixar alíquotas máximas nas mesmas operações para resolver conflito específico que envolva interesse de Estados (consoante o art. 155, § 2º, IV e V, da CF/88). Possuirá, em regra, como base de cálculo o valor da operação relativa à circulação da mercadoria ou ao serviço prestado, de acordo com a natureza do fato gerador praticado (ALEXANDRE, 2009, p. 593-597).
Ademais, é notável que, tratando-se de um imposto incidente, em sua maior parte, sobre operações mercantis, tem-se que o mesmo corresponde a um tributo indireto, ou seja, aquele que pratica o fato gerador e, consequentemente, tem o dever legal de pagar o tributo (contribuinte de direito) repassa, com lastro em prévia autorização legislativa, o ônus tributário a outrem (contribuinte de fato) que, embora não seja designado pela lei como contribuinte, assume, de fato, a carga tributária.
No tocante ao sujeito passivo, este será qualquer pessoa, física ou jurídica, que realize, com intuitos mercantis, qualquer um dos fatos geradores supramencionados (circulação de mercadorias ou prestação de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação) ou ainda aquele que, independentemente do caráter mercantil, importe mercadorias ou bens ou seja destinatária de serviços oriundos do exterior, adquira, em licitação, mercadorias ou bens apreendidos ou que adquira, sem propósito de destinação à comercialização ou à industrialização, lubrificantes e combustíveis derivados de petróleo e energia elétrica (ALEXANDRE, 2009, p. 595).
Registre-se que, na esteira do que preceitua a Constituição Republicana de 1988 e a Lei Complementar 87/96, é aberta a possibilidade de adoção do regime da substituição tributária (atribuindo a outrem que não seja contribuinte de direito, o dever legal de pagamento do imposto), o qual será operacionalizado de acordo com a legislação do entre tributante, observadas as normas gerais de regência. Já quanto ao sujeito ativo, este se confunde com o próprio ente competente para a instituição do imposto, seja um Estado ou o Distrito Federal no exercício da competência cumulativa.
No que tange às imunidades tributárias, o ICMS, além das imunidades gerais previstas na Lei Maior, submete-se também a imunidades inerentes à essa espécie de imposto, trazidas pelo texto constitucional. Neste sentido, o artigo 155, § 2º, X,’a’, preceitua que as operações que destinem mercadorias para o exterior e os serviços prestados a destinatários no exterior são imunes à incidência do ICMS, sendo ressalvado o direito à manutenção do crédito tributário decorrente da não cumulatividade. Cuida-se, conforme Carrazza (2006, p. 403-405), de uma opção política do País de desonerar as exportações e, portanto, salvaguardar a competitividade dos produtos brasileiros no cenário internacional.
Seguindo o disposto no artigo 155, § 2º, X, tem-se que a alínea ‘b’ garante a não incidência do ICMS sobre as operações que destinem petróleo e seus derivados e energia elétrica a outros Estados da Federação, tendo por objetivo claro a desoneração das mercadorias que utilizam estes produtos como insumos. A alínea ‘c’ do dispositivo em comento trata da imunidade do ouro quando utilizado como ativo financeiro e não como mercadoria, já que nesta situação, o ouro se submete à incidência única do Imposto sobre Operações Financeiras – IOF, consoante estabelece o art. 153, § 5º, da Constituição Federal.
Por fim, a Constituição também traz, no artigo 155, § 2º, X, ‘d’, a imunidade de ICMS nas prestações de serviço de comunicação nas modalidades de radiodifusão sonora e de sons e imagens de recepção livre e gratuita, previsão esta que somente torna mais lídima uma situação de não incidência já antevista, uma vez que o art. 155, II, da CF, traz a incidência do ICMS sobre prestações de serviços de comunicação. Tratando-se de “prestação”, inegável é o caráter oneroso deste tipo de operação, decorrente, logicamente, de um contrato de fornecimento de serviços (CARRAZZA, 2006).
3. ICMS, GUERRA FISCAL E A LEI COMPLEMENTAR Nº 24/1975
Conforme fora sobejamente pontuado, a atual Carta Magna não cria e nem tampouco institui tributos, mas delega às pessoas políticas – União, Estados, Distrito Federal e Municípios – a capacidade para que estes, ressalvados os limites impostos pelo próprio texto constitucional, exercitem, por meio de lei, o poder de tributar e instituam seus próprios tributos. Cuida-se, aqui, em obediência ao princípio do federalismo, da distribuição da competência tributária.
Sobre este tema, Paulo de Barros Carvalho (2005, p. 218) ao dispor que a competência tributária é uma das parcelas da competência legislativa, aduz:
“A competência tributária, em síntese, é uma das parcelas entre as prerrogativas legiferantes de que são portadoras as pessoas políticas, consubstanciada na possibilidade de legislar para a produção de normas jurídicas sobre tributos.”
Neste campo, Hugo de Brito Machado (2002, p. 234) salienta:
“A atribuição constitucional de competência tributária compreende a competência legislativa plena, ressalvadas as limitações contidas na Constituição Federal, nas Constituições dos Estados e nas Leis Orgânicas do Distrito Federal e dos Municípios, e observado o que estabelece o Código Tributário Nacional (CTN, art. 6º). Isto significa dizer que, se a Constituição Federal atribui aos Estados competência para instituir um imposto, como fez, por exemplo, com o ICMS, está também dando a estes a plena competência para legislar a respeito. Mas devem ser respeitadas as limitações estabelecidas na Constituição Federal e nas Constituições dos Estados. Tratando-se do Distrito Federal ou de Municípios, devem ser também observadas as limitações contidas nas respectivas Leis Orgânicas”.
Ressalte-se que, através da competência tributária, a Carta Magna não garante somente a faculdade de instituir o tributo, mas também as prerrogativas de majorar, diminuir, isentar, anistiar, ou, até mesmo, não tributar. Neste sentido é o que leciona Carrazza (2006, p. 473):
“Noutro falar, a competência tributária e a habilitação ou, se preferirmos, a faculdade potencial que a Constituição confere a determinadas pessoas (as pessoas jurídicas de direito público interno) para que, por meio de lei, tributem. Obviamente, quem pode tributar (criar unilateralmente o tributo, com base em normas constitucionais), pode, igualmente, aumentar a carga tributária (agravando a alíquota ou a base de cálculo do tributo, ou ambas), diminuí-la (adotando o procedimento inverso) ou, até, suprimi-la, através da não-tributação pura e simples ou do emprego do mecanismo jurídico das isenções. Pode, ainda, perdoar débitos tributários já nascidos ou parcela-los, ampliando, se entender que é o caso, as eventuais infrações tributárias cometidas”.
Portanto, tem-se a competência tributária como a faculdade, garantida pela Constituição Federal, que dispõem a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios, de instituir e regular, por meio de lei, os tributos pertinentes a cada uma destas pessoas políticas, desde que respeitados os limites impostos pela Carta Magna e pela legislação de regência de cada ente. Cumpre, ainda, repisar que, como a Constituição não cria tributos, mas somente autoriza a criação por parte dos entes federativos, a mesma traça a norma-padrão de incidência dos tributos que poderão ser criados, in abstracto, pela lei ordinária (CARRAZZA, 2006).
Destarte, a Carta Republicana de 1988 confere aos Estados e ao Distrito Federal a competência para instituição do Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação. Cabe, assim, a estes entes a faculdade de instituir, por meio de lei, o ICMS em seus territórios.
Ademais, conforme explanado alhures, o art. 146, II, ‘a’, estabelece a exigência de Lei Complementar para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes. 146, II, ‘a’, a exigência de Lei Complementar para estabelecer normas gerais em matéria de legislação tributária, especialmente sobre definição de tributos e de suas espécies, bem como, em relação aos impostos discriminados na Constituição, a dos respectivos fatos geradores, bases de cálculo e contribuintes (CARVALHO, 2005, p. 206).
Quanto ao ICMS, a norma geral de regência corresponde à Lei Complementar 87/96 (Lei Kandir). Decerto, aos Estados e ao Distrito Federal compete regular, em seus territórios, esta exação de acordo com a Lei Kandir e a Constituição, no que se refere aos aspectos gerais, e por meio de lei própria, os aspectos especiais.
É neste contexto que está inserida a chamada a Guerra Fiscal, compreendida como a política de disputa entre os entes federativos na captação de investimentos privados em seus territórios como forma de geração de emprego, renda e desenvolvimento local. Nesta competição, o principal expediente utilizado na atração de investimentos é justamente a concessão de benefícios fiscais.
Em consonância com o que foi dissertado no tópico supra, o ICMS corresponde de tributo de maior arrecadação dos Estados e de oneração das atividades de produção e circulação de mercadorias, sendo este utilizado como mecanismo principal na busca de investimentos do setor privado, ao passo que os Estados passam a oferecer isenções ou reduções do imposto, postergação de prazos para recolhimento, parcelamentos, facilidades de registro de empresas, financiamentos, etc. Como compete a estes a regulação do ICMS em seus territórios, estes dispõem acerca do imposto como melhor lhes aprouver, implicando no desequilíbrio do Pacto Federativo (MELO, 2012).
Ademais, é certo que a Guerra Fiscal traz benefícios como a desconcentração na atração de investimentos, os quais seriam apontados, primordialmente, para as áreas onde já houvesse oferta de infraestrutura e mão de obra especializada e um mercado consumidor solidificado, como os centros das regiões Sul e Sudeste. Aliadas a esta desconcentração, outras vantagens podem ser pontuadas, como o aumento na geração de emprego e renda em níveis local e nacional, estímulo ao crescimento do setor produtivo e desoneração fiscal, com a consequente perspectiva de maior arrecadação futura.
Hugo de Brito Machado (1999, p. 220), em análise crítica sobre os benefícios e malefícios da Guerra Fiscal, arremata:
“O incentivo fiscal para empreendimentos novos é a melhor forma de promover o desenvolvimento econômico das regiões pobres do país, e assim reduzir as desigualdades econômicas regionais. A Constituição Federal, todavia, não obstante preconize com eloquência a redução das desigualdades sociais e econômicas regionais, terminou por inviabilizar tal incentivo, ao impor aos Estados a supra-indicada limitação ao poder de isentar”.
Entretanto, o cerne da discussão referente à Guerra Fiscal corresponde à legalidade ou ilegalidade dos benefícios fiscais concedidos, tendo em vista que Constituição Federal aponta, tratando de ICMS, no art. 155, § 2º, XII, ‘g’, a indispensabilidade de Lei Complementar para regular a forma como, mediante deliberação dos Estados e do Distrito Federal, isenções, incentivos e benefícios fiscais serão concedidos e revogados.
Assim, sob o comando deste imperativo constitucional, a Lei Complementar n.º 25, de 7 de janeiro de 1975 (recepcionada pelo art. 34, §§ 4º, e 5º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias), vem dispor, em seu artigo 1º, que as isenções do imposto sobre operações relativas à circulação de mercadorias serão concedidas ou revogadas de acordo com os convênios celebrados e ratificados pelos Estados e pelo Distrito Federal, aplicando tal exigência também à redução da base de cálculo, à devolução total ou parcial, direta ou indireta, condicionada ou não, do tributo, ao contribuinte, a responsável ou a terceiros, à concessão de créditos presumidos à quaisquer outros incentivos ou favores fiscais ou financeiro-fiscais, concedidos em razão do Imposto de Circulação de Mercadorias, através dos quais acarrete em redução ou eliminação, direta ou indireta, do respectivo ônus e às prorrogações e às extensões (MELO, 2012, p. 367).
Ademais, a Lei Complementar 25/74 exige, ainda, que os convênios a que alude o art. 1º, serão celebrados em reuniões para as quais tenham sido convocados representantes de todos os Estados e do Distrito Federal, sob a presidência de representantes do Governo federal e que a concessão de benefícios dependerá sempre de decisão unânime dos Estados representados, enquanto que a sua revogação total ou parcial dependerá de aprovação de quatro quintos, pelo menos, dos representantes presentes.
Certo é, então, que tal lei possui o intento de interceptar a ocorrência Guerra Fiscal, uma vez que não há possibilidade dos Estados e do Distrito Federal concederem isenções ou outros benefícios fiscais senão por meio de convênios celebrados com os outros Estados e por eles ratificados, em máxima expressão da unidade de interesses. Sobre este tema, Carrazza (2006, p. 450-451) acertadamente pontua:
“[…] É que tais benefícios (incentivos), como vimos e revimos, só podem surgir a partir de convênios celebrados pelos Estados e pelo Distrito Federal e depois por eles ratificados.
Na realidade, a mola propulsora destes benefícios é a conjugação de vontades de todas as Unidades Federativas interessadas.
A vontade de um só Estado ou do Distrito Federal não tem força jurídica bastante para fazer nascer isenções de ICMS. É que, dada a vocação nacional deste tributo, ele deve ter as mesmas características em todo o território brasileiro.
[…] Tornamos a insistir que é o interesse nacional que preside a adoção de isenções, incentivos e benefícios fiscais em matéria de ICMS. Não o interesse meramente local.
Podemos, portanto, dizer que é a própria vontade da Federação que determina a concessão de isenções de ICMS. Ou, se preferirmos, que é a ordem jurídica global que as faz nascer”.
Do ponto de vista prático, os convênios a que se referem a Lei Complementar n.º 24/75 são celebrados no âmbito do Conselho Nacional de Política Fazendária – CONFAZ – o qual corresponde a um colegiado composto por um representante de cada Estado e do Distrito Federal (Secretário de Fazenda) e por um representante do Governo Federal (Ministro de Estado da Fazenda), em sessões com, no mínimo, a maioria dos Estados-membros (o chamado quórum de instalação) e aprovados por unanimidade dos presentes (quórum de aprovação). Para que entrem em vigor no âmbito dos respectivos entes da federação, os convênios, em quinze dias a contar da aprovação, deverão ser ratificados por meio de decreto (JORGE, 2007, p. 188-189).
O CONFAZ, cujas normas de regências estão estipuladas no Convênio 133/1997, tem por finalidade promover ações necessárias à elaboração de políticas e harmonização de procedimentos e normas inerentes ao exercício da competência tributária dos Estados e do Distrito Federal, bem como colaborar com o Conselho Monetário Nacional – CMN na fixação da política de Dívida Pública Interna e Externa dos Estados e do Distrito Federal e na orientação às instituições financeiras públicas estaduais.
Logo, resta lídimo o entendimento de que somente quando devidamente convalidados pelo Conselho Nacional de Política Fazendária, por meio de convênio ratificado, à unanimidade, pelos Estados e pelo Distrito Federal, serão legalmente válidas as concessões ou revogações de benefícios fiscais referentes ao Imposto sobre Imposto sobre Operações relativas à Circulação de Mercadorias e sobre Prestações de Serviços de Transporte Interestadual, Intermunicipal e de Comunicação – ICMS.
4. A CONCESSÃO INCONSTITUCIONAL DE BENEFÍCIOS E A POSIÇÃO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
À despeito do que é preconizado pela Carta Magna e regulamentado pela Lei Complementar n.º 24/1975, os Estados e o Distrito Federal, na esfera da Guerra Fiscal, recorrentemente concedem e revogam benefícios fiscais de natureza diversas sem que estes sejam respaldados em Convênios entre os demais Estados, como forma de atração de investimentos privados. Trata-se de isenções, reduções de alíquota, prorrogação de prazo para recolhimento, anistias, que não são avalizados pelo CONFAZ e que, por consequência, são inteiramente inconstitucionais.
Impossível olvidar que os benefícios fiscais de ICMS não convalidados pelo CONFAZ não trazem desserviços somente o Estado ou os Estados lesados, mas também atingem o terceiro de boa-fé estranho aos benefícios concedidos, como ocorre com os adquirentes de mercadorias ou serviços quando estão localizados em outras unidades da Federação (MELO, 2012, p. 374).
José Eduardo S. de Melo (2013, p. 302) bem explica que os adquirentes de mercadorias e os tomadores de serviços sofrem, muitas vezes, a glosa de crédito fiscal ou outras medidas constritivas por parte do fisco de determinado Estado ou do Distrito Federal sob o argumento de que o fisco de origem teria concedido benefício fiscal não ratificado por aquela unidade federativa, contrariando o art. 155, § 2º, XII, g, da CF/88.
Entretanto, a glosa de crédito de ICMS em virtude de suposta violação ao art. 155, §, XII, g, da CF/88 configura uma atitude extremamente equivocada e contrária à essência do pacto federativo, ferindo a harmonia entre os Estados-membros, usurpando do Supremo Tribunal Federal a competência (art. 102, I, f, da CF/88) para invalidação da norma que atribuiria tal crédito de ICMS.
Neste contexto, Soares de Melo (2013, p. 302) habilmente demonstra:
“Exemplificadamente, é o caso de incentivo concedido por Goiás, aos contribuintes estabelecidos em Goiás (ex: 2% de crédito presumido relativo ao imposto sobre a venda de determinada mercadoria), fornecendo as mercadorias para contribuinte de São Paulo, calculado à alíquota interestadual de 12%. Nesta situação, o Estado de SP parra a glosar os créditos dos contribuintes paulistas (no montante equivalente à 2%, só permitindo o crédito correspondente à 10%), sob o argumento de que teriam sido beneficiados indiretamente pelos incentivos de Goiás.”
Sem restar alternativa, os Estados prejudicados passaram a promover, na esfera do controle concentrado de constitucionalidade, Ações Diretas de Inconstitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal, pleiteando a declaração de inconstitucionalidade daqueles benefícios concedidos sem a imprescindível submissão ao Conselho Nacional de Política Fazendária.
O STF, por sua vez, tem decidido, reiteradamente, pela inconstitucionalidade dos incentivos fiscais de ICMS unilateralmente concedidos e não avalizados pelo CONFAZ, na forma do artigo 155, § 2º, XII, ‘g’, da Constituição Federal e da Lei Complementar n.º 24/1975 (MELO, 2012, p 370).
Sob este prisma, o STF, à guisa de exemplificação, declarou inconstitucional o caput do artigo 12 da Lei nº 5.780/93, do Estado do Pará, que autorizava o Poder Executivo a conceder, independentemente de deliberação do CONFAZ, benefícios fiscais ou financeiros que poderiam importar em redução ou exclusão do ICMS:
“Ação direta de inconstitucionalidade. Art. 12, caput e parágrafo único, da Lei estadual (PA) nº 5.780/93. Concessão de benefícios fiscais de ICMS independentemente de deliberação do CONFAZ. Guerra Fiscal. Violação dos arts. 150, § 6º, e 155, § 2º, XII, “g”, da Constituição Federal. 1. É pacífica a jurisprudência deste Supremo Tribunal Federal de que são inconstitucionais as normas que concedam ou autorizem a concessão de benefícios fiscais de ICMS (isenção, redução de base de cálculo, créditos presumidos e dispensa de pagamento) independentemente de deliberação do CONFAZ, por violação dos arts. 150, § 6º, e 155, § 2º, inciso XII, alínea “g”, da Constituição Federal, os quais repudiam a denominada “guerra fiscal”. Precedente: ADI nº 2.548/PR, Relator o Ministro Gilmar Mendes, DJ 15/6/07. 2. Inconstitucionalidade do art. 12, caput, da Lei nº 5.780/93 do Estado do Pará, e da expressão “sem prejuízo do disposto no caput deste artigo” contida no seu parágrafo único, na medida em que autorizam ao Poder Executivo conceder diretamente benefícios fiscais de ICMS sem observância das formalidades previstas na Constituição. 3. Ação direta julgada parcialmente procedente.” (ADI 1247, Relator(a): Min. DIAS TOFFOLI, Tribunal Pleno, julgado em 01/06/2011, DJe-157 DIVULG 16-08-2011 PUBLIC 17-08-2011 EMENT VOL-02567-01 PP-00001) (grifamos)
Sob o mesmo raciocínio, o Supremo declarou a inconstitucionalidade do Decreto nº 52.381/2001, do Estado de São Paulo, que previa, sem suporte em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, a outorga de benefícios fiscais a estabelecimentos produtores de leite localizados no Estado de São Paulo, reduzindo em 100% a base de cálculo de ICMS nas saídas desses produtos fabricados naquele ente federativo:
“INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Objeto. Admissibilidade. Impugnação de decreto autônomo, que institui benefícios fiscais. Caráter não meramente regulamentar. Introdução de novidade normativa. Preliminar repelida. Precedentes. Decreto que, não se limitando a regulamentar lei, institua benefício fiscal ou introduza outra novidade normativa, reputa-se autônomo e, como tal, é suscetível de controle concentrado de constitucionalidade. 2. INCONSTITUCIONALIDADE. Ação direta. Decreto nº 52.381/2007, do Estado de São Paulo. Tributo. Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS. Benefícios fiscais. Redução de base de cálculo e concessão de crédito presumido, por Estado-membro, mediante decreto. Inexistência de suporte em convênio celebrado no âmbito do CONFAZ, nos termos da LC 24/75. Expressão da chamada “guerra fiscal”. Inadmissibilidade. Ofensa aos arts. 150, § 6º, 152 e 155, § 2º, inc. XII, letra “g”, da CF. Ação julgada procedente. Precedentes. Não pode o Estado-membro conceder isenção, incentivo ou benefício fiscal, relativos ao Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços – ICMS, de modo unilateral, mediante decreto ou outro ato normativo, sem prévia celebração de convênio intergovernamental no âmbito do CONFAZ.” (ADI 4152, Relator(a): Min. CEZAR PELUSO, Tribunal Pleno, julgado em 01/06/2011, DJe-181 DIVULG 20-09-2011 PUBLIC 21-09-2011 EMENT VOL-02591-01 PP-00050) (grifamos)
Infere-se, pois, a uniformidade nos recentes julgados do Supremo Tribunal Federal quanto à patente inconstitucionalidade dos benefícios fiscais concedidos pelos Estados e pelo Distrito Federal sem a prévia convalidação no âmbito das reuniões promovidas pelo CONFAZ.
5. A MODULAÇÃO DAS DECISÕES DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL QUANTO AOS BENEFÍCIOS FISCAIS JULGADOS INCONSTITUCIONAIS
Na esteira do que preceitua o parágrafo único do artigo 28, da Lei n.º 9.868/1999, a qual dispõe sobre o processo e julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade, a declaração de inconstitucionalidade de lei ou ato normativo emanada do Supremo Tribunal Federal têm eficácia contra todos (erga omnes) e efeito vinculante em relação aos órgãos do Poder Judiciário e à Administração Pública federal, estadual e municipal.
Quanto aos efeitos temporais, a decisão de inconstitucionalidade exarada pelo STF Tribunal Federal, no bojo de Ação Direta de Inconstitucionalidade, é dotada de efeitos ex tunc. Noutras palavras, a decisão que julga por inconstitucional determinado ato, norma ou dispositivo de norma possui efeitos retroativos, considerando o texto inconstitucional e, portanto, nulo desde a sua gênese (MIGUEL; OLIVEIRA, 2007, p. 162). Este entendimento é facilmente extraído da interpretação do artigo 27, da Lei n.º 9.868/1999, a seguir transcrito:
“Art. 27. Ao declarar a inconstitucionalidade de lei ou ato normativo, e tendo em vista razões de segurança jurídica ou de excepcional interesse social, poderá o Supremo Tribunal Federal, por maioria de dois terços de seus membros, restringir os efeitos daquela declaração ou decidir que ela só tenha eficácia a partir de seu trânsito em julgado ou de outro momento que venha a ser fixado.”
Ora, se a própria lei, ao prever a possibilidade de postergação dos efeitos da decisão que atesta determinada inconstitucionalidade, trata esta situação como exceção, nota-se, a contrario sensu, que a regra não poderia ser outra, senão a da eficácia retroativa da decisão proferida pelo STF em sede de Ação Direta de Inconstitucionalidade. Trata-se, conforme a melhor doutrina, estribada na teoria da nulidade da lei inconstitucional, de decisão de natureza declaratória, pronunciando a nulidade ab initio do ato ou norma guerreada.
Quanto à faculdade antevista no aludido artigo 27, da Lei n.º 9.868/99, Dirley da Cunha Júnior ensina (2015, p. 435):
“Relativamente à modulação da eficácia temporal, pode o Supremo Tribunal Federal deliberar que a decisão só opere efeitos a partir de seu trânsito em julgado (ex nunc) ou a partir de outro momento que deve se situar, segundo pensamos, dentro do lapso compreendido entre a entrada em vigor da norma impugnada e o trânsito em julgado da decisão que a declarou inconstitucional.”
Trata-se, portanto, de uma vantajosa alternativa que dispõe o Supremo Tribunal Federal de modular os efeitos das próprias decisões em sede de ADI, tendo em vistas razões de segurança jurídica ou interesse social excepcional, o qual poderá, então, forjar o alcance e os efeitos da declaração de inconstitucionalidade.
No que tange à Guerra Fiscal, o instituto da modulação dos efeitos da decisão proferida em Ação Direta de Inconstitucionalidade é de extrema significância, mormente no que se refere às decisões que julgam por inconstitucionais atos ou normas que unilateralmente concedem benefícios sem a prévia convalidação pelos outros entes federativos no âmbito do CONFAZ.
Tal importância é facilmente evidenciada: ao declarar a inconstitucionalidade da norma beneficiadora (em regra, com efeitos retroativos), o STF, silente quanto à modulação, proporciona espaço para a imediata cobrança retroativa do imposto que deixou de ser recolhido pelas empresas beneficiadas pelos incentivos não convalidados pela CONFAZ, desaguando na avalanche de Execuções Fiscais que seriam intentadas pelos Fiscos estaduais, em virtude do dever legal imposto a estes, sobrecarregando ainda mais máquina judiciária brasileira.
Ademais, há de se ressaltar o profundo impacto econômico a que seriam acometidos os contribuintes favorecidos, que de boa-fé seguiram o que fora preceituado pelas legislações estaduais, principalmente as empresas de médio e grande porte, ensejando na extinção de muitas destas, além do abalo econômico que sofreriam os Estados, desapossados dos investimentos antes realizados pelo setor privado.
Neste cenário de insegurança jurídica, caberia ao Supremo Tribunal Federal valer-se do artifício previsto no artigo supramencionado e postergar os efeitos da decisão para que esta somente passe a ter eficácia a partir do seu trânsito em julgado, em vista da gama de efeitos colaterais acima explicitados. Entretanto, a Corte Superior, em que pese a recorrência de decisões de inconstitucionalidade da Guerra Fiscal, pouco tem utilizado deste instrumento, de forma que grande parte dos vereditos exarados em controle concentrado de constitucionalidade não tecem nada a respeito desta faculdade, provocando um ambiente de incertezas e preocupações.
Além do mais, somente recentemente foi possível vislumbrar a tímida aplicação do arquétipo previsto no artigo 27, da Lei n.º 9.868/1999, quando o STF entendeu pela inconstitucionalidade da Lei estadual 14.985/2006, do Estado do Paraná, tendo em vista que esta concedia, à margem de qualquer convalidação pelo CONFAZ, descontos de ICMS a empresas que importassem mercadorias por meio dos aeroportos de Paranaguá e Antonina, aplicando, em respeito aos princípios da boa-fé e da segurança jurídica, a modulação para que a decisão somente produza efeitos a contar da data da sessão de julgamento:
“I. TRIBUTÁRIO. LEI ESTADUAL QUE INSTITUI BENEFÍCIOS FISCAIS RELATIVOS AO ICMS. AUSÊNCIA DE CONVÊNIO INTERESTADUAL PRÉVIO. OFENSA AO ART. 155, § 2º, XII, g, DA CF/88. II. CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE. MODULAÇÃO DOS EFEITOS TEMPORAIS. 1. A instituição de benefícios fiscais relativos ao ICMS só pode ser realizada com base em convênio interestadual, na forma do art. 155, §2º, XII, g, da CF/88 e da Lei Complementar nº 24/75. 2. De acordo com a jurisprudência do STF, o mero diferimento do pagamento de débitos relativos ao ICMS, sem a concessão de qualquer redução do valor devido, não configura benefício fiscal, de modo que pode ser estabelecido sem convênio prévio. 3. A modulação dos efeitos temporais da decisão que declara a inconstitucionalidade decorre da ponderação entre a disposição constitucional tida por violada e os princípios da boa-fé e da segurança jurídica, uma vez que a norma vigorou por oito anos sem que fosse suspensa pelo STF. A supremacia da Constituição é um pressuposto do sistema de controle de constitucionalidade, sendo insuscetível de ponderação por impossibilidade lógica. 4. Procedência parcial do pedido. Modulação para que a decisão produza efeitos a contatar da data da sessão de julgamento”. (ADI 4481, Relator(a): Min. ROBERTO BARROSO, Tribunal Pleno, julgado em 11/03/2015, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-092 DIVULG 18-05-2015 PUBLIC 19-05-2015) (grifos aditados)
Com vistas a minimizar este horizonte de perplexidade, alguns outros mecanismos têm sido debatidos, como é o caso do Projeto de Lei do Senado Federal PLS n.º 130/2014, de autoria da senadora Lúcia Vânia (PSB/Goiás), que tem por propósito a convalidação de atos de concessão de benefícios e incentivos fiscais ou financeiros vinculados ao ICMS concedidos pelos Estados ou pelo Distrito Federal até 1º de maio de 2014 sem a prévia aprovação por unanimidade do CONFAZ (Conselho Nacional de Política Fazendária), conforme determinam a Constituição Federal e a Lei Complementar nº 24/75, assim como a concessão de remissão e anistia dos créditos tributários referentes (FIGUEIREDO; FONTES, 2015).
Noutro giro, outras medidas são discutidas na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, porém com o foco na alteração da sistemática de administração do ICMS. Defende-se, à guisa de exemplificação, a possibilidade de quórum diferenciado para aprovação de convênio que vise remissão de créditos tributários constituídos em razão de incentivos fiscais irregulares e também a instituição de meios de compensação para as renúncias tributárias ocasionadas pelos benefícios fiscais (FIGUEIREDO; FONTES, 2015).
Depreende-se, todavia, que a modulação dos efeitos da decisão em ADI é o meio que se mostra mais eficaz na mitigação dos efeitos negativos da Guerra Fiscal, cabendo aos interessados nos resultados da Ação Direta de Inconstitucionalidade a interpelação para que o Supremo Tribunal Federal considere a possibilidade da modulação dos efeitos das suas decisões, em observância da segurança jurídica e do excepcional interesse social.
Cumpre registrar, por sua elementar importância, que tramita, desde 2012, no Supremo Tribunal Federal, proposta de Súmula Vinculante, de autoria do Ministro Gilmar Mendes, com o fito de considerar inconstitucional a concessão de qualquer benefício de ICMS não aprovado pelo CONFAZ. Em caso de aprovação, o que se espera é que tal súmula seja editada nos moldes da decisão exarada pelo STF na supradita ADI nº 4.481, aplicando o instituto da modulação dos efeitos com o propósito de mitigar os efeitos danosos já causados pela Guerra Fiscal (FIGUEIREDO; FONTES, 2015).
Com efeito, almeja-se que o Supremo Tribunal Federal, enquanto não surgida alguma providência direta emanada do Poder Legislativo, torne a utilizar com mais frequência o artifício da modulação dos efeitos, inclusive considerando esta na expectativa de edição de Súmula acerca do assunto, como forma de esvaziar os advindos da Guerra Fiscal, ao tempo que salvaguarda os direitos do contribuinte de boa-fé e o desenvolvimento econômico e social dos entes federativos.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Diante de todo o exposto, evidencia-se que, sendo o ICMS o tributo responsável pela maior parte da arrecadação dos Estados e do Distrito Federal, a Guerra Fiscal é tratada como um assunto de extrema relevância no cenário jurídico, econômico e social brasileiro.
Neste contexto, a concessão unilateral de benefícios fiscais sem a deliberação unânime por parte dos outros Estados-membros perante o Conselho Nacional de Política Fazendária, conforme preceitua a Lei Complementar n.º 24/75 (esta em consonância com a Constituição Federal de 1988), enseja na busca ao Poder Judiciário para que este, na figura do Supremo Tribunal Federal, declare a inconstitucionalidade de tais benefícios.
O Supremo Tribunal Federal, por sua vez, vem acertadamente pronunciando a inconstitucionalidade de tais benefícios, conforme fora demonstrado, haja vista a patente violação ao pacto federativo, à Lei Complementar n.º 24/75 e à Carta Magna de1988.
Entretanto, a preocupação não mais está voltada para a declaração de inconstitucionalidade dos benefícios fiscais ofertados no âmbito da Guerra Fiscal, questão já debatida pela Corte Máxima. O centro da discussão acerca da Guerra Fiscal passou a ser a eficácia temporal das decisões do STF, isto porque a legislação atinente ao processamento da Ação Declaratória de Inconstitucionalidade faculta ao STF a possibilidade de modular a eficácia temporal de suas decisões, tomando por base a primazia pela segurança jurídica e pelo excepcional interesse social.
Desta forma, o que foi demonstrado é a necessidade de que a Corte Suprema passe a utilizar com maior frequência do instituto da modulação dos efeitos da declaração de inconstitucionalidade, seja em edição de Súmula ou mesmo nas recorrentes decisões tomadas, tendo em vista que a ação em contrário provocaria efeitos danosos e irremediáveis para os contribuintes e Estados favorecidos pelos benefícios, além da sobrecarga de execuções fiscais a qual seria submetido todo o Poder Judiciário brasileiro.
Há de ressaltar que a edição de Súmula Vinculante por parte do Supremo Tribunal corresponde a uma alternativa de extrema relevância e eficácia, tendo em vista as reiteradas decisões deste tribunal acerca da patente inconstitucionalidade insistente da postura dos Estados-membros e do Distrito Federal, desde que esta Súmula já contemple o instituto da modulação, considerando inconstitucionais, a partir da publicação da decisão, os benefícios de ICMS não avalizados pelo CONFAZ.
Tal Súmula, vinculando todo o Judiciário nacional e a Administração Pública Direta e Indireta, nas esferas federal, estadual e municipal, seria um profícuo remédio contra a Guerra Fiscal, ao tempo que resguardaria os direitos do contribuinte e terceiro de boa-fé, em atenção à segurança jurídica, princípio primordial do Direito brasileiro.
Informações Sobre o Autor
Daniel Peixoto Figueiredo
Advogado, graduado em Direito pela Faculdade Ruy Barbosa – 2015.2, pós-graduando em Direito Tributário pelo Instituto Brasileiro de Estudos Tributários – IBET