“By their capacity for the immortal deed, by their ability to leave non-perishable traces behind, men, their individual mortality notwithstanding, attain an immortality of their own and prove themselves to be of a “divine” nature.” [i]
Buscarei, no presente trabalho, realizar uma análise da distinção entre as esferas do público e do privado, operada pela filósofa Hannah Arendt, buscando manter presente, sempre, a lacuna que separa o que consiste a posição da autora da minha.
Compete, primeiramente, conceituar o que consistiria a vita activa: esta seria a esfera aonde o indivíduo ingressa, a partir do momento em que opta pela permanência, buscando seu potencial à imortalidade. O indivíduo pode buscar, portanto, seu reflexo no universal, na medida em que desenvolver algo que encontre respaldo na esfera pública[ii].
Parte fundamental ao pensamento de Arendt é o entendimento acerca da relação do indivíduo singular com os demais (portanto, do singular com o universal) e as implicações que daí acarretam. Não haveria, de maneira alguma, vida humana possível sem um mundo que, direta ou indiretamente, ateste a presença de outros seres humanos. A ação humana, assim, reporta-se ao fato de que há uma unidade na vida do conjunto.
O trabalho, porém, não requer a presença de outros seres, mas a ausência destes transformaria o ser humano num animal laborans, distinto do homo faber[iii].
Esta relação (intrínseca) entre ser e ação parece justificar, no entendimento da autora, a tradução do zöon politikon aristotélico por animal socialis. Esta substituição do político pelo social revela a falta de alcance que o pensamento ocidental possui frente ao grego[iv]. Embora a característica de ser social não estivesse enumerada entre as características humanas específicas, não significa que Platão e Aristóteles não estavam cientes dela. Era tida, entretanto, como uma imposição realizada pelas necessidades da própria vida (como ocorre com outras formas de vida).
O pensamento grego coloca a organização política humana como estando em direto confronto com a associação natural em cujo centro está a casa (oika) e a família. Assim, o surgimento das cidades-estado conferiu ao ser humano um novo âmbito existencial: seu bios politikos.
Todo cidadão teria, em sua vida, a distinção do que seria apenas seu (idion), frente ao que seria comum ( koinon).
A ação (práxis) e o discurso (lexis) eram, segundo Aristóteles, as únicas atividades eminentemente políticas (constituindo o bios politikos)[v].
O entendimento firme de que a ação e o discurso ocupariam posição tão elevada nas atividades do homem tem como conseqüência o termo muito bem desenvolvido por Hannah Arendt:
“Somente a pura violência é muda, e por este motivo a violência, por si só, jamais pode ter grandeza.”[vi]
Vivendo na polis, o homem deveria ser político, de forma que, pouco a pouco, ele passou a ser um hábil instrumentista do discurso, remetendo-se à ação apenas como caso. Impor algo ao povo pela violência passou a ser — coerentemente — uma atitude pré-política, existente apenas fora da polis ou na vida familiar — onde o chefe de família dominava com poderes despóticos[vii].
Outro erro de tradução comum é aquele em que se define pelo termo aristotélico zöon logon ckhon como sendo animal racional, embora sua tradução seja claramente a de um ser vivo capaz da fala[viii]. Assim, todo homem que vivia fora da polis seria um aneu logon, privado da forma de vida aonde a fala (assim como a ação e, portanto, a manifestação no âmbito da esfera pública) humana constituía preocupação principal.
Isto, talvez, em decorrência da principal característica do homem, segundo o entendimento de Aristóteles, no qual o nous seria a capacidade de contemplar a existência — mesmo que os resultados desta não pudessem ser expressos com os limitados mecanismos da fala[ix].
– A Polis e a Família
Na ambivalência do indivíduo grego na esfera pública e no domínio de sua casa (domínio familiar) reside a fundação da distinção entre o público e o privado.
A esfera social, entretanto, é apontada por Hannah Arendt como alheia à dicotomia existente na relação entre o público e o privado, sendo um fenômeno da era moderna, fundando, no Estado-nação, sua formatação política.
A distinção entre o público e o privado adquire nova forma ante o paralelo grego que separa as atividades ligadas ao mundo comum das ligadas à manutenção da vida[x]. A amplitude com a qual os Estados modernos devem ser observados, frente ao antigo estado-nação, remete à proporcionalidade.
Assim, a economia nacional seria um indicativo do que antes foi dito como uma “manutenção coletiva da casa”. Neste sentido, a sociedade seria o coletivo de famílias (constituindo uma espécie de mega-família) economicamente organizadas, ao passo que nação seria sua forma política estabelecida (exteriorização ao âmbito da política). Por este viés, Hannah Arendt coloca que é muito provável que o surgimento do estado-nação, bem como da esfera pública, tenham ocorrido às custas da esfera privada (casa e família)[xi].
Aparentemente, todo este desenrolar ocorre muito naturalmente. Portanto, se na antiga Grécia a comunidade da casa — naturalmente constituída — era governada pela ditadura da necessidade e a polis era a esfera da liberdade, o antagonismo entre aspectos inerentes a estas duas esferas não pôde se sobrepor à busca da tão aclamada liberdade, uma vez que todos os seres humanos seriam sujeitos à necessidade — e, por isso, teriam direito à violência entre si (o que constitui, basicamente, uma legitimação à violência)[xii].
De acordo com os filósofos do século XVII, esta violência só teria fim com o estabelecimento de um governo, que, monopolizando a violência e o poder, acabaria com a ‘guerra de todos contra todos’.
Como, entretanto, falar em liberdade na esfera social, se esta se baseia em iniqüidade na esfera privada[xiii]? Ocorre que a liberdade grega não é como a entendemos modernamente, ligando este conceito à noção de justiça. Assim, é possível ser livre apenas ao adentrar num âmbito onde não há quem governa ou quem é governado.
No mundo moderno, o político e o moderno têm sua distinção obscurecida pelas pontes que existem entre eles. A política seria, nos termos da autora, uma função da sociedade, onde o pensamento, o discurso e a ação constituem variáveis constantes em toda circunstância. Assim, como as atividades econômicas (tratadas, na Grécia antiga, no âmbito da oika), na era moderna, apresentam-se na esfera pública, é notório que o privado passou a ser objeto de preocupação pública. O discurso, a ação e o pensamento, na sua inter-relação, são — no presente — os responsáveis pelas lacunas que a relação entre o público e o privado possam apresentar.
Na era moderna, o entrecruzamento das esferas acabou com o abismo que havia entre elas, onde o indivíduo saltava da esfera privada para surgir na pública, com um simples passo.
Com a queda do Império Romano, a Igreja Católica (segundo a autora) ofereceu um substituto à cidadania, caracterizando o indivíduo como ‘fiel’.
Assim, há um crescimento da esfera privada, na medida em que, relacionado ao lorde feudal, o chefe de família não realizava justiça nos seus limites, pois desconhecia de leis ou política, fora da esfera própria a esta. A própria sociedade encaminhar-se-ia a um novo posicionamento no real, de modo que, na organização feudal, reestruturou-se esta lacuna existente.
Houve, portanto, uma união das atividades humanas na esfera privada, formando um embrião do que seriam as empresas no futuro. Esta união seria um repensar em relação à própria estrutura da sociedade, de modo que até mesmo as atividades próprias ao âmbito político passam a ingressar no privado. O privado busca seu reflexo no público, ou, ainda, particulariza-se e busca encontrar reflexo no universal.
O conceito medieval de ‘bem comum’, porém, referia-se ao entendimento de que indivíduos diferentes possuíam interesses iguais e só poderiam correr atrás de seus propósitos pessoais se alguém cuidasse de assegurar a existência e satisfação destes interesses comuns[xiv]. Hoje, em contraposição, tratamos o interesse comum como algo que não é exclusivo à esfera privada, tendo, inclusive, uma esfera onde os interesses privados assumem forma pública: a sociedade.
Não obstante, era preciso coragem para transcender as dificuldades impostas pela vida e observar o que existia além. A ‘vida boa’ grega era aquela que, após devidamente contornadas as dificuldades da vida (sendo o indivíduo libertado do trabalho) e superadas as necessidades inatas de todos os seres vivos à sobrevivência, o cidadão não mais estaria ligado ao processo biológico da vida.
– A Promoção do Social
No momento em que as esferas pública e privada resolveram ver a luz do dia, a distinção entre elas tornou-se obscura: não seriam mais reconhecidas por suas próprias nomenclaturas.
O âmbito privado da atualidade, no entendimento ora analisado, é uma esfera da intimidade que a Grécia não conhecera, mas que os romanos (do período logo precedente à queda do Império) podem ter vislumbrado. A multiplicidade do privado da atualidade, entretanto, é certamente de impossível conhecimento a qualquer período anterior à era moderna.
Tanto assim é, que o tratamento privado da privacidade, na antiguidade, denotava a esfera que não se encontrava com a política e, assim, remetia o raciocínio aos escravos e bárbaros, que, por sua vez, não seriam homens completos.
Na modernidade, entretanto, o conceito de privacidade provém de uma oposição à esfera social (que fora observada como assunto privado) e não à política, como os antigos entendiam.
O primeiro autor a inquirir acerca da intimidade humana teria sido, para Hannah Arendt, Rousseau, mesmo que, à época, como afirma a autora:
“A intimidade do coração, ao contrário da intimidade da moradia privada, não tem lugar objetivo e tangível no mundo (…)”[xv]
Rousseau entraria no panorama movido pela perversidade com a qual o coração do homem se apresentava na sociedade, afirmando que o social e o íntimo eram, primariamente, formas subjetivas da existência humana[xvi]. O autor surgiria neste clamor revoltoso do indivíduo frente à sociedade, onde a descoberta da intimidade enfoca, como contraponto, o crescimento das demandas do social e o que, hoje, a autora chamaria de conformismo — inerente a toda sociedade.
Segundo Hannah Arendt, a sociedade sempre brada que seus membros ajam como se constituíssem parte de uma família enorme (com, apenas, uma opinião e interesse). O chefe de família representava esta posição antes da moderna desintegração da família. Esta, por sua vez, ocorre no mesmo período em que o social surge, indicando uma absorção de uma esfera pela outra[xvii].
A estes grupos sociais ‘emergentes’ — durante o supracitado processo de absorção — havia a correspondente (relativa) igualdade existente entre os membros de família, ante o poder despótico do chefe de família. É claro que, numa sociedade, a força do interesse comum é incrementada pelo número de adesões e o tom do coro a bradar.
Ocorre que a passagem do domínio de um homem sobre a casa para a esfera da sociedade transforma-se em reino de homem nenhum (que não necessariamente é um reino desprovido de regras).
Entretanto, esta passagem da família para a sociedade trouxe uma expectativa comportamental entre seus membros que inibia certas espécies de atitudes. O surgimento da sociedade de massa passou por um processo semelhante.
Assim, a sociedade encontra seu ponto de igualdade, uma espécie de equilíbrio entre a oferta e a demanda do público; separando liberdade e segurança. Neste sentido, a autora afirma:
“(…) a sociedade equaliza em quaisquer circunstâncias, e a vitória da igualdade no mundo moderno é apenas o reconhecimento político e jurídico do fato de que a sociedade conquistou a esfera pública, e que a distinção e a diferença reduziram-se a questões privadas do indivíduo.”[xviii]
A igualdade moderna, porém, é, diferentemente da antiga, baseada no conformismo social. A polis encontrava na esfera pública a chance dos cidadãos individualizarem-se (“Em outras palavras, a esfera pública era reservada à individualidade (…)”)[xix].
A noção de que os homens não agem com o espírito em função de beneficiar o corpo social apresentava-se como o conformismo onde se enraíza a moderna ciência da economia (que, por seu lado, nasceu junto ao surgimento da sociedade).
A ferramenta mestra da economia seria a estatística (enquanto um tratamento matemático do real), que conferiu à economia o status de ciência social. As leis da estatística, entretanto, só possuem validade quando tratam de longos períodos ou grandes números. Isto ocorreria em função de que o singular influi menos nestas condições (onde as variáveis tendem a se diluir), do que influi em casos com poucas pessoas e curtos períodos.
O crescimento da população traria, na esfera pública, uma supremacia crescente do social em relação ao político. Nesta medida, os gregos tiveram um corpo político mais individualista e menos conformado, sabendo que a polis apenas sobreviveria com um número restrito de cidadãos.
Destarte, uma população muito numerosa traz uma tendência ao despotismo (de uma pessoa ou da lei da maioria, que não deixa de ser uma forma do mesmo). Do mesmo modo, fatos isolados que, porventura, venham a acontecer, terão cada vez menos importância frente às informações do comum viver[xx].
A questão do comportamento uniforme, trazida pela determinação estatística (que melhora o percentual de acerto, à medida que a população aumenta), não pode ser explicada pela hipótese liberal da harmonização dos interesses — que promove a famosa ‘mão invisível’, que, na economia, adequaria a oferta à demanda. Esta seria, por assim dizer, a ‘ficção comunista’, que harmonizaria interesses conflitantes.
Assim, uma vitória completa da sociedade sempre traria algum tipo de ‘ficção comunista’. Para ver o grau desta, podemos observar o surgimento das ciências comportamentais, que buscam trazer o homem à condição de animal comportado e condicionado (o comportamento socialmente bom vai tomando seu espaço nos diferentes aspectos da vida).
A sociedade, em sua esfera, traz a imanência do caminho à absorção das demais esferas (inclusive a da recente intimidade). É o ciclo da vida apresentando sua conotação pública. Esta dialética pode garantir a sobrevivência da espécie humana na sociedade de massa, bem como pode ser a razão de sua extinção.
Neste ponto, a autora define sociedade como organização pública do processo da vida, de modo que tudo que se inter-relaciona com a mútua dependência dos seres humanos (para a manutenção da vida) adquire conotação pública, sendo exposta como tal.
Estes movimentos, que expressam a dinâmica com que as esferas se entrelaçam, representam, também, a dinâmica das próprias atividades, que se apresentam com variadas conotações ao longo do tempo (como o status público do trabalho).
Estas mudanças ocorreram paralelamente ao crescimento da esfera social, que tem um crescimento interno da representação pública do ciclo da vida (“(…) que chamamos de artificial crescimento do natural (…)”[xxi]) — considerada, geralmente, como representada pelo acelerado crescimento da produtividade do trabalho. Talvez porque a força desta conotação pública tenha trazido a demanda pela excelência (e, novamente, voltamos à ‘mão invisível’).
Esta excelência (areté grega) só seria alcançada na esfera pública, até porque a presença de outros seria requisito obrigatório. A esfera social não teve a força de diluir a ligação da esfera pública com a excelência, de forma que — no mundo moderno —, ao adquirirmos grande excelência na atividade laborativa (sob a forma de produtividade), retrocedemos muito na fala e na ação. Há de se entender que, para haver desenvolvimento em alguma atividade, há de ser necessário o espaço próprio a este. Não obstante, afirma a autora:
“Nem a educação nem a engenhosidade nem o talento pode substituir os elementos constitutivos da esfera pública, que fazem dela o local adequado para a excelência humana.”[xxii]
– A Esfera Pública: O Comum
Tudo que aparece[xxiii] em público pode ser visto e ouvido por todos, tendo a publicidade mais ampla possível. A força do público é tamanha que, para Hannah Arendt, a incerteza só se desvanece com a diluição do objeto do conhecimento na esfera pública, adaptando-o à sua aparência (como acontece ao ser contada uma história) e forma pública, de acordo com a esfera aonde adentra.
O homem buscaria, na universalidade do público, a certeza da realidade de sua particularidade[xxiv]. Esta busca seria algo imanente ao próprio homem, de modo que, sempre, encontrar-se-ia perdido, no escuro, ao não conseguir tatear (ao menos), sua realidade na universalidade. Esta talvez seja a característica que faz do homem um ser que vive eminentemente entre outros: sua necessidade de encontrar, na forma das relações presentes no meio público, analogias quanto à sua própria forma de atuar.
O público, entretanto, admite apenas o que lhe é digno, de modo que a irrelevância[xxv], por exemplo, faz com que, automaticamente, um assunto se transforme em algo da esfera privada.
O fato de a esfera pública entender algo como irrelevante não implica que não será entendido por muitos particulares como de extrema relevância[xxvi]. Esta ocorrência, entretanto, não faz com que o assunto irrompa do privado ao público (assim, apenas a esfera privada possui o charme, pois lhe é possível o irrelevante).
O conceito de público denota o mundo que se encontra na relação de proximidade ou distância de todos os homens[xxvii]. A esfera pública mantém as pessoas juntas, evitando que umas venham a invadir o espaço das outras[xxviii]. Destarte, o grande problema da sociedade de massa seria a falta de potência da esfera pública moderna em unir diferentes singularidades (indivíduos)[xxix].
A autora entende que o princípio da caridade (de autoria de Agostinho) teria sido o único desenvolvido em vias de manter a comunidade de pessoas unida. Esta caridade estaria, como o mundo, presente entre todas as pessoas, sendo ideal à busca cristã pelo desapego.
O alcance deste desapego ao agir político só seria possível se derivado da premissa de que as ações só são exercidas no mundo, que, por sua vez, não dura. Calcando-se nesta noção, Hannah Arendt entende como inevitável o domínio da cena política pelo sentimento de desapego. Isto teria acontecido após a queda do Império Romano e, aparentemente, estaria acontecendo em nossos dias.
Destarte, como seria possível a política em si (presumido o desapego e a impessoalidade da ação), o mundo comum e a esfera pública, se não tivermos este desapego (ao menos, parcialmente), gerado apenas pela transcendental imortalidade terrena (imortalidade esta estabelecida enquanto reflexo que o singular, em sua particularidade, gera no universal)?
O mundo comum, assim, continua sendo construído e mantido para as gerações futuras, de acordo com o que a geração presente entende ser importante, de modo que a constituição dialética do universal é perpetuada. Assim, transpõe-se, naturalmente, a informação pela publicidade da esfera pública, que a absorve (e faz reluzir aos demais). Contudo, ocorre que, no mundo moderno, existiria uma falta de preocupação com a imortalidade e com a reflexão filosófica acerca da eternidade (o singular, então, não busca ser, por assim dizer, o mais perpétuo possível no universal, assimilando sua vida à uma busca de satisfações fúteis) [xxx].
Enquanto Aristóteles indicava que o homem deveria ser observado na possibilidade que ele possui de ser imortalizado, o mundo moderno observa-o através da admiração pública e da recompensa financeira (que representam, ambos, algo que o homem consome, como a fome consumiria a comida).
A futilidade destes novos padrões (que, inclusive, aumentam constantemente sua demanda) dificulta o estabelecimento sólido do mundo comum[xxxi]. O crescimento no consumo destas necessidades é tamanho que a compensação monetária pode tornar-se mais objetiva e real, isto é, ser presente em múltiplas particularidades, mas sempre na esfera privada.
Ao passo que esta objetividade encontra-se calcada no dinheiro e em um denominador comum, a esfera pública se fixa na multiplicidade de aspectos nos quais o mundo comum se apresenta, sem fixar denominador ou medida comum. A esfera pública é, por assim dizer, o ponto múltiplo de encontro das diferentes singularidades e particularidades, tão variado e intenso que não há de se falar em média (pois o singular reflete no universal, que, por sua vez, reflete no singular, em constante construção dialética).
Na sociedade de massa, o indivíduo vai, progressivamente, sendo confinado à sua singularidade. O mundo comum deixa de ser colocado como um local de troca, de cruzamento e de criação de perspectivas (o que levaria o homem a um objetivo comum). Pelo contrário, o homem rema no caminho de tornar-se inteiramente privado, onde todos reproduzem a perspectiva do próximo.
– A Esfera Privada: Propriedade
“The privation of privacy lies in the absence of others;”[xxxii]
A vida privada é aquela desprovida da realidade de ouvir e ser ouvido, de ver e de ser visto (portanto, a realidade de interagir com outros seres humanos, sendo desprovido, no termo grego, de usufruir a qualidade de ser humano em sua plenitude)[xxxiii].
O homem que se priva de relações ‘objetivas’ forma o fenômeno da solidão, que, em aumentando seus adeptos, são geradas conseqüências destrutivas, tanto na esfera pública, quanto na privada. O indivíduo, não obstante, vai perdendo seu lugar no mundo e na sua casa.
Segundo Hannah Arendt, o tratamento privado da privacidade teria praticamente acabado com a era cristã, pois sua moral afirmaria que cada um deveria cuidar de seus próprios assuntos, de forma que a política seria um encargo assumido por aqueles que teriam o intuito exclusivo de libertar os demais destes assuntos públicos. A posição ‘socialista’ seria a esperança de um dia o governo ser abolido (a desconstrução do Estado por parte de Marx, entretanto, teria sido precedida pela desconstrução da esfera pública).
A autora indica que, aparentemente, estaria na natureza própria da relação entre as esferas publica e privada, o fato de, no final do desaparecimento da esfera pública, a esfera privada também houvesse de se extinguir.
Se a questão da propriedade acaba por surgir no argumento da autora, ela afirma ser em função de que, colocando o termo ‘privado’ em associação com o termo ‘propriedade’, toda característica privativa da propriedade se esvai, de forma que o pensamento político acaba por entender-se necessário.
A dicotomia entre as esferas pública e privada é comumente confundida pela relação que a pobreza e a riqueza possam vir a ter com a falta de propriedade e a pobreza[xxxiv]. É sabido, entretanto, que sociedades muito prósperas se encontraram, muitas vezes, com falta de propriedade[xxxv]. Esta noção, portanto, é certamente errônea, de modo que as formas mediante as quais a prosperidade se exterioriza na universalidade sofrem constantes alterações, com gênese de novos conceitos e multiplicações de antigas formas, gerando produções ainda mais novas de riquezas.
A propriedade sempre fora sagrada para as civilizações[xxxvi], mas a prosperidade nunca o teria sido, até agora.
O que está contido na propriedade permanece privado, mas sua aparência externa é assunto da cidade também; a saber, a zona limítrofe entre as propriedades[xxxvii].
O respeito por tais limites teve como grande responsável os preceitos cristãos que asseguraram a manutenção de uma esfera pública, para os dias de hoje[xxxviii].
Posteriormente, surge a noção de prosperidade ligada à vida pública, de modo que o indivíduo só teria tempo e disposição para a política, se já tivesse provido as condições para seu sustento. A posse de escravos, por exemplo, libertar-lhe-ia deste encargo. A pobreza, portanto, forçaria o homem a manter-se menos ligado à esfera pública, pelas necessidades da vida em si. Cuidando deste fator, o homem poderia transcender sua própria existência, ingressando na esfera pública.
Com o surgimento das cidades-estado, esta propriedade privada assume o significado político final, ao qual já se encaminhava, de modo que, então, serviçais eram considerados indivíduos de fato inferiores. O ato do proprietário não optar pela vida na esfera pública, em vias de aumentar seus domínios, representava escolher viver justamente da forma através da qual os escravos viviam, por não terem escolha.
Atualmente, a concepção de propriedade implica (para os defensores da propriedade privada) qualquer forma de propriedade privada sobre uma riqueza individualmente considerada.
No crescimento do acúmulo de riqueza, entretanto, a ‘sacralidade’ da propriedade foi deixada de lado sempre que esta atrapalhou o acúmulo. O próprio acúmulo teve seu início com a expropriação da classe camponesa, conseqüência da expropriação da Igreja (e por aí vai)[xxxix].
O aumento da ‘produtividade social’ deveria andar lado a lado com o desenvolvimento do processo de prosperidade social, amparados pela negação da consideração acerca da propriedade privada.
Entretanto, como fazê-lo?
– O Social e o Privado
O surgimento do social apresenta-se no mesmo momento histórico em que a propriedade privada sofre uma mudança em seu tratamento, demonstrando um aspecto de preocupação pública. O social, entretanto, surgiu com a forma de proprietários que buscaram proteção à esfera pública, enquanto debruçavam-se na busca pelo acúmulo de mais riqueza[xl].
Em dado momento, portanto, esta prosperidade comum deixou de ser uma preocupação da esfera privada (do ambiente familiar), galgando espaço na esfera pública, de modo que o ato de apoderar-se de algo[xli] (que seria algo incrivelmente mais perene que o mundo comum, que, neste momento, tomava sua primeira ‘baixa’ em essencialidade[xlii]) iniciou a degradação da durabilidade do mundo[xliii].
Depois de um tempo, entretanto, quando a riqueza se ‘transforma em capital’[xliv], sua função se altera, trazendo, em sua inerência, a produção de mais capital, de modo que a autora coloca:
“Somente quando a riqueza se transformou em capital, cuja função única era gerar mais capital, é que a propriedade privada igualou ou emulou a permanência inerente ao mundo compartilhado por todos.”[xlv]
Destarte, a riqueza acaba por assumir a forma que a dialética em que se dinamizava a levava a ser. O processo de auto-reprodução permanente passa a ser da própria dialética da riqueza — já transformada em capital[xlvi].
Nesta esteira, a riqueza comum nunca seria — no sentido estrito — comum, tendo permanecido no âmbito privado, de modo que apenas o governo (enquanto a representação pública dos anseios dos proprietários de haver uma regulação entre a luta existente entre eles, no sentido de conseguir mais riqueza) era comum.
No conceito moderno de governo, onde o indivíduo é aquele que busca seus próprios interesses[xlvii], a inserção das esferas pública e privada constitui a própria contradição interna a ambas. Assim, neste momento histórico, Arendt entende que podemos perceber as conseqüências do fim das esferas pública e privada, para a existência humana[xlviii].
A esfera privada, que, por tanto tempo, protegera a intimidade, não mais o faz, agora que, na modernidade, esta já foi descoberta e trazida à tona da subjetividade inerente do indivíduo. Assim, esta dissolução do privado no social pode ser observada na história, gradativamente, em diferentes momentos, conforme apontado muito astutamente pela autora:
“A dissolução desta esfera e sua transformação em esfera social pode ser perfeitamente observada na crescente transformação da propriedade imóvel em propriedade móvel, ao ponto em que a distinção entre propriedade e riqueza, entre os fungibiles e os consumptibiles da lei romana perde toda a sua importância, de vez que toda coisa tangível, <<fungível>> passa a ser objeto de <<consumo>>; perde seu valor de uso privado, antes determinado por sua localização, e adquire valor exclusivamente social, determinado por sua permutabilidade constantemente mutável, cuja própria flutuação só temporariamente pode ser fixada através de uma conexão com o denominador comum do dinheiro.”[xlix]
Depois que a prosperidade tornou-se preocupação pública, assumiu um crescimento tão vertiginoso que seria impossível mantê-la, de fato, uma preocupação privada (tamanha a proporção que alcançou).
A autora fala numa espécie de vingança da esfera pública[l], sobre aqueles que buscaram utilizar a propriedade privada para suprir seus próprios interesses[li]. Penso que a vida, em todas as suas dinâmicas e organizações, tende a se estabelecer, de modo a auto-organizar-se, pois este é o interesse fundamental de todos. Tomemos, por exemplo, as flutuações da economia sobre as ofertas e demandas do mercado. Ocorre que estas flutuações estão sempre ocorrendo em volta do ponto de equilíbrio, buscando uma efetiva plenitude (até onde é possível, pois o ser humano tem suas buscas singulares distintas) das satisfações. Quando, porém, a produção se excede, o preço cai e os produtores, estabilizando automaticamente (pois tiveram — caso o governo não tenha intercedido — que vender seus produtos por preços mais baratos) o mercado, acabam por diminuir a produção[lii].
O homem tem anseios comuns, que são demonstrados pelas próprias (por assim dizer) flutuações de suas ações, variando, portanto, sempre em torno de um ponto comum. Assim, a consciência do homem, com a reflexão e o aprimoramento de seus mecanismos de auto-organização, caminha sempre para um lugar melhor, pois vontade de melhorar é sempre majoritária. Se não fosse assim, talvez ainda não tivéssemos tantos subsídios como temos.
Seguindo adiante, a autora apresenta sua explicação acerca dos perigos à existência humana, presentes na eliminação da esfera privada, bem como o motivo pelo qual a esfera da intimidade não é substituta adequada. Assim, distinções são feitas, inicialmente, entre o que possuímos publicamente e privadamente. Nossas necessidades privadas são, sempre, mais urgentes do que qualquer objeto contido na esfera pública[liii]. A eliminação da necessidade, porém, não traria a liberdade, como pensavam os antigos, mas confundiria bastante a distinção entre liberdade e necessidade. Outra característica importante da privacidade que, por sua vez, chocar-se-ia — no entendimento da autora — com o privado, seria o fato da propriedade privada ser um refúgio ao mundo público comum, de modo que seria um refúgio para o indivíduo. Assim, ele poderia manter separado o que ele quer que se torne público, do que ele pensa em reter apenas para si[liv].
O que é manifestamente importante para a esfera pública, no entender da autora, não seria o espírito empreendedor dos homens de negócio da sociedade (em sua busca por riqueza), mas a proteção que o indivíduo (singular ou particular) deve empreender em sua propriedade. Caso não o faça, a sociedade poderá invadir sua privacidade, empreendendo a ‘socialização do homem’[lv].
No mundo moderno, houve a descoberta de que o homem, no que buscava guardar para si, era muito mais interessante e rico (em multiplicidade) do que aquilo que se tornava público.
– A Localização das Atividades Humanas
O mais importante da distinção entre as duas esferas, para a autora, seria o fato de que existem coisas que têm a necessidade de serem reservadas e outras que precisam ser públicas.
Em função disto, a autora conclui que cada atividade humana possui seu lugar próprio no mundo. Esta conclusão funciona para a vita activa, para o labor, para o trabalho e para a ação, mas não funcionaria para a bondade, em seu sentido absoluto (que seria um conceito surgido a partir do Cristianismo).
A atividade ensinada por Jesus, referente à realização do bem, implica a abnegação, também. Não obstante, a pessoa que realiza a boa ação deve buscar não ser visto ou ouvido. Assim, ocorre uma tendência ao cristão (ao menos no que diz respeito aos primeiros cristão) em evitar a esfera pública, claramente mergulhando-se na devoção às boas ações. Isto, em função de que, caso a ação seja do conhecimento público, perder-se-á sua característica de abnegação e, portanto, de ter sido realizada apenas com o intuito de realizar o bem. Destarte, a autora afirma:
“Quando a bondade se mostra abertamente já não é bondade, embora possa ainda ser útil como caridade organizada ou como ato de solidariedade. Daí: <<Não dês tuas esmolas perante os homens, para seres visto por eles>>. A bondade só pode existir quando não é percebida, nem mesmo por aquele que a faz; quem quer que se veja a si mesmo no ato de fazer uma boa obra deixa de ser bom; será, no máximo, um membro útil da sociedade ou zeloso membro da Igreja. Daí: <<Que a tua mão esquerda não saiba o que faz a tua mão direita>>.”[lvi]
Não tenho, entretanto, a mesma visão que a autora, pois penso que, caso haja uma boa ação a ser feita, não deve deixar de ser feita em função de haverem pessoas por perto, que possam vir a tornar a ação pública. Entendo que este preceito cristão coloca, apenas, que a ação não deve ser realizada com o intuito de torná-la pública, bem como de insuflar o orgulho na pessoa que a realizou. A bondade não deve ser percebida, nem mesmo pelo autor, pois ele deve realizá-la pela ação em si, mas não para sentir-se bem[lvii]. Nisto, em meu ver, consiste este elevado preceito moral.
A autora entende, também, não ser possível a existência de homens sábios ou bons, pois caso seja assumida esta possibilidade, anular-se-ia, de pronto, tais qualidades. Penso que este entendimento da autora é decorrente de sua percepção acerca da ação tornar-se pública e a incongruência disto com a essência desta[lviii]. Como minha percepção acerca deste ponto é distinta, minha relação com a existência de homens sábios ou bons também o é.
Entendo, também, que a bondade e a sapiência dos indivíduos, entretanto, apresentam-se enquanto conceitos relativos ao contexto em que são inseridos, bem como em relação às diferentes pessoas. Este, porém, não é um tema pertinente ao presente trabalho, de forma que não me reterei mais nele.
Ainda segundo a obra da autora, a religiosidade é característica das pessoas amantes da bondade, o que faz com que a bondade, como a sabedoria — na antiguidade —, seja uma característica essencialmente não humana (sobre-humana). Entretanto, o amor pela bondade está ao alcance da experiência de qualquer ser humano (diferentemente do amor pela sabedoria).
Bacharel em Direito – Rio de Janeiro/RJ
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