Autor:
Bárbara Aparecida Nunes Souza
Resumo: Em virtude da evolução da relação jurídica entre seres humanos e animais, os animais de estimação, também conhecidos como animais de companhia, conquistaram um espaço especial nos lares brasileiros, sendo considerados verdadeiros membros da família. Nesse contexto, e diante da necessidade de considerá-los mais do que simples propriedade, o presente artigo discute a natureza jurídica do animal de companhia e tem por objetivo analisar se o animal de companhia deve ser considerado como herança, ou seja, um bem que integra o patrimônio do falecido, ou se ele deve ser considerado como um herdeiro capaz de ser beneficiário da herança. Assim, através do método de pesquisa dedutivo, baseando-se em revisão bibliográfica, documental e legislativa, propõe-se uma discussão acerca do papel dos animais de companhia na sucessão por morte de seu tutor. Explora-se, inicialmente, a natureza jurídica dos animais de companhia e, por conseguinte, a relação do animal de companhia nas famílias. Depois, verifica-se a capacidade sucessória dos animais de companhia e, por fim, enfatiza-se a necessidade de conscientização sobre o planejamento sucessório para animais de estimação, superando obstáculos legais e garantindo cuidados adequados para esses membros especiais da família.
Palavras-chave: Animal de companhia; Herança; Herdeiro; Sucessão.
Abstract: Due to the evolution of the legal relationship between humans and animals, pets, also known as companion animals, have gained a special place in Brazilian homes, being considered true family members. In this context, and faced with the need to regard them as more than mere property, this article discusses the legal nature of companion animals and aims to analyze whether a companion animal should be considered as an inheritance, i.e., a property that is part of the deceased’s estate, or if it should be considered as a heir capable of benefiting from the inheritance. Thus, using the deductive research method based on literature, documentary, and legislative review, a discussion is proposed regarding the role of companion animals in the succession upon the death of their guardian. Initially, the legal nature of companion animals and their role in families is explored. Subsequently, the succession capacity of companion animals is examined, and finally, the need for awareness of estate planning for pets is emphasized, overcoming legal obstacles and ensuring proper care for these special family members.
Key-words: Pet; Inheritance; Heir; Succession.
SUMÁRIO: Introdução. 1. Animal de companhia como bem móvel. 2. Família multiespécie: animais como integrantes do núcleo familiar. 3. Animais de companhia como sujeitos de direito. 4. Capacidade sucessória do animal de companhia. Conclusão. Referências.
Introdução
Por séculos, os animais desempenharam funções cruciais nas sociedades humanas. Inicialmente, foram domesticados para atender a propósitos práticos, como auxiliar na caça, proteger propriedades e fornecer alimentos. Contudo, à medida que a relação entre o homem e os animais evoluiu, estes passaram a ocupar um lugar de relevância na sociedade.
Os animais de estimação, também conhecidos como animais de companhia, conquistaram um espaço especial nos lares brasileiros, sendo considerados verdadeiros membros da família. Devido ao afeto estabelecido com esses animais domésticos e à preocupação com seu destino após a morte do tutor, é comum ouvirmos relatos de pessoas que desejam destinar parte de sua herança aos seus animais. No entanto, surgem divergências quanto à personalidade jurídica dos animais, assim como discussões sobre sua classificação como propriedade.
Diante da ausência de legislação em alguns assuntos e da discordância doutrinária em outros, somada à crescente presença de animais de companhia nos núcleos familiares, surge a seguinte indagação: deve-se considerar o animal de companhia como herança, ou seja, um bem que integra o patrimônio do falecido, ou ele deve ser considerado como um herdeiro capaz de ser beneficiário da herança?
Sabe-se que, no ordenamento jurídico brasileiro, a parte disponível da herança pode ser destinada conforme a vontade do autor da herança. Dessa forma, este estudo procura analisar a capacidade sucessória passiva do animal de companhia, a fim de verificar se é possível que um tutor deixe algo a título de herança para o animal.
Adotando o método dedutivo, a abordagem busca oferecer soluções para a questão de pesquisa relacionada à sucessão de bens em relação aos animais de companhia. Para atingir esse objetivo, serão utilizadas pesquisas bibliográficas e documentais, bem como a análise da legislação vigente no ordenamento jurídico brasileiro e a jurisprudência relacionada ao tema.
Esta pesquisa será apresentada inicialmente com uma breve contextualização sobre a natureza jurídica dos animais de companhia, passando pela análise dos animais de estimação como integrantes do núcleo familiar. Em seguida, serão abordados temas como personalidade jurídica e capacidade sucessória dos animais de companhia. Por fim, nas considerações finais, será apresentado o resultado obtido no estudo.
Animal de companhia como bem móvel
A relação entre seres humanos e seus animais de estimação transcende o conceito tradicional de domesticação, estabelecendo laços profundos e duradouros. Diante dos novos arranjos familiares e em virtude da ausência de previsões legais específicas, os tribunais têm enfrentado demandas que envolvem os animais de companhia em diversos institutos do Direito, como o direito a alimentos, a guarda e convivência familiar, e o recebimento de herança.
Madaleno (2016, p. 684), ao abordar a posse ou guarda de animais de estimação, destaca que “nem nos piores pesadelos poderia ser esboçado qualquer traço de comparação ou assimilação com a guarda de filhos”. No entanto, é válido recordar o famoso caso de Mary Ellen Wilson, uma criança salva de abuso infantil nos termos da lei destinada à proteção dos animais, uma vez que, nos anos 1870, os Estados Unidos não possuíam leis de proteção à criança. Se naquela época utilizavam os animais para proteger os direitos de uma criança, por que não utilizar os institutos destinados às crianças para proteger os interesses dos animais?
É imperioso salientar que o presente estudo não visa equiparar animais de companhia a crianças, nem criar direitos idênticos. No entanto, é necessário reavaliar o enquadramento jurídico dos animais no direito para tratá-los com igual consideração ao animal humano.
O Código Civil, em seu artigo 82, define os animais como bens móveis, uma caracterização que Schreiber et al. (2021) consideram retrógrada, pois na sociedade contemporânea cresce a necessidade de reconhecer um tratamento jurídico diferenciado aos animais.
Pereira (2021) corrobora, destacando que os animais são seres sencientes, superiores aos semoventes, capazes de sentir sofrimento, angústia, dor e outros sentimentos.
De acordo com Bastos (2018), a concessão de direitos aos animais não-humanos não dependeria de sua capacidade de raciocínio ou de fala, mas sim de sua capacidade de sentir, especialmente dor e sofrimento, e que discriminar outro ser vivo apenas por suas características físicas é injustificado, pois a capacidade de sentir ou sofrer dever ser o critério determinante para a proteção do ser.
Pereira (2021) afirma que os animais de estimação merecem ser reconhecidos para além da abordagem tradicional que os trata como simples seres semoventes, pois são considerados seres sencientes, caracterizados pela capacidade de experimentar sensações, como dor, angústia, sofrimento, solidão e raiva.
Apesar do Código Civil classificar os animais como coisas, o Superior Tribunal de Justiça (STJ), no julgamento do REsp 1.713.167, reconheceu que os animais de companhia têm uma natureza especial por serem dotados de sensibilidade. O Ministro Luis Felipe Salomão, relator do caso, afirmou que tratar os animais de forma diferente de coisas inanimadas não implica humanizá-los, mas sim conceder-lhes um tratamento especial, uma vez que os direitos de propriedade não são aplicáveis.
Se um animal de companhia fosse considerado uma coisa, um bem móvel, ele deveria ser vendido e partilhado durante a dissolução de relações conjugais, como ocorre com outros bens móveis. No entanto, na prática, não é assim que ocorre. O Instituto Brasileiro de Direito de Família (IBDFAM), no enunciado 11, afirmou que “na ação destinada a dissolver o casamento ou a união estável, o juiz pode disciplinar a custódia compartilhada do animal de estimação do casal”.
Ainda não se atribuiu aos animais uma caracterização que reconheça sua importância. No entanto, dado que os animais de companhia têm a capacidade de sentir e estão cada vez mais presentes nos núcleos familiares, é evidente que não são objetos. Portanto, é importante ressaltar que seus tutores não devem ser chamados de donos, para evitar a sensação de propriedade.
Percebe-se a urgência de atualizar a caracterização dos animais no ordenamento jurídico brasileiro e regulamentar alguns direitos, uma vez que a discussão sobre os animais de companhia é cada vez mais comum, dada sua presença crescente na sociedade e nas famílias.
Família multiespécie: animais como integrantes do núcleo familiar
Os animais de companhia estão conquistando cada vez mais espaço na sociedade, deixando de ser apenas parte do núcleo de produção e serviços para estabelecerem laços afetivos significativos com seus tutores e aqueles ao seu redor.
Segundo dados da Associação Brasileira da Indústria de Produtos para Animais de Estimação (Abinpet) em 2021, o Brasil contava com 149,6 milhões de animais de estimação, incluindo 41 milhões de aves, 58,1 milhões de cães, 27,1 milhões de gatos, 20,8 milhões de peixes ornamentais e 2,53 milhões de outras espécies. Pesquisas internacionais, como a realizada pela empresa de consultoria Growth from Knowledge (GfK), indicam que o Brasil, juntamente com a Argentina e o México, está entre os países com os maiores percentuais de animais de estimação, com 58% de cachorros, 28% de gatos e 11% de aves.
Em comparação com a população humana, estimada em 213,3 milhões em 2021 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), pode-se dizer que havia quase dois habitantes para casa animal de estimação. Além disso, pesquisas da Abinpet mostram que 61,2% dos donos de cães veem seus animais de estimação como membros da família.
A popularidade crescente dos animais de companhia levou ao desenvolvimento de laços cada vez mais profundos nas relações familiares. Muitos casais optam por não ter filhos humanos, escolhendo, em vez disso, ter “filhos pets”. Essa evolução nas relações familiares deu origem à chamada família multiéspecie, conceituada por Cunha (2021) como a relação e o vínculo afetivo estabelecidos entre os seres humanos e seus animais de estimação.
A doutrina e muitos juristas reconhecem a existência da família multiespécie. Dias (2021, p. 414), em seu livro de Direito das Famílias, destaca que “o capítulo que trata da proteção dos filhos é o lugar mais adequado para abordar o tema relacionado à proteção dos animais de estimação – também chamados de animais de companhia – por serem tratados por muitos como verdadeiros filhos”.
O aumento do reconhecimento do vínculo afetivo entre humanos e animais é evidente em diversos setores, como ilustrado pela Lei Orgânica do Município de Valinhos/SP, Lei nº 5827, de 18 de abril de 2019, que concede permissão aos hospitais da cidade para que animais de estimação de pequeno porte possam fazer visitas a pacientes internados.
Além disso, em uma decisão de Recurso Especial envolvendo a regulamentação de visitas para um cachorro durante o divórcio de seus tutores (Recurso Especial n. 1.713.167), o Ministro Luis Felipe Salomão reconheceu em seu voto que o animal de estimação fazia parte do núcleo familiar do casal, não na qualidade de bem.
Assim sendo, não há mais espaço para tratar os animais de companhia como objetos, uma vez que estão cada vez mais presentes nos lares brasileiros, intensificando os laços de afeto entre animais humanos e não humanos.
Animais de companhia como sujeitos de direitos
O Código Civil, em seu artigo 2º, estabelece que a personalidade civil da pessoa se inicia com o nascimento com vida, excluindo explicitamente os animais de companhia, uma vez que essa disposição se refere exclusivamente a seres humanos. Como já mencionado, para o Código Civil de 2002, os animais não são sujeitos de direitos, uma vez que o referido diploma legal os classifica como “coisa”, apesar de, em alguns pontos, receberem tratamento diferenciado em relação aos demais bens móveis. No entanto, tanto a doutrina quanto a jurisprudência vêm reconhecendo os animais como seres sencientes e no que tange à personalidade jurídica, há debates, pois, de acordo com o atual ordenamento jurídico, os animais são despersonificados.
Embora tenha sido reconhecido que os animais de companhia não devem ser considerados meras coisas no âmbito do direito civil, o simples fato de um animal ser classificado como um animal de estimação e receber afeto de uma família não tem o poder de modificar sua essência a ponto de alterar sua natureza jurídica ou lhe atribuir uma personalidade jurídica.
A questão da personalidade jurídica dos animais está em constante transformação no Brasil. Tanto a legislação quanto a jurisprudência estão progressivamente reconhecendo a necessidade de considerar os animais não humanos como sujeitos de direitos, dotados de interesses e dignidade. Essa abordagem busca superar a visão tradicional que os tratava como meras propriedades, conferindo-lhes uma proteção jurídica mais abrangente.
A evolução nesse campo reflete-se na crescente criação de leis de proteção animal, no reconhecimento de sua capacidade de sofrimento e na proibição de práticas cruéis. A busca pela personalidade jurídica dos animais representa um avanço significativo na promoção do bem-estar animal e na construção de uma sociedade mais justa e compassiva.
Conforme exposto por Singer (2013, p. 5 apud BASTOS, 2018, p. 50), “o princípio moral da igual consideração de interesses se aplica tanto aos animais quanto aos seres humanos”. Não atribuir personalidade jurídica e direitos aos animais é uma forma de discriminação preconceituosa baseada apenas na espécie. Considerando que também somos animais, não podemos discriminar outro animal (neste caso, o não humano) simplesmente por suas características e racionalidade, uma vez que eles também possuem a capacidade de sentir e sofrer (BASTOS, 2018).
Alguns estados brasileiros já legislaram sobre o tema. Em Minas Gerais, por meio da Lei 23.724/2020, os animais foram reconhecidos como seres sencientes, sujeitos de direito despersonificados, fazendo jus à tutela jurisdicional. Em Santa Catarina, a Lei 12.854/2003, em seu artigo 34-A, conferiu a cães e gatos a caracterização de seres sencientes, sujeitos de direito. No Rio Grande do Sul, a Lei 15.434/2020, além de atribuir aos animais uma natureza jurídica sui generis, reconheceu que os animais domésticos de estimação são sujeitos de direitos despersonificados e proibiu que sejam tratados como coisa.
Em uma decisão pioneira proferida em 14 de setembro de 2021 pela 7ª Câmara Cível do Tribunal de Justiça do Paraná, foi reconhecido que os animais possuem capacidade para serem parte em ações judiciais. Isso se fundamenta no artigo 1º do Código Civil, que estabelece que “toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem civil”, e no artigo 70 do Código de Processo Civil, que afirma que “toda pessoa que se encontre no exercício de seus direitos tem capacidade para estar em juízo”.
O primeiro requisito, relacionado à condição de sujeito de direitos dos animais, foi consolidado não apenas pelo entendimento pacificado do Superior Tribunal de Justiça, mas também pela Constituição Federal, especificamente no § 1º, VII do artigo 225. Essa mudança de paradigma afasta a consideração dos animais como meras “coisas” ou bens semoventes.
Contudo, mesmo com esse reconhecimento, persistem controvérsias. Uma outra decisão, do Tribunal de Justiça da Paraíba, em março, negou a admissão de um cachorro em um processo de indenização por danos morais, argumentando a ausência de norma que preveja a capacidade processual dos animais.
Diante disso, tramita na Câmara dos Deputados o Projeto de Lei 145/2021, que propõe alterações no Código de Processo Civil para permitir que animais não-humanos sejam individualmente parte em processos judiciais, representados por entidades como o Ministério Público, a Defensoria Pública, associações de proteção dos animais ou por seus tutores.
É importante ressaltar a distinção entre capacidade e personalidade jurídica. A capacidade, conforme definido nos artigos 3º e 4º do Código Civil, refere-se à habilidade dos indivíduos de exercerem determinados direitos, sendo denominada como capacidade de fato ou de exercício. A ausência desses requisitos formais resulta em incapacidade absoluta ou relativa. Dias (2019) destaca que a legitimidade do animal não-humano para figurar como parte ativa na relação processual ainda depende de uma carência legal específica, uma legitimidade que a lei deveria estabelecer, uma vez que outros entes com características semelhantes têm respaldo legal para participar de processos judiciais, desde que representados por seres humanos.
Segundo Brasil e Costa (2019), até o momento, a natureza jurídica dos animais não humanos está passando por uma alteração de paradigma, ainda que de maneira gradual. Animais, que eram anteriormente considerados exclusivamente como propriedades, estão recebendo uma maior proteção jurídica. Isso levanta a questão se tais mudanças são indicativas de uma tentativa de atribuir personalidade a esses seres, e que, de fato, os animais não humanos não são mais tratados apenas como objetos, mesmo que a legislação atual possa indicar o contrário.
Capacidade sucessória do animal de companhia
Tendo-se constatado que os animais de companhia não devem ser tratados como meras coisas, conclui-se que estes não farão parte do acervo patrimonial do de cujus na abertura da sucessão. No entanto, tal conclusão não confere automaticamente aos animais de companhia a capacidade de suceder, é necessário analisar individualmente a capacidade sucessória para receber eventual herança deixada pelo seu tutor.
Com a crescente relevância dos animais de estimação na vida das pessoas, a discussão sobre a herança para esses animais tem ganhado destaque. Isso ocorre devido ao fato de que, após a morte de seu tutor, esses animais são incapazes de cuidar de si mesmos de forma autônoma.
Globalmente, há notícias de animais que receberam heranças, como por exemplo, os gatos Troy e Tiger, que receberam trezentos mil dólares quando sua tutora, a escritora Ellen Frey-Wouter, faleceu em Nova York. No Brasil, a escritora Nélida Piñon deixou quatro apartamentos de luxo à beira da Lagoa Rodrigo de Freitas, no Rio de Janeiro, para suas duas cachorrinhas, conforme noticiado pelo jornal Estadão.
O ordenamento jurídico brasileiro estabelece que a sucessão pode ocorrer por lei ou por disposição de última vontade e, para receber a herança, é necessário possuir capacidade sucessória, que, segundo Rosa e Rodrigues (2020), é mais abrangente que a capacidade civil, alcançando outros sujeitos de direito.
Segundo o Código Civil, na sucessão legítima, têm capacidade de suceder as pessoas nascidas ou já concebidas no momento da abertura da sucessão. Na sucessão testamentária, estão legitimados a suceder os filhos ainda não concebidos de pessoas vivas na abertura da sucessão, as pessoas jurídicas e as pessoas jurídicas cuja organização for determinada pelo testador sob a forma de fundação.
O código também lista quem não pode ser herdeiro ou legatário, incluindo a pessoa que escreveu o testamento, seu cônjuge ou companheiro, ascendentes e irmãos, testemunhas do testamento, o concubino do testador casado e o tabelião ou similar perante quem se fez o testamento.
Analisando os legitimados e o rol daqueles que não podem ser herdeiros ou legatários, nota-se que não há menção alguma que proíba ou autorize os animais de companhia a receberem herança. No entanto, é evidente que as disposições são pensadas apenas para os animais humanos, deixando de fora qualquer consideração acerca dos animais não humanos, visto que o mesmo código os caracteriza como coisas.
Conforme a observação de Ribeiro e Cândida (2019, p. 28), no contexto do sistema jurídico brasileiro, a capacidade de suceder é explicitamente reservada aos animais humanos, excluindo-se os não-humanos da linha sucessória. Doações para esses animais, seja por meio de testamento ou codicilo, não são permitidas.
O herdeiro é, em princípio, considerado o continuador da missão patrimonial do de uiús, enquanto o legatário é um beneficiário da herança, isento de obrigações, especialmente no que diz respeito ao cumprimento das dívidas da herança, em princípio.
Diante das relações estabelecidas entre os animais de companhia e seus tutores, é inevitável a comparação com os filhos humanos. Se o tutor considera o animal de companhia como filho e a lei estabelece que o filho deve receber herança, questiona-se por que o animal de estimação não poderia suceder. Embora a legislação sucessória tenha sido concebida para o ser humano, a evolução contínua e significativa das relações familiares sugere que os diplomas legais deveriam ser estendidos ou adaptados para os animais de companhia.
De acordo com Freitas, Tannure e Dantas (2022), a doutrina é praticamente unânime em não conferir aos animais de estimação capacidade sucessória. No entanto, novas perspectivas sobre o assunto estão surgindo, uma vez que o tema já é regulamentado e aplicado em outros países, e há um movimento crescente em favor dos animais de companhia, incluindo o reconhecimento de sua capacidade de estarem em juízo.
O direito deve ser compreendido não apenas em sua dimensão técnica, mas também em sua dimensão social e cultural. Buscar direitos para os animais não humanos não significa desejar que gozem dos mesmos direitos dos humanos, mas sim resguardá-los enquanto seres vivos.
Embora seja cultural não falar e planejar a morte, é preocupante para os tutores de animais de estimação o destino desses animais após seu falecimento. Assim, torna-se necessária a evolução do direito sucessório neste ponto. Conforme Bastos (2018) aduz, o que se busca não é um tratamento idêntico, mas sim uma igual consideração.
A legislação atual mostra-se desatualizada em relação aos costumes e práticas familiares. Muitos casais consideram animais de companhia como filhos, mas não está claro como o direito do filho animal não humano, daquele que possui bens e gostaria de deixar uma herança, poderia ser tutelado.
Embora não haja uma resposta pronta e tampouco regulamentação para o assunto, existem alternativas como a herança com encargo e a instituição de uma fundação, que devem ser organizadas em vida pelo tutor.
A herança com encargo implica que o testador deixe algo para alguém com a obrigação de realizar alguma coisa, cujo cumprimento pode ser exigido pelos outros sucessores, pelo testamenteiro e por outras figuras previstas em lei.
Nos casos em que os tutores desejam deixar seus bens para animais de companhia, conforme explica Rosa (2022), podem fazer um testamento deixando parte de seus bens para uma determinada pessoa, com o encargo de cuidar de seu animal de estimação.
Quanto à prática do encargo, Dias (2019) explica que não se trata de uma condição suspensiva, uma vez que o cumprimento do testamento ocorre desde logo, e o herdeiro, ao aceitar a herança, fica obrigado a cumprir o encargo, sob pena de ser executado.
De acordo com Brasil e Costa (2019), alguns julgados estão nesse sentido, uma viúva gaúcha, solitária e sem filhos, destinou seu apartamento de luxo para seus animais de estimação, a gatinha Mimi e a cadela Fifi, em seu testamento. Um irmão dela contestou a validade do testamento, reivindicando o imóvel como herdeiro. Ele obteve êxito, pois o testamento foi interpretado como uma incumbência de que ele, o herdeiro, cuidasse dos animais utilizando os recursos da herança.
Outra opção, para além da herança com encargo, é a criação de uma fundação, prevista nos artigos 62 e seguintes do Código Civil, que também especifica os fins aos quais elas podem se destinar. Essa opção atende às necessidades de quem deseja destinar a parte disponível de seus bens para os animais de companhia, pois o instituidor da fundação pode criá-la com um fim específico na proteção dos animais, indicando como ela será administrada.
O tutor pode planejar sua sucessão e deixar em testamento a estipulação da criação de uma fundação, conforme explica Rosa (2022, p. 168): “A criação de fundação por meio do testamento é medida que pode atender a uma preocupação específica do protagonista do planejamento sucessório”. Essa alternativa permite que o tutor garanta o bem-estar contínuo de seu animal de estimação, especificando os termos da gestão da fundação para assegurar a proteção adequada do animal após sua morte.
Conclusão
Os animais de companhia estão conquistando cada vez mais espaço na sociedade, resultando em novas demandas relacionadas ao direito. Embora o Código Civil os classifique como “coisa”, a jurisprudência já reconheceu sua natureza especial, e o entendimento legal está evoluindo para reconhecer que esses animais têm necessidades e sentimentos, merecendo uma proteção adequada.
Os animais não devem ser considerados simples objetos, fazendo parte do acervo patrimonial do falecido. Entretanto, também não são considerados herdeiros, seja legítimo ou testamentário. Diante disso, é crucial planejar o destino do animal de estimação após a morte de seu tutor.
Os animais de companhia não possuem capacidade sucessória. Contudo, para garantir que esses animais recebam cuidado e segurança adequados após a morte do tutor, este pode realizar disposições testamentárias, como deixar herança com encargo ou criar uma fundação, cuja alternativas devem ser organizadas em vida pelo tutor do animal de companhia.
No entanto, a falta de conhecimento sobre essa possibilidade legal ainda é um obstáculo para muitos tutores de animais de estimação. Portanto, é fundamental promover a conscientização sobre a necessidade de um planejamento sucessório adequado, considerando não apenas os bens materiais, mas também o destino dos animais que foram parte integrante daquele núcleo familiar.
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