Categories: FilosofiaRevista 85

Hermenêutica jurídica: a escola da exegese e o mito da neutralidade

Resumo: O positivismo surgiu como resposta à abstração do Direito Natural e trouxe consigo forma rígidas de interepretação . A escola da Exegese, junto ao Código de Napoleão, é o ápice dessa forma de enxergar o Direito, de forma literal, racional e gramatical. Ao juiz cabia apenas a aplicação da lei, de forma superficial, sua vontade era a vontade do legislador.[1]


O positivismo surgiu como uma forma prática e realista à abstração e ao idealismo do Direito Natural (supostamente imutável e eterno), expressando-se por meio das normas válidas de um determinado espaço e tempo. Para uma revisão conceitual, é relevante a perspectiva histórica, daí o desmembramento em três períodos principais.


A Escola da Exegese surgiu como uma das consequências da criação do Código de Napoleão (1804), forma de interpretação que ocorria mediante privilégio dos aspectos gramaticais e lógicos. Com ela, tem-se o ápice do positivismo jurídico.


Com o declínio do pensamento Jusnaturalista e sua aparente compreensão acerca da justiça, houve a ascensão do positivismo, que também foi criticado, posteriormente, por seu apelo excessivo à subsunção (fato-norma) sem observação dos valores.


Para um melhor entendimento do tema principal, é importante ressaltar algumas considerações a respeito do Direito Natural. O Jusnaturalismo, de modo geral, divide-se nos períodos: Cosmológico (séc.VI – Pitágoras) – cuja essência vem do universo – ; Teológico (séc.XI e XII – Tomás de Aquino) – lei estabelecida pela vontade de Deus – , e Antropológico (séc.XVII e XIII – Rousseau) – provem do homem e da razão.


O Direito Natural, de outra banda, embasava-se na lei divina, na verdade revelada, em que não há predeterminação. Essa forma de pensar o Direito reflete características como a imutabilidade e a eternidade.


Em Antígona, obra de Sófocles, é claro o clamor ao Direito dos deuses feito por Antígona, ao enterrar seu irmão, que foi condenado a torna-se insepulto por um decreto de Creonte. Quando Creonte descobre que Antígona desobedeceu a o decreto e enterrou seu irmão (a pena para quem transgredisse sua lei era o apedrejamento dentro da cidade), Creonte fala a ela: “Mesmo assim ousaste transgredir minhas leis?” e Antígona responde:


 “Não foi, com certeza, Zeus que as proclamou nem a Justiça com trono entre os deuses dos mortos as estabeleceu entre os homens. Nem eu supunha que tuas ordens tivessem o poder de superar as leis não-escritas, perenes, dos deuses, visto que és mortal. Pois elas não são nem de ontem, nem de hoje, mas são sempre vivas, nem se sabe quando surgiram”.[2]


Não há, entretanto, antagonismo real entre o Juspositivismo e o Direito Natural, porém acreditava-se que o Jusnaturalismo se sobrepunha ao Positivismo Jurídico, pois havia algo superior às leis postas pelo Estado, e esse espaço inerente ao Homem, de liberdade e justiça, deveria ser respeitado pelo Estado.


     No período Antropológico, o Direito Natural se incorporou aos ordenamentos positivos ao lado do Iluminismo por sua nova forma racional e não mais submissa à Teologia. Porém, o Direito Natural foi marginalizado com a ascensão do positivismo e a apologia à cientificidade.


Após a Revolução Francesa, a França ansiava por um Direito Nacional, o que ocorreu com o nascimento do Código Civil francês sob ênfase do racionalismo. Logo, surgiu a Escola da Exegese, que tinha como escopo interpretar o Código Civil francês também de uma maneira nacional.


A Escola da Exegese consistia na reunião de vários juristas franceses que orientaram o processo de criação e de aplicação do Código de Napoleão, especialmente no que se refere à exegese do texto legal. O Código Civil napoleônico buscava unificar e positivar o Direito como ferramenta de controle social e político.


O Codicismo surgiu como fruto do Iluminismo, atualmente é comum pensar o Direito codificado, porém a codificação não se estende a todo o mundo, como nos países anglo-saxões, onde se aplica o “common law”, por exemplo. Os dois códigos mais importantes para evolução da codificação foram o Código de Justiano e o Código de Napoleão.


Norberto Bobbio diferencia essas duas codificações, afirmando que apenas o de Napoleão é um Código propriamente dito, ou seja, “um corpo de normas sistematicamente organizadas e expressamente elaboradas” [3]. Segundo Bobbio, o Corpus Iuris Civilis de Justiniano é uma compilação de leis prévias e não exatamente um código.


Segundo a Escola da Exegese, deveria haver uma interpretação nacional e racional do Direito, sendo exegeta aquele que esclarece algo considerado difícil e obscuro. No sentido normativo, é aquele que esclarece a real acepção da norma.


 O Código Civil eliminou aspectos religiosos e morais, que antes havia no Corpus Iuris Civilis. Segundo Maria Helena Diniz, “O racionalismo buscava a simetria, construção lógica perfeita, o que o levou à utopia. Foi essa mesma simetria que conduziu os franceses à idolatria do Código de Napoleão” [4].


O modo de interpretação da Escola da Exegese era reduzido e superficial. A idéia desse corpo de normas era suprimir o máximo possível a obscuridade e a ambiguidade. O juiz não cabia nenhuma outra função que não fosse aplicar a lei pautado na suposta neutralidade e objetividade, a vontade do intérprete e do legislador era a mesma. Direito e Lei, nessa abordagem teórica, eram considerados sinônimos para a Escola da Exegese.


Durante a Revolução Francesa, alguns juízes se eximiam de julgar quando a lei era omissa, pois havia um estímulo máximo à separação dos poderes. Buscando evitar essa situação, o art. 4° do Código Civil impunha o juiz a decidir no silêncio, na obscuridade ou insuficiência da lei. Apesar de obrigar o juiz a proferir sua sentença, ele deveria encontrar a solução para a omissão, a obscuridade ou a insuficiência dentro da própria lei.


Apesar de o juiz ser obrigado a julgar, o princípio da separação dos poderes não seria ferido, ao juiz não era conferido o poder de produzir o Direito, mas apenas de aplicá-lo de acordo com o que estava predefinido no Código. Os operadores do Direito apenas se submetiam a autoridade do legislador (princípio da onipotência do legislador). Havia o apego à interpretação literal da lei sem distorcer a verdadeira vontade do legislador, a lei era certa, não havia espaço para interpretações feitas pelo juiz.


Para os codicistas, o ordenamento era considerado perfeito, bastando-se em si mesmo, não havia lacunas de Direito nem antinomias (dogma da completude) e todas as soluções se encontravam no Código, uma vez que o ordenamento (ou sistema) era considerado fechado e deveria achar soluções e justificativas dentro de si mesmo (autonomia).


Norberto Bobbio denomina a forma aguda desse fenômeno de “fetichismo da lei” [5], dessa forma, havia uma tendência a ater-se escrupulosamente aos códigos. Segundo um dos exegetas Mourlon, “Dura lex, sed lex[6]; um bom magistrado humilha sua razão diante da razão da lei” [7]


Havia, também, certa pressão do governo Napoleônico para que seu Código fosse ensinado nos cursos superiores de Direito e não mais os ideais jusnaturalistas, enfatizando o caráter identitário que era resguardado. Afinal, o Direito e o Código Civil eram uma das formas de dominação de que Napoleão dispunha.


Os principais representantes da Escola da Exegese são “Proudhon, Melville, Blondeau, Delvincourt, Huc, Aubry e Rau, Laurent, Marcadé, Demolombe, Troplong, Pothier, Baudry-Lacantinerie, Duraton, etc.” [8]. Os três principais períodos da Escola da Exegese são de 1804 a 1830 – Formação; de 1830 a 1880 – Apogeu, e 1880 em diante – Declínio (primeiras alterações no Código Civil francês).


O declínio da Escola da Exegese ocorreu pela ineficiência de seu processo interpretativo, a letra da lei, apenas, não era mais suficiente. Havia a necessidade de se recorrer a outras fontes e “conhecer não só a letra da lei, mas também o seu espírito” [9].


A escola da Exegese foi criticada por vários autores, entre eles: François Gény, Rudolf von Ihering, Eugen Ehrlich, etc. Em geral, as críticas se fundamentavam em torno do fetichismo da lei e da forma literal como se interpretava o Direito.


Esse momento, porém, não durou para sempre, e a complexidade social não mais comportou o modo de interpretação da Escola da Exegese. Para Recaséns Siches, “Uma lei indeformável somente existe numa sociedade imóvel” e, segundo Gaston Morand, o que ocorreu foi “a revolta dos fatos contra os códigos”  [10].


A deficiência na dinamicidade da Escola da Exegese vinha não só da interpretação, mas também da forma como era considerado o sistema: fechado e estrito ao Código Civil. Por essas razões, o sistema era engessado e estático.


A escola da Exegese não acompanhou a dinâmica da sociedade, tomando a lei como única fonte do Direito. Havia uma inviabilização do ingresso, permanência e expulsão das leis, uma vez que o sistema era fechado e estrito ao Código Civil francês, o que o tornava engessado.


Os mitos da neutralidade e da completude também não acompanharam a dinamicidade da sociedade, uma vez que limitava a visão do intérprete e do legislador, hoje ambos os mitos são cada vez mais considerados ultrapassados. Tanto o juiz quanto o legislador reconhecem a existência de lacunas no ordenamento, utilizando, para isso, o princípio de freios e contrapesos, que busca harmonizar os três “poderes” e a interpretação principiológica.


O Código de Napoleão foi um grande avanço para a época e satisfez o que os franceses ansiavam, mas, depois de certo tempo, não foi mais suficiente devido a dinâmica e às críticas que advieram dos seus opositores, notadamente dos doutrinadores da Sociologia jurídica. Ocorreram, então, mudanças no Código Civil francês e, com elas, o início do declínio da Escola da Exegese.


Atualmente, a interpretação gramatical é considerada uma das mais falhas, exatamente por não levar em consideração fatores essenciais em uma sociedade dinâmica. O intérprete deve operar lucidamente de forma a considerar os valores sociais compreendendo que a lei e os códigos não são um fim em si mesmo, mas sim um meio para concretizar o Estado Democrático de Direito no qual estamos inseridos e, sobretudo, contribuindo para a desmistificação dos mitos que outrora estavam ínsitos à prática judiciária e doutrinária.


 


Referência bibliográfica

BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições de filosofia do direito.  São Paulo: Ícone, 1995.

DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito. 15 ed. à luz da lei 10.406/02 – São Paulo: Saraiva, 2003.

SOFÓCLES. Antígona. Porto Alegre: L&PM, 2006.


Notas:

[1] Trabalho orientado pela Profa. Msc. Gabrielle Bezerra Sales é advogada, professora universitária, mestre em Direito( UFC- UFSC ), autora da obra Teoria da Norma Constitucional, doutoranda em Direito pela Augsburg Universität e em Bioética pela Universidade do Porto e, atualmente, Coordenadora adjunta do curso de Direito da Faculdade Christus.

[2] SOFÓCLES. Antígona, Porto Alegre: L&PM, 2006, p. 35.

[3] BOBBIO, Norberto. O positivismo jurídico: Lições da filosofia do direito, São Paulo: Ícone, 1995, p. 64.

[4] DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 51.

[5] Idem Ibidem, p. 121.

[6] Do latim: A lei é dura, mas é lei.

[7] BOBBIO, Norberto. Op.cit., p. 86.

[8] DINIZ, Maria Helena. Op. cit., p. 51.

[9] Idem Ibidem, p. 51.

[10] Recaséns Siches apud DINIZ, Maria Helena. Compêndio de introdução à ciência do direito, 15. ed. São Paulo: Saraiva, 2003, p. 57.

Informações Sobre o Autor

Liana Holanda de Melo

Advogada. Pós Graduada em Direito e Processo do Trabalho pela Unichristus e Pós Graduanda em Direito Constitucional pela Universidade Estácio de Sá


Equipe Âmbito Jurídico

Published by
Equipe Âmbito Jurídico

Recent Posts

Prejuízos causados por terceiros em acidentes de trânsito

Acidentes de trânsito podem resultar em diversos tipos de prejuízos, desde danos materiais até traumas…

3 dias ago

Regularize seu veículo: bloqueios de óbitos e suas implicações jurídicas

Bloqueios de óbitos em veículos são uma medida administrativa aplicada quando o proprietário de um…

3 dias ago

Os processos envolvidos em acidentes de trânsito: uma análise jurídica completa

Acidentes de trânsito são situações que podem gerar consequências graves para os envolvidos, tanto no…

3 dias ago

Regularize seu veículo: tudo sobre o RENAJUD

O Registro Nacional de Veículos Automotores Judicial (RENAJUD) é um sistema eletrônico que conecta o…

3 dias ago

Regularize seu veículo: como realizar baixas de restrições administrativas

Manter o veículo em conformidade com as exigências legais é essencial para garantir a sua…

3 dias ago

Bloqueios veiculares

Os bloqueios veiculares são medidas administrativas ou judiciais aplicadas a veículos para restringir ou impedir…

3 dias ago