José Cretella Jr lembra em livro baseado na sua tese de Livre-Docência de Direito Administrativo na USP, no ano de 1965, que, embora a maior parte dos institutos jurídicos atuais tem como origem o direito romano, o desvio de poder , diferentemente, é baseado em elaborações doutrinárias recentes. Criação jurisprudencial do Conselho de Estado francês, a teoria do desvio de poder nasceu para reprimir ou fazer cessar os abusos inerentes à natureza humana e egoísmo dos agentes públicos decorrentes do seu ofício.[1]
Marcel Walline indica um início excessivamente tímido do Conselho de Estado Francês. Certa vez, ainda, o mesmo Conselho declarou que não lhe competia investigar os motivos das decisões tomadas pelos maires.
A primeira vez que anula uma decisão municipal por desvio de poder só ocorreu em virtude de uma carta expressa do Maire notificando a suspensão, da qual concluía-se que agira com finalidade diversa da qual reclamavam os interesses que lhe foram confiados.[2]
Importantes casos do direito administrativo francês foram os chamados de “Vernes” e “Lesbats” ocorridos em 1958 e 1964 respectivamente.
Tendo ganhado maior repercussão, o caso “Lesbats” passou a informar o direito administrativo francês como um todo a respeito da teoria do desvio de poder. Eis o que ocorreu:
O prefeito de Fontanebleau proibiu um motorista estacionar o seu ônibus no pátio interno da Estação daquela cidade. O objetivo da proibição seria assegurar o cumprimento de contrato celebrado entre a empresa ferroviária e outro proprietário de ônibus, por meio do qual só este último teria o direito de estacionar e desembarcar seus passageiros. Texto de lei anterior previa poderes à autoridade pública de regular o estacionamento e a circulação de veículos. Entretanto, o Conselho de Estado anulou a decisão do prefeito, por entender que este não poderia exercer seus poderes de polícia para fins estranhos à manutenção da ordem e a organização do trânsito.
Posteriormente, o prefeito editou nova regulamentação ainda restritiva que foi anulada com fundamento no desvio de poder.
Comenta Cretella Jr.:
“Cumpre, assim, assinalar com precisão este caso que, levando o Conselho de Estado a manifestar-se, deu como conseqüência, a acolhida do desvio de poder (détournement de pouvoir) como vício do ato administrativo bastante para permitir fosse invocado o remedium júris anulatório competente – o recurso por excesso de poder (recours por excès de pouvoir) para fulminar, irremediavelmente, o ato viciado”.
“No caso citado, o Prefeito a quem o texto legal anterior conferira poderes para regulamentar o estacionamento e a circulação de veículos públicos e particulares, destinados ao transporte de pessoas e mercadorias, nos pátios anexos a estações rodoviárias, com fins de polícia e com finalidades de manter a boa ordem nos lugares destinados a uso público passou a usar abusivamente de tais poderes, a fim de assegurar o monopólio dos transportes de empresa particular. Tal determinação foi anulada pelo Conselho de Estado, por excesso de poder, já que o Prefeito usara da autoridade de que era detentor para fim diverso daquele que a lei tivera em mira (cf. Oreste Ranelletti, Teoria degli Atti Amministrativi Speciali, 7ª ed., 1945, p.81)”.[3]
Também foi anulado por excesso de poder ato do Prefeito que, para assegurar ao Estado o monopólio de águas minerais, proibira que um proprietário vendesse as próprias águas, não obstante fossem estas puras. O ato estava viciado de excesso de poder porque o prefeito utilizara a sua autoridade de polícia sanitária para efeitos puramente fiscais.[4]
No ano de 1872 foi estabelecido o monopólio fiscal do fósforo na França. Por medida de economia, em vez de desapropriar as fábricas existentes, o Ministro das Finanças mandou fecha-las por medida de polícia, desde que não possuísse autorização regular para funcionamento. A medida foi anulada porque: “houvera desvio, ou seja, abuso de poder (Conselho de Estado, 26.11.1875, Laumonier Carriol, t. 76, 3, 41 apud Henri Berthélemy, Traité Élémentaire de Droit Administratif, 9ª ed., 1920, p. 1051. Cf. Orlando “La Giustizia amministrativa”, em Primo Trattato, vol. III, pp. 809-810).[5]
São palavras de Cretella Jr:
“Desse modo, do exame cuidadoso dos casos diários, consubstanciados a seguir em magníficos julgados, as Cortes administrativas gaulesas foram elaborando, pouco a pouco, a teoria do desvio de poder, há mais de 100 anos, como fundamento idôneo para a interposição de recurso por excesso de poder e, desde o acolhimento do primeiro recurso, casuisticamente, consolida-se a respectiva teoria, que se impões perante o mundo jurídico de nossos dias, como legítimo instrumento para assegurar ao cidadão garantia das mais sólidas contra o despotismo administrativo. Nota-se que, na França, o desvio de poder, estruturado pela jurisprudência, acaba por impor-se, chegando até à doutrina, que completa e lapida a notável criação pretoriana daquela Suprema Corte de França, em matéria administrativa, ou seja, o Conselho de Estado”.[6]
Gaston Jèze já advertia, antes talvez de 1949, ano em que publicou os seus Princípios generales del derecho administrativo, que as medidas administrativas careciam de resguardo contra abusos que poderiam verificar-se por qualquer pretexto por parte dos particulares. De forma contrária, qualquer ato administrativo correria o risco de ser impugnado por motivos escusos, de chicana política e outros. “A pretexto de assegurar o bom funcionamento dos serviços públicos, correr-se-ia o perigo de perturba-los”.[7]
O estudo da doutrina do desvio de poder também passou a realizar-se na Itália. Lá o Conselho de Estado a aplicou nas suas decisões e também nas respostas às consultas realizadas.
Neste sentido, Cretella Jr traz interessantes as passagens:
“Essa Corte, em Parecer dado sobre recurso em via extraordinária ao Rei, considera ilegítimos os atos de desapropriação, levados a efeito não para executar obra de utilidade pública, mas para disfarçar sob a capa de procedimento edilício uma especulação financeira (Giuseppe Codacci Pisanelli, “L’ eccesso di Potere, em Scritti di Diritto Pubblico, p. 260, apud Oreste Ranelletti, Teoria degli Atti Amministrativi Speciali, 7ª ed., 1945, p.81).
(…)
desde os primeiros anos em que exerceu sua s atividades, o Conselho de Estado italiano considerou viciados de excesso de poder, os atos de autoridade administrativa que, impelida por motivos que não correspondiam nem à letra, nem à vontade da lei, exercia suas faculdades e buscava inspiração em critérios diferentes daqueles fixados nos textos legais.
(…)
Casuística, também, no incício, como a francesa, a estruturação do desvio de poder, na Itália, completa-se em suycessivos julgados emanados do Conselho de Estado. Quando a sociedade Cesare Arici, da cidade italiana de Brescia, pretende abrir instituto particular de ensino primário e é obstada, em suas pretensões, por ato arbitrário da autoridade escolar competente, o Conselho de Estado decide que a decisão é ilegal porque eivada de excesso de poder (Orlando, “La Giustizia Amministrativa”, em Primo Trattato, vol. III, pp. 810-811)”.[8]
Vittorio Emanuele Orlando indica as origens e o desenvolvimento do desvio de poder, no campo do direito administrativo, ao direito francês, e, mais especificamente, ao seu Conselho de Estado.[9]
Oswaldo Aranha Bandeira de Mello fala da teoria do desvio do poder, criada pela jurisprudência do Conselho de Estado de França, por volta de 1840, e acolhida pelo direito administrativo de outros países”.[10]
Segundo a jurisprudência do Conselho de Estado Francês, há desvio de poder por ato estranho ao interesse geral, na medida de polícia de segurança, que proíbe procissões nas ruas, se por objetivos anticlericais; e, ainda, por ato diverso do fim que a lei atribuíra ao ato, na medida da polícia de costumes, que veta os banhistas de trocarem de roupa senão nas cabines municipais ali colocadas, com objetivo de receita, em vez de decência pública.[11]
O conceito de desvio de poder elaborado há muito tempo na França, pelo Conselho de Estado, mediante lenta e progressiva evolução, reflete notável conquista em razão de permitir profunda penetração na raiz do pensamento do agente da Administração, disfarçado sob o manto da legalidade.[12]
Medauar lembra a origem francesa da teoria do desvio de poder pela grande importância que a mesma representou para se direcionar o exercício do poder discricionário aos fins do interesse público, sejam estes implícitos ou explícitos, em razão dos quais esse poder foi conferido ao agente administrativo. Para a autora, os poderes atribuídos aos agentes visam ao atendimento do interesse público pertinente à matéria em que esses agentes atuam. Ditos poderes não são destinados à realização de interesses particulares e nem são instrumentos de represália, vingança ou favorecimento próprio ou alheio. Um exemplo seria o da utilização do poder de expropriar em represália a declarações na imprensa por alguém.[13]
José Cretella Jr. destaca que o desvio de poder é resultante de construção pretoriana do Conselho de Estado Francês, mas que já é aplicado no Brasil.[14]
Os mais antigos casos de desvio de poder, no Brasil seriam de 1940. Eis os exemplos trazidos pelo autor:
I – “Certa autoridade municipal decretara desapropriação de cemitério particular, abrangendo no mesmo ato administrativo templo evangélico anexo. Na aparência, o ato era legal, preenchendo os requisitos de fundo e forma indispensáveis para ser válido, mas a prova demonstrou que o fim alcançado era diverso. A autoridade municipal, embora competente, usara os poderes que a lei lhe conferia para objetivos inconfessáveis, disfarçados sob a capa da legalidade. Eram, no fundo, duas facções religiosas que estavam em choque. Demonstrou o exame da prova que o cemitério particular já estava interditado por lei estadual, porque distava menos de 18 quilômetros do cemitério público mais próximo e, por isso, não podia ser desapropriado”;
II – “Caso interessante ocorreu, também, num município, cujo prefeito, a pretexto de que as finanças municipais periclitavam pelo excessivo número de servidores, demitiu funcionário público nomeado em caráter efetivo. Caracterizou-se a figura em questão quando, alguns dias depois, dezenas de nomeações foram feitas, sendo que algumas para cargos exatamente da mesma natureza daquele de que fora afastado o servidor demitido. Descobriu-se que o prefeito era inimigo pessoal desse funcionário. Houve, nesse caso, portanto, desvio de poder[15].[16]
A doutrina e a jurisprudência brasileira tem anulado muitos atos administrativos com desvio de poder.[17]
Doutor em direito administrativo pela UFMG, advogado, consultor jurídico, palestrante e professor universitário. Autor de centenas de publicações jurídicas na Internet e do livro “O Servidor Público e a Reforma Administrativa”, Rio de Janeiro: Forense, no prelo.
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