ICMS – Legitimidade ativa – Variações em torno de um mesmo tema


Dentre os pressupostos para obtenção de um provimento jurisdicional sobre o mérito da pretensão deduzida, destaca o Código de Processo Civil as condições da ação, cuja inobservância dos requisitos que nelas se expressam compromete o próprio exercício da jurisdição, segundo autorizadas manifestações doutrinárias.


No plano processual, parte na relação jurídica controvertida (res in judicium deducta) corresponde a uma situação de direito material, na medida em que de direito material é a pretensão que constitui objeto do processo, razão pela qual somente exibem legitimidade ativa e passiva para a causa aquelas mesmas pessoas que sejam titulares da relação jurídica substancial posta como objeto do juízo (Dinamarco), sendo expressa a lei processual, ademais, em vedar a terceiro postular em juízo direito de outrem, residindo aí a razão pela qual a sentença não pode beneficiar nem prejudicar que não foi parte do processo (CPC, art. 472).


Nesse contexto, avulta então de importância a legitimidade ad causam, que ao juiz, em qualquer grau de jurisdição, cumpre conhecer espontaneamente e cuja presença deve preliminarmente sindicar (REsp 808.536), ainda que  não discutida em primeira instância ou não abordada pela sentença (REsp 889.181/MG).


Na seara tributária, a relação jurídica estabelece-se, em face do que resulta da leitura conjunta do art. 119 e art. 121, ambos do CTN, entre a entidade política competente para instituir e exigir o tributo e a pessoa que, por manter relação direta com o respectivo fato gerador do imposto, está obrigada ao seu pagamento.


Nesse sentido, dispõe a Lei Complementar nº 87/96, a quem a Constituição confiou a uniforme disciplina do ICMS, que contribuinte do imposto é a pessoa que realiza operações de circulação de mercadoria ou prestações de serviços de transporte interestadual e intermunicipal e de comunicação (art. 4º), razão pela qual a obrigação de prestar o tributo incumbe àquele que se encontre na situação legalmente prevista como necessária e suficiente para a formação do vínculo obrigacional tributário, daí falar-se, então, que o sujeito passivo é o contribuinte de jure da obrigação tributária. Contribuinte, na hipótese de operação que envolva um negócio jurídico pela entrega da energia elétrica, é, pois, a empresa que explora o serviço outorgado.


Em vista do que precede, tem pretensão de restituição contra o Estado somente aquele a quem a lei impõe a obrigação de pagar o imposto. E assim é, basta ver que, do consumidor da energia elétrica, nada exige a lei, porque ausente o indispensável vínculo jurídico. Por conseguinte, se o contribuinte do imposto transfere-lhe o respectivo encargo, que o adquirente da mercadoria supõe indevido na origem, nem por isso este último estaria legitimado a acionar o sujeito ativo da obrigação, satisfeita que foi por outrem, pelo sujeito passivo da obrigação tributária.


Portanto, não sendo possível opor a realidade econômica à forma jurídica (STF, AI-AgR 671.412), não se pode reconhecer legitimidade processual ao contribuinte de fato para obter restituição do imposto cujo ônus, no contexto de uma relação comercial, de natureza estritamente privada, portanto, fora-lhe transladado pela pessoa obrigada a seu pagamento.


Nesse contexto, a pretensão voltada para a obtenção de um provimento jurisdicional, que exclua da base de cálculo do ICMS alguma parcela do preço, a exemplo do valor correspondente à demanda contratada, só poderia ser deduzida pela concessionária do serviço e não pelo consumidor final, que, alheio à relação que vincula o sujeito ativo da obrigação a quem é dela devedora, não exibe legitimidade ativa ad causam e nem interesse jurídico a ser tutelado, pois, a quem se impõe a obrigação do pagamento, defere-se o correlato poder de exigir sua restituição, quando a exigência fiscal se mostre ao desamparo da lei.


Não ostentando o consumidor a condição de contribuinte – status jurídico esse que lhe negou o direito material -, reservada que é à empresa concessionária da energia elétrica, estaria ele, então, pleiteando em nome próprio direito alheio, o que encontra expressa vedação na lei processual.


Em tal hipótese, julgada procedente a ação, da decisão proferida adviria um quadro curioso, pois, afastada a cobrança do imposto devido, à concessionária, conquanto dele contribuinte pelo fornecimento da energia elétrica e obrigada a seu recolhimento, mas terceiro em relação à lide, poderia parecer que seria beneficiária da decisão ofertada a pedido de outrem, para forrar-se, por arrastamento, do pagamento do ICMS incidente sobre a operação. Mas, desconhecem-se os efeitos concretos que teriam se irradiado de decisões tomadas em circunstâncias tão peculiares.


Não obstante, o órgão jurisdicional, a quem a Constituição confiou a aplicação do direito federal, firmou entendimento, sem nenhum juízo crítico e fiado apenas no prestigio de conhecido magistério doutrinário, no sentido de que, nas operações com energia elétrica, a distribuidora atua como coletora do imposto, uma vez que apenas repassa à Fazenda Pública o numerário obtido, pois o contribuinte de fato e de direito do ICMS seria o consumidor final, que, então, estaria legitimado para questionar sua incidência sobre o componente tarifário relativo à demanda de potência, contratada pelo consumidor intensivo (REsp 806.467, Relator Min. Luiz Fux; REsp 809.753, Relator Min. Teori Albino Zavascki; REsp 949.327e REsp 840.285, Relator Min. José Delgado e AgRg no REsp 857.543, Relator Min. Francisco Falcão, inter plures), sem embargo do entendimento destoante do eminente Min. Castro Meira, manifestado em diversas oportunidades.


De todo modo, trata-se de uma situação atípica, em que um terceiro, alheio à relação jurídica, postula, em nome próprio, direito alheio, sem sequer se revestir da condição de substituto processual, ao arrepio, por conseguinte, da vedação posta pelo art. 6º, do CPC.


Com efeito, em tema de operação relativa à circulação de energia elétrica, de incidência monofásica, a distribuidora de energia elétrica é, inquestionavelmente, o sujeito passivo da obrigação pela operação por ela realizada, cuja base de cálculo, pela operação própria por ela realizada, incorpora os custos incorridos nas fases antecedentes, pois é ela quem realiza o pressuposto da incidência do ICMS e efetua seu recolhimento, mesmo que não seja a geradora da energia elétrica revendida – circunstância que não interessa, para efeitos tributários.


Decidindo na forma exposta, o Superior Tribunal de Justiça acabou rompendo com toda a dogmática jurídica construída em torno do tema e com a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, formada quando ainda competente para dizer por último sobre a aplicação do direito federal.


Entretanto, ao julgar o REsp 903.394, Relator Min. Luiz Fux, em acórdão tomado sob o regime do art. 543-C, do CPC, o  Superior Tribunal de Justiça teve oportunidade de rever sua jurisprudência, quando então concluiu que a distribuidora de bebidas, na condição de contribuinte de fato, não teria legitimidade ativa para repetir o IPI pago por valor supostamente superior ao devido, somente assegurada ao fabricante, segundo afirmou-se. 


Embora a hipótese dissesse respeito à restituição de um imposto de competência de entidade política diversa e incidente sobre a saída de produtos industrializados, importa considerar que a tese posta em discussão mostrar-se-ia também aplicável quando o imposto pago a maior ou indevidamente é o ICMS, uma vez que, no Sistema Tributário Nacional, os dois impostos constituem tributos que apresentam pontos de inegável semelhança, valendo destacar que ambos são impostos não-cumulativos e plurifásicos, que comportam, por natureza, transferência do respectivo encargo financeiro, na dicção do art. 166, do CTN.


Tal foi a conclusão a que chegou o eminente Min. Herman Benjamin, Relator do REsp 928.875, em que se discutiu, especificamente, a legitimidade ativa do consumidor final de energia elétrica, ocasião em que se reafirmou o tradicional entendimento segundo o qual a repetição somente pode dizer respeito ao contribuinte de direito, único que importa à obrigação tributária e que o legislador reconhece.


Na oportunidade, registrou, deve-se distinguir o contribuinte de direito, que é sempre aquele determinado por lei (art. 121, parágrafo único, I, do CTN), do contribuinte de fato, aquele que suporta o ônus econômico do tributo, visto que o pagamento da exação é normalmente repassado ao consumidor final. Entretanto, concluiu, embora o consumidor final jamais será contribuinte de direito, visto que não existe lei que inclua o consumidor no pólo passivo da relação tributária, além de não lhe caber recolhimento do imposto, e de não ser ele quem promove a saída da mercadoria, o que torna impossível classificá-lo como contribuinte de direito.


Parece que seria essa a nova tendência do Tribunal, conforme consignou o Min. Castro Meira no julgamento do AgRg no Ag 1.285.036, para quem  o  REsp 928.875/MT constituiria “uma mudança de entendimento até então adotado na Segunda Turma do STJ, ao acenar para que somente o contribuinte de direito possuiria legitimidade ad causam para figurar no polo ativo das demandas judiciais que envolvam a incidência do ICMS sobre a demanda contratada de energia elétrica”.


Essa orientação tem sido observada em sucessivas decisões proferidas pela maioria dos demais integrantes das Turmas de Direito Público do Tribunal:  REsp 972.018, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima; REsp 1.230.351, Rel. Min. Hamilton Carvalhido; AgRg no REsp 1.086.196, Rel. Min. Benedito Gonçalves; REsp 1.221.943, Rel. Min. Humberto Martins; REsp 1.233.095, Rel. Min. Mauro Campbell Marques e REsp 924.240, Relatora Min. Eliana Calmon. 


Mas, há quem prefira manter o anterior entendimento, não se comprometendo com a nova orientação jurisprudencial, talvez porque fixada a propósito de um imposto diverso, a exemplo do relator do acórdão que se supunha viesse a se tornar o seu leading case, consoante se infere das decisões posteriormente tomadas no AgRg no Ag 1.235.384, REsp 1.033.811 e Ag 1.300.358.


Não obstante, parece induvidoso que os supostos fáticos em que repousam as operações tributadas pelo IPI e pelo ICMS são essencialmente iguais nos aspectos importantes e diferentes apenas nos aspectos secundários, circunstância bastante para que a ambas se dispense um tratamento jurídico único, pondo-se em relação de igualdade o que é parelho, semelhante.


Diante disso, comportaria aplicação a figura do precedente judicial, que, mercê de timbrar a interpretação dos sistemas do civil law e do common law, consubstancia técnica de aprimoramento da aplicação isonômica do Direito, a recomendar, portanto, que, para “casos iguais”, “soluções iguais” (RE 433.896, Min. Cármen Lúcia), ou, a se preferir, ubi eadem ratio ibi eadem legis dispositio.


O quadro descrito, por outro lado, desperta a observação no sentido de que, se prestigiadas a tradicional jurisprudência e a dogmática jurídica construída em torno do tema, o Órgão Jurisdicional, a quem a Constituição confiou a interpretação e aplicação do direito federal, teria esvaziado na origem toda a celeuma suscitada pelos consumidores intensivos de energia elétrica a propósito da legitimidade da inclusão do valor do componente tarifário na base de cálculo do ICMS, poupando o Judiciário, como um todo, de um trabalho árduo e a Corte de todos os esforços desenvolvidos com o julgamento de quase dois mil recursos alçados ao seu conhecimento e cuja solução final, de resto, para não poucos, revelou-se juridicamente insatisfatória.


A tudo isso, alia-se o fato de que um sem número de decisões, integralmente ou em parte expressiva contrárias à Fazenda Pública, quanto à matéria de fundo discutida, porque superada a questão prejudicial, já transitaram em julgado, acarretando expressivas perdas ao Erário.


A extinção dos processos na origem, se mantida tivesse sido no período antecedente a tradicional exegese extraída do art. 3º, do CPC, também teria poupado a Suprema Corte, convocada que foi para dizer, definitivamente, sobre abrangência da base de cálculo do ICMS incidente sobre o fornecimento de energia elétrica para o consumidor intensivo, de decidir, com efeitos vinculantes, o RE nº 593.824, Relator o Min. Ricardo Lewandowski.


O tema, à ótica jurídica, é fascinante e em si mesmo enriquecedor do insano trabalho do profissional do direito.



Informações Sobre o Autor

José Benedito Miranda

Ex-Procurador do Estado de MG


Equipe Âmbito Jurídico

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