ICMS. Substituição tributária e Adin equivocada

A chamada substituição tributária para frente é fruto exclusivo da gula fiscal que tomou conta deste País, de forma acentuada, a partir da década de 90.

Não havendo mais espaço para redução do prazo de recolhimento de impostos, e tendo em vista a jurisprudência contrária à figura do diferimento do imposto, que implicava antecipação de seu pagamento, violando o sentido etimológico da palavra, que significar adiar, e não antecipar, os estados patrocinaram a Emenda Constitucional nº 3, de 17-3-1993.

No bojo dessa polivalente Emenda veio à luz o § 7º do art. 150 da Constituição Federal in verbis:

 “§ 7º A lei poderá atribuir a sujeito passivo de obrigação tributária a condição de responsável pelo pagamento de imposto ou contribuição, cujo fato gerador deva ocorrer posteriormente, assegurada a imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido.”

Ironicamente, esse preceito constitucional, alargador do poder de tributação, foi plantado exatamente na seção II, que cuida “Das limitações do poder de tributar”.

Com a introdução da extravagante figura  do fato gerador fictício, o legislador constituinte derivado colocou em risco a teoria do fato gerador da obrigação tributária, construída ao longo de décadas em um percuciente  trabalho doutrinário e jurisprudencial.

Na prática, a prevalecer o entendimento atual da Corte Suprema – não restituição na hipótese de o fato gerador ocorrer em extensão menor do que aquele que serviu de base para a tributação antecipada – estará abolido o princípio da legalidade tributária.

A base de cálculo, elemento quantitativo do fato gerador, não apenas está submetida ao princípio da reserva legal, como também, deve ter a sua previsão em lei complementar, em caráter de norma geral, como se depreende do art. 146, III, a da CF.

Pergunta-se, no caso de substituição tributária na hipótese de venda de automóveis, onde há lei, definindo a tabela de venda das montadoras como base de cálculo do ICMS?

Por isso, o citado parágrafo 7º instituiu a tributação antecipada, por via de substituição do sujeito passivo do imposto, porém, condicionada à imediata e preferencial restituição da quantia paga, caso não se realize o fato gerador presumido. Vale dizer, se o fictício não se transformar em realidade, impõe-se a restituição na exata proporção da ficção não concretizada.

Daí o equívoco, data venia, da tese de que a substituição tributária aventada pelo referido § 7º é definitiva, representando uma modalidade de tributação do ICMS. Essa modalidade de cobrança antecipada não permitiria ajuste posterior, quer para restituir o eventual excesso arrecadado, quer para exigir eventual complementação do pagamento feito a menor. Essa tese, parece refletir mais uma posição política do que jurídica.

Pergunto, na eventualidade de as montadores de automóveis rebaixarem os preços das tabelas de vendas pela metade, essa tese da tributação definitiva continuaria vincando?

Parece óbvio que se o fato gerador efetivamente ocorrido, no seu aspecto quantitativo, expressava um valor de  R$ 50.000,00, por exemplo, o fato gerador presumido que previsse um  valor de R$ 60.000,00 deixou de ocorrer no mundo fenomênico, impondo-se a restituição imediata e preferencial de R$ 10.000,00, em obediência ao princípio da estrita legalidade. O que deve prevalecer é a base de cálculo definida em lei, e não aquela estabelecida unilateralmente pela tabela do fabricante.

Dizer que no caso do exemplo retro, o fato gerador presumido ocorreu seria o mesmo que identificar uma operação de compra e venda apenas pelo seu objeto. Se existirem dois preços distintos, com certeza, ocorreram duas operações de compra e venda. Da mesma forma, se duas bases de cálculo distintas existirem, uma no plano teórico, e outra no plano concreto, aquela base de cálculo presumida deixou de integrar o fato gerador concreto, visto que, em uma única operação de compra e venda não é possível a dupla ocorrência de fato gerador.

Para bem caracterizar essa situação retro exposta que, aliás, nada tem de difícil compreensão, a lei paulista do ICMS, Lei nº 6.384/89, como que “chovendo no molhado” dispôs em seu art. 66-B:

“Art. 66-B. Fica assegurada a restituição do imposto pago antecipadamente em razão de substituição tributária:

I – caso não se efetive o fato gerador presumido na sujeição passiva;

II – caso se comprove que na operação final como mercadoria ou serviço ficou configurada obrigação tributária de valor inferior à presumida.”

Como se vê, apenas razões de ordem moral justificam a inserção desse inciso II, pois parece óbvio e ululante que na tributação antecipada, por meio de fato gerador presumido, impõe-se a restituição do excesso arrecadado, limitando-se à tributação daquilo que resultou da efetiva ocorrência do fato gerador definido em lei em todos os seus aspectos (objetivo, quantitativo, subjetivo, temporal e espacial).

Se a edição do aludido art. 66-B da Lei nº 6.384/89 foi fundada em razões de ordem moral, o ajuizamento da Adin pelo governador do Estado de São Paulo contra esse dispositivo legal representa exatamente uma conduta oposta: a imoralidade da propositura da ação, caracterizando um ato de improbidade administrativa. Improbidade é o contrário de probidade, que vem do latim probitas, cujo radical probus significa crescer reto. Tem o sentido de integridade de caráter, honradez.

Outrossim, não cabe ao Estado de São Paulo rebelar-se contra ato legislativo que ele próprio editou. É o decantado princípio da vinculação do ente político  a seus próprios atos. A Administração vincula-se a seus atos até mesmo no erro, que não é o caso sob exame.

Ao invés de provocar o pronunciamento da Corte Suprema, pergunta-se, porque o governador não envia à Assembléia Legislativa projeto de lei revogando o art. 66-B?

Seria o temor pela possível reação dos representantes dos cidadãos contra a proposta de supressão de norma assentada na moralidade pública?

Essa incrível ação direta de inconstitucionalidade, aflorada astutamente pelo governo do Estado de São Paulo, nos idos de 2003, porque ele, governo, não quer se submeter à lei que se limitou a explicitar o que  implícito está no texto constitucional, está tomando o precioso tempo da Corte Suprema, cujo julgamento está com votação empatada de 5 x 5 até a presente data (Adin 2777, Rel. Min. Cezar Peluso).

Na verdade, falece legitimidade ao governo para impugnar a sua própria lei. Ele tem, como sempre teve a faculdade de adotar providências legislativas para revogá-la, arcando com as conseqüências políticas de seu ato.

SP, 19-11-07.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Kiyoshi Harada

 

Especialista em Direito Tributário e em Ciência das Finanças pela FADUSP. Professor de Direito Tributário, Administrativo e Financeiro em várias instituições de ensino superior. Conselheiro do Instituto dos Advogados de São Paulo. Presidente do Centro de Pesquisas e Estudos Jurídicos. Ex Procurador-Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo, Titular da cadeira nº 20 (Ruy Barbosa Nogueira) da Academia Paulista de Letras Jurídicas. Acadêmico, Titular da cadeira nº 7 (Bernardo Ribeiro de Moraes) da Academia Brasileira de Direito Tributário. Acadêmico, Titular da cadeira nº 59 (Antonio de Sampaio Dória) da Academia Paulista de Direito. Sócio fundador do escritório Harada Advogados Associados. Ex-Procurador Chefe da Consultoria Jurídica do Município de São Paulo.

 


 

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