Resumo: A criminalidade tem sido estudada em diversas áreas do conhecimento. No campo da Psicologia Social o estudo da criminalidade pode ser associado à identidade e papéis sociais, uma vez que se percebe que no desenvolvimento de atividades criminosas há atribuição de papéis e que o indivíduo constrói a identidade na prática de crimes. Após a discussão sobre identidade, papéis sociais e criminalidade tratou-se do esterótipo de criminoso no contexto brasileiro, tendo em vista que, no Brasil, há uma crença de que os indivíduos de classes sociais mais baixas tendem à criminalidade. Ideia que se revela imprecisa, à medida que cada vez fica mais evidente a prática de crimes por indivíduos de classes sociais mais elevadas. Notando-se que a relação criminalidade-pobreza serve para manter privilégios da classe dominante.
Palavras-chave: Identidade. Papéis sociais. Criminalidade. Pobreza.
Abstract: Crime has been studied in various areas of knowledge. In social psychology the study of crime can be associated with identity and social roles, once you realize that the development of criminal activities for role assignment and the individual constructs identity in crime. After the discussion about identity, social roles and criminality treated the criminal stereotype in the brazilian context, considering that, in Brazil, there is a belief that individuals from lower social classes tend crime. Idea that reveals inaccurate, as it becomes increasingly evident the crimes of individuals from higher social classes. Noting that the crime-poverty relationship serves to maintain the privileges of the ruling class.
Keywords: Identity. Social roles. Crime. Poverty.
Sumário: Resumo. Abstract. Introdução. 1. Identidade, papéis sociais e criminalidade. 2. Criminalidade e Pobreza no Brasil. Considerações finais. Referências.
INTRODUÇÃO
O fenômeno da criminalidade tem sido alvo de pesquisas nos diversos segmentos das ciências sociais, mormente nas áreas da Psicologia, da Sociologia e do Direito, considerando que o crime é percebido como um desvio dos padrões sociais estabelecidos, tendo o condão de atingir os bens e valores protegidos juridicamente.
A partir da problemática envolvendo a criminalidade buscar-se-á compreender a formação da identidade psicossocial de autores de crimes, sobretudo daqueles que delinqüem reiteradamente. Tem-se também o intuito de discutir o desempenho de papéis sociais na criminalidade, considerando a idéia de cultura do crime.
Para a Psicologia Social, a identidade é considerada como um conjunto de traços, de imagens, de sentimentos que o indivíduo reconhece como fazendo parte dele próprio (JACQUES: 2003). Esse é um conceito fundamental à compreensão do indivíduo e seu comportamento.
No caso específico da criminalidade, ao notar que o crime é um elemento presente em diversas sociedades, é inegável constatar que há uma cultura do crime e que o agente do crime é também constituído como ser histórico-cultural, interagindo na sociedade por meio da prática de delitos. Pode-se afirmar, com isso, que o criminoso possui identidade psicossocial e também assume papéis sociais relacionados à criminalidade.
Por outro turno, serão feitas considerações sobre a forma como, no Brasil, o indivíduo que se envolve em situações ilícitas recebe tratamento diferenciado, considerando a classe social a qual pertence, subsidiado pelas contribuições de Jessé Souza em análise da Sociedade Dual de Roberto da Matta serão discutidas situações peculiares à sociedade brasileira e a forma como se criou o esterótipo de criminoso nesse contexto.
1 – IDENTIDADE, PAPÉIS SOCIAIS E CRIMINALIDADE
Ao longo dos anos a identidade social do indivíduo recebe conteúdos diferentes. Na sociedade feudal a dimensão pública do sujeito era mais valorizada do que a particular, com o declínio do feudalismo e a partir das influências do iluminismo e do liberalismo clássico o particular, o individual, começa a ter maior ascendência. Há uma inclinação maior ao subjetivo, alargando o espaço de atuação da Psicologia.
Surge no Século XX a Psicologia Social visando a constituir um liame entre as ciências sociais e a psicologia, tendo como objeto o estudo do comportamento dos indivíduos a partir das interações, concebida então como “a área da Psicologia que procura estudar a interação social” (BOCK: 2008, 135).
A Psicologia Social faz uma correlação entre indivíduo e sociedade a partir da concepção de que ambos são inseparáveis e que não se pode falar de indivíduo dissociado de sociedade.
Para Bonin, não há antinomia ou contradição entre indivíduo e sociedade, antes o indivíduo é formado pelas inter-relações sociais. Em sua concepção
“Não há, basicamente, uma contradição entre indivíduo e sociedade. O indivíduo é um ser histórico-cultural que é constituído pelas inter-relações sociais. Mesmo quando está sozinho, como Robinson Crusoé, é um ser humano que tem o habitus de sua sociedade. Isto é, tem o jeito de andar, hábitos de higiene, de expressar emoções, de usar instrumentos que adquiriu das relações pessoais com indivíduos da sociedade que o constituiu”. (BONIN: 2003, 60)
Dessa forma, o indivíduo traz em sua constituição elementos das inter-relações sociais, sendo produto da interação com a sociedade e um ser histórico-cultural, conforme aponta o autor citado.
O desenvolvimento de atividades no ambiente social pode definir o que a sociologia chamou de papéis sociais, sendo que “os papéis sociais e as instituições humanas se originam de inter-relações pessoais que são cristalizadas através de regras que inicialmente são hábitos adquiridos […]” (BONIN: 2003, 60). Estabelecem-se os papéis sociais a partir das normas estatuídas pela sociedade, sejam elas escritas ou não, possuindo cada papel um conjunto de atribuições que são desempenhadas pelo sujeito.
O papel desenvolvido pela pessoa, segundo a Teoria do Papel, de Theodore Sabin, determina sua identidade psicossocial, consoante expõe Paiva
“O que a pessoa é, como membro do grupo, isto é, sua identidade psicossocial, é determinado pelos papéis que desempenha, de tal modo que a identidade social de alguém é o “múltiplo produto de tentativas de localizar-se no sistema de papéis”. (PAIVA: 2007, p. 78)
A constituição da identidade passa pelo desempenho dos papéis sociais, que podem ser múltiplos, podendo-se afirmar que há também uma multiplicidade de identidades, conforme a Teoria da Identidade proposta por Sheldon Stryker (PAIVA: 2007).
Assim, a identidade psicossocial consiste na identidade que se constrói a partir da relação de pertencimento do indivíduo a determinado grupo.
No campo da criminalidade o habitus ou a reiterada prática de crimes pode desenvolver no indivíduo a percepção de que ele pertence ao estrato marginal ou ao grupo de indivíduos que a sociedade denomina como criminoso.
Pode-se questionar se existem papéis sociais na criminalidade, porém, ao notar que o crime é um elemento que está presente em toda sociedade, inegável constatar que há uma cultura do crime, que o agente de crime é também um indivíduo constituído como ser histórico-cultural e que interage na sociedade a partir da prática de crimes, possivelmente o criminoso também assume um papel social.
Não se deve apenas imaginar que os papéis sociais estariam voltados somente para as virtudes, diante das concepções de papéis mencionadas, pois há uma “rede de atividades” também nas ações criminosas, seja nos crimes isolados, naqueles realizados em formação de quadrilha ou bando, ou ainda naqueles executados por organizações criminosas, que se constituem como um poder paralelo ao Estado.
Quando se trata de organizações criminosas os papéis desenvolvidos pelos indivíduos são melhor delimitados, funcionando de maneira a manter a organização e seus objetivos, pois possuem hierarquia estrutural, recrutam pessoas, dividem funcionalmente as atividades, além de atuarem com planejamento estratégico.
2 – CRIMINALIDADE E POBREZA NO BRASIL
O desempenho de papéis voltados para a prática de crimes é percebido pela sociedade, a qual identifica os indivíduos que assumem esses papéis, como delinquentes, “marginais” ou “elementos”. Essas designações, no caso do Brasil, são atribuídas àqueles indivíduos que são investigados por algum delito e pertencem às classes menos favorecidas economicamente da população brasileira.
No Brasil, crê-se que a criminalidade está associada à pobreza, sendo o estereótipo de delinquente, preferencialmente designado ao pobre (DUARTE: 2008, 43), quando este se envolve em alguma situação aparentemente ilegal, ainda que não se tenham provas sobre sua participação no suposto delito.
O fato de a sociedade brasileira privilegiar o status de pessoa, ao invés de um tratamento impessoal, torna mais evidente a crença de que o pobre é tendente ao crime. O tratamento que se dá a uma pessoa mais abastada ou que pertença a uma linhagem tradicional, ou ainda, que tenha padrinhos políticos ou afortunados é muito diferente do tratamento dado a alguém desprovido dessas condições, quando se envolve em situações ilegais.
Para os “conhecidos” pode até não ser instaurado inquérito, enquanto que para o indivíduo que não possua um referencial forte na sociedade, algema-se, prende-se, em muitos casos, sem preocupar-se com as garantias constitucionais e processuais.
Essa diferença de tratamento, no contexto de uma delegacia, por exemplo, pode ser explicada pela análise feita por Jessé Souza, ao tratar da Sociologia Dual de Roberto Da Matta, quando afirma que
“O indivíduo, entre nós, se definiria pela oposição com o seu contrário: a pessoa. Esta, por sua vez, se definiria como um ser basicamente relacional, uma noção apenas compreensível, portanto, por referência a um sistema social onde as relações de compadrio, de família, de amizade e de troca de interesses e favores constituem um elemento fundamental. No indivíduo teríamos, ao contrário, uma contiguidade estrutural com o mundo das leis impessoais que submetem e subordinam”. (SOUZA: 2001, 48)
Assim, o indivíduo deveria ser tratado com a “frieza” própria de um tratamento impessoal, observando-se as determinações legais para a situação em que ele se envolvera. Considerando, no contexto da apuração de crimes, principalmente o princípio constitucional da presunção de inocência, além das normas do processo penal.
Esse tipo de tratamento, em se tratando de situações delituosas, seria o ideal para todos os indivíduos nessa circunstância. Entretanto, no caso de indivíduo pobre que se envolva com a prática de crimes, em muitos casos, a realidade brasileira revela uma faceta mais cruel, pois sequer os direitos mínimos do investigado são respeitados no ambiente da delegacia ou da penitenciária.
Isto é assim, porque há na sociedade brasileira uma crença de que o pobre tende à criminalidade (DUARTE: 2008, 53), e não tendo este uma referência social capaz de oferece-lhe um suporte para que receba um tratamento diferenciado, será submetido a situações das mais severas.
Os papéis sociais de criminosos no Brasil são assumidos por diversos indivíduos de classes sociais diferentes, alguns criminosos podem pertencer à classe mais elevada e cometem crimes no âmbito da gestão pública, na sonegação de impostos, “lavagem de dinheiro” ou delitos assemelhados, porém não recebem o mesmo tratamento ou não são considerados criminosos pela sociedade, uma vez que a designação de criminoso é reservada aos de classe mais baixa, quando se envolvem em situações delituosas, principalmente porque os meios de comunicação de massa reproduz a crença de que a criminalidade está relacionada à pobreza, crença essa que tende a enfraquecer-se diante da impossibilidade de ocultação das inúmeras ocorrências de indivíduos ricos ou influentes envolvidas na criminalidade.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
A identidade do indivíduo pode ser construída com base nos papéis que desenvolva, sendo que ao assumir papéis na prática de crimes, constrói-se uma identidade na criminalidade.
Conforme se discutiu, a identidade psicossocial do indivíduo pode ser informada pela relação de pertencimento a determinado grupo, como o indivíduo que pratica crimes pode sentir-se pertencente ao contingente de criminosos.
Ainda considerando a questão da identidade e dos papéis sociais relacionados à criminalidade, observou-se também que no contexto brasileiro, a classe dominante, pelos meios de comunicação de massa, e por outros mecanismos, tem incutido a ideia de que a criminalidade está associada à pobreza, fazendo-se crer que as pessoas das classes sociais mais baixas tendem à prática de crimes.
A associação entre criminalidade e pobreza tem sido rechaçada quando se percebe que a criminalidade não escolhe classe social, não se podem ocultar os crimes praticados por indivíduos de classes mais ricas.
O que ainda persiste é o fato de que, no Brasil, o tratamento oferecido ao criminoso originário de classe baixa é diferente em relação ao que detém uma posição privilegiada na sociedade ou possua mais recursos econômicos, sendo possível concluir que a relação criminalidade-pobreza sirva aos interesses das classes dominantes, no sentido de manterem-se os privilégios quando da apuração dos crimes.
Informações Sobre o Autor
João Hélio Reale da Cruz
Mestre em Direito Minter UNESA-FG. Professor da FG e UNEB. Analista Judiciário – TRE-BA