Decisão da Suprema Corte, publicada em 30 de maio de 2005, proclamou revogado o disposto no art. 3º, VII, da Lei nº 8.009/90, que excluía o imóvel residencial do fiador locatício da impenhorabilidade, pelo art. 6º da Constituição da República, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 26/2000, que acrescentou a moradia ao rol dos direitos sociais.
A decisão do Supremo Tribunal Federal, através de um dos seus mais notáveis integrantes, muito mais que resolver a prebenda entre duas partes privadas, tem o extraordinário efeito, comum a qualquer Corte Constitucional, de produzir efeitos erga omnes.
No caso, aliás, é público e notório que a mencionada decisão teve extraordinária repercussão no mercado imobiliário, onde aproximadamente sete milhões de imóveis residenciais são dedicados à locação, interessando a milhões de inquilinos e outro tanto de locadores, os quais esperam da renda do aluguel geralmente a complementação do pouco que recebem da previdência social para a sua subsistência.
Tais condições do mercado indicam que a respeitável decisão monocrática deu a interpretação devida em tema de forte fundamento social, e sua orientação conduz todos os juízes, senão por disciplina judiciária, a respeitar os seus efeitos porque expressivos do conteúdo atual da Constituição, suprema manifestação da vontade popular no Estado Democrático de Direito instaurado em 5 de outubro de 1988.
A supremacia da Constituição é a especial característica que lhe confere predominância sobre as demais normas jurídicas, subordinando-as aos seus comandos.
É a qualidade de supremacia sobre as demais que atribui a determinada norma jurídica a denominação de Constituição ou de leis constitucionais, estas as normas supremas que não estejam consolidadas em uma coletânea.
Não há, assim, como dissociar a Constituição da supremacia.[1]
Veja-se a lição de Humberto Quiroga Lavié: ‘Que es la supremacia constitucional? Es la particular relación de supra y subordinación en que se encuentran las normas dentro de un ordenamiento jurídico determinado: porque, por virtud de la Constitución del Estado, un ordenamiento deja de ser un sistema coordinado de normas (como lo es el derecho internacional o como lo fue el derecho consuetudinario o primitivo)’.
Segundo o mesmo mestre,[2] são decorrências do princípio da supremacia:
1 – o princípio da unidade em que as normas inferiores devem se adequar às normas superiores contidas na Constituição;
2 – o princípio do controle da constitucionalidade, isto é, de verificação da compatibilidade das normas inferiores com a Constituição;
3 – o princípio da razoabilidade, segundo o qual as normas infraconstitucionais devem ser instrumentos ou meios adequados (razoáveis) aos fins estabelecidos na Constituição;
4 – o princípio de rigidez para a reforma da Constituição, que não pode ser feita pelo mesmo procedimento de elaboração da norma legislativa comum;
5 – a distinção entre poder constituinte e poder constituído, que é a distribuição de competência funcional a determinar quem pode criar os diversos níveis jurídicos;
6 – a gradação do ordenamento jurídico em diversos níveis, desde a norma fundamental abstrata até o ato de execução pelo órgão público;
7 – a garantia do Estado de Direito, pois os órgãos públicos se encontram limitados pelas determinações do poder constituinte.”[3]
A decisão monocrática da Suprema Corte sequer teve o sabor da novidade.
A revogação do art. 3º, VIII, da Lei nº 8.009/90 pela Emenda Constitucional nº 26, de 2000, já fora exaustivamente defendida pela Defensora Pública Doutora Eliane Maria Barreiros Aina, em livro intitulado O Fiador e o Direito à Moradia, publicado em 2002, pela Editora Lumen Juris, desta Capital:
De um lado, temos uma norma de direito privado, qual seja, o art. 3º da Lei Federal nº 8.009/90. De outro, uma norma constitucional.
Conforme vimos desenvolvendo ao longo do trabalho, a Lei Fundamental está no ápice da pirâmide que forma o ordenamento jurídico, sendo hierarquicamente superior a todas as outras normas não constitucionais e exercendo papel ordenador e sistematizador das demais normas jurídicas. Especialmente os direitos fundamentais constituem-se no núcleo material da Constituição e determinam os programas políticos e jurídicos para efetivar-se a justiça social.
Dessa forma, o direito fundamental à moradia apresenta-se hierarquicamente superior à norma infraconstitucional que permite a excussão do bem de família do fiador de relação locatícia. Tal significa dizer que a penhora da moradia de uma família é que deve estar em consonância com a proteção jusfundamental à moradia e não o contrário, ou seja, o direito à moradia cedendo diante da proteção pura e simples ao crédito.
Veja-se o conteúdo da decisão monocrática ora em debate:
RE 415563 / SP RECURSO EXTRAORDINÁRIO Relator(a) Min. – CARLOS VELLOSO DJ DATA-30/05/2005 P OOO99 Julgamento 03/05/2005
RECURSO EXTRAORDINÁRIO N. 415.563-0 – SP
RELATOR : MIN. CARLOS VELLOSO
RECTE.(S): RITA MARIA DOS SANTOS
ADV.(A/S): JOÃO MONTEIRO DE CASTRO
RECDO.(A/S): PAULINA NEVES
ADV.(A/S): RICARDO ARALDO
EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora “por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação”: sua não-recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido. DECISÃO: – Vistos. O acórdão recorrido, proferido pela Décima Segunda Câmara do Eg. Segundo Tribunal de Alçada Civil do Estado de São Paulo, entendeu ser penhorável, nos termos do art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, redação dada pelo art. 82 da Lei 8.245/91, o bem de família do fiador de contrato de locação. Daí o RE, interposto por RITA MARIA DOS SANTOS, fundado no art. 102, III, a, da Constituição Federal, sustentando, a impenhorabilidade do bem de família do fiador em contrato de locação, dado que a Constituição Federal, art. 6º, que assegura o direito à moradia, não recepcionou o disposto no art. 3º, VII, da Lei 8.009/90, redação da Lei 8.245/91. Admitido o recurso, subiram os autos. A Procuradoria-Geral da República, em parecer lavrado pelo ilustre Subprocurador-Geral da República, Dr. Paulo de Tarso Braz Lucas, opinou pelo não provimento do recurso extraordinário. Autos conclusos em 25.4.2005. Decido. Ao julgar o RE 352.940/SP, em 26.4.2005, escrevi: “EMENTA: CONSTITUCIONAL. CIVIL. FIADOR: BEM DE FAMÍLIA: IMÓVEL RESIDENCIAL DO CASAL OU DE ENTIDADE FAMILIAR: IMPENHORABILIDADE. Lei nº 8.009/90, arts. 1º e 3º. Lei 8.245, de 1991, que acrescentou o inciso VII, ao art. 3º, ressalvando a penhora ‘por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação’: sua não-recepção pelo art. 6º, C.F., com a redação da EC 26/2000. Aplicabilidade do princípio isonômico e do princípio de hermenêutica: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Recurso extraordinário conhecido e provido. (…) A Lei 8.009, de 1990, art. 1º, estabelece a impenhorabilidade do imóvel residencial do casal ou da entidade familiar e determina que não responde o referido imóvel por qualquer tipo de dívida, salvo nas hipóteses previstas na mesma lei, art. 3º, inciso I a VI. Acontece que a Lei 8.245, de 18.10.91, acrescentou o inciso VII, a ressalvar a penhora ‘por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação’. É dizer, o bem de família de um fiador em contrato de locação teria sido excluído da impenhorabilidade. Acontece que o art. 6º da C.F., com a redação da EC nº 26, de 2000, ficou assim redigido: ‘Art. 6º. São direitos sociais a educação, a saúde, o trabalho, a moradia, a segurança, a previdência social, a proteção à maternidade e à infância, a assistência aos desamparados, na forma desta Constituição’. Em trabalho doutrinário que escrevi, ‘Dos Direitos Sociais na Constituição do Brasil’, texto básico de palestra que proferi na Universidade de Carlos III, em Madri, Espanha, no Congresso Internacional de Direito do Trabalho, sob o patrocínio da Universidade Carlos III e da ANAMATRA, em 10.3.2003, registrei que o direito à moradia, estabelecido no art. 6º, C.F., é um direito fundamental de 2ª geração, direito social que veio a ser reconhecido pela EC 26, de 2000. O bem de família a moradia do homem e sua família justifica a existência de sua impenhorabilidade: Lei 8.009/90, art. 1º. Essa impenhorabilidade decorre de constituir a moradia um direito fundamental. Posto isso, veja-se a contradição: a Lei 8.245, de 1991, excepcionando o bem de família do fiador, sujeitou o seu imóvel residencial, imóvel residencial próprio do casal, ou da entidade familiar, à penhora. Não há dúvida que ressalva trazida pela Lei 8.245, de 1991, inciso VII, do art. 3º feriu de morte o princípio isonômico, tratando desigualmente situações iguais, esquecendo-se do velho brocardo latino: ubi eadem ratio, ibi eadem legis dispositio, ou em vernáculo: onde existe a mesma razão fundamental, prevalece a mesma regra de Direito. Isto quer dizer que, tendo em vista o princípio isonômico, o citado dispositivo inciso VII do art. 3º, acrescentado pela Lei 8.245/91, não foi recebido pela EC 26, de 2000. Essa não-recepção mais se acentua diante do fato de a EC 26, de 2000, ter estampado, expressamente, no art. 6º, C.F., o direito à moradia como direito fundamental de 2ª geração, direito social. Ora, o bem de família, Lei 8.009/90, art. 1º, encontra justificativa, foi dito linha atrás, no constituir o direito à moradia um direito fundamental que deve ser protegido e por isso mesmo encontra garantia na Constituição. Em síntese, o inciso VII do art. 3º da Lei 8.009, de 1990, introduzido pela Lei 8.245, de 1991, não foi recebido pela CF, art. 6º, redação da EC 26/2000. Do exposto, conheço do recurso e dou-lhe provimento, invertidos os ônus da sucumbência”. Reportando-me à decisão acima transcrita, conheço do recurso e dou-lhe provimento. Publique-se.
Brasília, 03 de maio de 2005.
Ministro CARLOS VELLOSO – Relator
Neste Tribunal de Justiça, já tivemos a seguinte manifestação em decorrência dos efeitos da referida decisão monocrática, pela voz de um de seus mais ilustres integrantes:
CONSTITUCIONAL E CIVIL. EMBARGOS À EXECUÇÃO OFERECIDOS PELOS FIADORES, DEMANDADOS EM EXECUÇÃO POR COBRANÇA DE VALORES LOCATÍCIOS. ALEGAÇÃO DE IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA DOS FIADORES EM RAZÃO DO DIREITO À MORADIA PREVISTO NO ART. 6º, DA CONSTITUIÇÃO, COM A REDAÇÃO DA EC Nº 26, PROMULGADA EM 14/02/2000, ALÉM DE EXCESSO NA EXECUÇÃO COM INSERÇÃO DE VALORES RELATIVOS AOS ENCARGOS LOCATÍCIOS EM EXCESSO AO PRAZO CONTRATUAL, E HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS DE 20%, APLICÁVEIS, APENAS, AO LOCATÁRIO. SENTENÇA DE IMPROCEDÊNCIA. APELAÇÃO DOS EMBARGANTES COM PRELIMINAR DE CERCEAMENTO DE DEFESA, POR NÃO TEREM TIDO OPORTUNIDADE DE PROVAR NA AIJ, NÃO REALIZADA, A CONDIÇÃO DE ÚNICO BEM DE FAMÍLIA DO IMÓVEL EM QUE RESIDEM, SUSTENTANDO NO MÉRITO A IMPENHORABILIDADE DO MESMO EM RAZÃO DO CARÁTER SOCIAL DA MORADIA, ASSIM COMO A EXCLUSÃO DOS VALORES COBRADOS A TÍTULO DE ENCARGOS LOCATÍCIOS E REDUÇÃO PARA 10% DO PERCENTUAL FIXADO EM 20% AOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. INOCORRÊNCIA DO CERCEAMENTO, UMA VEZ INDEMONSTRADA A RESPECTIVA PERTINÊNCIA DA PROVA ORAL. REJEIÇÃO DA PRELIMINAR. RECONHECIMENTO DA IMPENHORABILIDADE DO BEM DE FAMÍLIA, DIREITO SOCIAL DE 2ª GERAÇÃO. PROTEÇÃO À MORADIA FAMILIAR. APLICABILIDADE DO PRINCÍPIO DA ISONOMIA ENTRE LOCATÁRIO E FIADOR. AUSÊNCIA DE RECEPÇÃO DO INCISO VII, DO ART. 3º, DA LEI Nº 8.009/90, ACRESCENTADO PELA LEI Nº 8.245/91, DIANTE DA REDAÇÃO DADA AO ART. 6º PELA E.C. Nº 26, PROMULGADA EM 14/02/2000. POSSIBILIDADE DE COMPROVAÇÃO POR MEIO DE CERTIDÕES, NOS AUTOS DA EXECUÇÃO, DE QUE O BEM É O ÚNICO IMÓVEL DA FAMÍLIA, POR SE TRATAR DE MATÉRIA PREJUDICIAL. AFASTAMENTO DA MEDIDA CONSTRITIVA. MANUTENÇÃO DOS DEMAIS TERMOS SENTENCIAIS, MORMENTE EM RELAÇÃO AOS ENCARGOS LOCATÍCIOS ATÉ A ENTREGA EFETIVA DAS CHAVES, ASSIM COMO DO PERCENTUAL FIXADO AOS HONORÁRIOS ADVOCATÍCIOS. PROVIMENTO PARCIAL DO APELO” (TJ-RJ, Terceira Câmara Cível, Apelação Cível nº 2004.001.24456, voto vencido do Desembargador Luiz Fernando de Carvalho).
A contar da vigência da Emenda Constitucional nº 26, a moradia foi explicitada como direito fundamental, usufruindo do status de direito social e assim dever da sociedade e do Estado.
O direito social visa assegurar o atendimento às necessidades diárias e permanentes e corresponde a um programa para fazer e conservar a igualdade entre os membros da sociedade política, nas conhecidas palavras do Desembargador Pontes de Miranda.
Não há democracia sem maior igualdade política, econômica, social e cultural.
A Constituição não deve ser interpretada como um conceito único e sim como um bloco, configurado por pluralidade de concepções, visando à concretização da idéia de ordem constitucional global.[4]
Verifica-se, portanto, todas as outras normas infraconstitucionais que estiverem em desacordo com o parâmetro constitucional firmado pela EC nº 26/2000, ou seja, todas as normas que confrontarem o direito fundamental à moradia e forem hierarquicamente inferiores.
O Ministro Celso Mello, em decisão monocrática proferida na ADI 2971/MC/RO, com a habitual proficiência pedagógica, ensina sobre o bloco de constitucionalidade:
Isso significa, portanto, que a idéia de inconstitucionalidade (ou de constitucionalidade), por encerrar um conceito de relação (JORGE MIRANDA, “Manual de Direito Constitucional”, tomo II, p. 273/274, item n. 69, 2ª ed., Coimbra Editora Limitada) – que supõe, por isso mesmo, o exame da compatibilidade vertical de um ato, dotado de menor hierarquia, com aquele que se qualifica como fundamento de sua existência, validade e eficácia – torna essencial, para esse específico efeito, a identificação do parâmetro de confronto, que se destina a possibilitar a verificação, “in abstracto”, da legitimidade constitucional de certa regra de direito positivo, a ser necessariamente cotejada em face da cláusula invocada como referência paradigmática. A busca do paradigma de confronto, portanto, significa, em última análise, a procura de um padrão de cotejo, que, ainda em regime de vigência temporal, permita, ao intérprete, o exame da fidelidade hierárquico-normativa de determinado ato estatal, contestado em face da Constituição. Esse processo de indagação, no entanto, impõe que se analisem dois (2) elementos essenciais à compreensão da matéria ora em exame. De um lado, põe-se em evidência o elemento conceitual, que consiste na determinação da própria idéia de Constituição e na definição das premissas jurídicas, políticas e ideológicas que lhe dão consistência. De outro, destaca-se o elemento temporal, cuja configuração torna imprescindível constatar se o padrão de confronto, alegadamente desrespeitado, ainda vige, pois, sem a sua concomitante existência, descaracterizar-se-á o fator de contemporaneidade, necessário à verificação desse requisito. No que concerne ao primeiro desses elementos (elemento conceitual), cabe ter presente que a construção do significado de Constituição permite, na elaboração desse conceito, que sejam considerados não apenas os preceitos de índole positiva, expressamente proclamados em documento formal (que consubstancia o texto escrito da Constituição), mas, sobretudo, que sejam havidos, igualmente, por relevantes, em face de sua transcendência mesma, os valores de caráter suprapositivo, os princípios cujas raízes mergulham no direito natural e o próprio espírito que informa e dá sentido à Lei Fundamental do Estado. Não foi por outra razão que o Supremo Tribunal Federal, certa vez, e para além de uma perspectiva meramente reducionista, veio a proclamar – distanciando-se, então, das exigências inerentes ao positivismo jurídico – que a Constituição da República, muito mais do que o conjunto de normas e princípios nela formalmente positivados, há de ser também entendida em função do próprio espírito que a anima, afastando-se, desse modo, de uma concepção impregnada de evidente minimalismo conceitual (RTJ 71/289, 292 – RTJ 77/657). É por tal motivo que os tratadistas – consoante observa JORGE XIFRA HERAS (“Curso de Derecho Constitucional”, p. 43) –, em vez de formularem um conceito único de Constituição, costumam referir-se a uma pluralidade de acepções, dando ensejo à elaboração teórica do conceito de bloco de constitucionalidade, cujo significado – revestido de maior ou de menor abrangência material – projeta-se, tal seja o sentido que se lhe dê, para além da totalidade das regras constitucionais meramente escritas e dos princípios contemplados, explícita ou implicitamente, no corpo normativo da própria Constituição formal, chegando, até mesmo, a compreender normas de caráter infraconstitucional, desde que vocacionadas a desenvolver, em toda a sua plenitude, a eficácia dos postulados e dos preceitos inscritos na Lei Fundamental, viabilizando, desse modo, e em função de perspectivas conceituais mais amplas, a concretização da idéia de ordem constitucional global. Sob tal perspectiva, que acolhe conceitos múltiplos de Constituição, pluraliza-se a noção mesma de constitucionalidade/inconstitucionalidade, em decorrência de formulações teóricas, matizadas por visões jurídicas e ideológicas distintas, que culminam por determinar – quer elastecendo-as, quer restringindo-as – as próprias referências paradigmáticas conformadoras do significado e do conteúdo material inerentes à Carta Política. Torna-se relevante destacar, neste ponto, por tal razão, o magistério de J. J. GOMES CANOTILHO (“Direito Constitucional e Teoria da Constituição”, p. 811/812, item n. 1, 1998, Almedina), que bem expôs a necessidade de proceder-se à determinação do parâmetro de controle da constitucionalidade, consideradas as posições doutrinárias que se digladiam em torno do tema: “Todos os actos normativos devem estar em conformidade com a Constituição (art. 3.º/3). Significa isto que os actos legislativos e restantes actos normativos devem estar subordinados, formal, procedimental e substancialmente, ao parâmetro constitucional. Mas qual é o estalão normativo de acordo com o qual se deve controlar a conformidade dos actos normativos? As respostas a este problema oscilam fundamentalmente entre duas posições: (1) o parâmetro constitucional equivale à constituição escrita ou leis com valor constitucional formal, e daí que a conformidade dos actos normativos só possa ser aferida, sob o ponto de vista da sua constitucionalidade ou inconstitucionalidade, segundo as normas e princípios escritos da constituição (ou de outras leis formalmente constitucionais); (2) o parâmetro constitucional é a ordem constitucional global, e, por isso, o juízo de legitimidade constitucional dos actos normativos deve fazer-se não apenas segundo as normas e princípios escritos das leis constitucionais, mas também tendo em conta princípios não escritos integrantes da ordem constitucional global. Na perspectiva (1), o parâmetro da constitucionalidade (= normas de referência, bloco de constitucionalidade) reduz-se às normas e princípios da constituição e das leis com valor constitucional; para a posição (2), o parâmetro constitucional é mais vasto do que as normas e princípios constantes das leis constitucionais escritas, devendo alargar-se, pelo menos, aos princípios reclamados pelo ‘espírito’ ou pelos ‘valores’ que informam a ordem constitucional global” (grifei). Veja-se, pois, a importância de compreender-se, com exatidão, o significado que emerge da noção de bloco de constitucionalidade – tal como este é concebido pela teoria constitucional (BERNARDO LEÔNCIO MOURA COELHO, “O Bloco de Constitucionalidade e a Proteção à Criança”, in Revista de Informação Legislativa nº 123/259-266, 263/264, 1994, Senado Federal; MIGUEL MONTORO PUERTO, “Jurisdicción Constitucional y Procesos Constitucionales”, tomo I, p. 193/195, 1991, Colex; FRANCISCO CAAMAÑO DOMÍNGUEZ/ANGEL J. GÓMEZ MONTORO/MANUEL MEDINA GUERRERO/JUAN LUIS REQUEJO PAGÉS, “Jurisdicción y Procesos Constitucionales”, p. 33/35, item C, 1997, Berdejo; IGNACIO DE OTTO, “Derecho Constitucional, Sistema de Fuentes”, p. 94/95, § 25, 2ª ed./2ª reimpressão, 1991, Ariel; LOUIS FAVOREU/FRANCISCO RUBIO LLORENTE, “El bloque de la constitucionalidad”, p. 95/109, itens ns. I e II, 1991, Civitas; JOSÉ ALFREDO DE OLIVEIRA BARACHO, “O Princípio da Subsidiariedade: Conceito e Evolução”, p. 77/81, 2000, Forense; DOMINIQUE TURPIN, “Contentieux Constitutionnel”, p. 55/56, item n. 43, 1986, Presses Universitaires de France, v.g.) –, pois, dessa percepção, resultará, em última análise, a determinação do que venha a ser o paradigma de confronto, cuja definição mostra-se essencial, em sede de controle de constitucionalidade, à própria tutela da ordem constitucional. E a razão de tal afirmação justifica-se por si mesma, eis que a delimitação conceitual do que representa o parâmetro de confronto é que determinará a própria noção do que é constitucional ou inconstitucional, considerada a eficácia subordinante dos elementos referenciais que compõem o bloco de constitucionalidade. Não obstante essa possibilidade de diferenciada abordagem conceitual, torna-se inequívoco que, no Brasil, o tema da constitucionalidade ou inconstitucionalidade supõe, no plano de sua concepção teórica, a existência de um duplo vínculo: o primeiro, de ordem jurídica, referente à compatibilidade vertical das normas inferiores em face do modelo constitucional (que consagra o princípio da supremacia da Carta Política), e o segundo, de caráter temporal, relativo à contemporaneidade entre a Constituição e o momento de formação, elaboração e edição dos atos revestidos de menor grau de positividade jurídica. Vê-se, pois, até mesmo em função da própria jurisprudência do Supremo Tribunal Federal (RTJ 169/763, Rel. Min. PAULO BROSSARD), que, na aferição, em abstrato, da constitucionalidade de determinado ato normativo, assume papel relevante o vínculo de ordem temporal, que supõe a existência de uma relação de contemporaneidade entre padrões constitucionais de confronto, ainda em regime de plena e atual vigência, e os atos estatais hierarquicamente inferiores, questionados em face da Lei Fundamental. Dessa relação de caráter histórico-temporal, exsurge a identificação do parâmetro de controle, referível a preceito constitucional, ainda em vigor, sob cujo domínio normativo foram produzidos os atos objeto do processo de fiscalização concentrada. Isso significa, portanto, que, em sede de controle abstrato, o juízo de inconstitucionalidade há de considerar a situação de incongruência normativa de determinado ato estatal, contestado em face da Carta Política (vínculo de ordem jurídica), desde que o respectivo parâmetro de aferição ainda mantenha atualidade de vigência (vínculo de ordem temporal). Sendo assim, e quaisquer que possam ser os parâmetros de controle que se adotem – a Constituição escrita, de um lado, ou a ordem constitucional global, de outro (LOUIS FAVOREU/FRANCISCO RUBIO LLORENTE, “El bloque de la constitucionalidad”, p. 95/109, itens ns. I e II, 1991, Civitas; J. J. GOMES CANOTILHO, “Direito Constitucional”, p. 712, 4ª ed., 1987, Almedina, Coimbra, v.g.) –, torna-se essencial, para fins de viabilização do processo de controle normativo abstrato, que tais referências paradigmáticas encontrem-se, ainda, em regime de plena vigência, pois, como precedentemente assinalado, o controle de constitucionalidade, em sede concentrada, não se instaura, em nosso sistema jurídico, em função de paradigmas históricos, consubstanciados em normas que já não mais se acham em vigor, ou, embora vigendo, tenham sofrido alteração substancial em seu texto. É por tal razão que, em havendo a revogação superveniente (ou a modificação substancial) da norma de confronto, não mais se justificará a tramitação da ação direta, que, anteriormente ajuizada, fundava-se na suposta violação do parâmetro constitucional cujo texto veio a ser suprimido ou, como no caso, substancialmente alterado. Bem por isso, a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, desde o regime constitucional anterior, tem proclamado que tanto a superveniente revogação global da Constituição da República (RTJ 128/515 – RTJ 130/68 – RTJ 130/1002 – RTJ 135/515 – RTJ 141/786), quanto a posterior derrogação (ou alteração substancial) da norma constitucional (RTJ 168/436 – RTJ 169/834 – RTJ 169/920 – RTJ 171/114 – RTJ 172/54-55 – RTJ 179/419 – ADI 296/DF – ADI 595/ES – ADI 905/DF – ADI 906/PR – ADI 1.120/PA – ADI 1.137/RS – ADI 1.143/AP – ADI 1.300/AP – ADI 1.510/SC – ADI 1.885-QO/DF), por afetarem o paradigma de confronto invocado no processo de controle concentrado de constitucionalidade, configuram hipóteses caracterizadoras de prejudicialidade da ação direta, em virtude da evidente perda de seu objeto: “II – Controle direto de constitucionalidade: prejuízo. Julga-se prejudicada, total ou parcialmente, a ação direta de inconstitucionalidade no ponto em que, depois de seu ajuizamento, emenda à Constituição haja ab-rogado ou derrogado norma de Lei Fundamental que constituísse paradigma necessário à verificação da procedência ou improcedência dela ou de algum de seus fundamentos, respectivamente: orientação de aplicar-se no caso, no tocante à alegação de inconstitucionalidade material, dada a revogação primitiva do art. 39, § 1º, CF 88, pela EC 19/98” (RTJ 172/789-790, Rel. Min. SEPÚLVEDA PERTENCE – grifei). “AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. INSTRUMENTO DE AFIRMAÇÃO DA SUPREMACIA DA ORDEM CONSTITUCIONAL. O PAPEL DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL COMO LEGISLADOR NEGATIVO. A NOÇÃO DE CONSTITUCIONALIDADE/INCONSTITUCIONALIDADE COMO CONCEITO DE RELAÇÃO. A QUESTÃO PERTINENTE AO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE. POSIÇÕES DOUTRINÁRIAS DIVERGENTES EM TORNO DO SEU CONTEÚDO. O SIGNIFICADO DO BLOCO DE CONSTITUCIONALIDADE COMO FATOR DETERMINANTE DO CARÁTER CONSTITUCIONAL, OU NÃO, DOS ATOS ESTATAIS. NECESSIDADE DA VIGÊNCIA ATUAL, EM SEDE DE CONTROLE ABSTRATO, DO PARADIGMA CONSTITUCIONAL ALEGADAMENTE VIOLADO. SUPERVENIENTE MODIFICAÇÃO/SUPRESSÃO DO PARÂMETRO DE CONFRONTO. PREJUDICIALIDADE DA AÇÃO DIRETA. – A definição do significado de bloco de constitucionalidade – independentemente da abrangência material que se lhe reconheça – reveste-se de fundamental importância no processo de fiscalização normativa abstrata, pois a exata qualificação conceitual dessa categoria jurídica projeta-se como fator determinante do caráter constitucional, ou não, dos atos estatais contestados em face da Carta Política. – A superveniente alteração/supressão das normas, valores e princípios que se subsumem à noção conceitual de bloco de constitucionalidade, por importar em descaracterização do parâmetro constitucional de confronto, faz instaurar, em sede de controle abstrato, situação configuradora de prejudicialidade da ação direta, legitimando, desse modo – ainda que mediante decisão monocrática do Relator da causa (RTJ 139/67) – a extinção anômala do processo de fiscalização concentrada de constitucionalidade. Doutrina. Precedentes” (ADI 595/ES, Rel. Min. CELSO DE MELLO, “Informativo/STF” nº 258/2002). Cumpre ressaltar, por necessário, que essa orientação jurisprudencial reflete-se no próprio magistério da doutrina (CLÈMERSON MERLIN CLÈVE, “A Fiscalização Abstrata da Constitucionalidade no Direito Brasileiro”, p. 225, item n. 3.2.6, 2ª ed., 2000, RT; OSWALDO LUIZ PALU, “Controle de Constitucionalidade – Conceitos, Sistemas e Efeitos”, p. 219, item n. 9.9.17, 2ª ed., 2001, RT; GILMAR FERREIRA MENDES, “Jurisdição Constitucional”, p. 176/177, 2ª ed., 1998, Saraiva), cuja percepção do tema ora em exame põe em destaque, em casos como o destes autos, que a superveniente alteração da norma constitucional revestida de parametricidade importa na configuração de prejudicialidade do processo de controle abstrato de constitucionalidade, eis que, como enfatizado, o objeto da ação direta resume-se, em essência, à fiscalização da ordem constitucional vigente.
A Lei de locações, no tocante às normas que tratam das garantias locatícias, deverá ser interpretada conforme a Constituição da República, e quanto às contravenções algumas serão revogadas, pois a inclusão da moradia no rol dos direitos sociais e a concretização da ordem constitucional global trouxeram inúmeras modificações à ordem jurídica, principalmente quanto ao mercado imobiliário.
A fiança, com a possibilidade de penhora do bem residencial do fiador, sem dúvida era a maior e melhor garantia locatícia existente, e a revogação desta modalidade de fiança não pode significar o caos do inadimplemento em massa dos locatários.
A alteração do paradigma ou bloco temático constitucionalmente previsto, com a explicitação do direito de moradia como direito social, realizada pela Emenda Constitucional nº 26/2000, oferece múltiplos efeitos sobre os atos normativos inferiores, não só revogando expressamente alguns dispositivos legais como também exigindo de outros, ao menos, a releitura ou a interpretação pela filtragem constitucional, inclusive as normas da Lei do Inquilinato Urbano que possam representar desproporcional e excessiva limitação dos meios de garantia da locação, assim rompendo as cadeias legais que hoje inibem ou mesmo inviabilizam a liberdade contratual, na busca do legítimo fim social e econômico representado pela moradia através do contrato de locação de bem imóvel:
a) revoga o disposto no art. 3º, VII, da Lei nº 8.009, de 29 de março de 1990, com a redação dada pela Lei nº 8.245, de 18 de outubro de 1991, ao permitir a penhora do único bem residencial por obrigação decorrente de fiança concedida em contrato de locação;
b) exige interpretação conforme a Constituição da norma que decorre do disposto no art. 37 e seu parágrafo único, da Lei nº 8.245/91, que dispõe sobre as garantias locatícias, para que seja conferido a este rol a natureza exemplificativa, e não exaustiva, assim se evitando o reconhecimento de sua revogação pelo confronto com o direito constitucional;
c) revoga o § 2º do art. 38 da Lei nº 8.245/91, pois limita a caução ao equivalente a três meses de aluguel;
d) revoga o tipo contravencional do art. 43, II, da mesma Lei do Inquilinato Urbano, permitindo a adoção de mais de uma garantia pelas partes, na formação e na execução do contrato locatício, em conseqüência, ensejando a utilização de quaisquer meios de garantia para o cumprimento da obrigação, desde que admitidos pelo Direito para os demais negócios jurídicos;
e) revoga inteiramente o disposto no art. 40 da Lei do Inquilinato Urbano, que se refere especificamente à fiança locatícia como meio de realização das garantias locatícias; e
f) confere ao art. 42 da Lei nº 8.245/91 a interpretação conforme a Constituição de que, não estando a locação garantida por qualquer meio específico, o locador poderá exigir do locatário o pagamento do aluguel e encargos até o sexto dia útil do mês vincendo, assim permitindo a cobrança do aluguel no início do mês da respectiva obrigação, como já faz usualmente o condomínio edilício na cobrança de seus encargos.
Proclama a Constituição de 5 de outubro de 1988, em seu art. 102, initio, que compete precipuamente ao Supremo Tribunal Federal a sua guarda. Tal encargo, comum a todas as Cortes Constitucionais, aqui e alhures, implica em reconhecer às decisões do Excelso Pretório, ainda que proferidas incidentalmente, efeitos erga omnes que repercutem em toda a sociedade. E assim é pela ímpar situação de fonte suprema da compreensão do significado das normas inferiores perante a própria Carta Magna, patamar mais elevado do sistema normativo do Estado Democrático de Direito porque decorrente da vontade popular e fonte dos valores de superlativa importância na organização política, social e econômica.
Datada de 03 e publicada no Diário da Justiça da União no dia 30 do mesmo mês de maio de 2005, proclamando pela vez primeira na Corte Constitucional os efeitos perante a legislação infraconstitucional da Emenda Constitucional nº 26, promulgada em 14 de fevereiro de 2000, a decisão monocrática do eminente Ministro Carlos Velloso é eficaz não só na causa em que foi proferida, como também vincula as demais instâncias judiciárias e descortina novos significados normativos da Lei Maior, com efeitos além da referida causa, repercutindo intensamente nas relações locatícias, até mesmo nos aspectos econômicos delas decorrentes.
O relator, nas causas em tramitação nos tribunais, atua em nome de todo o colegiado, e dele pode ser considerado como o seu porta-voz, na conhecida expressão do Desembargador José Carlos Barbosa Moreira.
Muito além de agente maior da interpretação literal ou gramatical do texto constitucional, a Corte Constitucional atua como fonte de explicitação dos valores que a sociedade, através da Constituição, considera relevantes em determinado momento histórico.
Qualquer pronunciamento do Supremo Tribunal Federal sobre a interpretação da Constituição, da qual tem a função de guardião, produz efeitos além dos limites subjetivos da lide, merecendo a atenção de todos os agentes sociais e, conseqüentemente, impregnando todas as relações jurídicas. E assim é em face do seu poder de conferir ao texto frio da letra constitucional a densidade normativa própria da supremacia da Lei Maior, com fonte na vontade popular.
Em tema de relações estatutárias, como as do inquilinato urbano, não há que se obstar os efeitos de normas e valores constitucionais pela alegação da irretroatividade da lei e do direito adquirido a determinada situação, mas deve o aplicador do Direito, nos casos que lhe são submetidos, evitar tanto quanto possa retroagir os efeitos para que a norma recente não desbaste o Direito anterior como se tratasse de rasoura incontrolável, a causar a perplexidade do jurisdicionado pela insegurança dos efeitos jurídicos.
Em decorrência, produzindo a referida decisão da Suprema Corte seus efeitos erga omnes a contar de 30 de maio de 2005, nesta data é que se deve considerar como o termo inicial dos efeitos da norma constitucional de proteção do direito da moradia, assim resguardados os efeitos dos negócios jurídicos realizados até então.
Informações Sobre o Autor
Nagib Slaibi Filho
Desembargador do TJRJ
Professor – EMERJ e UNIVERSO