Resumo: O presente artigo tem por escopo, analisar as implicações no âmbito jurídico do aborto anencefálico. Para tanto, foi realizada a leitura de processos que tinham por objeto o mesmo que o deste artigo, além de obras jurídicas e biológicas, cadernos publicados pelo Ministério da Saúde e de notícias veiculadas pela imprensa. Foi possível constatar, a existência de uma grande carga valorativa no contexto de diagnóstico de anencefalia.
Palavras-Chave: anencefalia; aborto; bioética; princípios constitucionais; saúde da mulher.
Introdução
A anencefalia consiste em um defeito congênito (do latim “congenitus”, “gerado com”), o qual atinge acerca de 1 em cada 1000 bebês. A palavra anencefalia significa “sem cérebro”. Não é uma definição ideal, pois o que falta é o cérebro com seus hemisférios e o cerebelo, isto é, uma criança com anencefalia nasce sem o couro cabeludo, calota craniana, meninges, mas, contudo o tronco cerebral é geralmente preservado (Müller 1991) [1].
No campo jurídico, esse defeito congênito apenas produz implicações quando a gestante decide interromper voluntariamente a gestação. A partir daqui, se apresentam várias questões relacionadas a direitos da mulher, direitos do nascituro, momento no qual a vida se inicia ética médica, entre outros.
Esta implicação também afeta a moral defendida por instituições sociais, como a Igreja Católica, que se faz representar pela CNBB. Pela análise qualitativa do tema, não se objetiva a defesa de qualquer um dos lados, e sim compreender as posições e justificativas produzidas por eles em relação à anencefalia e aborto.
Anencefalia: implicações no aspecto biológico e no aspecto jurídico
Em termos biológicos, a anencefalia pertence à família de defeitos de fechadura do tubo neural (DFTN). Essa má-formação congênita ocorre entre o 20º e o 28º dia de gestação (Sadler 1998)[2], em decorrência de uma combinação de fatores genéticos e ambientais. Em um desenvolvimento normal, as células da placa neural, as quais constituem o sistema nervoso do embrião, dobram sobre si mesmas a fim de criarem o chamado tubo neural, que então se torna uma estrutura que servirá de suporte para a formação da coluna vertebral e dentro dela a medula espinhal. Depois de várias transformações, o pólo superior do tubo neural finalmente torna-se o cérebro. Um meio de se visualizar mais claramente esse processo é compará-lo com uma moeda cujas bordas unem-se ao centro.
No caso de um DFTN, o tubo neural não se fecha completamente. A anencefalia ocorre quando o final da extremidade superior do tubo neural deixa de se fechar. O tecido cerebral restante é protegido somente por uma fina membrana. Com isso, o feto pode ser cego, surdo e não ter reflexos, sendo comparado a um vegetal, assim como pode engolir, comer, chorar, ouvir, sentir vibrações (sons altos), reagir a toques e mesmo à luz: tudo isso depende do quanto o tubo neural, que leva a formação do cérebro e da medula espinhal, responsáveis pelo controle de todas funções conscientes, como controle motor voluntário, e muitas das funções inconscientes do corpo, tais como o batimento cardíaco, fora afetado pela má-formação. Muitas crianças com anencefalia morrem intra-útero ou durante o parto. A expectativa de vida para aquelas que sobrevivem é de apenas poucas horas ou dias, ou raramente poucos meses (Jaquier 2006)[3].
Usando um exame de ultra-som de alta resolução, pode-se detectar a anencefalia na 10ª semana. Quando em condições pouco ideais, a anencefalia só pode ser detectada ou excluída por um exame de ultra-som após a 16ª semana de gravidez. Os níveis de Alfa-Fetoproteína, uma proteína que é liberada através da urina do feto no líquido amniótico, podem ser medidos por exame do soro materno (exame de sangue). Se os níveis são altos, há o risco que a criança possa sofrer de um DFTN. Há testes posteriores que devem ser feitos (exame de ultra-som ou amniocentese, isto é, punção do útero para retirada de amostra de líquido amniótico) entre a 15ª e a 20ª semana para determinar se há realmente um problema desse tipo.
A saúde da grávida não é afetada pela anencefalia. Em cerca de um quarto dos casos, é produzido líquido amniótico em demasia (Jaquier 2006)[4], devido a incapacidade do feto de engolir o líquido, o que vem a causar certo desconforto a mulher. Com isso a gravidez pode ser levada adiante normalmente, pois o risco é o mesmo de uma gravidez de um bebê saudável, cabendo aos genitores, por desejo próprio, determinarem a interrupção da gravidez.
É a partir deste momento, no qual ocorre a interrupção gestacional, que a anencefalia gera implicações no campo jurídico, pois o aborto é tipificado em muitos ordenamentos jurídicos, inclusive o brasileiro (art. 124 ao art. 128, Código Penal), como um crime contra a vida. Sua definição consiste na morte do nascituro no útero materno ou fora deste, pelas manobras abortivas ou pelo estágio de sua evolução. Excepcionam-se apenas quando gravidez é resultado de um estupro ou quando há risco de morte da mãe.
Em legislações penais ao longo do Globo, constata-se que há variações quando o assunto é o aborto. Na Europa, a lei varia tanto em relação à descriminalização, como nas semanas de gestação em que a mulher pode realizar a interrupção voluntária da gravidez (IVG). Cinco países europeus ainda criminalizam o aborto: Portugal, Polônia, Irlanda, Malta e Chipre. Na Alemanha, o aborto é permitido até as 12 semanas, porém a grávida deve ir a uma consulta de aconselhamento num centro oficial, na qual recebe esclarecimento médicos e sociais sobre as possibilidades e apoio para ter um filho, e ainda sobre os riscos da IVG. Contudo, as mulheres não têm de justificar a sua decisão, caso optem por fazer um aborto. As despesas têm de ser pagas pelas mulheres, mas somente se estas tiverem rendimentos mensais superiores a cerca de 900 euros.
Na Bélgica, a gravidez pode ser interrompida até as 12 semanas e a mulher tem apenas de pagar uma taxa moderadora de 3,08 euros, já que os custos são pagos pelo serviço de saúde belga, desde que seja praticado em um hospital ou em um centro de planejamento familiar certificado para tal fim. A lei que liberalizou a IVG na Bélgica foi aprovada em 1990.
Nas consultas em centros oficiais, a mulher-grávida é vista por um médico, que a informa dos riscos e faz um exame ginecológico, seguindo-se um período de reflexão de seis dias. Se o aborto for pedido até as sete semanas, é possível optar por uma intervenção química, com o recurso à pílula abortiva, na presença do médico.
A legislação venezuelana sobre a IVG permite a realização do aborto apenas na hipótese da gravidez apresentar perigo de vida para a mulher. Nos EUA, o direito ao aborto durante as primeiras 12 semanas é um direito constitucional reconhecido há 34 anos. O Canadá, país onde a Interrupção Voluntária da Gravidez (IVG) foi descriminalizada em 1988, realiza a IVG livre e a financia pelo Estado. Há dados que apresentam uma diminuição das taxas de realização de aborto no país.
No entanto, as questões acerca do aborto não se resumem somente a tipificação em um conjunto de normas penais. No âmbito jurídico internacional, os tratados internacionais de Direitos Humanos, como a Declaração Universal dos Direitos Humanos (1945) e a Declaração Americana dos Direitos e Deveres do Homem (1948), dos quais a República Federativa do Brasil é signatária, tocam no cerne da dignidade da pessoa humana e de outros princípios supracitados.
Estes princípios foram em grande parte responsáveis pela positivação e efetivação dos direitos fundamentais no ordenamento jurídico brasileiro, valendo ressaltar a Emenda Constitucional nº45, que alterou os dispositivos dos artigos 5º, 36, 52, 92, 93, 95, 98, 99, 102, 103, 104, 105, 107, 109, 111, 112, 114, 115, 125, 126, 127, 128, 129, 134 e 168 da Constituição Federal, acrescentou os artigos 103-A, 103B, 111-A e 130-A, e deu outras providências, e o preâmbulo da Constituição Federal[5].
Em relação ao direito à vida, o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos (1966), aprovado pela XXI sessão da Assembléia Geral das Nações Unidas, menciona: "O direito à vida é inerente à pessoa humana. Este direito deverá ser protegido pela lei, ninguém poderá ser arbitrariamente privado de sua vida"[6]. Mais à frente, notar-se-á que com a redação desse instrumento o artigo 5º, caput da Carta Magna foi amplamente influenciado pelo Pacto.
Analisando, enfim, ordenamento jurídico brasileiro, pode-se elencar os seguintes princípios constitucionais que se relacionam com as implicações do aborto de feto anencéfalo: a dignidade da pessoa humana e o direito à vida (explícitos), o da lesividade e o da proporcionalidade (implícitos).
O princípio da dignidade da pessoa humana está previsto no art. 1º, III, da CF, sendo um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito. Dele decorre o respeito à integridade física e psíquica das pessoas, e também o princípio da liberdade, previsto ao longo dos incisos no art. 5º, da Constituição Federal. Sua concepção vem evoluindo desde a Grécia Antiga, e atualmente, através do reconhecimento mundial, a concepção advinda de Hannah Arendt foi positivada em muitas constituições, compreendendo-a em um conjunto de direitos inerentes ao homem que devem ser reconhecidos e respeitados por seus semelhantes e pelo Estado, ou seja, um fundamento para que o Estado se mantenha democrático, e não se transforme em totalitário, pois neste tipo de estado, a condição humana é subtraída. Assim, para evitar a formação deste tipo de estado e a “coisificação” do homem, cria-se o vínculo da dignidade da pessoa humana ao pleno exercício da liberdade e da palavra, a fim de que se possibilite o pleno desenvolvimento das potencialidades humanas.
Apesar de se ter uma concepção reconhecida mundialmente, difícil é a sua conceituação devido à magnitude da incerteza de seu conteúdo e sua extensão. Só pela análise dos termos “pessoa” e “humana” que a compõe já figuram a fluidez de sua significação. Seu conteúdo, segundo Ingo Wolfgang Sarlet, consiste em "um complexo de direitos e deveres fundamentais que assegurem a pessoa tanto contra todo e qualquer ato de cunho degradante e desumano, como venham a lhe garantir as condições existenciais mínimas para uma vida saudável, além de propiciar e promover sua participação ativa e co-responsável nos destinos da própria existência e da vida em comunhão com os demais seres humanos"[7]. Logo, não cabe definir um conceito de dignidade da pessoa humana, e sim o seu permanente desenvolvimento, isto é, que passe do nível de crença para o nível da positivação, e desta para o nível da efetivação.
A grande polêmica quanto a este princípio se encontra no momento no qual se questiona acerca do surgimento do titular do mesmo. Pressupõe-se que a racionalidade, a consciência de si mesmo, a capacidade de agir segundo fins determinados e atribuir valores são características definidoras do que é ser humano. Assim, compreende-se que a titularidade surge com o nascimento e desaparece com a morte, porque o feto e o cadáver não são capazes de racionalizar e de autoconscientizar ou autodeterminar. Porém, cabe aqui ressaltar, que ambos possuem uma dita dignidade relativa em homenagem ao que se pode ser e ao que se foi um dia, mas esta dignidade não pode se colocar acima da obrigação de proteção da dignidade da já pessoa humana pelo Estado.
O art. 5º, caput da Carta Magna Brasileira assegura a todos os brasileiros, natos ou naturalizados, e estrangeiros à inviolabilidade de sua vida. Doutrinariamente, o direito à vida é tido como inato. Assim, quem nasce com vida, tem direito a ela.[8] Este mesmo direito se finda com a morte de quem a possui, pois, como já foi dito, é um direito inerente a pessoa. A partir disso, Não se quer dizer aqui que o feto deva ser considerado como coisa, apenas que ele é uma potencialidade de vida humana, tendo o Estado grande interesse que ele venha a nascer e possuir vida humana, se tornando titular do direito à vida e da dignidade da pessoa humana.
O ponto crucial em relação a este direito é a definição do momento em que se inicia a vida. Há concepções lingüística, biológica, e jurídica. Compreende-se linguisticamente o termo vida como “o espaço de tempo que decorre entre o nascimento e a morte” (Dicionário Aurélio)
Nas ciências da saúde, há o entendimento de que a vida é uma característica de organismos que exibem todos ou a maioria das seguintes características: homeostasia (Capacidade de regulação do meio interno para manter um estado constante; por exemplo, sudorese para regulação da temperatura); organização (Ser composto de uma ou mais células, sendo estas as unidades básicas da vida); metabolismo próprio (Transformação de energia ao converter substancias e energia em componentes celulares (anabolismo), e transformação de matéria orgânica em substâncias inorgânicas e energia (catabolismo); crescimento (Manutenção de uma taxa de anabolismo maior que a de catabolismo, levando ao crescimento); hereditariedade (Características são herdadas pelos progenitores a partir de ácidos nucléicos); resposta a estímulos (Capacidade de responder a estímulos, o que normalmente se dá de modo motor, por exemplo movimentos para esquivas de estímulos aversivos); reprodução (A capacidade de produzir novos organismos em algum momento de seu ciclo vital); individualidade (O ser deve de algum modo ser distinguível de seu(s) progenitor(s).
A partir disso, definem-se diferentes momentos do desenvolvimento embrionário no qual o indivíduo pode ser qualificado como uma vida humana: fertilização (A fusão dos gametas para a formação de um zigoto); implantação (O início da gravidez, ocorrendo por volta de uma semana após a fertilização); segmentação (O momento onde não é mais possível a formação de gêmeos); neuromaturação (Quando o sistema nervoso central do feto está neurobiologicamente maduro); No momento em que estruturas corticais referentes a dor são amadurecidas, e o feto pode experienciar dor; percepção neonatal (O momento em que pode-se verificar cognição no feto); viabilidade fetal (Quando o parto pode ser terminado sem que o feto perca a vida); nascimento. Portanto, percebe-se que não há uma definição absoluta de vida, pois esta não é uma substância pura, e sim um processo. Já quanto ao intervalo definido como início da vida, as correntes mais consideradas no meio científico são a fertilização, a neuromaturação e a viabilidade fetal.
Já no âmbito jurídico, ressalta-se a importância da definição do que é vida e do momento em que ela se inicia, para que o instituto do Direito possa tutelá-la, garantindo os direitos de seu titular e gerando obrigações ao Estado perante o sujeito de direito.
O Código Civil, em seu art. 2º, apresenta a personalidade civil da pessoa como um direito que começa com o nascimento com vida e inerente à pessoa e à sua dignidade, ou seja, é irrenunciável e intransmissível. Ela abrange cinco direitos: vida/integridade física, honra, imagem, nome e intimidade. No entanto, a Lei resguarda, desde a concepção, os direitos do nascituro, isto é, antes do nascimento, o feto já possui seus interesses preservados, mesmo não possuindo personalidade jurídica propriamente dita, e sim humanidade. Com a análise dos direitos da personalidade, conclui-se que muitos conceitos ainda devem ser definidos a fim de que haja uma homogeneidade doutrinária em relação ao momento no qual a vida humana se inicia, e com isso, definir a partir de quando os direitos do nascituro devem ser protegidos, visto que a Lei 8.974/91 (Lei de Biossegurança) e as resoluções do CFM (Conselho Federal de Medicina) não definem com precisão o que é nascituro.
Quanto aos princípios implícitos, o princípio da lesividade orienta a aplicação do Direito Penal, e consiste no fato do Estado apenas ter interesse de aplicar o seu jus puniendi quando houver efetiva ofensa a um bem jurídico relevante para o âmbito penal.
O princípio da proporcionalidade tem por função limitar o poder soberano que venha a restringir os direitos fundamentais. É dividido em três sub-princípios: o da adequação, que obriga os meios enunciados pela norma a serem compatíveis com o fim pretendido pela mesma; o da necessidade, que exige que a restrição seja indispensável para que o direito em si seja preservado; e o da proporcionalidade em sentido estrito, que tem a ver com um sistema de valoração no qual um direito fundamental passa a ser considerado mais que outro, que acaba sendo restringido.
Há ainda outros muitos princípios que podem ser invocados para o debate que envolve o tema, como o princípio da igualdade (art. 5, I, e 226, §3º) e do planejamento familiar (art. 226, §7º), o que deixa a discussão ainda mais complexa e levou à interposição da ADPF 54-MC/DF, que será vista posteriormente.
Aborto
O delito de aborto
O aborto representa grave problema de saúde pública em países em desenvolvimento, inclusive no Brasil, com sua discussão que envolve conjunto de aspectos legais, morais, religiosos, sociais e culturais. Do ponto de vista jurídico, conforme explica Luiz Regis Prado[9] “o aborto consiste, portanto, na morte dada ao nascituro intra uterum ou pela provocação de sua expulsão”. Para que haja delito, é obviamente necessária a gravidez em curso. Torna-se também indispensável prova de que o ser em gestação se encontrava vivo quando ocorreu a intervenção abortiva e que sua morte foi decorrente desta interrupção.
O aborto é acolhido na legislação brasileira no artigo 128 do Código Penal:
“Art. 128. Não se pune aborto praticado por médico:
I. Se não há outro modo de salvar a vida da gestante
II. Se a gravidez resulta de estupro e o aborto é precedido de consentimento da gestante, ou, quando incapaz, de seu representante legal.”
O inciso I trata do aborto necessário. Neste caso há um conflito entre a vida da gestante e do feto e o aborto é realizado com o único propósito de salvar a vida da gestante. Entende-se que configura estado de necessidade, excludente da ilicitude da conduta, já que não há outro modo de salvar a vida da gestante. Para que seja realizado este aborto, o consentimento da mesma é dispensável, uma vez que este é entendido como incompatível com o estado de necessidade.
Já o inciso II trata do aborto sentimental, ético ou humanitário, praticado no caso de gravidez que resulta de estupro, “significa o reconhecimento claro do direito da mulher a uma maternidade consciente”.[10] Para tal não há necessidade de decisão judicial afirmando a ocorrência do estupro. Como ensina o jurista Roberto Delmanto, “a lei não exige autorização judicial para a prática do aborto sentimental” e “não é necessário que exista processo contra o autor do crime sexual, nem muito menos que haja sentença condenatória”.[11]
O ordenamento jurídico brasileiro é bem claro ao excluir a possibilidade do aborto eugênico (ou eugenésico, como preferem alguns). Ao serem analisadas as regras e os princípios do direito brasileiro, surge a seguinte pergunta: a prática do aborto eugênico deve ser permitida? A indicação eugênica não é acolhida pela legislação penal brasileira, contudo a jurisprudência moderna tem admitido a interrupção da gravidez neste caso.
Cabe, entretanto, entender o que é o aborto eugênico.
Aborto eugênico
Aborto eugênico, nas lições de Alberto Silva Franco em sua obra Código Penal e sua Interpretação Jurisprudencial, ocorre “quando há sério perigo para o filho, seja em virtude de predisposição hereditária, seja por doenças da mãe, durante a gravidez, seja ainda por efeitos de drogas por ela tomadas, durante esse período, tudo podendo acarretar para aqueles enfermidades psíquicas, corporais, deformidades etc”[12]. Dentre as moléstias que podem atingir o filho que está sendo gerado pela gestante temos a agenesia renal (ausência de rins), síndrome de Patau (graves problemas renais, gástricos e cerebrais que inviabilizam vida extra-uterina) e a anencefalia (acrania) que consiste na ausência da calota craniana com exposição de tecido encefálico disemórfico, justamente a situação que propomos analisar.
Mesmo com os atuais avanços da medicina moderna, a anencefalia trata-se, ainda, de patologia sem cura, logo, um feto portador desta doença não possui nenhuma expectativa de vida fora do útero materno.
Note-se que o aborto eugênico não é agasalhado pelo Código Penal vigente. A legislação penal caminha a passos lentos e o referido Código data de 1940, época em que não havia disponível a tecnologia para diagnosticar graves e irreversíveis anomalias fetais.
Fundamentos da possibilidade do aborto eugênico
Uma interpretação extensiva do art. 128, inciso I do Código Penal, demonstra a possibilidade de interrupção da gravidez no caso de anencefalia. Primeiramente há o risco de vida que corre a gestante ao carregar em seu ventre feto que possui esta determinada patologia. A anencefalia é mortal em 100% dos casos.
Desta forma, caso sobrevenha a morte do feto ainda no útero, sem que seja notada pela gestante, há o grande risco de ocorrer infecção generalizada (septicemia), levando a gestante a um possível falecimento, o que configura grave e concreto perigo para sua vida. Se a vida da mesma corre sérios riscos em razão dos motivos acima apresentados, poderá a gestante interromper a gravidez de acordo com as condições estabelecidas no art. 128, inciso I do Código Penal. A partir disto, ela estará protegida pela excludente da ilicitude. É o que se depreende através de uma interpretação extensiva e gramatical do dispositivo legal supracitado.
Outro argumento também utilizado é uma interpretação evolutiva ou progressiva da lei penal. Segundo esta, o magistrado deve estar atento às modificações sociais, jurídicas e científicas, de modo a adaptar a lei às necessidades e concepções do presente. Entende-se que o Direito não deve ser considerado uma “ciência pura”, pois cabe ao órgão julgador analisar os fatores históricos, políticos e sociológicos do caso concreto. Diz Damásio de Jesus:
“O Juiz não pode viver alheio às transformações sociais, científicas e jurídicas. A lei vive e se desenvolve em ambiente que muda e evolui e, uma vez que não queiramos reformá-la freqüentemente, é mister adaptar a norma, com sua própria vontade o permite, às novas necessidades da época”.[13]
Em 1940, ante o atraso da medicina, não havia a possibilidade da discussão do diagnóstico do feto anencéfalo. Com o avanço das pesquisas médicas, hoje podem ser atestadas as enfermidades, nos quais os laudos dão certeza da impossibilidade de vida do ser que está sendo gerado. Cabe ao magistrado acompanhar a evolução da ciência médica, levando em consideração que em 1940, quando da edição do Código Penal, não havia possibilidade de constatação de determinadas anomalias. Mesmo com as evidências em favor do direito de escolha da mulher, todas as tentativas de mudar a legislação (projetos de lei e até uma liminar) até hoje foram em vão. Atualmente, se uma mulher quiser interromper a gravidez de um feto anencefálico, ela precisa recorrer à justiça, e esta decisão pode ser favorável ou não, dependendo da interpretação do juiz.
Atualmente, segundo a doutrina moderna, em decorrência do Princípio da Lesividade(capacidade da conduta do agente ofender ao bem jurídico penalmente tutelado), a tipicidade penal deve ser vista sob dois aspectos: o formal e o conglobante.
A tipicidade formal é verificada quando a conduta do agente se amolda aos elementos descritos abstratamente no tipo penal; já a tipicidade conglobante, conforme lição de Rogério Greco[14], é verificada quando “a conduta praticada pelo agente é considerada antinormativa, isto é, contrária à norma penal, e não imposta ou fomentada por ela, bem como ofensiva a bens de relevo para o Direito Penal (tipicidade material)”. Esta tipicidade material é constatada quando a conduta do agente efetivamente atinge o bem jurídico penalmente tutelado.
A gestante que carrega em seu ventre um filho que, segundo entendimento científico, possui anencefalia e está em condição incompatível com a vida em 100% dos casos, condenado ao óbito intra-útero ou no período neonatal precoce, quando interrompe a gravidez, não estará praticando uma conduta tipicamente material capaz de ofender ao interesse protegido pela Lei Penal.
O óbito só não ocorre antes, visto que a criança ainda está ligada à mãe pelo cordão umbilical, embora possa se dar ainda no interior do útero materno.
Se a objetividade jurídica do delito aborto é a preservação da vida humana e na hipótese de anencefalia não se pode falar em vida humana, seja ainda no ventre materno (o feto é apenas uma atividade fisiológica celular), seja após a saída do mesmo do útero materno, não se tem como falar em tipicidade.
Assim, pode-se dizer que a interrupção da gravidez no caso de anencefalia é fato que enseja atipicidade material, vertente da atipicidade conglobante. Não se pode falar na continuação da vida do feto, não sendo a conduta de quem interrompe a gravidez capaz de ofender a objetividade jurídica do crime e, obviamente, não se tem como fazer alusão a uma infração penal, o que autoriza a suspensão da gestação.
Entendimento da Jurisprudência
Em 1989, foi concedido no Brasil o primeiro alvará judicial em Ariquemes, Rondônia, para interrupção legal de gravidez em uma gestante portadora de um feto anencéfalo. O que se procurava na época era aliar, de algum modo, o trabalho em medicina fetal ao devido respeito que as leis merecem. Havia uma perspectiva de evitar colocar-se o trabalho em medicina fetal a termo com a clandestinidade.
Alguns tribunais vêm adotando entendimento favorável ao aborto anencéfalo. É o caso do processo número 1503605-19.2010.8.13.0024 do Tribunal de Justiça de Minas Gerais, no qual os requerentes recorreram à Justiça, pois se recusaram à solução clandestina do abortamento nas diversas clínicas e consultórios clandestinos que funcionam na cidade, pretendendo agir de forma correta. Requereram a expedição de alvará judicial para antecipação de parto de feto anencéfalo. O juiz em primeiro grau indeferiu o pedido, fundamentando que não havia perigo iminente de morte da mãe. O acórdão publicado em 29 de junho de 2010 deu provimento ao recurso, confirmando a antecipação da tutela recursal, para autorizar a interrupção da gravidez.
No voto do desembargador Alberto Henrique, ele afasta a tipicidade do ato, visto que a condição do feto anencéfalo iguala-se à daquele indivíduo que teve sua morte cerebral constatada, mas só continua vivo uma vez que se encontra ligado a aparelhos. A partir disto, há uma analogia interessante: aquele que tem decretada a morte cerebral encontra-se em uma UTI que garante a sua sobrevivência. Já o feto anencéfalo está unicamente ligado ao útero materno, está aparentemente vivo. Na verdade ele está ligado à mãe e por isso se desenvolve. Esta é a sua UTI. Uma vez que sejam desligados os aparelhos da UTI, não há mais vida. A antecipação do parto seria medida que se impõe neste caso frente a uma gestação fadada ao fracasso.
Por mais que nos autos não estivesse presente laudo médico que atestasse risco de vida à gestante, entendeu o desembargador que o aspecto psicológico da mesma deve ser levado em consideração, pois todas as suas expectativas já foram frustradas e a gravidez seria para ela, um sacrifício. Conforme já dito antes pelo Ministro Joaquim Barbosa (STF, HC 84.025-6), "não se pode impor à gestante o insuportável fardo de, ao longo de meses, prosseguir na gravidez fadada ao insucesso".
Do mesmo recurso supracitado, merece ser transcrita a seguinte passagem, proferida pelo desembargador Luiz Carlos Gomes da Mata:
“Evidencio em tal situação, que antevejo atipicidade na prática da antecipação terapêutica do parto, por ausência de lesividade. Como a morte do feto logo após o parto já está prognosticada, não dispondo a Medicina de meios para salvá-lo, toda preocupação deve ser voltada ao casal, que de forma corajosa, destemida e exemplar bate às portas do Poder Judiciário em busca de uma solução jurídica, para pacificar a questão.”
Nota-se que é entendimento da jurisprudência dar provimento ao apelo das inúmeras gestantes na situação da requerente que antes foi mencionada. Apesar disto, ainda existem casos em que o Poder Judiciário nega este direito. É a opinião defendida, inclusive, por doutrinadores como José Henrique Pierangeli[15], que defende que inexiste vida humana a ser protegida pela norma penal e “as intervenções efetuadas no sentido de fazer processo de gestação, não visam à morte do feto, mas sim pôr fim ao sofrimento da mãe gestante, evitando o agravamento de sua saúde psíquica”, destaca ainda que “na interrupção do processo gestacional em caso de anencefalia, não há que se falar em aborto, tratando-se de caso de pura atipia”.
Isto leva-nos a pensar que já seria hora de uma inserção no Código Penal de norma que autorizasse o aborto eugênico, desde que a situação seja devidamente comprovada através de exames clínicos e laudos médicos. Neste prisma, temos a Arguição de Descumprimento a Preceito Fundamental 54.
ADPF 54
Impetrada no STF em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde (CNTS), a ADPF nº 54 visa corrigir omissão da lei, de modo a dar à mulher o direito de escolher entre interromper ou não a gravidez quando houver o diagnóstico da anencefalia.
Requer a declaração de inconstitucionalidade de qualquer interpretação que atribua aos tipos previstos no Código Penal um impedimento à antecipação terapêutica do parto nos casos de gravidez de feto anencéfalo. Isto de modo a reconhecer o direito subjetivo da gestante de se submeter a tal procedimento sem que haja pedido de prévia autorização do Estado. Argumenta que há a possibilidade de os profissionais da saúde vir a sofrer os dissabores decorrentes do enquadramento no Código Penal. É articulados na ADPF, o envolvimento de preceitos fundamentais concernentes aos princípios da dignidade da pessoa humana, da legalidade, da liberdade e autonomia da vontade bem como os relacionados com a saúde.
Neste caso, o que é pedido ao STF é a declaração de que esta conduta que antecipa o parto quando a sobrevivência do feto não é viável, desde que haja comprovação através de laudos médicos emitidos por profissionais de saúde habilitados, não está proibida pelo ordenamento jurídico. Em síntese, é sustentada a atipicidade penal da conduta, uma vez que inexiste lesão a qualquer bem jurídico.
Houve audiências públicas em setembro de 2008, na qual se inscreveram instituições e especialistas: Conferência Nacional dos Bispos do Brasil – CNBB; Igreja Universal; Associação Nacional Pró-Vida e Pró-Família; Católicas pelo Direito de Decidir; Associação Médico-Espírita do Brasil – AME; CONSELHO FEDERAL DE DIREITOS DA MULHER, dentre inúmeros outros.
Foram quatro dias de audiência pública onde os convidados proferiram seus discursos em defesa dos interesses que defendem. Os representantes das classes religiosas mostraram opiniões contrárias: a Igreja Católica (representada, sobretudo pela CNBB), mantêm firme a defesa da proposta de manutenção da criminalização de tal prática; já a classe de evangélicos, (representados pela Igreja Universal do Reino de Deus) deixou claro entender que o desejo da mulher deve ser respeitado em razão do livre arbítrio que seria concedido pela graça divina. No entendo, a classe médica, opinou quase que de forma unânime pela descriminalização, e afirmaram como causa de justificação que há a comprovação de ser inviável a vida sem cérebro.
Deve ser considerado ainda, assunto de extrema importância: a permissão legal para a interrupção de gravidez em anomalias fetais significa poder utilizar o seguro de saúde, ter atendimento médico e psicológico adequados e poder utilizar a rede pública ou privada de hospitais de acordo com a condição de cada paciente. Ou seja, enseja um maior estudo e aprimoramento dos fatores relacionados à saúde pública.
Aborto de anencéfalos como questão de saúde pública
Apesar de o aborto ser considerado crime no Brasil, sua prática é comum na sociedade, sendo realizado por gestantes com base em justificativas diversas: pouca idade, atual ou futura vida profissional, falta de apoio do parceiro ou da família, ausência de condição financeira favorável, entre outras. A retirada do feto é feita de muitas maneiras, desde ingestão de substâncias abortivas, a procedimentos cirúrgicos precários ou em clínicas clandestinas de luxo. Devido a esses fatos, o aborto, além de ser considerado crime, também tido como matéria de saúde pública.
Sobre a anencefalia, pode-se chegar à conclusão de que “Saúde Pública”, neste caso, não se restringe à uma concepção de saúde física do feto ou da mãe; porém, também de saúde mental de ambos. O direito à saúde é igualmente previsto no atual texto constitucional brasileiro, presente em seu artigo 6º, caput. Com a finalidade de analisar de forma mais profunda o caso, desconsiderar – se – ão, por ora, argumentos legais, éticos e religiosos, a fim de deixar em evidência, a saúde do feto, da mãe e de sua família.
A interrupção da gestação de feto anencéfalo por meio de aborto é considerada crime no Brasil. Não está prevista como uma das hipóteses de permissão do aborto presentes nos incisos I e II do artigo 128 do Código Penal. Portanto, a gestante que desejar abortar o filho, após descobrir que se trata de bebê anencéfalo, praticará o crime previsto no artigo 124 do Código Penal. Assim, essa interrupção será realizada tendo como base o mesmo procedimento do aborto de feto que não é dotado desta má formação. A diferença entre um procedimento e outro, dependerá da condição financeira da gestante e do apoio que esta teve de sua família para chegar a essa decisão.
Vê-se, assim, que se a gestante de feto anencéfalo não tiver o dinheiro necessário para realizar o procedimento em uma clínica particular de luxo, o fará de maneira precária. Poderá ingerir substâncias abortivas como medicamentos clandestinos, venenos ou chás com ervas que resultam no aborto e, após isso, fazer a curetagem para retirar o feto morto; ou a gestante insere ferramentas de origens perfurantes ou cortantes em si, a fim de causar a morte do feto ainda dentro do útero, igualmente sendo necessária, após isso, a realização da curetagem.
Como descrito acima, a prática do aborto dessa forma precária pode causar inúmeras conseqüências malignas à saúde física da gestante que, em seu momento de desespero, não conseguiu achar outra saída viável. A mulher pode perder a capacidade de gerar outro filho (incapacidade do útero), infertilidade, infecções graves (devido à maneira que foi realizado o aborto), futura gravidez de risco para essa mãe, entre outras. Além da integridade física da gestante, há também os danos físicos causados ao feto, que sofre com dores intensas, já que acaba por ter uma morte extremamente violenta, seja por esquartejamento ou por envenenamento.
Além das conseqüências físicas, também devem ser consideradas as conseqüências psicológicas, que ficam presentes por tempo indeterminado na gestante, bem como, em sua família. A priori, é necessário analisar o fato de que a gestante realizou um processo cognitivo muitas vezes desgastante para chegar à uma conclusão; levou em conta seus próprios princípios morais a fim de chegar à melhor decisão.
Devem ser analisadas, nesse caso, três hipóteses: 1. A mulher decidiu prosseguir com a gestação – apesar de seu sofrimento – tendo como base seus princípios morais, e não porque o aborto de anencéfalos é considerado crime; 2. Decidiu prosseguir com a gestação – apesar de seu sofrimento – já que a conduta de aborto, nesse caso, é tipificada como crime no Código Penal. 3. Decidiu interromper a gestação a fim de evitar sofrimento próprio e de seus familiares durante e após a mesma, já que o falecimento do bebê é tido como certo em curto período de tempo após seu nascimento – apesar de a conduta ser criminosa no Brasil.
Todas as hipóteses descritas acima, fatalmente acarretarão alguma espécie de sofrimento para a gestante e para sua família. É senso comum que nenhuma mulher que deseja ser mãe lida bem com o fato de seu filho não possuir grande expectativa de vida, já que, porventura, é portador de uma má formação do encéfalo. Há notícias de queda da auto-estima dessa mulher, de frustração devido ao seu instinto materno, de depressão, insônia e outros distúrbios que concernem ao seu sistema nervoso; há também conseqüências psicológicas nas pessoas que a cercam, sua família, devido à grande frustração da mulher, compartilhada pelos mesmos.
Assim, o que deve ser discutido com base nos princípios legais que norteiam nosso ordenamento jurídico – de um lado, o direito à vida e, em contrapartida, o princípio da dignidade da pessoa humana – é qual medida que causará o menor dano à sociedade em cada caso concreto, bem como, à gestante, à sua família e ao feto em questão. Dessa forma, o ordenamento jurídico brasileiro conquistará, sem dúvida, a legitimidade por parte de seus subordinados no que tange à essa questão.
Anencefalia e Ética Médica
A ética é o conjunto de valores que dá as diretrizes de uma vida social harmônica, visando sempre o bem comum. Já a bioética é o ramo da ética direcionada às questões da vida humana, que responde às situações trazidas pelas inovações tecnológicas, principalmente no campo da saúde.
O conflito ético que envolve a questão da anencefalia está baseado no embate entre o respeito à vida do feto anencefálico e o respeito aos direitos fundamentais da mulher, tais como a dignidade, a saúde e a liberdade.
Em se tratando dos direitos da mulher, é comprovada a maior incidência de riscos à saúde da gestante no caso de uma gravidez de feto anencéfalo, e, além de danos à sua integridade física, especialistas afirmam que a possibilidade de danos à saúde mental também é grande, de acordo com trecho extraído de estudo da psicóloga Gláucia Rosana Guerra Benute, da Divisão de Psicologia e da Clínica Obstétrica do Hospital das Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo:
“O convívio social pode tornar-se uma realidade dolorosa para a gestante, pois a sociedade não está preparada para acolher a mulher nesse período tão delicado de sua vida. Compartilhar os problemas, as dificuldades vividas e o sofrimento são posturas difíceis para a gestante e, em geral, não aceitas socialmente. A mulher pode sentir-se em dúvida quanto a expor os reais problemas ou mantê-los em segredo. Muitas vezes, ela opta por isolar-se e fugir do contato social. Tais experiências, quando intensas, podem favorecer o aparecimento da depressão.”
Diante deste quadro, a recomendação médica é de que seja interrompida a gravidez, através do procedimento da antecipação terapêutica do parto. Porém, os profissionais da saúde encontram uma barreira no exercício de sua profissão, tendo em vista que eles não podem agir livremente no que concerne ao procedimento, pois, de acordo com a lei brasileira, isso só é possível se a gestante obtiver uma autorização judicial. Sendo assim, os médicos e enfermeiros que estejam dando assistência a essa gestante podem ter seus atos considerados criminosos se, por força das circunstâncias, vierem a agir da forma que pensam ser mais benéfica para sua paciente.
Com relação à atuação médica, a bioética estabelece quatro princípios que devem ser seguidos. São elas a não-maleficência, a justiça, a beneficência e a autonomia:
A não-maleficência estabelece que a ação do médico deve sempre propiciar o menor prejuízo ao paciente, não prejudicando e nem provocando danos ou agravos à sua saúde; O princípio da justiça determina a imparcialidade como norteadora dos atos médicos, impedindo que aspectos sócio-culturais interfiram na relação médico-paciente; A beneficência estabelece a busca do bem maior na prática médica, determinando que suas ações incorporem a benevolência, maximizando os efeitos benéficos; E, por último, a autonomia que determina que as pessoas têm o direito de decidir com relação ao seu próprio corpo e vida, o que significa que todas as decisões médicas necessitam do aval do paciente; o médico torna-se, então, obrigado a dar todas as informações acerca de diagnósticos e possíveis tratamentos ao paciente.
No ano de 1994, o Comitê para assuntos éticos da Reprodução Humana e Saúde da Mulher da FIGO (Federação Internacional de Ginecologia e Obstetrícia) estabeleceu um marco de referência ética para os tocoginecologistas, cujas resoluções foram:
1. As mulheres tendem a ser vulneráveis por circunstâncias sociais, culturais e econômicas. As relações médico- paciente no passado, e os cuidados com as mesmas foram com frequência dominados pelo paternalismo de seus conselheiros;
2. O princípio da autonomia enfatiza o importante papel que a mulher deve adotar na tomada de decisões com respeito aos cuidados de sua saúde. Os médicos deverão observar a vulnerabilidade feminina, solicitando expressamente sua escolha e respeitando suas opiniões;
3. Quando seja solicitada decisão relativa a cuidados médicos , as mulheres deverão receber informação completa sobre os procedimentos alternativos disponíveis, incluindo os riscos e benefícios;
4. Quando um médico não seja capaz ou não deseje praticar um ato por razões extra-médicas ou contrário aos ditames de sua consciência, deverá fazer todo o possível para oferecer uma adequada referência;
5. Devido a natureza intimamente pessoal dos cuidados obstétricos e ginecológicos, surge a especial necessidade de proteger a confidenciabilidade da paciente;
6. Além de oferecer os serviços médicos, os profissionais têm a responsabilidade de considerar o bem estar da mulher e sua satisfação psicológica, juntamente com seus cuidados ginecológicos e obstétricos;
7. Ao se oferecer os cuidados de saúde à mulher, o princípio da justiça requer que todas sejam tratadas com igual consideração independentemente de sua situação sócio-econômica.
Tais determinações enfatizam a importância de considerar a mulher como agente de sua vontade, independentemente da situação de vulnerabilidade em que normalmente se encontra, estando o médico na posição de solicitar e respeitar sua escolha. Há também a preocupação com seu bem estar durante o tratamento, cabendo ao médico proporcionar isso a todo tempo, bem como a garantia de que as informações trocadas entre eles serão confidenciais.
Outro aspecto interessante é a orientação para os casos em que o médico não se sente apto a realizar determinado ato por este ser contrário à sua ideologia ou qualquer tipo de crença que não tenha sua razão em fato médico. É estabelecido que caso isso ocorra é papel do médico dar referência de outro profissional. Tal orientação ressalta o fato de que, em caso de conflito ideológico médico-paciente, os interesses preponderantes são os da mulher.
A posição da Igreja Católica em relação ao aborto
Na sociedade contemporânea, relativamente nas questões ligadas à sexualidade e à ciência, a igreja católica revela-se conservadora. No Brasil, o órgão responsável pela manutenção dessa posição, tendo como alicerce os princípios e dogmas cristãos, é a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB). Trata-se de uma organização permanente que reúne os Bispos católicos do Brasil que, de acordo com o disposto no código de Direito Canônico, ´´ exercem conjuntamente certas funções pastorais em favor dos fiéis do seu território, a fim de promover o maior bem que a Igreja proporciona aos homens, principalmente em formas e modalidades de apostolado devidamente adaptadas às circunstâncias de tempo e lugar, de acordo com o direito"1 (Código de Direito Canônico. 447). Sob essa óptica de, defensora e promotora do bem estar do ser humano a CNBB, posiciona-se contrariamente à legalização da interrupção da gravidez em casos de anencefalia, tomando por base o conceito teológico de proteção ao embrião desde o momento da concepção.
Entende-se que, para a igreja, a fecundação do óvulo pelo espermatozóide inicia uma nova vida que, num processo contínuo e coordenado desenvolve uma nova individualidade humana, um novo ser humano. Nessa perspectiva, a igreja tem como entendimento que não há um momento em que se possa estabelecer o início da pessoa humana; ou já se é desde o início ou nunca será. Não existe um “mais pessoa” ou um “menos pessoa”, nem durante a gravidez nem durante a vida toda. Portanto, cada embrião humano deve ser respeitado como se respeitam todas as pessoas. Essa posição veio a ser reforçada com novos argumentos, logo após a proposição da ADPF 54, citada anteriormente.
A respeito desta argüição, a CNBB voltou a reafirmar a sua posição, com base no argumento do pleno respeito à dignidade e à vida do ser humano, não importando o estágio de seu desenvolvimento ou a condição em que ele se encontra. Na acepção do organismo, o princípio fundamenta todos os demais direitos da pessoa, logo, configura-se como a base e a condição para a convivência social, digna, justa e solitária.
A CNBB entende que a ADPF 54 nada mais é que um apelo à cultura da morte, configurando-se num menosprezo pela vida humana (CNBB, Pronunciamentos 2004-2006, pag 65). Entende que, na condição de representante dos valores cristãos, que fazem parte da formação cultural da sociedade e sendo o Brasil um país laico que respeita esses valores, a decisão geraria uma controvérsia jurídica à luz da doutrina cristã radicada no amor, na misericórdia e na preservação da vida.
A posição contrária da CNBB em relação ao aborto anencéfalo tem cunho em um único preceito: o direito de nascer. A entidade entende que o ser humano, independentemente de sua forma ou estágio, é pessoa humana e, no estágio em que estiver, não pode ser “coisificada” ou desqualificada. Entende-se que, independente da situação encontrada, todo ser humano (inclusive o feto anencéfalo), merece especial atenção e é dotado de uma essencial dignidade.
Contudo, a entidade não se omite e m relação ao sofrimento da mãe. Conforme nota divulgada pela entidade, cujo pronunciador foi Dom Dimas Lara Barbosa, “esse sofrimento da gestante e da família sensibiliza todos, pois na acepção da entidade ninguém é indiferente a dor e a angústia”, porém entendem que “esse sofrimento não justifica nem autoriza o sacrifício da vida que se carrega no ventre, pois não será a antecipação da morte que livrará a mãe ou o feto de seus sofrimentos.”[16]
Em suma, segundo o entendimento da CNBB, a coisificação do feto anencéfalo como algo sub-humano, ou que lhe atribua qualificações similares, faz lembrar o regime nazi-fascista ou daqueles que desprezam a pessoa humana. Assim sendo, a CNBB, entende que "nenhuma legislação jamais poderá tornar lícito um ato que é intrinsecamente ilícito" e que, diante da ética "que proíbe a eliminação de um ser humano inocente", não se pode aceitar exceções. "Os fetos anencefálicos não são descartáveis".[17]
Considerações Finais
As patologias diante das quais seria permitida a interrupção da gravidez não devem ser catalogadas quando inseridas no ordenamento jurídico. Torna-se evidente que uma listagem dessa natureza é inviável.
É preciso que o legislador tenha em mente que a vida é dinâmica e que, igualmente aos usos e costumes, a ciência e a tecnologia estão em constante evolução. O Direito não pode permanecer alheio ao desenvolvimento característico do pensamento social. Há uma evolução histórica do pensamento, da cultura, da moral e da ética na sociedade.
A sociedade moderna é caracterizada por este grande fluxo de modificações e cabe ao Direito positivo evoluir de acordo com as necessidades sociais. “A lei não deve ser investigada somente em relação à época em que nasceu o preceito, mas sim tendo em conta o momento de sua aplicação”.[18]
Por conseguinte, cabe então ao direito determinar certos conceitos, como o de nascituro, visto que as leis mais recentes (Lei de Biossegurança e as resoluções do CFM) acerca do tema não suprem esta demanda. Há a necessidade de sanar as dúvidas que pairam quando o assunto tratado é aborto e anomalias fetais. Esta abertura dada pela subjetividade da Lei acabar por atrair concepções morais, como a proferida pela CNBB, o que não cabe em um Estado Democrático de Direito desvinculado de uma religião em específico, e que abarca uma diversidade de opiniões oriundas de diferentes seguimentos sociais.
Ter filhos não é, em momento algum, imposição do Estado ou da Igreja. Trata-se de questão de afeto, cumplicidade e responsabilidade de homens e mulheres. Não se trata de uma questão que deve ser imposta a quem quer que seja. Deve-se entender a situação de determinados casais que podem, no momento de maior dor, se beneficiar com a possibilidade de interromperem uma gravidez com uma determinada patologia grave. A sociedade atual enfrenta um problema que só pode ser resolvido com a utilização do bom senso.
Informações Sobre o Autor
Bruno Alexandre Andrade Brito Rocha
Graduado em Ciências Jurídicas e Sociais pela Faculdade Nacional de Direito da UFRJ. Pós Graduando lato sensu em Direito Civil pela UCAM-AVM