Resumo: O presente artigo analisa de forma breve o instituto da prisão em flagrante e se haveria um fundamento para se manter presa uma pessoa por ter supostamente praticado um delito. A mera homologação do flagrante coaduna com os princípios de nossa Constituição?! Este artigo foi orientado pelo Dr. Stelio Machado.
Sumário: i) Introdução. Ii) Da missão da prisão em flagrante. Iii) Da prisão em flagrante como medida pré-cautelar. Iv) Conclusão.
I) INTRODUÇÃO
Aqueles que atuam na área criminal se deparam todos os dias com uma situação que atenta contra os princípios da nossa Constituição, qual seja, a mera homologação do flagrante a fim de manter o acusado preso, sem qualquer fundamentação cautelar.
Deste modo, é imperioso que o aplicador da lei conheça os significados válidos, efetivamente compatíveis com as normas constitucionais e com os direitos fundamentais por ela estabelecidos.
II) DA MISSÃO DA PRISÃO EM FLAGRANTE
É fato notório que não existe qualquer prisão cautelar obrigatória em nosso ordenamento pátrio, pois isto atentaria contra vários princípios que resguardam aqueles acusados da prática de crimes. A privação da liberdade deve ser sempre a exceção.
Portanto, há de se buscar o real sentido da prisão em flagrante, isto é, qual é sua função constitucional.
Nesta linha, Pacceli[1] explica a que se destina tal prisão: “se a prova testemunhal pode contribuir para construção da verdade judicial, não dúvida de que o momento em que a representação do sujeito ( testemunha) em relação ao objeto ( fato da realidade) pode apresentar maior coincidência é exatamente aquela do flagrante delito (…) A prisão em flagrante, portanto, cumpre importantíssima missão, cuidando da diminuição dos efeitos da ação criminosa, quando não do seu completo afastamento (dos efeitos), bem como da coleta imediata da prova, para o cabal esclarecimento dos fatos.”
Com efeito, denota-se que tal modalidade de prisão tem duas funções primordiais, quais sejam: a de interceptar o fato criminoso, impedindo sua consumação ou mesmo o seu exaurimento; e, também, de possibilitar a colheita imediata das provas.
Imprescindível, ainda, ser feita uma leitura atenta do que determina o art. 310 e seu parágrafo único do CPP, ou seja, a prisão somente será mantida quando presente algum dos requisitos do art. 312 do CPP. Portanto, deve haver uma decisão fundamentada acerca do periculum libertatis do acusado.
Portanto, novamente, nas lições de Pacelli[2]: “preso em flagrante,e cumpridas as funções inerentes a essa modalidade de prisão, a regra é o retorno do preso à sua liberdade. A restituição da liberdade é inegavelmente um direito dele, direito de quem não pode ser considerado culpado, senão após o trânsito em julgado de sentença condenatória, como assegurado na Constituição (art. 5°, LVII).”
III) DA PRISÃO EM FLAGRANTE COMO MEDIDA PRÉ-CAUTELAR
Ao analisar o instituto é primordial conhecer a posição da doutrina que compreende o modelo garantista, no âmbito penal e processual penal, que a Constituição prevê. Deste modo, há de se conceber a prisão em flagrante com uma medida pré-cautelar da prisão preventiva.
Neste sentido, Aury[3] se apoiando da doutrina de Banacloche Palao afirma: “ o flagrante- ou la detencion imputativa– não é uma medida cautelar pessoal, mas sim pré-cautelar, no sentido de que não se dirige a garantir o resultado final do processo, mas apenas destina-se a colocar o detido à disposição do juiz para que adote ou não uma verdadeira medida cautelar.”
Continua o eminente autor[4], agora fazendo referência a Cordero: “ Ainda que utilize uma denominação diferente, na essência, a posição de CORDERO é igual a nossa. Para o autor, a prisão em flagrante é uma ‘subcautela’, na medida em que serve de prelúdio ( prelúdio subcautelar) para eventuais medidas coativas pessoais, garantindo sua execução. (…) A prisão em flagrante é uma medida pré-cautelar, de natureza pessoal, cuja precariedade vem marcada pela possibilidade de ser adotada por particulares ou autoridade policial, e que somente está justificada pela brevidade de sua duração e o imperioso dever de análise judicial em até 24h, onde cumprirá ao juiz analisar sua legalidade e decidir sobre a manutenção da prisão ( agora como preventiva) ou não.”
Não deve ser ignorada, também, a legislação estrangeira a qual cuida de como a justiça deve agir quando ocorre uma prisão em flagrante. “Na Espanha, o detido em flagrante deverá ser apresentado ao juiz no prazo máximo de 24h (art. 496 da LEcrim), momento em que será convertida em prision provisional ou será concedida a liberdade provisória. A lei processual alemã- StPO § 128- determina que o detido deverá ser conduzido ao juiz do Amtsgericht em cuja jurisdição tenha ocorrido a detenção, de imediato ou quando muito no dia seguinte a detenção. Já o Códice de Procedura Penal italiano, art. 386.3, determina que a polícia deverá colocar o detido à disposição do Ministério Público o mais rápido possível ou no máximo em 24h, entregando junto o correspondente atestado policial. Por fim, em Portugal, o art. 254, ‘a’, do CPP determina que no prazo máximo de 48h deverá ser efetivada a apresentação ao juiz, que decidirá sobre a prisão cautelar aplicável, após interrogar o detido dar-lhe oportunidade de defesa (art.28.1 da Constituição).”[5]
Importante, também, reconhecer que já há julgados que conhecem da impossibilidade de manutenção da prisão tão só pelo flagrante como o HC n° 70016357089, 7ª Câmara Criminal do TJRS, Relator Dês. Nereu Giacomolli:
HABEAS CORPUS. POSSE E DISPARO DE ARMA DE FOGO. FLAGRANTE. MEDIDA PRÉ-CAUTELAR. AUSÊNCIA DE FUNDAMENTAÇÃO.
1. O paciente foi preso em flagrante por posse de arma de fogo e por ter efetuado disparo em via pública. O auto de prisão em flagrante foi homologado, não havendo notícia de decreto de prisão preventiva.
2.O flagrante justifica-se para impedir a continuidade da prática criminosa. Contudo, não basta por si só. Trata-se de uma medida pré-cautelar devido a sua precariedade ( único caso previsto constitucionalmente em que a prisão pode ser realizada por particular ou autoridade policial sem mandado judicial), devendo ser submetida ao crivo do julgador que a homologará ou não. Não está dirigida a garantir o resultado final do processo ou a presença do sujeito passivo. Destarte, é preciso que o magistrado, após requerimento formulado pela acusação, nos termos do art. 310, parágrafo único, do Código de Processo Penal, não sendo possível a conversão automática do flagrante em prisão preventiva.
3. Além disso, o auto de prisão em flagrante não foi devidamente fundamentado, estando em desacordo com art. 93, in. IX, da Constituição Federal.
4. Delito praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa. Paciente com condições pessoais favoráveis à manutenção da liberdade concedida liminarmente.
LIMINAR CONFIRMADA. ORDEM CONCEDIDA.
IV) CONCLUSÃO
Faz-se necessário acabar com a cultura da homologação da prisão em flagrante e continuidade da prisão. Um Estado que se pretende democrático de direito, que propugna pelos princípios da dignidade da pessoa humana, do devido processo legal, da presunção de inocência, da fundamentação das decisões judiciais, dentre tanto outros não pode ser conivente com meras homologações!
Cumpridas as funções da prisão em flagrante, deixam de persistir os fundamentos para a prisão, ficando sua manutenção dependente da existência dos pressupostos para a decretação da prisão preventiva.
Pode-se comparar a simples homologação com “a lógica do maquinista que não sabe como funciona o trem e se restringe a apertar o botão, não se preocupando em entender como nada mais funciona, isto porque enquanto o botão estiver funcionando, tudo bem”.[6]
Informações Sobre o Autor
Iuri Victor Romero Machado
Advogado. Pos-graduando em ciências penais e práticas de advocacia criminal pelo NPSPP da Universidade Tuiuti do Paraná