Nos últimos dias, muito se falou sobre revogação deferida em caráter liminar pelo STF, do artigo 29 da Medida Provisória 927, o qual imputava ao empregado o ônus de comprovação de acometimento de COVID-19 no ambiente laboral, para fins de caracterização de acidente do trabalho e suas conhecidas consequências.
Diante da revogação, impôs-se o retorno das partes ao status quo ante, na medida em que a legislação aplicável à matéria voltou a vigorar normalmente, em especial a Lei 8.213/1991 (Lei de Benefícios) e o Decreto 3048/99 (Regimento da Previdência Social), os quais, dentre outras considerações, admitem prova em contrário e limitam a caracterização da doença endêmica como ocupacional, inexistindo enquadramento automático de doença do trabalho atrelada à COVID-19, como erroneamente veiculado.
Por definição, acidente do trabalho é aquele que ocorre pelo exercício do labor, resultando em dano para o trabalhador. Note-se que a palavra acidente faz referência a causalidade ou imprevisto, podendo ser atribuída também a uma doença, sendo necessário o estabelecimento de relação entre o dano (incapacidade) e o agente (empregador) que o provocou, compondo-se, assim, o nexo técnico epidemiológico entre o trabalho e o agravo, aqui tratado como NTEP.
Neste contexto, emerge a importância do debate acerca do critério médico adotado no ato da perícia administrativa realizada pelo INSS, uma vez que a conclusão de NTEP, no campo previdenciário, compete ao médico perito por determinação do Regulamento da Previdência Social, e independe de emissão de Comunicado de Acidente do Trabalho (CAT) pelo empregador
Em condições normais, a realização de perícias presenciais administrativas, para fins de caraterização do NTEP, deve ocorrer em estrita observância ao Manual de Acidente do Trabalho elaborado pela Diretoria de Saúde do Trabalhador do INSS, que determina a consideração de fatores que vão de depoimento e experiência dos trabalhadores à vistoria no local de trabalho.
Decerto que a subjetividade da comprovação do acometimento de doença de trato respiratório no ambiente laboral é um obstáculo relevante do ponto de vista operacional, e foi agravada pela suspensão das realizações de perícias médicas presenciais, a teor da Portaria Conjunta SEPRT/INSS n° 8.024, de 19 de março de 2020.
Com a publicação da Lei 13.982/2020, de 2 de abril de 2020, e a possibilidade de adiantamento do auxílio-doença regulada pela Portaria Conjunta SEPRT/INSS n.º 9.381/2020, de 6 de abril de 2020, enquanto não se viabiliza a realização de perícia médica presencial, a análise do direito à antecipação do benefício por incapacidade é realizada através de documentação médica anexada pelo próprio segurado ao portal “MEUINSS”, não havendo comunicação com o profissional da saúde.
Recepcionada a documentação pela Autarquia e verificado o acometimento de COVID-19, dificilmente haverá condições de avaliar, com a minúcia que o caso requer, o nexo existente entre a atividade do segurado e o seu agravo que, num primeiro momento, poderia ser condicionada, tão somente, à emissão de CAT.
Ademais, o ato formal da análise da documentação médica apresentada, nos termos da Portaria supracitada, não constitui perícia médica e, sequer, a incapacidade tem seu mérito apreciado, logo não é capaz de concluir-se pela caracterização, ou não, do nexo causal entre a patologia apresentada e a atividade desenvolvida. Não constitui-se, também, auxílio-doença o adiantamento facultado, mas uma antecipação em pecúnia para posterior comprovação de incapacidade mediante realização de perícia.
Ao que parece, o não conceito do ato como perícia médica teve origem no Parecer Conjunto n.º 3/2020, de 23/04/2020, do Conselho Federal de Medicina, em conduta lamentosa, ignorando o estado de defesa vivenciado, que vedou o profissional médico de “assinar laudos periciais, auditoriais ou de verificação médico-legal caso não tenha realizado pessoalmente o exame”.
O referido Parecer sucedeu a publicação da Lei de Telemedicina 13.989/2020 (16/4/2020), que não dispôs especificamente da teleperícia ou perícia indireta, sendo mais tarde autorizado pelo CNJ, através da Resolução 317/2020, em ações judiciais em que se discutem benefícios previdenciários por incapacidade ou assistenciais.
Não bastassem os ineficientes e inadequados serviços prestados pela Autarquia Previdenciária – que antecedem o estado de calamidade – agora , diferentemente do CNJ, se curva ao CFM que afronta a liberdade profissional e restringe a atuação médica em momento de emergência de saúde pública.
O desserviço corporativista e despedido de bom senso atinge sobremaneira os direitos constitucionais prestacionais precedidos de perícia médica, independentemente da patologia que acometeu o segurado, uma vez que inviabilizam não só a caracterização do acidente do trabalho, a qual se constitui ato complexo e torna compreensível sua inviabilidade temporária – mas também distanciam o benefício por incapacidade dos segurados em tempos de necessária proteção social.
O embaraço normativo é acentuado pela Portaria 454 do Ministério da Saúde, de 20 de março de 2020, que baliza a emissão de atestado médico por COVID-19 pelo prazo máximo de 14 dias, o que também distancia a concessão de benefício acidentário ante a necessidade insculpida no artigo 60, da Lei de Benefícios, de afastamento superior à 15 (quinze) dias para os segurados empregados.
Fato curioso é que as perícias médicas de aposentadorias especiais e pensões por morte decorrentes de acidente de qualquer natureza ou do trabalho, há muito, são realizadas administrativamente em sua modalidade indireta que consiste na análise exclusiva de documentos médicos do falecido ou dos Perfis Profissiográficos Previdenciários, dentre outros elementos probatórios.
Nesse caminho, o Edital Conjunto de Chamamento Público, de 29 de abril de 2020, que envolve a contratação excepcional de 255 médicos, tem sua utilidade questionada enquanto a Autarquia Previdenciária se abster de realizar perícias médicas em benefícios por incapacidade requeridos durante a pandemia.
A revogação, em caráter liminar, pelo plenário do STF, portanto, não tem aplicação prática imediata, enquanto os institutos não se amoldarem ao cenário atual, menos ainda no campo administrativo – vez que a caracterização do acidente do trabalho pressupõe NTEP, que pressupõe perícia médica – mas deve ser examinada com cautela, sob pena de generalização do afastamentos por COVID-19 como ocupacionais em período pós-pandêmico – o que é, igualmente, indefensável.
Inexiste, de fato, uma solução sublime para a o cenário vivenciado, mas o desejo é que a posição adotada pelo Pleno tenha efeitos no plano pedagógico de forma a garantir a proteção à saúde do trabalhador, e não no plano da injustiça, dada a natureza sancionatória do instituto.
*Marilia Lira de Farias – Advogada, especialista em direito previdenciário e sócia do escritório Farias e Coelho Advogados
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