Resumo: Muito embora haja controvérsia doutrinária acerca da constitucionalidade da improbidade administrativa na modalidade culposa prevista no art. 10 da Lei nº 8429/92, os tribunais, na prática, tem aplicado o referido dispositivo e condenado os agentes públicos. Contudo, para configuração do tipo culposo, não é suficiente a culpa simples (ordinária), mas sim a culpa na forma grave, caracterizada por uma absurda inobservância do dever de cuidado objetivo do agente.
Palavras-chave: Improbidade administrativa, modalidade culposa e gravidade.
Inerente à toda função pública, o dever de velar pelos bens e direitos que compõem o erário é corolário do poder de administração do agente público.
Improbidade, sem qualquer novidade, repousa raízes na expressão improbitas actis, intimamente ligada à característica da corrupção e desonestidade. E desonestidade na Administração Pública, com obviedade ofuscante, é ato doloso, atitude dirigida à finalidade de desonrar os princípios administrativos, mediante tráfico da função pública exercida.
Como não poderia deixar de prever, a deturpação, dilapidação e arrebatação dos bens e valores da coisa pública por seus agentes mal intencionados, além de ser sofrível e reprovável no esteio da moralidade, é objetivamente aferido pelo Estado.
Ocorre que a Lei de Improbidade, quanto à essa casuística (sangria do erário), prescreve a punição não só para os agentes públicos imbuídos de má-fé, mas também aos sujeitos que, culposamente (por imprudência, por exemplo), causem prejuízos ao patrimônio público, ignorando a axiologia da desonestidade.
A Lei n° 8.429/92 na redação de seu art. 10, inaugura os atos de improbidade lesivos ao erário:,
“Art. 10. Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º da lei, e notadamente (…):”[1]
Ao regulamentar o ato de improbidade administrativa prejudicial ao erário, a lei emprega o pronome qualquer, na forma comissiva – ação (fazer)- ou omissiva – omissão (não fazer) – tipificando, de forma abrangente e temerária, todas as condutas humanas. Nunca é demais lembrar que a conduta, acima de tudo, deverá ser ilícita, ou seja, eivada de vício censurável pelo ordenamento. Condutas agasalhadas pela lei que acarretarem prejuízo à Administração não se encaixam no tipo. Deve estar presente o binômio: legalidade e lesividade.[2]
No que concerne ao elemento “culpa” em ato de improbidade (modalidade culposa), consubstancia-se na vontade dirigida de praticar um ato lícito, mas, por inobservância do dever de cuidado objetivo, o agente se descuida das formalidades legais, vindo a causar uma lesão aos cofres públicos não desejada.
A positivação da forma culposa como elemento anímico idôneo para configurar os atos de improbidade recebe acirradas críticas, como de Marcelo Figueiredo, cujo brilhantismo inquestionável reverenciamos:
“Em síntese, imaginemos dada omissão culposa (involuntária, portanto) do agente público causadora de pequena lesão ao erário. Para a lei, há ato de improbidade administrativa, e ‘tollitur quaestio’. Será crível afirmar-se que tal agente terá seus direitos políticos cassados por força de lei, perderá a função pública, terá seus bens indisponíveis etc. etc. etc. Parece que a conclusão do raciocínio aponta para o absurdo, indício de erro no percurso exegético. Enfim, é preciso abrandar o rigor legal, ou, por outra, amolda-lo ao espírito constitucional.”[3]
Nada obstante a exposição de incompatibilidade vertical do dispositivo, a jurisprudência, de forma cautelosa, tem aceitado condenações por improbidade na forma de culpa. Calçando-se em diversos precedentes, pode-se falar que os requisitos para configuração da culpa na improbidade são: a) conduta voluntária (ação ou omissão voluntária de realizar um ato lícito, mas com um resultado danoso não querido); b) dano ao erário efetivo (sendo a mera presunção incompatível com o modelo legal); c) nexo de causalidade entre a conduta e o dano; d) previsibilidade objetiva; e) imprevisibilidade subjetiva; f) inobservância de um dever de cuidado objetivo, seja pela imprudência (ato comissivo), negligência (ato omissivo) e imperícia (ausência de qualificação técnica).
Nesse viés, é de relevo gizar que a previsão de condutas culposas como ímprobas é verticalmente compatível, porquanto o dever de zelo pela coisa pública requer que o administrador não trate com total incúria e desmazelo o patrimônio estatal. De certa forma, ao assumir um cargo, emprego, função ou mandato público, o agente lança mão de um dever de garante da res pública.
No entanto, antes que tachemos de ímprobo o agente que cause dano ao erário de forma culposa, devemos analisar o grau de culpa pelo qual se deu a ofensa, sob pena de vulgarização do diploma. A culpa, em toda sorte, deve ser grave, visto que o dolo é administrativo e não penal.
Causídico da constitucionalidade da culpa como elemento subjetivo dos atos de improbidade lesivos ao erário, Fábio Medina Osório, é categórico ao afirmar:
“a culpa grave pode fundamentar a responsabilização de Parlamentares, Magistrados e membros do Ministério Público que, no desempenho de suas atribuições, causem, injustificadamente, por manifesto e desproporcional despreparo funcional, lesão ao erário, violando os princípios básicos que regem a Administração Pública, v.g., moralidade e ilegalidade.”[4]
Observe que o gabaritado professor Osório patrocina a hermenêutica da culpa na forma grave como elemento subjetivo da improbidade administrativa lesiva ao erário, afastando assim, por decorrência lógica, qualquer possibilidade de sua responsabilização fundamentada apenas na culpa simples.
Carlos Frederico Brito dos Santos[5], após analítico estudo, determinou, de forma satisfatória, a amplitude do termo culpa grave nos atos jurídicos ao equipará-lo com o dolo. Para angariar elementos em sua pesquisa, o nobre promotor, em analogia a Jean-Jacques Dupeyroux, assevera que a culpa grave ou inescusável pode ser decomposta, facilitando sobremaneira a sua compreensão, nos pressupostos: Positivos: a) gravidade excepcional, de modo a ultrapassar o que comumente ocorre, mesmo no âmbito das falhas; b) consciência do perigo; e c) caráter voluntário do ato ou da omissão, que não pode ser fruto de simples inadvertência. Negativos: a) falta da intenção de provocar o dano: se há intenção o caso é de dolo e não de culpa grave; e b) ausência de toda e qualquer causa justificadora.
A premissa da necessidade de se haver culpa na forma grave para a configuração dos atos ímprobos descritos no art. 10 da Lei de Improbidade foi utilizada pelo Tribunal de Justiça de Minas Gerais em um caso em que um prefeito municipal, imbuído de boa vontade, autorizou o aumento dos vencimentos de uma servidora que estava empenhada na construção de um hospital municipal, com inobservância das regras administrativas e orçamentárias inerentes. Em magnífica exegese jurídica, o Desembargador Brandão Teixeira exarou:
“Ora, o ato de improbidade administrativa pela própria articulação das expressões refere-se a condutas não apenas ilegais, pois ao ato ilegal é adicionado um plus que, no caso concreto, pode perfazer ou não um ato de improbidade. Daí que parte da doutrina bate-se pela perquirição do elemento subjetivo capaz de identificar não qualquer culpa praticada pelo agente público, mas necessariamente, um campo de culpa consciente, grave, denotando indícios de conduta dolosa. Não se trata de culpa leve, característica do agente inábil, aquela que conduz o administrador no erro interpretativo em busca do significado mais correto da aplicação da lei.”[6] (sem grifo no original)
A última vertente consequencial da improbidade na forma de culpa diz respeito às possíveis sanções para os agentes condenados por ato ímprobo culposo lesivo ao erário (art. 10 da Lei nº 8429/92). De plano, certamente as punições não podem ser idênticas às penalidades infligidas para os agentes que, de forma desonesta, causaram prejuízo.
Na busca de uma valiosa hermeneutica construtiva, entre as sanções possíveis descritas pela Lei de Improbidade, não se pode imaginar, por exemplo, a aplicação de multa severa ou suspensão dos direitos políticos para o infeliz e desastrado agente público que cause dano ao erário. Isso porque a limitação dos direitos políticos no estado brasileiro é medida excepcional, de gravidade impar, consistente na declaração, pelo Judiciário, de um “não cidadão”. Uma sanção exacerbada por ato culposo afasta, por certo, a legitimidade ético-jurídica sancionadora prevista na carta da República para a tutela do patrimônio público.
Destarte, compatibilizando a forma culposa ímproba com o interesse público na tutela do patrimônio estatal, para que seja enquadrada a hipótese de culpa na improbidade descrita no caput do art. 10 da Lei nº 8429/92, a conduta imprudente, negligente ou imperita do agente público causadora de prejuízo ao erário, deve ser grave, ou seja, aquela cujo grau de reprovabilidade social é equiparado ao dolo, decorrente de uma absurda inobservância do dever de cuidado objetivo, com gravidade excepcional, com consciência do perigo e ausente toda e qualquer causa justificadora.
Informações Sobre o Autor
Leonan Roberto de França Pinto
Advogado