Imputação objetiva nos delitos omissivos

Sumário: 1. Introdução; 2.
Causalidade e Imputação Objetiva; 3. Determinação da Causalidade; 3.1. Teoria
da Equivalência dos Antecedentes; 3.2. Teoria da Causalidade Adequada; 4.
Relevância Jurídica; 5. Risco Permitido; 6. Incremento do Risco; 7. Imputação
na Omissão; 7.1. Omissão Própria; 7.2. Omissão Imprópria; 8. Conclusões; 9. Bibliografia

1.
Introdução

O
fato punível é um dado da realidade material, perceptível pelos sentidos, e
que, na maioria das vezes, produz alteração concreta nessa mesma realidade.
Geralmente, a relevância social da conduta proibida advém da produção do
resultado naturalístico indesejado. Mas, nem sempre isso acontece. É possível
que a conduta seja considerada socialmente relevante mesmo não estando
materialmente vinculada a modificações do mundo exterior. Importa notar que a
conduta não se confunde com a modificação que possa produzir na realidade. O
resultado não faz parte da conduta mas, sendo
produzido por ela, poderá integrar a descrição típica quando o legislador
reconhecer sua relevância jurídico-penal.

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A
referencia ao resultado feita pelo artigo 13 do Código Penal pode induzir
algumas dúvidas. Reza o dispositivo legal, em sua parte inicial, que o
resultado, de que depende a existência do crime, somente é imputável a quem lhe
deu causa
. Um primeiro exame poderia concluir que, se a existência do crime
depende do resultado, não existe crime sem resultado. A assertiva somente em
parte é verdadeira.

Para
compreender a questão é necessário perceber a distinção entre os significados
naturalístico e jurídico atribuídos ao resultado. No sentido naturalístico, o
resultado é a mudança ocorrida na realidade material, no mundo fenomênico,
produzida pela conduta humana. Na perspectiva jurídica, por outro lado, o
resultado é a violação aos bens e interesses protegidos pela norma
jurídico-penal. É a inobservância da norma de conduta
que preserva os valores sociais maiores. Os dois significados atribuídos à
idéia de resultado não são conflitantes, muito ao contrário, completam-se
mutuamente.

Com
felicidade, Paulo José da Costa Júnior esclarece que “se é verdade que todo
crime abarca em seu bojo estrutural um evento jurídico, não é menos verdade que
o evento naturalístico não existe indefectivelmente em toda espécie de delito. … Prescindem algumas espécies delituosas de evento
naturalístico, sendo providas, contudo de evento jurídico, que se consubstancia
na ofensa ao patrimônio jurídico-penal…o evento naturalístico (material,
físico) é elemento acidental do delito. Sua presença não pode ser divisada em
todas as figuras delituosas. O evento jurídico (formal), pelo contrário,
constitui integrante necessária e essencial da morfologia do delito. Sua
ausência na estrutura do crime implica sua desaparição.”1

Desse
modo, somente em atenção ao sentido jurídico do resultado pode-se dizer que não
há crime sem resultado, pois a legitimidade da repressão penal reside
precisamente na violação à proteção aos valores socialmente relevantes.
Contudo, é possível que para a caracterização de determinadas figuras delitivas
não seja necessário a produção de qualquer resultado
naturalístico. Nem sempre o tipo prevê a realização de um evento naturalístico.
É o que ocorre nos crimes omissivos puros e de mera conduta. É ainda possível
que o tipo preveja resultado naturalístico, mas que sua produção não seja
necessária à consumação do delito. Trata-se agora dos crimes formais.

Nos
crimes de resultado, a consumação depende da produção do evento naturalístico
previsto no tipo. Nesses casos, o aspecto objetivo do crime somente se
caracteriza com a produção do resultado.

O
tema da relação de causalidade possui especial importância em direito penal. A
relação de causalidade estabelece ligação entre a conduta individual e o
resultado (sempre em seu sentido jurídico e também em sentido naturalístico,
quando for o caso). É por meio do emprego do conceito de causa que se pode
estabelecer a imputação objetiva do delito ao seu autor. No Estado Democrático
de Direito não se pode imaginar justificação para a responsabilidade criminal
do indivíduo por resultados produzidos sem a sua contribuição. Assim, somente
haverá responsabilidade para aquele indivíduo que contribuir para a ocorrência
do resultado.

2.
Causalidade e imputação objetiva

Em
termos filosóficos, a relação de causalidade é tema bastante polêmico.
É  possível que a causa estabeleça nexo real entre as coisas ou, então,
que o nexo causal seja apenas uma categoria mental que viabilize determinada
interpretação da realidade. De qualquer modo, a filosofia concebe que a relação
de causalidade envolve a totalidade das condições que determinam a
conseqüência, o que significa, que sendo o conjunto
das condições a causa do resultado, todas as condições são necessariamente
iguais e equivalentes. Nessa perspectiva, não é adequado considerar-se
determinada condição (a conduta humana) isoladamente.

No
entanto, a concepção científico-naturalista da relação de causalidade não
atende aos interesses práticos da repressão da conduta individual e tornou-se
necessário construir a noção jurídica de causalidade.2 Para a realização de seus fins, o
direito penal concebe a relação de causalidade em termos próprios e concentra
atenções na conduta humana. Pode-se dizer que, para o direito penal, a conduta
individual constitui causa de natureza especial. Afinal, importa ao sistema
repressivo resolver se existe ligação entre a conduta humana e o resultado
lesivo, de modo a justificar a imputação desse resultado ao autor da conduta. A
responsabilidade criminal depende dessa imputação e o reconhecimento da
causalidade jurídico-penal visa identificar em determinada conduta a
possibilidade de responsabilizar seu autor pela produção do resultado ilícito.

Sobre
a relação de causalidade própria ao direito penal, Jescheck
observa que o essencial não é a relação material de causa e efeito, mas saber
se o resultado pode ser atribuído ao sujeito, sob o prisma de uma justa punição.3
Do mesmo modo, Roxin esclarece que “a questão
jurídica fundamental não consiste em averiguar se determinadas circunstâncias
se dão, mas em estabelecer os critérios em relação aos quais queremos imputar a
uma pessoa determinados resultados. A alteração de perspectiva que aqui se leva
a cabo, da causalidade para a imputação, faz com que o centro de gravidade se
desloque, já em sede de teoria da ação, da esfera ontológica para a normativa:
segundo esta, a questão de saber se é possível imputar a um homem um resultado
como obra sua, depende, desde o início, dos critérios de avaliação a que
submetemos os dados empíricos”.4

Modernamente,
não se percebe mais qualquer capacidade de rendimento nas discussões sobre o
conceito de ação, sendo que para o direito penal tornou-se  mais
importante definir quando e até que ponto se pode imputar como fundamento da
responsabilidade um resultado lesivo.5

A
responsabilização pela produção de resultado jurídico-penal relevante impõe
investigação que se subdivide em duas etapas. Por primeiro, se for o caso de
crimes materiais, verifica-se a relação causal no plano empírico. Confirmada a
causalidade, segue-se a atribuição normativa do resultado ao seu autor.6

Assim,
pode-se distinguir causalidade de imputação objetiva. A relação de causalidade
jurídico-penal relaciona uma conduta a determinado resultado no plano
naturalístico e constitui pressuposto para a responsabilização criminal do
indivíduo. A definição do critério a ser utilizado para estabelecer a
vinculação decorre das opções político-criminais, que acolhe qualquer das
diversas teorias elaboradas para a determinação da causalidade. A imputação
objetiva, por sua vez, é a atribuição normativa da produção de determinado
resultado a um indivíduo, de modo a viabilizar sua responsabilização. Note-se,
entretanto, que a imputação objetiva  caracteriza apenas o aspecto
objetivo do tipo, sendo que a responsabilidade penal ainda exige a
caracterização do elemento subjetivo, bem como dos demais requisitos de
identificação da conduta punível.

Geralmente,
a imputação objetiva é conseqüência da verificação do nexo de causalidade
material entre a ação individual e o resultado. Contudo, em alguns casos a
imputação objetiva se afirma mesmo diante da ausência da relação física de
causalidade. É o que acontece com os crimes omissivos próprios qualificados
pelo resultado e nos impróprios. Nessas hipóteses, não existindo relação de causalidade
física, é a norma jurídica que estabelece a vinculação entre a inatividade e o
resultado indesejado. Daí falar-se em causalidade normativa, criação
especulativa exclusiva do direito penal. Na verdade, o resultado é produzido
pelas forças que o determinam e não pela ausência de impedimento. A omissão não
contribui para a produção do resultado e o processo causal que o produz é
estranho ao omitente. Este apenas não interrompe o
desenvolvimento das forças que causam o resultado com a ação esperada. Causar o
resultado não é a mesma coisa que não o impedir. Para responsabilizar o omitente, a lei presume existir relação entre a omissão e o
resultado, considerando a probabilidade de que a ação esperada, possível para o
omitente, teria evitado o resultado. Esses casos, evidenciam que a imputação objetiva não se fundamenta na
relação de causalidade ontológica, mas jurídica.7

A
relevância jurídica do antecedente é fator preponderante da definição da
causalidade jurídica. Nesse sentido, Welzel já
esclareceu que en los
delitos dolosos sólo es típicamente relevante la relación causal dirigida por el
dolo (de tipo). Todos los efectos
que acontecen más allá de la relación causal abarcada por el
dolo (de tipo) no entran en
consideración para los
tipos de los delitos dolosos. En
ellos, por consiguiente, la relación causal relevante sólo viene a ser dada por el enlace del
tipo objetivo com el tipo subjetivo, esto es, la
concordancia entre el curso
del acontecer exterior y el
dolo que lo gobierna
.8  É que o tipo subjetivo não deve
ser considerado corretivo do curso causal objetivo. Na doutrina finalista,
materialmente o dolo é fator de direção prévio do curso causal. Nos delitos
culposos, somente é relevante a produção do resultado que inobserva
um dever objetivo de cuidado e, assim, não são tipicamente relevantes os
resultados não inseridos na previsibilidade objetiva.

Como
a imputação objetiva do resultado é essencialmente normativa, somente se poderá
reconhecer imputável o resultado que é orientado de acordo com uma finalidade
ilícita. “Se a atuação da vontade não é típica, não existe absolutamente
nenhuma ação no sentido que interessa ao direito penal”.9  A ousadia que essa proposição
encerra é considerar, já em sede de imputação objetiva, a impossibilidade de se
imputar um resultado socialmente danoso quando esse evento não for relacionado
a uma finalidade socialmente inadequada. Parece haver confusão entre imputação
objetiva e subjetiva do resultado. Contudo, se a tarefa dogmática consiste em
responsabilizar indivíduos pela produção de resultados que violam a finalidade protetiva da norma jurídica, o resultado típico produzido
sem violação dessa norma não deve ser considerado obra de determinada pessoa,
mas de um acidente.

3.
Determinação da causalidade

A
identificação da relação de causalidade jurídico-penal, que estabelece a
vinculação de certa conduta a um resultado e viabiliza a imputação objetiva,
decorre de construção dogmática determinada pela política criminal. Não existe
critério absolutamente verdadeiro para identificar a relação de causalidade
jurídico-penal, pois esta construção teórica não é comprometida com a natureza
das coisas.10
A escolha do critério de identificação resulta de opção entre os vários
caminhos possíveis.

A
doutrina elaborou diversas teorias que visam relacionar a conduta individual ao
resultado penalmente relevante. O trabalho de identificação das causas do
resultado jurídico-penal relevante pôde desenvolver-se apartir
da consideração de que todos os antecedentes vinculados ao resultado possuem
igual valor, ou, ao contrário, que apenas alguns possuem relevância. A primeira
concepção orienta a formulação da teoria da condição simples, ou da
equivalência dos antecedentes. Por outro lado, a idéia da relevância de alguns
antecedentes produziu um grupo de concepções que sustentam interesse pela
identificação de uma condição qualificada para estabelecer a relação de
causalidade. Nesse sentido, a  teoria da causalidade adequada figura em destaque.11

3.1.
Teoria da equivalência dos antecedentes

A
teoria da condição simples, também conhecida como teoria da equivalência dos
antecedentes causais ou da conditio sine qua non,
é atribuída a Julius Glaser, sendo posteriormente
desenvolvida por Maximilian von Buri.12
É a teoria acolhida pelo Código Penal brasileiro em vigor13 e a que colhe maior aceitação na
doutrina para estabelecer o critério identificador da vinculação existente
entre conduta e resultado. Vale observar, entretanto, que quanto ao tema da
superveniência de causa relativamente independente, a legislação brasileira
acolheu concepção de condição qualifica.14

Nos
termos dessa construção, causa é a totalidade das condições positivas e
negativas que contribuíram para a produção de um fenômeno. Partindo da premissa
de que todos os antecedentes do resultado são igualmente necessários, conclui pela equivalência valorativa de todos os
antecedentes causais, não estabelecendo distinções entre causas, concausas, condições ou ocasiões. No entanto, “o fato de
cada condição ser igualmente necessária, no complexo das condições, não
significa que sejam equivalentes entre si.”15

Como
observa Paulo José da Costa Júnior, a elaboração teórica da equivalência dos
antecedentes apresenta uma contradição lógica, ao destacar a conduta humana no
processo naturalístico de causalidade. Afinal, “se causa é o conjunto de
condições, como poderá ser considerada uma condição isolada ?”16

A
teoria da equivalência dos antecedentes é verdadeiro corolário da
sistematização causal-naturalista de Beling17
e Lizst18, na qual a relação da
causalidade não encerra nenhuma valoração jurídica. De inspiração autoritária,
a opção de considerar qualquer contribuição para a produção do resultado como
causa amplia o campo de intervenção repressiva, na medida em que possibilita
aumentar o leque de responsáveis.

Vale
notar que, no Brasil, a opção pela teoria da equivalência dos antecedentes se
deu quando da formulação do Código Penal de 1940, ocasião em que vigorava
regime autoritário de Getúlio Vargas e a legislação repressiva nacional recebia
fortes influências da legislação italiana de Rocco.

Em
suas últimas conseqüências, a teoria da equivalência dos antecedentes poderia
levar aos exageros de uma regressão infinita, capaz de responsabilizar
indivíduos que prestaram contribuições muito remotas, como nos casos do
fabricante e do comerciante da arma de fogo utilizada no homicídio. No entanto,
tal objeção é facilmente superada pela compreensão de que o nexo causal não
gera responsabilidade caso não se possa atribuir também subjetivamente o
resultado ao autor da conduta.19

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A
fórmula da conditio sine
qua non
implica na
aplicação do processo hipotético de eliminação, segundo o qual eliminando-se mentalmente a ação indaga-se sobre a produção
do resultado, da forma como ocorreu. Nessa perspectiva, a conduta será
considerada causa do resultado quando se puder afirma que, sem ela, o resultado
não teria acontecido. Isto significa dizer que a conduta não será considerada
causa do resultado quando suprimida mentalmente não repercutir alterações na
produção do resultado.

Modernamente,
a doutrina identifica dificuldades na aplicação da teoria da equivalência face a percepção de problemas relacionados à constatação empírica
do nexo causal. Verificou-se que o procedimento eleito não é capaz de apreender
a relação de causalidade de forma imediata e, na verdade, a presume. Somente
conhecendo a existência da causalidade é que se pode dizer que suprimindo a
causa desapareceria o resultado.20 Desconhecendo-se a virtualidade da
causa, sua supressão mental não esclarece a produção do resultado. Como exemplo
marcante dessa dificuldade, tradicionalmente lembra-se o caso da ingestão da
substância Talidomida e sua influência no desenvolvimento embrionário. Não se
pode afirmar, com segurança, que a não ingestão da substância evitaria o
resultado deformante nos fetos. Por outro lado, a comparação que se estabelece entre o processo causal real e uma
idealização facilita a ocorrência de erros, mesmo diante de casos em que
a responsabilidade se mostra evidente. Nesse sentido, Jescheck
indica como exemplos os casos em que outra causa pudesse determinar o
resultado, no mesmo momento e da mesma forma ou quando o resultado tiver sido
produzido por duas causas simultâneas, independentes e eficazes.21

As
dificuldades ainda mais se evidenciam quando se trata de aplicar o procedimento
hipotético de eliminação aos crimes tentados e aos crimes omissivos. Quando se
tratar de crimes tentados, a causalidade não é apurada concretamente, pois o
resultado não se produziu. Nos crimes omissivos, não havendo ação por parte do omitente, a eliminação hipotética da omissão significa
acrescentar-se mentalmente a ação esperada e indagar se o resultado teria sido
evitado. Como o observador não constata concretamente a influência da ação
esperada na dinâmica dos fatos, a causalidade é presumida. Não se pode ter a
plena certeza de que a ação devida evitaria o resultado. Tal acontecimento é
apenas provável.22

O
procedimento da eliminação hipotética é demasiadamente relacionado à
causalidade física e, por isso, não se presta a comprovar a existência da
relação de causalidade que importa ao direito penal. Mesmo nas ciências
naturais, após a teoria quântica e a afirmação do princípio de indeterminação
de Heisenberg, o paradigma mecanicista newtoniano restou superado.23 Juarez Tavares observa que mesmo
antes de Heisenberg, Maxwell já havia contestado a hipótese da causalidade no
campo da termodinâmica, afirmando que na experiência de contato entre dois
corpos, um quente e outro frio, a transferência de calor do corpo quente para o
corpo frio, no sentido do equilíbrio, não é certa mas meramente provável.24 Modernamente, a ciência moderna
abandonou o trabalho com os sistema rígidos ou estáticos, substituindo-os pelos
sistemas ditos caóticos que, não implicando em desordem, estimulam a formulação
de uma nova ordem, mais sutil e abrangente.25
A  mudança de paradigma repercute efeitos também na construção teórica das
ciências inexatas ou sociais.  Nesse sentido,  a dogmática
jurídico-penal não pode construir seu edifício teórico sobre abstrações
estáticas e distantes da realidade. Como o direito se orienta para atender à
finalidade prática de proteger as condições vitais da sociedade, seu conteúdo
há de ser infinitamente variável, de modo a se adaptar às
necessidades que se fazem atuais na sociedade em que tem aplicação.

A
identificação da causalidade, na perspectiva da teoria da condição simples, não
se orienta por qualquer definição do que seja penalmente relevante. A
metodologia que propõe constitui verdadeiro círculo vicioso, já que o
procedimento da supressão mental somente pode efetivar-se quando anteriormente
se saiba (considere) que o antecedente é causal. Como a determinação da
causalidade somente se opera após a verificação do resultado concreto, não se
pode analisar adequadamente a atuação das demais condições, o que acaba por
impedir a verdadeira equivalência dos antecedentes. Na verdade, essa
metodologia somente funciona quando se trabalha com uma única hipótese de
produção do resultado: a hipótese da produção do resultado concretamente
verificado. O procedimento de eliminação hipotética de determinado antecedente
não possibilita a consideração dos efeitos causais ordinários aos outros
antecedentes que poderiam atuar em seu lugar. Vale dizer, suprimida mentalmente
a atuação de determinado antecedente, nada pode ocupar o seu lugar.

Com
base na teoria da condição simples, sustenta-se a imputação objetiva na
produção de determinado resultado, exatamente conforme ocorreu. Desse modo, o
que não puder interferir na produção do resultado em sua forma concreta não é
considerado causa.  Assim, causa o resultado quem acelera a sua produção,
ainda que de modo insignificante. É o que se verifica quando um tratamento
médico ocasiona a morte prematura do paciente que, de qualquer forma estava morrendo.26
No entanto, as premissas da teoria da equivalência dos antecedentes também
indicariam que é causa do resultado a conduta do pai que abrevia o sofrimento
do filho, irreversivelmente condenado à morte.

À
imputação jurídico-penal importa distinguir a causação
do resultado da causação de meras circunstâncias
concomitantes, pois nem todos os detalhes da produção de um resultado ilícito
são tipicamente relevantes. O antecedente que interessa identificar como
condição é aquele que se relaciona à produção de resultado juridicamente
relevante, vale dizer, típico. Os antecedentes que se relacionam com as
circunstâncias concomitantes ao resultado típico, e produzem apenas variações
no contexto do perigo de lesão ao bem jurídico já existente, são irrelevantes.27
Nesse sentido, inserir todos os antecedentes na consideração da cadeia causal,
como pretende a teoria da equivalência, não é justo.

3.2.
Teoria da causalidade adequada

A
doutrina jurídico-penal percebeu que afirmar o nexo de causalidade por meio de
silogismo que presume a não ocorrência do resultado diante da ausência do
comportamento não era suficiente para resolver os problemas da incriminação. É
necessário esclarecer a razão pela qual se pode concluir que, ausente o
comportamento, o resultado não teria se verificado.

Considerando
as inúmeras dificuldades da utilização da teoria da condição simples, os
esforços teóricos passam a justificar a causalidade na qualidade especial do
antecedente que é considerado causa. Na verdade, pretende-se que o critério de
determinação da causa deva se adaptar às necessidades da imputação objetiva.

Dentre
as várias teorias que trabalharam a idéia de condições qualificadas, destaca-se
a teoria da causalidade adequada, atribuída ao médico Johannes
von Kries.28 Segundo essa construção teórica,
causa é o antecedente, não só necessário, com também adequado à produção do
resultado. A adoção de tal posicionamento significa que não devam ser
considerados todos os antecedentes necessários à produção do resultado, mas somente
aqueles que além de necessários são idôneos à produção do resultado.

A
idoneidade do antecedente é apurada com auxílio da experiência que revela, de
maneira objetiva, ser ordinária a produção do resultado pela atuação da causa.
A idoneidade é identificada pela probabilidade do antecedente produzir o
resultado. Assim, ficam excluídos da relação causal os acontecimentos
extraordinários, excepcionais, mesmo que hajam concorrido para a produção do
resultado. No exemplo de Beling, não existiria
relação causal entre acender uma lareira no inverno e o incêndio produzido
pelas fagulhas carregadas pelo vento.29  A consideração da inadequação
da contribuição à cadeia causal pode, ainda, excluir da causalidade determinado
antecedente considerado insignificante. Caberia ao julgador analisar o caso
colocando-se na posição do agente e, considerando os dados da experiência e as
circunstâncias do caso concreto, realizar um prognóstico sobre as conseqüências
de seu atuar. O método a ser utilizado impõe avaliar o que cada causa é idônea à realizar, no momento da ação delitiva. No entanto, tal
procedimento somente ocorre depois da intervenção dos fatores causais.30

À
teoria da causalidade adequada também foram dirigidas muitas críticas, em
especial pela indefinição dos critérios de probabilidade.31 Outra objeção diz respeito ao método
de trabalho adotado. “Por que examinar o que já aconteceu como se ainda não
houvesse realizado, se na verdade já se verificou?”. Critica-se ainda a teoria
por ampliar exageradamente o campo da irresponsabilidade penal, ao considerar
apenas alguns dos antecedentes como integrantes da cadeia causal. Esta última
crítica evidentemente não procede, pois não interessa ao direito penal manusear
suas forças em face de todas as ocorrências lesivas, mas somente em face das
socialmente relevantes.

A
teoria da causalidade adequada não é verdadeiramente uma concepção de
causalidade, mas um critério supletivo da teoria da equivalência que orienta a
imputação objetiva.32
Por isso, corrige as deficiências da teoria da equivalência na imputação
objetiva dos crimes qualificados pelo resultado, dos delitos omissivos, da
co-autoria, da tentativa impossível e da conceituação do perigo, dentre outros
institutos do direito penal. 33

4.
Relevância jurídica

As
deficiências da teoria da condição simples não foram plenamente corrigidas pelo
suplemento oferecido pela idéia da condição adequada, que se propôs
individualizar os antecedentes meramente no plano naturalístico. A
responsabilidade criminal exige, ainda, a produção de um resultado
juridicamente relevante. Nesse sentido, Mezger
ressaltou que a conexão causal entre um ato de vontade e o resultado não é
suficiente para atribuir responsabilização, sendo ainda indispensável que tal
conexão seja juridicamente relevante.34

A
relevância jurídica que autoriza a imputação objetiva deve ser apurada no
sentido protetivo de cada tipo incriminador, ou seja,
quando a conduta finalisticamente orienta-se para
afrontar a finalidade protetiva da norma.35  No que diz respeito especificamente
à omissão, somente se poderá considerá-la relevante quando objetivamente
existir ação de salvamento e o omitente tiver a
possibilidade de atuar para evitar o resultado.36 Afinal, não se pode responsabilizar
o agente quando não houver chances de evitar o resultado lesivo.

5.
Risco permitido

O complexo das atividades da vida moderna sempre
nos impõem enfrentar certa dose de risco. Dirigir
veículos, caminhar em meio ao trânsito, submeter-se a certas intervenções
cirúrgicas ou praticar esportes são exemplos de atividades arriscadas que são
socialmente permitidas e até estimuladas. Muitas atividades arriscadas são
juridicamente permitidas por que fazem parte da dinâmica social moderna. Em
outros casos, a utilidade social proporcionada pela atividade impõe a
tolerância de certos limites de risco.

Ora,
se um complexo de atividades socialmente adequadas oferece riscos ao bem
jurídico, somente se poderá reconhecer legítima a responsabilidade penal pela
lesão ao bem jurídico quando esta lesão decorra de especial contribuição do
agente. Com felicidade, Roxin37
observa que “a possibilidade objetiva de originar um processo causal danoso
depende de a conduta do agente concreto criar, ou não, um risco juridicamente
relevante de lesão típica de um bem jurídico”. Dessa forma, não se poderá
imputar ao sobrinho responsabilidade pela morte do tio em queda de avião, mesmo
que o sobrinho tenha promovido a viagem e desejado a
morte por interesse na herança. O exemplo é bastante feliz, ao ressaltar que
mesmo diante de intencionalidade manifestamente ilícita, como a ação não
produziu situação que ultrapassasse os limites do risco permitido ao bem
jurídico não é possível imputar-se o resultado lesivo.

Jakobs, por sua vez, esclarece
que ao problema da imputação objetiva importa perceber que a distinção entre a causação típica de um resultado e a mera produção de
circunstâncias concomitantes irrelevantes não se verifica no plano
naturalístico do processo causal, mas na materialização da vontade protetiva da norma jurídica. Assim, a imputação objetiva de
determinado resultado lesivo somente será legitima quando se fundamentar em
contribuição que importe em aumento do perigo já existente para a produção do
resultado ou na substituição das circunstâncias de risco existente por outras.38
Se o agente mantém seu atuar nos limites do risco socialmente tolerado, não se
legitima a imputação objetiva do resultado. Vale observar que os limites do
risco permitido, que delimitam a possibilidade de legitima responsabilização
criminal, não resultam da constatação dos dados empíricos, mas da definição normativa.39

6.
Incremento do risco

A
teoria da imputação objetiva, recentemente, foi enriquecida com a conciliação
de argumentos oferecidos pelas teorias da adequação e da relevância. Sob o novo
prisma, somente pode ser objetivamente imputável o resultado típico causado por
conduta humana, no sentido da adequação, que tenha provocado situação de perigo
não permitida juridicamente.40 Reconhecendo que os bens jurídicos
encontram-se normalmente envoltos em situação de risco, a imputação objetiva
somente será legitima quando constatar-se que a conduta do agente aumentou o
risco existente de lesão ou estabeleceu outro processo causal de risco que
anteriormente não se dirigia ao bem jurídico. Vale dizer, a imputação do
resultado lesivo apenas se exclui quando a conduta do agente não estabelece
situação que ultrapasse o âmbito do risco permitido.41

Importa
notar que quando o autor troca um risco existente por outro não ocorre apenas a variação irrelevante do risco, mas pressuposto fático que
caracteriza a imputação objetiva. Esclarece Jakobs
que “el limite entre la
mera variación del
riesgo y la creación de un riesgo nuevo no se forma espontáneamente, sino que depende de en
qué relación se organiza el mundo de los riesgos, y esta formación de organizaciones depende a su vez
de a qué diferenciaciones
se debe uno ajustar para dominar (crear
o anular) procesos ariesgados
y, sobre todo, por dónde discurren
los limites de la incumbencia de ese dominar.”42

Veja-se
o exemplo em que, no contexto de ação de salvamento, o agente empurra
energicamente pessoa que iria receber um golpe na cabeça, conseguindo que a
mesma dele se esquive, mas que em conseqüência do empurrão cai ao solo
lesionando-se.43
Segundo a teoria da equivalência dos antecedentes, tal conduta seria causa do
resultado lesivo. Obviamente, em casos como esse, a responsabilização não
acontece face à excludente de ilicitude. No entanto, no exemplo, a conduta do
agente não aumentou o risco existente, ao contrário, o diminuiu. Considerando
que a imputação objetiva do resultado é questão normativa que
não prescinde da consideração sobre a finalidade que orientou a ação, Roxin sustenta que a ação que diminui o risco de
produzir-se o resultado não possibilita a imputação objetiva, ainda que
tenha produzido resultado de gravidade mitigada. Não se trata realmente de ação
tipicamente lesiva.44

No
caso dos delitos omissivos, algumas observações devem ser feitas à contribuição
que o princípio do incremento do risco possa oferecer à teoria da imputação.
Como se procurará demonstrar no item seguinte, a imputação objetiva no delito
omissivo depende da violação ao dever concreto de agir para impedir o
resultado. Isso significa que o omitente tem o dever
legal de proteger o bem jurídico do perigo existente, e não apenas da
possibilidade de aumento do perigo existente. Em outras palavras, o dever que
agir impõe que o omitente atue para afastar o perigo
que se dirige ao bem jurídico ou, não sendo possível afastá-lo, impedir que o
perigo aumente.

7.
Imputação na omissão

Até
o século XIX, a doutrina jurídico-penal não discutiu com maior profundidade os
delitos omissivos, aplicando-lhes as mesmas regras utilizadas para os delitos
comissivos. Ë somente apartir da década de 20 que se percebe as dificuldades que o trato da omissão importa.
Considerando que nos delitos omissivos não se verifica relação material entre
conduta e resultado, pode-se dizer que o tema da causalidade omissiva tornou-se
dos mais tormentosos em direito penal. A teoria do delito enfrenta sérias
dificuldades ao tratar dos crimes omissivos, sendo que a concepção finalista
não superou os problemas da omissão, insistindo em considerá-la um dado
empírico, quando é verdadeira categoria axiológica.45 Afinal, como entender que a inatividade
possa ser causa de um evento naturalístico? E ainda, se mesmo nos delitos
comissivos a causalidade não é absolutamente certa, mas meramente provável,
como utilizar o conceito da causa na definição do comportamento omissivo
punível?

Muitas
foram as tentativas de explicar teoricamente a causalidade omissiva.46 Dentre os muitos esforços
realizados, cabe mencionar apenas os mais significativos. No plano
naturalístico, tentou-se conceber a causalidade omissiva sob o argumento de que
ao não realizar a ação esperada o omitente realiza,
no momento, outra conduta que seria a causa do resultado. É a teoria da ação
contemporânea, que considera que enquanto o omitente
deixa de realizar a ação esperada executa algo diverso. A impropriedade dessa
concepção logo se evidenciou na conhecida formula de Luden,
segundo a qual a mãe que deixa de alimentar seu filho menor e confecciona
meias, o mata por confeccionar meias.47

Na
tentativa de superar a dificuldade, tentou-se corrigir a teoria da ação
contemporânea, considerando causa do evento não a conduta positiva que se
realiza no momento da produção do evento, mas a negação da ação esperada. No
caso da morte da criança por falta de alimento, a causa passa a ser o movimento
que impede a amamentação. Ainda assim não se conseguiu superar as dificuldades
da causalidade omissiva, pois tanto a conduta diversa quanto a inversa não
produzem o resultado juridicamente relevante. A deficiência de ambas as
construções se evidencia ainda mais quando o omitente
não pratica qualquer ação no momento da ocorrência do resultado.

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Tentou-se
ainda explicar a causalidade omissiva com a argumentação de que o nexo se
estabelece quando a ação antecedente colocar em movimento condição favorável ao
evento ou fizer com que o omitente assuma o
compromisso de impedir o resultado lesivo. Trata-se, agora, da teoria da ação
antecedente. Na perspectiva, a responsabilidade do omitente
se deve ao fato de que o mesmo produz o evento de maneira indireta. Tal
construção também é insatisfatória, pois nem sempre se poderá reconhecer uma
conduta antecedente ao evento que se relacione com o mesmo indiretamente. Essa
concepção ainda considera a causalidade em momento distinto daquele em que se
verifica o dolo ou a culpa, o que não é correto.

Outro
esforço explicativo é oferecido pela teoria da interferência, que considera
existir esforço de retração da capacidade muscular  tendente ao movimento
que impede o resultado. Ao não agir, o omitente
exerceria força interferente sobre o impulso normal de agir. A construção
também não satisfaz, sendo certo que nas omissões culposas inconscientes nunca
haveria essa possibilidade de interferência.48

Outro
caminho trilhado para explicar a causalidade na omissão produziu a teoria das
condições negativas. Considerando-se que o resultado lesivo é condicionado
tanto pela presença de determinados fatores positivos,  quanto pela
ausência de outros (negativos), a omissão passou a ser entendida como condição
negativa necessária à causação do resultado. A
omissão implicaria na inexistência das condições impeditivas e, assim, seria
causa do resultado. Tal construção também não convence, pois não é a omissão
que produz o resultado, mas as forças positivas que atuam simultaneamente a
ela.


a concepção da causalidade humana exclusiva ressalta que a vontade humana pode
interferir na causalidade mecânica, de modo que omissão é forma de permissão
para o desenvolvimento das forças lesivas. Como a omissão também pode ser
culposa, essa teoria teve de ser revista para considerar que os desdobramentos
previsíveis da caseia causal também deveriam se inserir no contexto da
possibilidade interventiva do homem. A impropriedade
dessa construção é que a tarefa de identificação dos antecedentes que se
relacionam com o resultado é esquecida em favor da especulação sobre a
possibilidade de salvamento do bem jurídico. Não se estabelece a causa do
evento, mas se o mesmo poderia ter sido evitado.

Desenvolvendo
agora o enfoque normativo, a teoria da causalidade dos escopos do Direito
considera que a intervenção humana nos processos causais deve obedecer as finalidades jurídicas. A omissão é considerada causa
sempre que o omitente tenha o dever jurídico de agir
para evitar a produção de um evento lesivo. Desenvolvendo idéia muito
semelhante, a concepção da causalidade do ordenamento social sustenta que a
engrenagem social impõe observância de certos deveres e a omissão em atender a
tais deveres confere causalidade à inatividade. Contra tais teorias
argumenta-se que a determinação da causalidade torna-se excessivamente
artificial.

Por
fim, a doutrina de Von Lizst reconhece que não se
pode trabalhar com a idéia de causalidade omissiva. A omissão é forma especial
de comportamento humano, que não possibilita uma investigação causal, e o que
importa para o direito penal é determinar quando não impedir o resultado eqüivale a causá-lo.49 O longo esforço dogmático que se
realizou para explicar a causalidade somente conseguiu demonstrar que não há
possibilidades de se conceber a omissão no contexto de uma causalidade naturalística.
A construção normativa apresenta-se como única solução. Após terem sido os
esforços explicativos levados à exaustão, a orientação de Liszt colhe grande
aceitação na doutrina.

Na
verdade, a relevância jurídica da omissão somente pode ser vislumbrada na
inobservância do dever jurídico de agir para impedir o resultado.50 Como esclarece Juarez Tavares, a
omissão jurídico-penal relevante “não possui existência real, por si mesma,
senão quando associada a outro elemento, representado por um dever. Quando nos
referimos à omissão, portanto, estamos no âmbito de um mundo axiológico, de um
mundo onde valoramos as diversas modalidades de comportamento e não apenas de
um mundo naturalístico, onde o importante é unicamente assinalar suas
características reais.”51
Cabe ainda notar que a estrutura da omissão é sempre referente à uma ação
determinada, que atende ao dever de proteção ao bem jurídico. Não se pode
conceber que a omissão viole um dever indeterminado de atuar, sob pena de
violar-se o princípio da legalidade.52 Da mesma forma, a imputação objetiva
omissiva somente pode se operar diante da inobservância ao dever concreto de
agir, que impõe ao omitente a realização de
determinada conduta de salvamento.53
Vale dizer, a omissão só é relevante se existir perigo real ao bem jurídico.

7.1
Omissão própria

Os
problemas especiais da causalidade omissiva não parecem adquirir maior
importância nos crimes omissivos próprios, pois nesses não se exige qualquer
modificação no mundo natural. Salvo nas hipóteses de qualificação pelo
resultado, os crimes omissivos próprios não são materiais e, portanto, não há
previsão típica de resultado naturalístico. O fundamento da responsabilização
reside na desatenção ao dever concreto de agir, que se dirige à generalidade
dos membros da sociedade. O dever de agir, mesmo na omissão própria, decorre de
circunstâncias materiais de perigo ao bem jurídico. “Não é a mera omissão ou
inação que configura o tipo dos delitos omissivos, mas também uma situação
típica que fundamenta seu injusto, porque essencial à sua configuração”.54

No
entanto, vale tecer algumas observações sobre a tentativa nos crimes omissivos
próprios. Em tais delitos, o núcleo do tipo é composto por verbo que descreve
uma inatividade. Na consideração simplista de que, ou o indivíduo age para
impedir o resultado ou se omite, a maioria dos
doutrinadores nacionais não admite a tentativa de crime omissivo próprio. Ou
ocorre a omissão e o delito se consuma, ou esta não ocorre e não há crime.55
No entanto, a relevância jurídica que confere legitimidade à imputação objetiva
exige analisar as circunstâncias da situação de perigo. É perfeitamente
possível que diante da existência concreta do dever de agir (que surge com a
situação real de perigo) o comportamento finalisticamente
orientado para não atender ao comando normativo não produza,
de imediato, o aumento do perigo, em circunstância que o omitente
possa postergar sua intervenção no tempo. Em outras palavras, é possível que
diante da possibilidade real de atuação e durante o decurso da inatividade
relevante o perigo não aumente. Para a hipótese, Pierangelli
e Zaffaroni oferecem a seguinte lição: “os atos de
tentativa existem desde que o agente, com o dolo de omitir o auxílio, realiza
uma ação diferente, enquanto que o delito está consumado quando o transcurso do
tempo aumenta o perigo e diminui as possibilidades de auxiliar”.56
Tal colocação merece apenas um reparo: o crime, que teve iniciada sua execução
quando da decisão de não atender ao dever concreto de agir, também se consuma
quando o agente deixa passar sua última oportunidade de intervenção defensiva.
Nessa hipótese, a impossibilidade concreta de atendimento ao comando normativo
se verifica por ato de vontade do omitente.

7.2
Omissão imprópria

A
omissão imprópria se caracteriza pelo especial dever de agir para impedir o
resultado, que distingue dentre os membros da sociedade aqueles que possuem
obrigação relevante de proteção ao bem jurídico, ao definir quem esteja na
posição de garantidor. O Código Penal brasileiro enfrentou de maneira expressa
o tema dos crimes comissivos por omissão, estabelecendo no parágrafo 2º do
artigo 13, quando o agente possui especial dever de agir para evitar o
resultado. Com a reforma penal de 1984, tem-se entendido que o legislador
evitou as dificuldades do tema, optando claramente por estabelecer uma
causalidade normativa, baseada na concepção da posição de garantidor. 57

Certamente,
o resultado a que se refere o legislador é o resultado naturalístico, já que a
construção normativa visa exatamente equiparar a omissão à causação
de um resultado lesivo. Dessa forma, os crimes omissivos impróprios são crimes
materiais. Segundo o tratamento que o Código Penal em vigor conferiu aos crimes
comissivos por omissão, é possível que a imputação objetiva se refira a
qualquer das figuras típicas previstas na legislação nacional. Não há qualquer
limitação às possibilidades de atuação do dever especial de agir, como ocorre,
por exemplo, para a responsabilidade advinda da produção do resultado lesivo
por inobservância aos deveres objetivos de cuidado (art. 18, parágrafo único).

Sendo
os delitos omissivos impróprios crimes materiais, existe acordo na doutrina
quanto a possibilidade da tentativa. Entretanto, a
delimitação do momento da tentativa constitui problema a ser resolvido. Três
são orientações existentes58:
a) considerar decisiva a primeira oportunidade de salvamento; b) da última
chance de fazê-lo; ou c) o aumento da situação de perigo provocado pelo atraso
da intervenção.

Como
o dever de agir surge logo que o bem jurídico esteja sob perigo59, a melhor solução é entender-se que
a tentativa nos delitos impróprios de omissão tem início quando a conduta é finalisticamente orientada no sentido da violação ao dever
concreto de impedir o resultado. Deve-se observar que o dever de agir somente
surge diante da existência de perigo real. Enquanto não houver perigo ao bem
jurídico, não existe ação esperada de salvamento. A consumação do delito
omissivo impróprio não se dá com a impossibilidade voluntária de intervenção
(logo após a última chance de atuar), posto tratar-se de delitos materiais, mas
com a produção do resultado lesivo. Por isso, pode-se concluir que a proposição
de Roxin não é correta, ao definir o início da
execução no momento em que ocorre o aumento do risco de produzir-se o resultado
lesivo.60
Nessa perspectiva, se o omitente não observa o dever
de agir mas abandona o local antes do aumento da situação de perigo, não
haveria qualquer relevância jurídica. Com certeza, essa não é a melhor solução.
Nesse caso, deve ser reconhecido o início da tentativa tão logo o agente,
diante do dever concreto de agir para proteger o bem jurídico, decida-se por
não atendê-lo.

Conclusão

Nos
limites desse apertado estudo, pode-se visualizar, ainda que superficialmente,
a capacidade de rendimento da contribuição oferecida pelo princípio do
incremento do risco ao tema da imputação objetiva. O enriquecimento da noção de
imputação traz importantes conseqüências para a intervenção repressiva, na
medida em que possibilita excluir a tipicidade das contribuições individuais
que não sejam consideradas juridicamente relevantes.  No entanto, a
exigência de aumento da situação de perigo, que é perfeitamente aplicável aos
delitos comissivos, não colhe os mesmos frutos na hipótese de delitos
omissivos. O próprio Roxin reconhece que a doutrina
do incremento do risco não está acabada.61 Como nos delitos omissivos a relação
juridicamente relevante somente se estabelece face à violação do dever
juridicamente exigível de agir para evitar o resultado, cabe ao destinatário
desse dever não somente impedir que o perigo aumente, mas também afastar o
perigo de lesão ao bem jurídico, quando lhe for possível.

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Notas

1. COSTA JÚNIOR, Paulo
José da. Nexo causal. São Paulo: Malheiros, 1996, p.43-44.

2. WESSELS, Johannes. Direito penal. Porto alegre: Sérgio Antonio Fabris, 1976, p. 40. No mesmo sentido:
BACIGALUPO, Enrique. Delitos impróprios de omision. Buenos Aires: Pannedille,
1970, p.76.

3. JESCHECK, Hans Heinrich. Tratado de derecho penal. Barcelona: Bosch, vol. 1,
1981, p. 378. No mesmo sentido,
BELING, Ernest Von. Esquema de derecho penal. Buenos Aires: Depalma, 1944, p. 65-66. Já asseverava o prof.
da Universidade de Munich que o problema da
causalidade jurídico-penal diz respeito à compreensão do conteúdo dos
delitos-tipos em
particular. O legislador não está preocupado em ensinar como
as coisas se sucedem no mundo, mas em estabelecer regras  para a vida
social.

4. ROXIN, Claus. Problemas fundamentais de direito penal.
Lisboa: Vega, 1986, p. 145-146.

5. ROXIN, Claus. Op. Cit., p. 168.

6. MAURACH, Reinhart. Derecho penal. Buenos
Aires: Astrea, 1994, p. 318.

7. JESCHECK, Hans Heinrich. Op. Cit., p. 379. No mesmo sentido: BACIGALUPO,
Enrique. Delitos impróprios de omision
Cit. p. 77; COSTA JÚNIOR,
Paulo José da. Op. Cit., p.
122-123; e MUNHOZ NETO, Alcides. Os crimes omissivos no Brasil.
Comunicação ao Colóquio preparatório do XIII Congresso Internacional de Direito
Penal, a ser realizado na cidade do Cairo, em 1984, p. 17.

8.
WELZEL, Hans. Derecho penal alemán. Chile: Ed. Jurídica de Chile, 1987.

9. ROXIN, Claus. Op. Cit., p.146-147.

10. TAVARES, Juarez. As
controvérsias em torno dos crimes omissivos
. Rio de Janeiro: Instituto
Latino Americano de Cooperação Penal, 1996, p. 30.

11. MAGGIORE, Giuseppe. Derecho penal. Bogotá: Temis,
1954, p. 322-336. No mesmo sentido: JESCHECK, Hans Heinrich.
Op. Cit., p. 380-385;
BACIGALUPO, Enrique. Delitos impróprios de omision. Cit. p. 77; e COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Op. Cit., p. 78-98.

12. JAKOBS, Günther. Derecho Penal – parte general. Madrid: Marcial Pons, 1997, p.227. No mesmo sentido: JESCHECK, Hans Heinrich. Op. Cit., p. 381.

13. TOLEDO, Francisco de
Assis. Princípios básicos de direito penal. São Paulo: Saraiva, 1991, p.111. No mesmo sentido, TAVARES, Juarez. Op.
Cit.,
p. 52; e,
referindo-se a parte geral de 1940: HUNGRIA, Nelson. Comentários ao código
penal
. Rio de Janeiro: Forense, 1983, vol. I, tomo
I, p. 48.

14.  COSTA JÚNIOR,
Paulo José da. Op. Cit.,
p. 101 e 104.

15. COSTA JÚNIOR, Paulo
José da. Op. Cit., p.
80.

16. COSTA JÚNIOR, Paulo
José da. Op. Cit., p.
80.

17. BELING, Ernest Von. Op. Cit.,
p. 61.

18. VON LISZT, Franz. Tratado
de direito penal allemão
. Rio de Janeiro: F.Briguiet, 1899, vol. I, p. 201.

19. MAGGIORE, Giuseppe. Op. Cit., p. 323-324. No mesmo sentido: JESCHECK, Hans
Heinrich. Op. Cit., p. 380.

20. JAKOBS, Günther.  Op. Cit., p.
227.

21. JESCHECK, Hans Heinrich. Op. Cit., p. 383.

22. TAVARES, Juarez. Op. Cit., p.54.

23. FERRAJOLI, Luigi. Derecho e razón. Madrid: Trotta,
1995, p. 533.

24. TAVARES, Juarez. Op. Cit., p.16.

25. PALIS, Jacob. Sistemas
organizados e sistemas caóticos
. in Caos acaso
e determinismo
. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995, p. 11-13.

26. JAKOBS, Günther. Op. Cit., p. 232.

27. JAKOBS, Günther. Op. Cit., p. 229-230. O prof. alemão
cita como exemplo a ação de quem troca de lugar a vítima de envenenamento, sem
que isso influa no transcurso do processo letal. O deslocamento espacial, no
momento da produção da morte, por si só, não interessa à imputação objetiva se
a mudança de local não for capaz de impedir a possibilidade de salvamento.

28. RAMÍREZ, Juan
Bustos. Manual de derecho penal. Barcelona:
Ariel, 1989, p.148.

29. BELING, Ernest Von. Op. Cit., p. 64.

30. RAMÍREZ, Juan
Bustos. Op. Cit., p.
148. No mesmo sentido: COSTA JÚNIOR, Paulo José da. Op. Cit., p. 91-92.

31. RAMÍREZ, Juan
Bustos. Op. Cit., p.
149; e COSTA JÚNIOR., Paulo José da. Op. Cit., p. 90.

32. RAMÍREZ, Juan
Bustos. Op. Cit., p.
149.

33. COSTA JÚNIOR, Paulo
José da. Op. Cit., p.
91.

34. MEZGER, Edmundo. Tratado
de derecho penal
. Madrid: Revista de derecho privado, 1946, tomo I , p.
238-240.

35. ROXIN, Claus. Op. Cit., p. 154-160.

36. RAMÍREZ, Juan
Bustos. Op. Cit., p.
245.

37. ROXIN, Claus. Op. Cit., p. 148.

38. JAKOBS, Günther.  Op. Cit., p.
230-232.

39. ROXIN, Claus. Op. Cit., p. 166.

40. JESCHECK, Hans Heinrich. Op. Cit., p. 389.

41. ROXIN, Claus. Op. Cit., p. 152.

42. JAKOBS, Günther. Op. Cit., p. 231.

43. JAKOBS, Günther. Op. Cit., p.
231-232.

44. ROXIN, Claus. Op. Cit., p. 149.

45. TAVARES, Juarez. Op.
Cit.,
p. 29-30.

46. BACIGALUPO, Enrique. Op. Cit., p. 20-52 e 76-81; COSTA JÚNIOR., Paulo José da. Op.
Cit.,
p. 114-121.

47. VON LISZT, Franz. Op.
Cit.,
p. 211.

48. COSTA JÚNIOR., Paulo José da. Op. Cit., p.116.

49. VON LISZT, Franz. Op.
Cit.,
p. 213.

50. COSTA JÚNIOR, Paulo
José da. Op. Cit., p.
122.

51. TAVARES, Juarez. Op.
Cit.,
p. 29.

52. RAMÍREZ, Juan
Bustos.

53. PIERANGELLI, José Henrique
e ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Da tentativa. São Paulo: Rev. dos Tribunais,
1988, p. 112.

54. TAVARES, Juarez. Op.
Cit.,
p. 78.

55. Por todos, veja-se
HUNGRIA, Nelson. Op. Cit.,
p. 68; e TAVARES, Juarez. Op. Cit., p. 89.

56. PIERANGELLI, José
Henrique e ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Op. Cit., p. 120.

57. TOLEDO, Francisco de
Assis. Op. Cit., p.
116.

58. TAVARES, Juarez. Op.
Cit.,
p.93.

59. PIERANGELLI, José
Henrique e ZAFFARONI, Eugênio Raúl. Op. Cit., p. 114.

60. ROXIN, Claus. Op. Cit., p. 151.

61. ROXIN, Claus. Op. Cit., p. 152.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Fernando A. N. Galvão da Rocha

 

Promotor de Justiça em Belo Horizonte-MG
Professor da Faculdade de Direito da UFMG

 


 

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