Claudia Pilatti Tavarnaro[1]
Resumo: Este trabalho aborda o conceito de imunidade tributária. Em específico, trata das imunidades outorgadas às instituições beneficentes de assistência social quanto aos impostos de qualquer natureza e às contribuições para a seguridade social, bem como suas condicionantes materiais e formais, entre as quais se insere a Certificação de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS). Diante da polêmica constitucionalidade desta Certificação e do resultado do julgado do Recurso Extraordinário nº 566.622 pelo Supremo Tribunal Federal, propõe a desnecessidade do seu requerimento para o reconhecimento das imunidades aludidas, desde que demonstrado, por outros meios, o cumprimento dos requisitos previstos em lei complementar.
Palavras-chave: Direito Tributário. Imunidade. Entidades Beneficentes de Assistência Social. CEBAS.
Abstract: This work addresses the concept of tax immunity. In particular, it reports the immunities granted to social assistance institutions and charities entities regarding taxes of any kind and social security contributions. Besides that, it approaches their material and formal conditions, including the Certification of Beneficent Entity of Social Assistance (CEBAS). In view of the controversial constitutionality of this Certification and the judgment result of Extraordinary Appeal No. 566.622 by the Federal Supreme Court, it proposes the unnecessary of the institute to the recognition of immunities alluded, since the requirements provided in the complementary law are demonstrated by any alternative means.
Keywords: Tax Law. Immunity. Social Assistance Entities. CEBAS.
Sumário: Introdução. 1. Conceito(s) de imunidade: um exame das disposições contidas nos artigos 150, VI, “c”, e 195, § 7º, da CRFB. 2. Entidades beneficentes de assistência social e as condicionantes formais e materiais ao reconhecimento das imunidades. 3. A polêmica constitucionalidade da Lei nº 12.101/2009 e da exigência de CEBAS. Conclusão. Referências.
Introdução
Tributo é uma das formas que o Estado possui para obter recursos destinados a financiar suas atividades. Poder de tributar é o direito do Estado de intervir no patrimônio dos cidadãos a fim de obter os recursos necessários a viabilizar suas finalidades.
No âmbito do Direito Financeiro, segundo doutrina de Aliomar Baleeiro, “(…) para auferir o dinheiro necessário à despesa pública, os governos, pelo tempo afora, socorrem-se de uns poucos meios universais”[2]. De acordo com o autor, esses meios universais assumem grau maior ou menor de importância segundo a época e as contingências experimentadas pelos Estados. Correspondem a tais meios: a) as extorsões sobre outros povos ou as doações voluntárias deles recebidas; b) o recolhimento das rendas produzidas pelos bens e empresas do Estado; c) a exigência de tributos ou penalidades com uso da coação; d) a atitude de tomar ou forçar empréstimos; e) a fabricação de dinheiro metálico ou de papel[3].
No Estado Social de Direito, a tributação é funcional, isto é, a competência tributária é assegurada como instrumento para a garantia dos direitos sociais. Esta noção pode ser extraída do artigo 13 da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “Artigo 13º – Para a manutenção da força pública e para as despesas de administração é indispensável uma contribuição comum, que deve ser repartida entre os cidadãos de acordo com as suas possibilidades[4].
Nesse sentido, contribuir é um aspecto de exercício da cidadania. É um dever e, ao mesmo tempo, um direito. Nas palavras de Leandro Paulsen, há um “dever fundamental de pagar tributos”[5] e, ainda, “(…) a tributação, em Estados democráticos e sociais, é instrumento da sociedade para a consecução de seus próprios objetivos”[6].
Se a tributação é inevitável, ela deve ser justa e observar os limites ao poder de tributar. Tais limitações estão previstas constitucionalmente, na legislação infraconstitucional ou derivam de princípios considerados implícitos no ordenamento jurídico. Princípios, regras, além de imunidades e a própria competência tributária são limitações a esse poder.
É importante considerar as imunidades e demais limitações ao poder de tributar como garantias fundamentais, a fim de atribuir-lhes a roupagem de cláusulas pétreas, nos moldes do artigo 60, § 4º, da Constituição da República Federativa do Brasil (CRFB). Com efeito, o Supremo Tribunal Federal declarou que essas limitações constituem cláusulas pétreas, em caso no qual foram analisadas as imunidades dos templos de qualquer culto (artigo 150, VI, “b”, CRFB), sobre livros, jornais e periódicos (artigo 150, VI, “d”, CRFB), e das entidades sindicais (art. 150, VI, “c”, CRFB)[7].
Essas limitações, quando respeitadas, acabam por revestir de constitucionalidade e legitimidade a cobrança de tributos pelos entes estatais.
As imunidades consistem em obstáculos constitucionais ao poder de tributar. O texto constitucional confere a competência tributária, mas, ao mesmo tempo, impõe sua limitação quando configurados certos pressupostos. Sobre o tema, Roque Antonio Carrazza propõe que, a partir do momento em que promulgada a CRFB, as pessoas políticas não mais detêm o poder de tributar, mas apenas a competência tributária: “Poder tributário tinha a Assembleia Nacional Constituinte, que era soberana. Ela, realmente, tudo podia, inclusive em matéria tributária. A partir do momento, porém, em que foi promulgada a Constituição Federal, o poder tributário retornou ao povo (detentor da soberania). O que passou a existir, em seu lugar, foram as competências tributárias, que a mesma Constituição Federal repartiu entre a União, os Estados-membros, os Municípios e o Distrito Federal”[8].
As imunidades foram estabelecidas pelo poder constituinte com o objetivo de resguardar valores tidos por fundamentais. Entre os valores protegidos pela CRFB, é possível apontar o equilíbrio federativo, a liberdade política, religiosa, de associação, de pensamento e de expressão. Conforme ensinamento de José Souto Maior Borges, elas servem a “(…) assegurar certos princípios fundamentais ao regime, a incolumidade de valores éticos e culturais consagrados pelo ordenamento constitucional positivo e que se pretende manter livres das interferências ou perturbações da tributação”[9].
As imunidades, portanto, são instituto caracterizado por diversas concepções doutrinárias. São forma de limitação ao poder de tributar ou limitação à competência tributária, a depender do posicionamento adotado. Para alguns autores, correspondem a normas declaratórias da incompetência das pessoas políticas para a instituição de tributos. Nesse sentido, Paulo Barros de Carvalho afirma que as imunidades constituem: “(…) classe finita e imediatamente determinável de normas jurídicas, contidas no texto da Constituição Federal, e que estabelecem, de modo expresso, a incompetência das pessoas políticas de direito constitucional interno para expedir regras instituidoras de tributos que alcancem situações específicas e suficientemente caracterizadas”[10].
Para outros autores, são regras jurídicas de categoria superior que impedem a incidência da lei tributária. É o que aduz Hugo de Brito Machado: “Pode ainda ocorrer que a lei de tributação esteja proibida, por dispositivo da Constituição, de incidir sobre certos fatos. Há, neste caso, imunidade. A regra constitucional impede a incidência da regra jurídica de tributação. Caracteriza-se, portanto, a imunidade pelo fato de decorrer de regra jurídica de categoria superior, vale dizer, de regra jurídica residente na Constituição, que impede a incidência da lei ordinária de tributação”[11].
O presente trabalho adota o conceito de imunidade como norma negativa de competência. Nessa linha, Leandro Paulsen leciona: “As regras constitucionais que proíbem a tributação de determinadas pessoas, operações, objetos ou de outras demonstrações de riqueza, negando, portanto, competência tributária, são chamadas de imunidades tributárias. Isso porque tornam imunes à tributação as pessoas ou base econômicas nelas referidas relativamente aos tributos que a própria regra constitucional negativa de competência específica”[12].
As imunidades possuem sede exclusiva no texto constitucional. Como é a CRFB que confere a competência tributária, somente ela pode estabelecer as imunidades. Todavia, embora apenas o texto constitucional possa fixá-las, cabe à lei complementar regulamentá-las, na forma do artigo 146, II, da CRFB: “Cabe à lei complementar: (…) regular as limitações constitucionais ao poder de tributar”[13].
Há, no texto constitucional, duas previsões de imunidade para instituições de assistência social e entidades beneficentes. A primeira delas recai sobre impostos e é estabelecida no artigo 150, VI, “c”, da CRFB: “Art. 150. Sem prejuízo de outras garantias asseguradas ao contribuinte, é vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: (…) VI – instituir impostos sobre: (…) c) patrimônio, renda ou serviços dos partidos políticos, inclusive suas fundações, das entidades sindicais dos trabalhadores, das instituições de educação e de assistência social, sem fins lucrativos, atendidos os requisitos da lei”[14].
Esta imunidade é considerada genérica pela Suprema Corte, pois nega a competência para instituição de impostos de qualquer natureza. Também é compreendida como imunidade subjetiva, na medida em que é outorgada em função da pessoa, isto é, em função do sujeito beneficiado[15].
A segunda imunidade refere-se às contribuições para a seguridade social, também chamadas de contribuições previdenciárias. Ela está prevista no artigo 195, § 7º, da CRFB: “Art. 195. A seguridade social será financiada por toda a sociedade, de forma direta e indireta, nos termos da lei, mediante recursos provenientes dos orçamentos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, e das seguintes contribuições sociais: I – do empregador, da empresa e da entidade a ela equiparada na forma da lei, incidentes sobre: a) a folha de salários e demais rendimentos do trabalho pagos ou creditados, a qualquer título, à pessoa física que lhe preste serviço, mesmo sem vínculo empregatício; b) a receita ou o faturamento; c) o lucro; II – do trabalhador e dos demais segurados da previdência social, podendo ser adotadas alíquotas progressivas de acordo com o valor do salário de contribuição, não incidindo contribuição sobre aposentadoria e pensão concedidas pelo Regime Geral de Previdência Social; III – sobre a receita de concursos de prognósticos. IV – do importador de bens ou serviços do exterior, ou de quem a lei a ele equiparar. (…) § 7º São isentas de contribuição para a seguridade social as entidades beneficentes de assistência social que atendam às exigências estabelecidas em lei”[16].
Apesar de o dispositivo constitucional utilizar a expressão “são isentas”, a hipótese em comento é de imunidade. Tecnicamente, a isenção deriva de disposição legal e consiste em benefício fiscal que pressupõe a existência de competência tributária e o seu exercício. Uma vez instituído o tributo, a isenção provoca a desoneração de determinado contribuinte ou operação e depende sempre de fonte legal[17].
Com efeito, o Supremo Tribunal Federal declarou que a previsão não se trata de benefício fiscal, mas de verdadeira imunidade[18]. Ademais, no Recurso Extraordinário nº 636.941, decidiu que “A isenção prevista na Constituição Federal (art. 195, § 7º) tem o conteúdo de regra de supressão de competência tributária, encerrando verdadeira imunidade”[19].
Esta última imunidade diz respeito às contribuições da seguridade social, abrangendo todas aquelas instituídas no exercício da competência do artigo 195, I a IV, da CRFB, e também as instituídas no exercício da competência residual outorgada pelo § 4º do mesmo dispositivo. Desse modo, é aplicável às contribuições previdenciárias, PIS e COFINS (inclusive de importação) e contribuição social sobre o lucro. Não abrange, porém, as contribuições destinadas a terceiros[20].
Referida imunidade é entendida como condicionada, vez que há remissão expressa, no texto constitucional, a condições ou requisitos estabelecidos pela lei. A depender da existência ou não de remissão, na CRFB, à existência de condicionantes na legislação infraconstitucional, as imunidades são classificadas em condicionadas ou incondicionadas[21].
Via de regra, é reconhecida a autoaplicabilidade das imunidades, enquanto normas negativas de competência de tributar. Relativamente às imunidades que exigem regulamentação (condicionadas), o entendimento da doutrina também é no sentido da autoaplicabilidade. Nessa linha, é a compreensão de Regina Helena Costa: “Se (…) a norma constitucional acolhedora da imunidade tributária qualificar-se como de eficácia contida e aplicabilidade imediata, mas passível de restrição, estar-se-á diante de uma imunidade condicionável aos termos da lei complementar. Preferimos o termo ‘condicionável’ ao vocábulo ‘condicionada’, comumente utilizado pela doutrina, porque, como afirmamos anteriormente, a imunidade tributária não se abriga em normas constitucionais de eficácia limitada, que demandam, necessariamente, a intervenção do legislador infraconstitucional (…) Em decorrência desse raciocínio, a eventual hipótese de omissão legislativa não implicará a inviabilização da fruição da exoneração fiscal”[22].
Entretanto, em sentido contrário ao alinhavado pela doutrina, o Supremo Tribunal Federal, ao analisar o revogado artigo 153, § 2º, II, da CRFB, considerou possível a retenção de imposto de renda na fonte sobre os proventos dos aposentados com mais de 65 anos, com renda constituída exclusivamente de rendimentos de trabalho, até que surgisse lei fixando os termos e limites da imunidade[23].
Instituições de assistência social são aquelas que desenvolvem uma das atividades descritas no artigo 203 da CRFB: “Art. 203. A assistência social será prestada a quem dela necessitar, independentemente de contribuição à seguridade social, e tem por objetivos: I – a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; II – o amparo às crianças e adolescentes carentes; III – a promoção da integração ao mercado de trabalho; IV – a habilitação e reabilitação das pessoas portadoras de deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; V – a garantia de um salário mínimo de benefício mensal à pessoa portadora de deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover à própria manutenção ou de tê-la provida por sua família, conforme dispuser a lei”[24].
Esta definição se encontra refletida nos artigos 2º e 3º da Lei nº 8.742/1993, que dispõem sobre a organização da assistência social[25]. Essas instituições auxiliam o Estado na realização de necessidades básicas em favor da população. Até 27/11/2008, necessitavam de certificação conferida pelo Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS). Após a edição da Lei nº 12.101/2009, com as alterações pelo Decreto nº 8.242/2013, passaram a depender de certificados concedidos pelo respectivo Ministério da área de atuação.
Em razão da burocracia, elas enfrentam dificuldades para conseguir o reconhecimento do governo como entidades prestadoras de serviços nas áreas da assistência social. É o que argumenta Maria Rejane Bitencourt Machado: “Estas entidades, por serem de fins não econômicos, têm por natureza imunidade tributárias de impostos. Depois de preenchida uma série de requisitos passam a gozar de isenções de contribuições previdenciárias, onde uma das principais condições é o Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social, aquele que anteriormente era conferido pelo CNAS e agora será deferido ou não pelos respectivos Ministérios, conforme as respectivas áreas de atuação. Por esta razão acabam se tornando alvo da fiscalização que busca valores para compor os cofres públicos, geralmente deficitários e, igualmente, para verificar o cumprimento, por parte das EBAS, das ações sociais por elas desenvolvidas, bem como dos demais aspectos legais inerentes à certificação”[26].
Há quem proponha que as entidades de assistência social constituem gênero, do qual as entidades beneficentes de assistência social e as entidades filantrópicas são espécies. Segundo essa linha argumentativa, entidade beneficente é aquela que dedica parte de suas atividades ao atendimento gratuito da população vulnerável. A entidade filantrópica, por sua vez, é a que atua em prol das pessoas carentes de modo gratuito e universal, com manutenção exclusiva a partir de doações[27].
Este estudo concentra seu objeto nas entidades beneficentes de assistência social, compreendidas como aquelas dependente do reconhecimento governamental por meio da Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (CEBAS), que fazem jus, nesta condição, às imunidades constitucionais em relação aos impostos e também às contribuições para a seguridade social, referidas nos artigos 150, VI, “c”, e 195, § 7º, ambos da CRFB.
Para o reconhecimento da atuação beneficente de assistência social, o ordenamento jurídico não exige filantropia. Pode haver atividade econômica rentável, mas é vedada a finalidade lucrativa. Dito de outro modo, é possível que a atividade seja financiada a partir de outras trabalhos remunerados, desde que as receitas sejam aplicadas apenas para os objetivos da instituição. Assim, não se pode confundir a finalidade beneficente ou assistencial com a ausência de superávit, o qual é permitido e até mesmo desejável, a fim de possibilitar a ampliação do escopo das atividades desempenhadas. No entanto, todos os resultados devem ser revertidos o desempenho de suas finalidades[28].
O caráter assistencial depende da natureza da atividade que constitui o objeto social dessas entidades. Em sentido estrito, ele advém do desempenho das finalidades previstas no artigo 203 da CRFB, já mencionado. Em sentido amplo, o Supremo Tribunal Federal considera assistenciais também as atividades voltadas à educação e à promoção ou à recuperação da saúde[29].
Como visto, o artigo 146, II, da CRFB, exige a lei complementar para a disciplina das limitações ao poder de tributar, enquanto os artigos 150, VI “c” e 195, § 7º, mencionam apenas os requisitos e as exigências da lei. Nas hipóteses em que a regulamentação de uma imunidade é expressamente exigida pelo texto constitucional, há controvérsia quanto ao instrumento adequado para a sua veiculação.
O Supremo Tribunal Federal, em mais de uma oportunidade, declarou que, quando o texto constitucional refere-se à lei, esta é a lei ordinária, porquanto a lei complementar deve ser requerida expressamente[30]. No que toca à discussão em exame, no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 428.815-0, a Corte entendeu que as condições materiais para o gozo de imunidade, como o modo beneficente de atuação das entidades de assistência social, são matéria reservada à lei complementar, por força do art. 146, II, da CRFB. De outro lado, os aspectos meramente procedimentais, referentes à certificação, fiscalização e controle administrativo, como a obtenção da Certificação de Entidade Beneficente de Assistência Social (CEBAS), podem ser disciplinadas pela lei ordinária[31].
É o Código Tributário Nacional (Lei nº 5.172/66) que regulamenta a matéria no nível de lei complementar, considerando que foi recepcionado, nesta condição, pela ordem constitucional[32]. No âmbito da legislação ordinária, a matéria é disciplinada pela Lei nº 8.212/1991.
O artigo 14 do Código Tributário Nacional (CTN) dispõe sobre a imunidade genérica a impostos de entidades beneficentes de assistência social e exige, como condicionantes materiais, a não distribuição de parcela de patrimônio e rendas a qualquer título; aplicação integral no país dos seus recursos para conservação dos objetivos institucionais; manutenção de escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão: “Art. 14. O disposto na alínea c do inciso IV do artigo 9º é subordinado à observância dos seguintes requisitos pelas entidades nele referidas: I – não distribuírem qualquer parcela de seu patrimônio ou de suas rendas, a qualquer título; II – aplicarem integralmente, no País, os seus recursos na manutenção dos seus objetivos institucionais; III – manterem escrituração de suas receitas e despesas em livros revestidos de formalidades capazes de assegurar sua exatidão. § 1º Na falta de cumprimento do disposto neste artigo, ou no § 1º do artigo 9º, a autoridade competente pode suspender a aplicação do benefício. § 2º Os serviços a que se refere a alínea c do inciso IV do artigo 9º são exclusivamente, os diretamente relacionados com os objetivos institucionais das entidades de que trata este artigo, previstos nos respectivos estatutos ou atos constitutivos”[33].
É preciso observar que o dispositivo trata expressamente da imunidade quanto aos impostos, nada dispondo sobre a imunidade quanto às contribuições para a seguridade social. Em relação a estas, portanto, a sua aplicação decorre de analogia.
No âmbito da legislação ordinária, o artigo 55 da Lei nº 8.212/1991 trazia condicionantes específicas para o reconhecimento da imunidade sobre as contribuições à seguridade social das entidades beneficentes de assistência social: “Art. 55. Fica isenta das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23 desta Lei a entidade beneficente de assistência social que atenda aos seguintes requisitos cumulativamente: I – seja reconhecida como de utilidade pública federal e estadual ou do Distrito Federal ou municipal; II – seja portadora do Registro e do Certificado de Entidade Beneficente de Assistência Social, fornecidos pelo Conselho Nacional de Assistência Social, renovado a cada três anos; III – promova a assistência social beneficente, inclusive educacional ou de saúde, a menores, idosos, excepcionais ou pessoas carentes; IV – não percebam seus diretores, conselheiros, sócios, instituidores ou benfeitores, remuneração e não usufruam vantagens ou benefícios a qualquer título; V – aplique integralmente o eventual resultado operacional na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos institucionais apresentando, anualmente, ao órgão do INSS competente, relatório circunstanciado de suas atividades”[34].
Em análise de embargos de declaração opostos contra o acórdão do julgamento do Recurso Extraordinário nº 566.622, o Supremo Tribunal Federal acabou por declarar constitucional o artigo 55, II, da Lei nº 8.212/1991 e reconhecer a legitimidade da exigência da Certificação de Entidade Beneficente de Assistência Social: “Decisão: O Tribunal, por maioria, acolheu parcialmente os embargos de declaração para, sanando os vícios identificados, i) assentar a constitucionalidade do art. 55, II, da Lei nº 8.212/1991, na redação original e nas redações que lhe foram dadas pelo art. 5º da Lei nº 9.429/1996 e pelo art. 3º da Medida Provisória n. 2.187 -13/2001; e ii) a fim de evitar ambiguidades, conferir à tese relativa ao tema n. 32 da repercussão geral a seguinte formulação: “A lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo art. 195, § 7º, da CF, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas”, nos termos do voto da Ministra Rosa Weber, Redatora para o acórdão, vencido o Ministro Marco Aurélio (Relator). Ausente, justificadamente, o Ministro Celso de Mello. Presidência do Ministro Dias Toffoli. Plenário, 18.12.2019”[35].
Aludida decisão foi tomada em plenário em 18/12/2019 e a ata de julgamento foi publicada e divulgada em 31/01/2020.
Ocorre que a Lei nº 12.101/2009 revogou o artigo 55 da Lei nº 8.212/1991 e ampliou os requisitos necessários ao reconhecimento da imunidade e ao processo de certificação das entidades beneficentes de assistência social, trazendo verdadeiras condicionantes materiais. Entre os dispositivos sobre o assunto, está o artigo 29 da Lei nº 12.101/2009: “Art. 29. A entidade beneficente certificada na forma do Capítulo II fará jus à isenção do pagamento das contribuições de que tratam os arts. 22 e 23 da Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, desde que atenda, cumulativamente, aos seguintes requisitos: I – não percebam, seus dirigentes estatutários, conselheiros, sócios, instituidores ou benfeitores, remuneração, vantagens ou benefícios, direta ou indiretamente, por qualquer forma ou título, em razão das competências, funções ou atividades que lhes sejam atribuídas pelos respectivos atos constitutivos; II – aplique suas rendas, seus recursos e eventual superávit integralmente no território nacional, na manutenção e desenvolvimento de seus objetivos institucionais; III – apresente certidão negativa ou certidão positiva com efeito de negativa de débitos relativos aos tributos administrados pela Secretaria da Receita Federal do Brasil e certificado de regularidade do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço – FGTS; IV – mantenha escrituração contábil regular que registre as receitas e despesas, bem como a aplicação em gratuidade de forma segregada, em consonância com as normas emanadas do Conselho Federal de Contabilidade; V – não distribua resultados, dividendos, bonificações, participações ou parcelas do seu patrimônio, sob qualquer forma ou pretexto; VI – conserve em boa ordem, pelo prazo de 10 (dez) anos, contado da data da emissão, os documentos que comprovem a origem e a aplicação de seus recursos e os relativos a atos ou operações realizados que impliquem modificação da situação patrimonial; VII – cumpra as obrigações acessórias estabelecidas na legislação tributária; VIII – apresente as demonstrações contábeis e financeiras devidamente auditadas por auditor independente legalmente habilitado nos Conselhos Regionais de Contabilidade quando a receita bruta anual auferida for superior ao limite fixado pela Lei Complementar no 123, de 14 de dezembro de 2006. § 1º A exigência a que se refere o inciso I do caput não impede: I – a remuneração aos diretores não estatutários que tenham vínculo empregatício; II – a remuneração aos dirigentes estatutários, desde que recebam remuneração inferior, em seu valor bruto, a 70% (setenta por cento) do limite estabelecido para a remuneração de servidores do Poder Executivo federal. § 2º A remuneração dos dirigentes estatutários referidos no inciso II do § 1o deverá obedecer às seguintes condições: I – nenhum dirigente remunerado poderá ser cônjuge ou parente até 3o (terceiro) grau, inclusive afim, de instituidores, sócios, diretores, conselheiros, benfeitores ou equivalentes da instituição de que trata o caput deste artigo; e II – o total pago a título de remuneração para dirigentes, pelo exercício das atribuições estatutárias, deve ser inferior a 5 (cinco) vezes o valor correspondente ao limite individual estabelecido neste parágrafo. § 3º O disposto nos §§ 1o e 2o não impede a remuneração da pessoa do dirigente estatutário ou diretor que, cumulativamente, tenha vínculo estatutário e empregatício, exceto se houver incompatibilidade de jornadas de trabalho”[36].
Não obstante, à luz dos argumentos esposados no julgamento do Recurso Extraordinário nº 566.622, na linha da tese vencedora proposta pelo Ministro Marco Aurélio, as disposições da referida legislação são formalmente inconstitucionais e a exigência de CEBAS para o reconhecimento do direito à imunidade é, ao mínimo, controversa.
No julgamento do Recurso Extraordinário nº 566.622, o Supremo Tribunal Federal inicialmente fixou a tese de que: “Os requisitos para o gozo de imunidade hão de estar previstos em lei complementar” (Tema nº 32 de repercussão geral)[37].
Contudo, em análise de embargos de declaração opostos pela Fazenda Nacional, o plenário da Corte decidiu pela constitucionalidade do artigo 55. II, da Lei nº 8.212/1991, na redação original e nas redações dadas pela Lei nº 9.429/1996 e pela Medida Provisória nº 2.187-13/2001, bem como modificou a tese anteriormente fixada para a seguinte: “A lei complementar é forma exigível para a definição do modo beneficente de atuação das entidades de assistência social contempladas pelo art. 195, § 7º, da CF, especialmente no que se refere à instituição de contrapartidas a serem por elas observadas”[38].
Portanto, ainda que prevista em lei ordinária, a exigência da Certificação de Entidades Beneficentes de Assistência Social (CEBAS) como requisito para o gozo da imunidade tributária em relação às contribuições para a seguridade social foi considerada constitucional pela Corte. Após o exame dos embargos declaratórios, foi firmado entendimento de que a lei ordinária pode dispor sobre aspectos formais, como a certificação, fiscalização e controle das entidades beneficentes, denominados, pelo Supremo Tribunal Federal, de meramente procedimentais, entre os quais estaria inserida a exigência de CEBAS.
A decisão acaba por vulnerar o exercício de direito à imunidade por tais entidades, além de configurar contradição com a tese anteriormente fixada no próprio julgado, no sentido de que apenas a lei complementar poderia estipular condicionantes para o gozo das imunidades. Isso porque a mencionada Certificação, na forma estabelecida pela legislação ordinária, não possui caráter meramente procedimental.
Atualmente, ela somente é concedida se atendidos os requisitos elencados pela Lei nº 12.101/2009. A título exemplificativo, para fazer jus à certificação, segundo a legislação, as entidades atuantes na área de saúde devem “(…) ofertar a prestação de seus serviços ao SUS no percentual mínimo de 60% (sessenta por cento)”[39]. As entidades de educação devem “(…) conceder anualmente bolsas de estudo na proporção de 1 (uma) bolsa de estudo integral para cada 5 (cinco) alunos pagantes”[40]. Entidades de assistência social devem realizar “(…) acolhimento institucional provisório de pessoas e de seus acompanhantes, que estejam em trânsito e sem condições de autossustento, durante o tratamento de doenças graves fora da localidade de residência”[41].
A lei ordinária, de acordo com a tese firmada pela própria Suprema Corte, não pode estabelecer requisitos adicionais, não previstos no texto constitucional ou na lei complementar para obstaculizar o exercício da imunidade. Nesse sentido, foi o posicionamento adotado pelo Ministro Marco Aurélio, relator do Recurso Extraordinário nº 566.622, cujo voto foi considerado vencedor na ocasião: “Da necessidade de interpretar teleologicamente as imunidades tributárias, amplamente reconhecida pelo Supremo como meio ótimo de realização dos valores e princípios subjacentes às regras imunizantes, resulta o dever corolário de interpretar estritamente as cláusulas restritivas relacionadas, inclusive a constitucional. Daí advém a reserva absoluta de lei complementar, conforme o artigo 146, inciso II, da Carta de 1988, para a disciplina das condições referidas no § 7º do artigo 195 (…) Cabe à lei ordinária apenas prever requisitos que não extrapolem os estabelecidos no Código Tributário Nacional ou em lei complementar superveniente, sendo-lhe vedado criar obstáculos novos, adicionais aos já previstos em ato complementar. Caso isso ocorra, incumbe proclamar a inconstitucionalidade formal. Revelada essa óptica, cumpre assentar a pecha quanto ao artigo 55 da Lei nº 8.212, de 1991, revogado pela Lei nº 12.101, de 2009”[42].
As disposições da Lei nº 12.101/2009, mormente no que diz respeito ao processo de certificação de CEBAS, não se limitam a aspectos procedimentais ou formais. Há a exigência do cumprimento de relevantes condicionantes materiais, em franca contrariedade ao estabelecido no artigo 146, II, da CRFB, e à tese inicialmente delineada pelo Supremo Tribunal Federal no Tema 32 da repercussão geral.
Como salientado pelo Ministro Sepúlveda Pertence, no julgamento do Recurso Extraordinário nº 237.718 em 29/03/2001, a posição jurisprudencial que vem sendo construída pelo Supremo Tribunal Federal é “(…) decisivamente inclinada à interpretação teleológica das normas de imunidade tributária, de modo a maximizar-lhes o potencial de efetividade (…)”[43].
Apesar do resultado final do julgado, o Ministro Marco Aurélio também consignou a importância de solucionar o aparente conflito entre as normas analisadas no Recurso Extraordinário nº 566.622 a partir de uma interpretação teleológica: “Os precedentes revelam, de modo inequívoco, a linha metodológica do Tribunal – a interpretação teleológica das imunidades. É importante destacar a necessidade permanente de compatibilizar a abordagem finalística das imunidades com o conjunto normativo e axiológico que é a Constituição. Com a Carta compromissória de hoje, existe uma variedade de objetivos opostos, estabelecidos em normas de igual hierarquia. Nesse âmbito de antinomias potenciais, o elemento sistemático adquire relevância prática junto ao teleológico”[44].
Entre a doutrina, Ives Gandra Martins propõe que, tanto em relação à imunidade do artigo 150, VI, “c” da CRFB, como no que tange à imunidade do artigo 195, § 7º, da CRFB, é a lei complementar que deve estipular as condicionantes para o seu exercício, sob pena de supressão das finalidades almejadas pelo texto constitucional: “A fim de evitar, o constituinte, que tal perfil da Administração, que tem conformado os gestores públicos e os governantes neste século, venha a inviabilizar atividades e pessoas, cuja colaboração com as finalidades superiores do Estado resta evidente, impondo tributação indesejável, tornou tais pessoas, atividades e situações imunes, afastando qualquer espécie de incidência por impostos, no artigo 150, inciso VI (…) a lei a que faz referência o constituinte, para as entidades de assistência social, é sempre a lei complementar. Tanto no direito anterior, como no atual, menciona, a Constituição, a lei, mas tal lei é a lei complementar. (…) se fosse, o constituinte, deixar ao alvedrio do Poder Tributante, a colocação dos requisitos necessários para o gozo da imunidade, à evidência, poderia ser criado tal nível de obstáculos que a imunidade constitucional, na prática, seria eliminada. Seria letra morta. Sem valia. (…) Ora, ao cuidar, o § 7º do art. 195, da mesma espécie de instituições de assistência social, para gozo da imunidade, não só em nível de impostos, mas também de contribuições sociais, fez idêntica referência de submissão à lei. Desta forma, por ser idêntica hipótese, a lei de que fala é a lei complementar, que é lei nacional –não da União, mas da Federação– para efeitos de normas gerais de direito tributário”[45].
Na linha da jurisprudência adotada pelo Supremo Tribunal Federal, o aspecto finalístico das imunidades deve ser considerado em qualquer aplicação ou interpretação do alcance de suas condicionantes. Quanto a esse ponto, é relevante o ensinamento de Rogério Tobias Carvalho: “Impende salientar que, embora a imunidade seja subjetiva, direcionando-se de forma imediata às instituições de assistência social, mediatamente, ela protege as pessoas amparadas por tais instituições beneficentes. Os verdadeiros destinatários da garantia da norma constitucional não são as pessoas jurídicas, que não são um fim em si próprias, mas sim os carentes por ela assistidos, os quais fazem parte do imenso tecido social mais pobre da população. Com isso, pode-se afirmar que sua base de sustentação maior está na importante missão de proteger, cercar o ser humano do mínimo vital indispensável à existência digna, através de ações de assistência social, impedindo que o exercício do poder tributário o aniquile ou embarace o funcionamento dessas entidades”[46].
Nesse sentido, uma interpretação teleológica e sistemática da finalidade das imunidades trazidas pelo texto constitucional nos artigos 150, VI, “c”, e 195, § 7º, permite apreender que os destinatários finais dessas garantias não são apenas as pessoas jurídicas, mas a população hipossuficiente beneficiada pelas atividades de assistência social. Também é importante perceber que os benefícios se respaldam na atuação dessas entidades em áreas nas quais a presença estatal é inexistente ou insuficiente.
Diante dessas balizas interpretativas, a Lei nº 12.101/2009, enquanto lei ordinária, ao criar requisitos não previstos na legislação complementar, tampouco no texto constitucional, é formalmente inconstitucional. Os requisitos legais nela estabelecidos, para o reconhecimento do caráter beneficente e assistencial das entidades, em face da inconstitucionalidade formal, não persistem. Sobre este ponto, novamente, são pertinentes os ensinamentos de Ives Gandra Martins: “Nenhuma lei ordinária de qualquer poder tributante pode criar requisitos adicionais, impondo ônus que o constituinte deliberadamente quis afastar. Todos os requisitos acrescentados ao restrito elenco do artigo 14 são inconstitucionais, em face de não possuir o Poder Tributante, nas 3 esferas, nenhuma força legislativa suplementar. Apenas a lei complementar pode impor condições. Nunca a lei ordinária, que, no máximo, pode reproduzir os comandos superiores”[47].
Por conseguinte, é o artigo 14 do CTN, este recepcionado pela CRFB como lei complementar, que deve fixar os requisitos para o reconhecimento, tanto da imunidade prevista no artigo 150, VI, “c” da CRFB, como da imunidade do artigo 195, § 7º, da CRFB, por analogia, considerando a ausência de legislação complementar específica.
De acordo com o referido dispositivo, a entidade beneficente é aquela sem fins lucrativos, atuante no campo da assistência social, por meio do auxílio do poder público no atendimento a necessidades básicas da população, com aplicação integral de recursos no país para a manutenção do objetivo social e conservação de escrituração regular de receitas e despesas. A apresentação de documentos como estatuto social, escrituração contábil, declaração de utilidade pública outorgada pelos entes federados, entre outras provas que atendam aos preceitos do CTN, é suficiente para que a entidade demonstre fazer jus às imunidades.
Além disso, os requisitos estipulados no artigo 14 do CTN satisfazem, plenamente, o controle de legitimidade dessas entidades pelo órgão competente, qual seja a Receita Federal do Brasil. O § 1º do mencionado artigo estabelece, inclusive, a suspensão automática do benefício caso atestada a inobservância dos parâmetros nele definidos: “Na falta de cumprimento do disposto neste artigo, ou no § 1º do artigo 9º, a autoridade competente pode suspender a aplicação do benefício”[48].
Por fim, é importante destacar que as imunidades relativas a determinadas pessoas, tais quais as hipóteses em comento, não dispensam o seu titular do dever de cumprir obrigações tributárias acessórias, como prestar declarações e emitir documentos. As obrigações acessórias possuem caráter instrumental e prestam-se a auxiliar o fisco. Também não impedem a sujeição a obrigações na qualidade de substituto ou responsável tributário[49].
Conclusão
Este trabalho abordou o conceito do poder de tributar e também algumas das concepções doutrinárias sobre o instituto das imunidades tributárias. Para os fins propostos no estudo, foi adotado o conceito de imunidade como norma negativa de competência tributária.
Na sequência, o artigo tratou das imunidades previstas nos artigos 150, VI, “c”, e 195, § 7º, da CRFB, a fim de expor a controvérsia acerca da exigência de lei complementar ou lei ordinária para a fixação de condicionantes ao seu exercício. Em vista dos fundamentos adotados pelo Supremo Tribunal Federal no julgamento do Recurso Extraordinário nº 566.622, foi sustentada a inconstitucionalidade formal da Lei nº 12.101/2009 e da exigência de CEBAS para o reconhecimento do direito às aludidas imunidades quanto às entidades beneficentes de assistência social.
Em ambas as hipóteses imunizantes discutidas, há dois requisitos a serem preenchidos pelas entidades beneficiadas. O primeiro deles é constituir-se como entidade atuante nas áreas do artigo 203 da CRFB ou nas áreas de educação e promoção ou recuperação à saúde, consoante delineado pelo Supremo Tribunal Federal[50]. O segundo requisito é o cumprimento das exigências estabelecidas em lei.
Este trabalho expôs que a definição do alcance do segundo requisito deve observar a sistemática do texto constitucional e a teleologia das imunidades em discussão. Em se tratando de entidades beneficentes de assistência social, o fundamento constitucional que justifica a existência das regras imunizantes é a garantia de realização de direitos fundamentais sociais. Os destinatários mediatos desses benefícios são as parcelas mais vulneráveis da população, que dependem dos serviços prestados nas respectivas áreas de assistência.
Como defendido, não é dado ao legislador ou ao aplicador do direito assumir qualquer premissa no sentido de condicionar ou restringir a norma que imuniza para além das previsões contidas na própria previsão constitucional ou em lei complementar. As exigências legais que dizem respeito à própria entidade, extrapolando aspectos meramente formais, são sempre normas de regulação e, portanto, devem ser veiculadas em lei complementar, na forma do artigo 146, II, da CRFB. O desrespeito desta regra representa a inconstitucionalidade formal do dispositivo.
Diante da ausência de legislação complementar específica, é o artigo 14 do CTN que estabelece tais condicionantes em relação à imunidade do artigo 150, VI, “c”, da CRFB, e, por aplicação analógica, quanto à imunidade do artigo 195, § 7º, da CRFB. Os requisitos nele estabelecidos são suficientes para que a autoridade competente (Receita Federal do Brasil) ateste a legitimidade das entidades, podendo, em todo caso, suspender o benefício, caso comprovado o descumprimento, na forma do seu § 1º.
Cabe, então, à lei ordinária, limitar-se a prever parâmetros objetivos, que não ultrapassem aqueles previstos na CRFB e no CTN ou em lei complementar superveniente, a fim de estabelecer o procedimento necessário ao reconhecimento do direito, vedada a criação de obstáculos adicionais à sua fruição.
A Lei nº 12.101/2009, sob o pretexto de disciplinar aspectos procedimentais, restringiu o alcance subjetivo da regra constitucional, instituindo condicionantes prévias ao reconhecimento do direito. Por tal motivo, em face do artigo 146, II, da CRFB, e também da interpretação sistemática do texto constitucional e da teleologia das normas imunizantes, deve ser reconhecida a sua inconstitucionalidade formal. Enquanto inexistente regramento jurídico a substituir o relativo à CEBAS, deve ser reconhecida a imunidade tributária da entidade que apresente comprovação do desempenho da atividade beneficente de assistência social, segundo os critérios estabelecidos pelo artigo 14 do CTN.
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[1] Graduada em direito pela Universidade Federal do Paraná. Pós-graduanda em Direito Constitucional pela Academia Brasileira de Direito Constitucional. Servidora pública da justiça federal de primeiro grau no Estado do Paraná. E-mail: claudiaptavarnaro@gmail.com.
[2] BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 14. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 115.
[3] BALEEIRO, Aliomar. Uma introdução à ciência das finanças. 14. Ed. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 115.
[4] Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789. Disponível em: http://pfdc.pgr.mpf.mp.br/atuacao-e-conteudos-de-apoio/legislacao/direitos-humanos/declar_dir_homem_cidadao.pdf. Acesso em: 04 abr. 2020.
[5] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário. 11. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 29.
[6] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário. 11. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 25.
[7] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 939. Rel. Min. Sydney Sanches. Tribunal Pleno. Julgado em: 15/12/1993. DJ 18/03/1994.
[8] CARRAZA, Roque Antonio. Curso de direito constitucional tributário. 21. Ed. São Paulo: Malheiros, 2005, p. 465 e 466.
[9] BORGES, José Souto Maior. Teoria Geral da Isenção Tributária. 3. Ed. São Paulo: Malheiros, 2011, p. 220 e 221.
[10] CARVALHO, Paulo de Barros. Curso de Direito Tributário. 22. Ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 234.
[11] MACHADO, Hugo de Brito. Curso de Direito Tributário. 21. Ed. São Paulo: Malheiros, 2002, p. 199.
[12] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário. 11. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 115.
[13] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 146, II. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 04 abr. 2020.
[14] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 150. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 04 abr. 2020.
[15] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 1.802. Rel. Min. Dias Toffoli. Tribunal Pleno. Julgado em: 12/04/2018. DJ-e 03/05/2018.
[16] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 195. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 04 abr. 2020.
[17] Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental na Suspensão de Segurança nº 3.679. Rel. Min. Gilmar Mendes. Tribunal Pleno. Julgado em: 04/02/2010. DJ-e 26/02/2010.
[18] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.028. Rel. Min. Joaquim Barbosa. Tribunal Pleno. Julgado em: 02/03/2017. DJ-e 08/05/2017.
[19] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 636.941. Rel. Min. Cezar Peluso. Julgado em: 16/06/2011. DJ-e 19/09/2011.
[20] Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 849.126. Rel. Min. Luiz Fux. Primeira Turma. Julgado em: 18/08/2015. DJ-e 04/09/2015.
[21] Supremo Tribunal Federal. Agravo Regimental no Recurso Extraordinário nº 849.126. Rel. Min. Luiz Fux. Primeira Turma. Julgado em: 18/08/2015. DJ-e 04/09/2015.
[22] COSTA, Regina Helena. Imunidades Tributárias. São Paulo. Malheiros, 2001, p. 133 e 134.
[23] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 225.082. Rel. Min. Ilmar Galvão. Primeira Turma. Julgado em: 09/12/1997. DJ 20/03/1998.
[24] BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, art. 203. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 04 abr. 2020.
[25] “Art. 2º. A assistência social tem por objetivos: I – a proteção social, que visa à garantia da vida, à redução de danos e à prevenção da incidência de riscos, especialmente: a) a proteção à família, à maternidade, à infância, à adolescência e à velhice; b) o amparo às crianças e aos adolescentes carentes; c) à promoção da integração ao mercado de trabalho; d) a habilitação e a reabilitação das pessoas com deficiência e a promoção de sua integração à vida comunitária; e e) a garantia de 1 (um) salário-mínimo de benefício mensal à pessoa com deficiência e ao idoso que comprovem não possuir meios de prover a própria manutenção ou de tê-la provida por sua família; II – a vigilância socioassistencial, que visa a analisar territorialmente a capacidade protetiva das famílias e nela a ocorrência de vulnerabilidades, de ameaças, de vitimizações e danos; III – a defesa de direitos, que visa a garantir o pleno acesso aos direitos no conjunto das provisões socioassistenciais. Parágrafo único. Para o enfrentamento da pobreza, a assistência social realiza-se de forma integrada às políticas setoriais, garantindo mínimos sociais e provimento de condições para atender contingências sociais e promovendo a universalização dos direitos sociais. Art. 3º. Consideram-se entidades e organizações de assistência social aquelas sem fins lucrativos que, isolada ou cumulativamente, prestam atendimento e assessoramento aos beneficiários abrangidos por esta Lei, bem como as que atuam na defesa e garantia de direitos.” BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L8742compilado.htm. Acesso em: 05 abr. 2020.
[26] MACHADO, Maria Rejane Bitencourt. Entidades Beneficentes de Assistência Social – Contabilidade, Obrigações Acessórias e Principais – Revista e Atualizada pela Lei 12.868/13 e Decreto 8.242/14. 4. Ed. Curitiba: Editora Juruá, 2014. E-book.
[27] Essa distinção foi feita pelo Ministro Teori Zavascki em seu voto-vista no Recurso Extraordinário nº 566.622. Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.622. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em: 23/02/2017. DJ-e 22/08/2017.
[28] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.028. Rel. Min. Joaquim Barbosa. Tribunal Pleno. Julgado em: 02/03/2017. DJ-e 08/05/2017.
[29] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.622. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em: 23/02/2017. DJ-e 22/08/2017.
[30] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 789. Rel. Min. Celso de Mello. Julgado em 26/05/1994. DJ 19/12/1994. Supremo Tribunal Federal. Medida Cautelar em Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.028. Rel. Min. Moreira Alves. Tribunal Pleno. Julgado em 11/11/1999. DJ 16/06/2000.
[31] Supremo Tribunal Federal. Ação Direta de Inconstitucionalidade nº 2.028. Rel. Min. Joaquim Barbosa. Tribunal Pleno. Julgado em: 02/03/2017. DJ-e 08/05/2017.
[32] É a expressa disposição do art. 34, §5º, do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias: “Art. 34. O sistema tributário nacional entrará em vigor a partir do primeiro dia do quinto mês seguinte ao da promulgação da Constituição, mantido, até então, o da Constituição de 1967, com a redação dada pela Emenda nº 1, de 1969, e pelas posteriores. (…) § 5º. Vigente o novo sistema tributário nacional, fica assegurada a aplicação da legislação anterior, no que não seja incompatível com ele e com a legislação referida nos § 3º e § 4º. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, Ato das Disposições Constitucionais Transitórias. Disponível em: http://planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm. Acesso em: 04 abr. 2020.
[33] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, art. 14. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em 05 abr. 2020.
[34] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 8.212, de 24 de julho de 1991, art. 55. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l8212cons.htm. Acesso em 05 abr. 2020.
[35] Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 566.622. Rel. Min. Marco Aurélio. Tribunal Pleno. Julgado em: 18/12/2019. DJ-e 31/01/2020.
[36] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 12.101, de 27 de novembro de 2009, art. 29. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12101.htm. Acesso em: 05 abr. 2020.
[37] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.622. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em: 23/02/2017. DJ-e 22/08/2017.
[38] Supremo Tribunal Federal. Embargos de Declaração no Recurso Extraordinário nº 566.622. Rel. Min. Marco Aurélio. Tribunal Pleno. Julgado em: 18/12/2019. DJ-e 31/01/2020.
[39] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 12.101, de 27 de novembro de 2009, art. 4º, II. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12101.htm. Acesso em: 05 abr. 2020.
[40] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 12.101, de 27 de novembro de 2009, art. 13, III. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12101.htm. Acesso em: 05 abr. 2020.
[41] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 12.101, de 27 de novembro de 2009, art. 18, § 2º, III. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12101.htm. Acesso em: 05 abr. 2020.
[42] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.622. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em: 23/02/2017. DJ-e 22/08/2017.
[43] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 237.718. Rel. Min. Sepúlveda Pertence. Tribunal Pleno. Julgado em: 29/03/2001. DJ 06/09/2001.
[44] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.622. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em: 23/02/2017. DJ-e 22/08/2017.
[45] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Entidades sem fins lucrativos com finalidade culturais e filantrópicas – Imunidade constitucional de impostos e contribuições sociais – Parecer. Revista Jurídica Mineira. Vol. 104, nov./dez. 1993, p. 285-308. Disponível em: https://gandramartins.adv.br/parecer/entidade-sem-fins-lucrativos-com-finalidades-culturais-e-filantropicas-imunidade-constitucional-de-impostos-e-contribuicoes-sociais-parecer/. Acesso em: 05 abr. 2020.
[46] CARVALHO, Rogério Tobias. Imunidade tributária e contribuições para a seguridade social. Rio de Janeiro: Renovar, 2006, p. 112.
[47] MARTINS, Ives Gandra da Silva. Entidades sem fins lucrativos com finalidade culturais e filantrópicas – Imunidade constitucional de impostos e contribuições sociais – Parecer. Revista Jurídica Mineira. Vol. 104, nov./dez. 1993, p. 285-308. Disponível em: https://gandramartins.adv.br/parecer/entidade-sem-fins-lucrativos-com-finalidades-culturais-e-filantropicas-imunidade-constitucional-de-impostos-e-contribuicoes-sociais-parecer/. Acesso em: 05 abr. 2020.
[48] BRASIL. Congresso Nacional. Lei nº 5.172, de 25 de outubro de 1966, art. 14, § 1º. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l5172.htm. Acesso em 05 abr. 2020.
[49] PAULSEN, Leandro. Curso de Direito Tributário. 11. Ed. São Paulo: Saraiva Educação, 2020, p. 119 e 120.
[50] Supremo Tribunal Federal. Recurso Extraordinário nº 566.622. Tribunal Pleno. Rel. Min. Marco Aurélio. Julgado em: 23/02/2017. DJ-e 22/08/2017.
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