Resumo: O objetivo do presente estudo foi de refletir sobre as questões concernentes a – (In) aplicabilidade da Lei Municipal 6.699/2009 (lei do abandono da propriedade). O Estado moderno é fruto de revoluções e evoluções, percorreu um caminho longo, até apresentar-se hoje, submisso a princípios e valores sociais positivados na Carta Maior, que vedam a arbitrariedade do ente público. O presente trabalho, labuta no sentido de pensar a (in) aplicabilidade da lei do município de Rio Grande, em harmonia com esse regime político democrático. Para tanto no capítulo inaugural se fez uma pesquisa histórica, filosófica e sociológica sobre a propriedade privada, analisando pontualmente, os reclames populares, em razão dos abusos de poder. No seguinte, uma leitura crítica dos dispositivos referente à lei municipal, sopesando os princípios: função social versus não confisco, ambos, inseridos na Constituição Federal e no atual Código Civil Brasileiro, que devem reger toda e qualquer analise sobre o tema. No último capítulo desta tese estudou-se sobre a importância da transparência dos atos públicos e criticou-se o ato discricionário na arrecadação de bens privados na Lei do Abandono, pois se entende que, não pode a administração pública, praticar atos que possam ser interpretados como arbitrários, logo e evidente desacordo com o Estado Democrático de Direito atual. Por fim, se concluiu que a Lei 6.699/2009 é válida, apenas, quando vinculada a um efetivo interesse público.[1]
Palavras-chaves: Lei do Abandono. Função Social. Princípio do Não Confisco. Ato Discricionário. Administração Pública. Propriedade Privada.
Abstract: The aim of this study was to reflect on issues concerning – (In) applicability of 6.699/2009 Municipal Law (Law of the abandonment of property). In brief summary, in the opening chapter became a historical, philosophical and social values on private property. n the following, a critical reading of the provisions concerning municipal law, highlighted the social function versus non-forfeiture entered in the Federal Constitution and the current Brazilian Civil Code that should govern any review on the subject. In the last chapter of this study were questions about the transparency of public actions and criticized the discretionary act with the collection of the good in the Law of Abandonment, because we understand that this kind of power is at odds with the democratic rule of law today. Finally, it was concluded that the Law 6.699/2009 is valid only when linked to an effective public interest.
Keywords: Law of Abandonment. Social Function. No principle of confiscation. Discretionary Act. Public Administration. Private Property.
Sumário: Introdução. 1. Propriedade: considerações preliminares. 1.1. Notícias históricas da propriedade. 1.1.1. Direito Romano: primórdios da propriedade. 1.1.2. Idade Média: terra é poder. 1.1.3. Breve relato sobre regimes jurídicos. 1.2. Teorias: fundamento jurídico. 1.3. Constituições do Brasil. 2. Princípios constitucionais e a Lei Municipal 6.699/2009. 2.1. Aparente conflito: função social e não confisco. 2.1.1. Técnicas de Interpretação. 2.1.2. Pensando a lei do município. 2.2. Função social da propriedade. 2.3. Princípio do não-confisco. 3. Lei do abandono: ato de arrecadação. 3.1. Ato administrativo: origem da expressão. 3.1.1. Tentativa conceitual. 3.1.2. Elementos do Ato: obrigatório nos vinculados. 3.2. Discricionariedade: como evitar a arbitrariedade? 3.3. Teorias: interesse social. Conclusão. Referência.
“Os cidadãos devem obedecer às normas da lei, mas enquanto homens que raciocinam, devendo fazer uso público da própria razão e estar num processo contínuo de crítica a estas leis, se considerarem que elas são injustas para que exista também um processo continuo de reformulação deste Estado de Direito.” KANT, Immanuel. Da paz perpétua. São Paulo: Cultrix, 1992, p.83.
INTRODUÇÃO
O assunto de que vai ocupar-se no presente trabalho – (In) aplicabilidade da Lei Municipal 6.699/2009 (lei do abandono da propriedade) – tem por objetivo promover um estudo da lei no que importa ao direito da propriedade imobiliária privada, sopesando sua função social versus o princípio da vedação ao confisco, e também se analisará o ato discricionário na arrecadação do bem.
O que interessa, com a delimitação, é que propriedade, como bem leciona Francisco Cavalcanti Pontes de Miranda em seu Tratado de Direito Predial, é tudo que se tem como próprio, tratando-se aqui, apenas dos bens imóveis. (PONTES DE MIRANDA, 1947, apud, ALVES, 1992).
Ao longo do trabalho, ficará demonstrado que esse ter-se como próprio, algo, é comportamento instintivo dos animais, incluso o homem. Sendo assim, inegável na história, a importância conferida a propriedade pelo ser humano, e também, comprova-se que em alguns casos é necessária à intervenção do Estado, para regular esse uso da propriedade, pois o homem em vários períodos abusou desse poder individual e prejudicou a coletividade.
Observa-se, na história, que a utilização dos bens imóveis, nem sempre obedeceram a regras que significassem proveito aos demais membros da coletividade, servindo em toda sua extensão (e intenção) apenas ao proprietário. Essa situação, entretanto, sofreu importantes alterações no último século, e com maior destaque no Brasil com o advento da Carta Maior de 1988.
A propriedade deixou de ser vista, apenas pelo enfoque romanista, como direito absoluto, exclusivo e perpétuo, sendo relativizada. Nesse novo panorama, a discussão acerca da função social dos bens, possui relevante papel, por que visa corrigir (falhas e omissões) na ordem jurídica, oriundas do uso egoísta e degenerado da propriedade.
Envolta por esses ideais constitucionais, a legislação do município de Rio Grande/RS traz, assim como outras legislações municipais do país, atualmente, a previsão de que a administração realize em caso de abandono da propriedade privada a arrecadação do bem. Forte nisso, a lei em estudo prevê em seu artigo 4º, o procedimento de atuação para que tudo se efetive.
“Art. 4° O procedimento para arrecadação terá início de ofício ou mediante denúncia, que informará a localização de imóvel em cujos atos de posse tenham cessado.
§1° A fiscalização municipal fará de imediato relatório circunstanciado, descrevendo as condições do bem e lavrará autos de infração à postura do Município.
§ 2º. Além dos documentos relativos aos autos e diligências previstas no parágrafo anterior, o processo administrativo também será instruído com os seguintes documentos:
I – requerimento ou denúncia que motivou a instauração do procedimento de arrecadação, quando houver;
II – certidão imobiliária atualizada;
III – prova do estado de abandono;
IV – termo declaratório dos confinantes, quando houver;
V – certidão positiva de ônus fiscais.” [grifo nosso]
Observa-se na lei que o processo é administrativo, e utilizam-se, como presunção de abandono, os débitos fiscais para arrecadação do bem imóvel. Veja bem, existem outros requisitos, mas eles são meramente circunstanciais, o que se sobressai no plano fático são os ônus fiscais.
Apresenta-se com isso, um conflito aparente de normas, pois o artigo 150, IV, da Constituição Federal determina que seja vedado o confisco de bens para satisfação do ônus tributário. Logo, a citada lei poderia ser considerada inconstitucional (no critério substancial), uma vez que a arrecadação do bem se dá em razão do inadimplemento de débitos fiscais.
Outro ponto polêmico na lei, reside no fato, da arrecadação ocorrer por ato discricionário do ente público, baseando-se nos critérios de: oportunidade e conveniência. Assim, cabendo ao ente público decidir sobre quem deve pesar o ônus da arrecadação, esse poder poderia por em risco o princípio constitucional da imparcialidade, transparência e eficiência do ente público e favorecer interesses individuais.
O tema é bastante complexo, e embora seja de cunho civil, para compreendê-lo se faz necessário sopesar princípios constitucionais, em destaque: não confisco; função social da propriedade; e transparência dos atos públicos. Para ao final verificar, se a lei municipal é constitucional e aplicável.
Para verificar a aplicabilidade da lei a presente monografia de conclusão de curso vai analisar a propriedade na história, na filosofia e nos valores sociais, os quais repercutem diretamente sobre suas consequências jurídicas. Paralelamente, se observará os reflexos práticos do tema, em especial, na vida econômica e social da coletividade riograndina.
Esse ensaio acadêmico se inicia com um capítulo destinado a um breve noticiar sobre o direito propriedade, desde os seus primórdios até as alterações conceituais promovidas pelo princípio da Função Social. Sumariamente, tratar-se-á sobre o instituto nas Constituições de: 1824, 1934, 1937, 1946 e 1967 e 1969 (Emenda 1 da Constituição 1967). Ficará demonstrado que nesse caminhar histórico dos institutos da propriedade e de sua função social o conceito de propriedade acabou por justificar-se, juntamente com o direito civil, no seara constitucional, envolto pelas reformas da Lei Maior de 1988.
O segundo tratará do sopesamento de princípios constitucionais função social da propriedade e vedação ao não confisco no que importa ao artigo 1.275, III, do Código Civil de 2002. Destacando que embora tenham ocorrido alterações, a idéia central do direito a propriedade, continua a ser um direito real por excelência, mas também um direito subjetivo que, efetivamente, retrata poderes diretos e imediatos do homem sobre determinada coisa e consequentemente imputa ao proprietário obrigações e responsabilidades sociais. Incluso nisso, os débitos fiscais, os quais fazem parte desse panorama de responsabilidades (deveres de cidadania). Visto isso, se pensará a lei do abandono, e verificar-se-á, se está, respeita o atual: texto (e contexto) legal.
E no terceiro bloco desse trabalho se consagrará a propriedade como uma relação jurídica complexa, esculpida em novos paradigmas, entre os quais se destaca a justiça social e os valores do Estado Democrático de Direito e nesse cenário se criticará o ato discricionário para a arrecadação do bem.
Ao fim, se concluirá que a propriedade no sentido geral, como já foi dito, compreende tudo que se tem como próprio e esse possuir como próprio (em tela o bem imóvel) no panorama jurídico moderno é garantido constitucionalmente (propriedade privada), todavia quis o legislador regular esse desejo primitivo, condicionando a propriedade privada a sua função social, com isso nota-se a preocupação legislativa originária em regular, as complexas relações de homem e propriedade, com justiça. Assim, observar-se-á a lei do município como aplicável quando atender esses ideais.
1 PROPRIEDADE: CONSIDERAÇÕES PRELIMINARES
1.1 NOTÍCIAS HISTÓRICAS DA PROPRIEDADE
A configuração da propriedade passa por profundas modificações ao longo de sua evolução histórica, estudá-las é imprescindível para entender os problemas jurídicos na atualidade, e também, as leis que visam solucionar esses, sendo uma delas a Lei do Abandono do Município de Rio Grande.
1.1.1Direito Romano: primórdios da propriedade
Nas sociedades primitivas, existia um conceito coletivo para uso do solo. Ocorria, na verdade, a ocupação da coisa com o fim de subsistência e sobrevivência.
Sílvio de Salvo Venosa muito bem leciona, que essa situação do início dos tempos, encontra com facilidade uma justificativa, pela estrutura social que vigorava na época, nas palavras do autor:
“Essa situação nos tempos primevos facilmente se explica pelas condições de vida do corpo social de então. Os povos primitivos que ainda hoje sobrevivem distantes do contato com o homem civilizado, mantêm a mesma organização. Enquanto os homens vivem exclusivamente da caça, da pesca e de frutos silvestres, não aflora a questão acerca da apropriação do solo”. (2002, p.150)
Com o desenvolvimento da sociedade, em especial com o sedentarismo, viu-se que a tendência do que era coletivo por desnecessidade de acumulação de riqueza transformar-se em individual. A permanência dos povos na mesma terra, pela mesma tribo e pela mesma família passa a servir de ligação do homem com a terra. (DINIZ, 2008)
A raiz histórica da propriedade imobiliária, como foi dito, encontra-se no direito romano. Naquele período, de início, não havia uma sistematização dos conhecimentos sobre o tema em tela. Sendo inclusive, complicado para os historiadores determinar o período em que brota, na coletividade romana[2], o primeiro contorno de propriedade privada.
Fábio Konder Comparato em seu artigo: Direitos e deveres fundamentais em matéria de propriedade, destaca a importância da religião na concepção da idéia de propriedade nessas primeiras sociedades, nas palavras do autor:
“A idéia de propriedade privada, em Roma ou nas cidades gregas da antiguidade, sempre foi intimamente ligada à religião, à adoração do deus-lar, que tomava posse de um solo e não podia ser, desde então, desalojado. A casa, o campo que a circundava e a sepultura nela localizada eram bens próprios de uma gens ou de uma família, no sentido mais íntimo, ou seja, como algo ligado aos laços de sangue que unem um grupo humano”. (on line)
Nessas civilizações a constituição social abrigava: família, religião e vida doméstica. Essa organização institucional da sociedade não podia ser alterada nem por deliberação popular, nem por decisão governamental, assim na estruturação da cidade antiga, as vidas privada, eram mais sólidas e estáveis, do que as formas de governo.
Para Aristóteles[3], é a maneira que os cidadão se organizam (religião, família e propriedade privada) a “espinha dorsal” do Estado, logo a própria comunidade dos cidadãos ou, de modo ainda mais sugestivo, “um certo modo de vida de uma sociedade política”, que justificam e “criam” o Estado. (ARISTÓTELES, apud, COMPARATO).
No mesmo sentido, Venosa leciona,
“[…] A propriedade privada ligava-se á própria religião e esta, por sua vez, à família com o culto dos antepassados dos deuses Lares. O Lar da família, lugar de culto, tem íntima relação com a propriedade do solo onde se assenta e onde habitam também os deuses. Ali se situam o altar, o culto e a propriedade do solo e das coisas que guarnecem sob o poder do pater. […] Foi, portando, a religião que garantiu primeiramente a propriedade. As divindades domésticas protegiam-na.” (2002, p.151)
A propriedade conferia, no modo de vida dos romanos, ao seu titular, um poder de usar, gozar e dispor da coisa. Lucas Hayne Dantas Barreto, em seu artigo Função social da propriedade, explica que para os juristas romanos daquela época, a propriedade constituía-se em três faces: usus (o poder de utilizar-se da coisa); o fructus (o poder de perceber frutos ou produtos do bem); e o abusus (o poder de consumir, alienar, destruir a coisa). (online)
Maria Helena Diniz não destaca em sua obra o aspecto religioso do instituto, mas muito bem resume as fases do conceito de propriedade na época romana, nas palavras da autora:
“Na era romana preponderava um sentido individualista de propriedade, apesar de ter havido duas formas de propriedade coletiva: a gens e a da família. Nos primórdios da cultura romana a propriedade era da cidade ou gens, possuindo cada indivíduo uma restrita porção de terra (1/2 hectare), e só eram alienáveis os bens móveis. Com o desaparecimento dessa propriedade coletiva da cidade, sobreveio a da família, que, paulatinamente, foi sendo aniquilada ante o crescente fortalecimento da autoridade do pater famílias. […]” (2008, p. 105).
A doutrinadora ainda leciona que os romanos não estagnaram o conceito de propriedade, e o senso de propriedade coletiva foi dando lugar a uma visão mais individualista, e seguindo a escola de Hahnemann Guimarães[4], pode-se dividir esse desenvolvimento nas seguintes etapas (GUIMARÃES, 1941, apud, DINIZ, 2008).:
1. propriedade individual sobre os objetos necessários á existência de cada um;
2. propriedade individual sobre bens de uso particular, suscetíveis de serem trocados com outras pessoas;
3. propriedade dos meios de trabalho e de produção;
4. propriedade individual nos moldes capitalistas, ou seja, seu dono pode explorá-la de modo absoluto.
De tudo visto até agora, é importante destacar que a grande modificação entre o direito romano, e o seguinte, o direito medieval, parte do fato: inicialmente, a propriedade era vista como coletiva (não individual) pertencente às gens. Assim, propriedade estava ligada á posse, sem a qual todo direito a coisa desaparecia. Já no fim, período da Roma Clássica e mais consolidado ainda, a partir do feudalismo medieval, a propriedade começa a significar manifestação de poder (em grande parte força bélica), a terra passa a pertencer aos senhores e sua posse aos vassalos, não havia mais senhores sem terra, nem terra sem senhores. É o que se verá no próximo tópico.
1.1.2 Idade Média: terra é poder.
O caráter econômico da propriedade deve ser analisado em todos os períodos históricos, mas em especial na época Medieval. A fim de se compreender as leis postas nesse período urge analisar o contexto econômico e político da época.
Seguindo o entendimento do economista e Professor Doutor Nali de Jesus de Souza[5] pode-se dividir a Idade Média, resumidamente, em dois períodos:
Primeiro: do século V ao XI, preponderam às invasões dos bárbaros. A produção é quase que exclusivamente rural e as trocas dificilmente ultrapassam o quadro local.
Segundo: do século XI ao XIV, nota-se que após o longo período de decadência e obscuridade, a civilização vai reanimando-se, a partir do século XI, para expandir-se no século XII em diante, pois havia um mercado mais “aquecido” pelas trocas. Em muito esse desenvolvimento consumidor, deve-se essencialmente ao esforço realizado pela Igreja e pela Realeza em prol do estabelecimento da ordem, no campo social, e da organização, no político. (SOUZA, online)
Nota-se, claramente, que a propriedade a partir do primeiro século V, assume um caráter de poder, não apenas um exercício de subsistência vinda do solo, mas uma demonstração de força bélica. Ser senhor da terra é ser senhor de outros seres humanos, dos vencidos nas guerras.
Essa forma de hierarquia foi aprimorando-se os vassalos serviam ao senhor, e não eram senhores de seus solos. O território passa a ser sinônimo de poder, não apenas individual, mas também como nação.
Com isso, pode-se concluir que paulatinamente a idéia de propriedade vai associando-se a idéia de soberania nacional, os que detinham o poder da força, detinham a propriedade, e representavam uma bandeira. Em contra partida, os que recebiam a posse da terra, eram subjugados ao mesmo sistema jurídico e legal, os mesmos valores nacionais.
Robério Nunes dos Anjos Filho[6], retrata muito bem a relação senhor e vassalo, para ele:
“O feudalismo, na Idade Média, trouxe profunda modificação no direito de propriedade.
O domínio foi dividido em direto e útil. O proprietário do imóvel, titular do domínio direto, repassava a posse da terra a outrem, o vassalo, que tornava-se assim titular do domínio útil.
Era uma relação onde reinava o binômio propriedade/política, posto que ser dono de bens imóveis era fator de poder. Como resultado, os próprios vassalos passaram a criar novas divisões de domínio, em relação a outros subservos, ou subvassalos, dando origem a uma “complicada trama de interdependências jurídicas”. O abuso das relações entre senhores e vassalos, própria desse sistema, ajudou a alicerçar a reação, que cristalizou-se nos ideais da Revolução Francesa, a qual premiou aqueles que detinham a posse direta, o domínio útil, das terras, reunificando o domínio em suas mãos, valorizando assim a utilização efetiva do bem. A garantia da propriedade passa a ser um dos pilares da organização social, como não poderia deixar de ser numa estrutura burguesa, ao lado da igualdade e da liberdade. A propriedade passa a ser “um direito inviolável e sagrado”, e “ninguém ela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob a condição de justa e prévia indenização” (grifo do autor) (online).
Em linhas gerais, as relações econômicas e políticas do período, refletiram na forma de utilização da propriedade, essa modificou os institutos jurídicos, como bem leciona Maria Helena Diniz, na Idade Média, se cunhou a expressão nulle terre sans seigneur (nenhuma terra sem senhor). (p.106, 2008).
A forma de tornar-se senhor da terra, se deu no começo com os feudos sendo concedidos na forma de usufruto condicional, a escolha dos beneficiários era vinculada à prestação de serviços, inclusive militares.
Algum tempo depois, os feudos passaram a ser imprescritíveis e hereditários sempre declináveis ao descente varão. Além da distinção de gênero, havia distinções de classes, nas palavras da doutrinadora Diniz: “[…] Havia distinção entre os fundos nobres e os do povo, que, por sua vez, deveria contribuir onerosamente em favor daqueles, sendo que os mais humildes eram despojados de suas terras.” (p.106).
Faz-se necessário, aqui, discorrer muito brevemente, sobre o conceito de propriedade feudal, ela não se limitou historicamente apenas ao período feudal. Observa-se que a propriedade feudal foi utilizada em todo do período feudal passando pela Idade Moderna com pouquíssimas alterações e somente na Idade Contemporânea desapareceu.
Com o andar dos tempos, desde o período feudal, o abuso das relações de servilismo, inerente a esse sistema, permaneceu praticamente inalterado em todo cenário da Idade Moderna, acabou se tornando peça importante para realização da Revolução Francesa[7], a qual premiou aqueles que detinham a posse direta, o domínio útil das terras, valorizando consequentemente a utilização efetiva do bem. (VENOSA, 2002) (grifo nosso).
Andando desde a época feudal até os códigos europeus, sob os valores da Revolução Francesa, encontra-se a Revolução Industrial, mas o liberalismo desenfreado, desde aquela época, já sofria fortes críticas[8]. Em especial, por que o sistema pesava em favor a propriedade privada de forma quase absoluta, e sem preocupar-se com os valores coletivos.
1.1.3 Breve relato sobre regimes jurídicos
A professora Diniz, ensina que no Brasil, a forma originária da propriedade tinha feição comunitária, como nas civilizações pelo mundo. Aqui, na época da descoberta, os índios nativos eram nômades, a utilização da terra era de domínio comum, o individualismo era exceção, apenas restrito aos objetos de uso próprio.
No que tange a organização jurídica, houve uma tentativa do sistema feudal, no começo da colonização pátria, com a transitória implantação das capitanias hereditárias, todavia o sistema acabou por se nortear no regime romano.
Embora, não tenha prosperado o modelo de sistema feudal no Brasil, este exerceu forte influência nos costumes locais.
Saindo da Era Medieval para a Época Contemporânea[9] é necessário destacar que a configuração da propriedade ficou dependente do regime político de cada país, para entender esse período no Brasil, se faz necessário comparar com o direito alienígena.
Em apertada síntese, no que tange aos regimes, Diniz (2008, p.125) afirma que na Antiga URSS (regime comunista[10]) as pessoas usavam a propriedade exclusiva, apenas sobre os bens de consumo pessoal; a propriedade usufrutuária de bens de utilização direta; e os bem de produção eram socializados. Enquanto que nos países do Ocidente (capitalistas) a propriedade individual sofria restrições voluntárias e legais, com um norte de utilização voltado a função social.
Diferenças a parte, nos dois regimes, desde o período burguês, se perdeu o sentido religioso das origens para conceituar a propriedade, logo, o Direito Moderno precisou se fundar, na argumentação da Teoria Naturalista, que inspirou o constitucionalismo liberal.
John Locke defendia que o direito de propriedade privada derivava […] da exigência natural de subsistência do indivíduo, e na especificação por ele dada a determinada coisa pelo seu trabalho, enquanto força emanada do seu corpo, que representa o que há de mais próprio em cada pessoa. (LOCKE, apud, COMPARATO).
No Brasil, Francisco Eduardo Loureiro (2003) ensina, depois de perder o caráter divino, a propriedade no século XVIII, transformou-se em garantia fundamental de liberdade do cidadão, em face da intervenção do Estado, no modelo do contrato social de Rousseau.
Nota-se que seguindo o mesmo pensamento, tanto a Bill of Rights da Virginia de 1776, como a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789, ambas conferiram à propriedade o mesmo status dos valores de liberdade e segurança, todos, como direitos naturais, inerentes e imprescritíveis do ser humano.
Forte nisso, a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789[11], em destaque artigo 17(abaixo texto original e traduzido), demonstra não apenas o cunho liberal da época, mas o significado da propriedade, ainda com resquícios do poder divino, todavia agora subjugado ao princípio norteador da liberdade privada, in verbis:
« Article 17. La propriété étant un droit inviolable et sacré, nul ne peut en être privé, si ce n’est lorsque la nécessité publique, légalement constatée, l’exige évidemment, et sous la condition d’une juste et préalable indemnité.
(Artigo 17º- Como a propriedade é um direito inviolável e sagrado, ninguém dela pode ser privado, a não ser quando a necessidade pública legalmente comprovada o exigir evidentemente e sob condição de justa e prévia indenização).”
Feito esse brevíssimo noticiar histórico da propriedade, se irá agora caminhar pelas teorias filosóficas que tentam justificar os fundamentos jurídicos do direito de propriedade, pois se acredita que para entender a Lei Municipal de Rio Grande, deve-se antes entender a razão de ser da propriedade.
Para tanto, é obrigatório passear pelas teorias que tentam pensar a ratio essendi da propriedade.
1.2 TEORIAS: FUNDAMENTO JURÍDICO
A origem e a legitimidade do direito a propriedade tem sido objeto de fortes discussões ao longo de toda trajetória humana. Juristas, filósofos e sociólogos estudam e discutem teorias sobre o tema. O presente trabalho vai abordar: a Teoria da Ocupação, Teoria de Domínio, Teoria da Especificação Teoria Negativista da Propriedade e Teoria da Natureza Humana.
A primeiramente tratar-se-á da Teoria da Ocupação, segundo Vilson Rodrigues Alves:
“a ocupação das coisas não-apropriadas aumenta o domínio do homem sobre a Natureza, atribuindo ao seu objeto um valor econômico e cultural.
Apresenta-se como uma forma de ´produção` originária. O que primeiro ocupa torna-se titular da coisa ocupada. (1992, p.142),” (grifo do autor)
A teoria da Ocupação é a mais antiga, remonta ao período romano, está vislumbra o direito de propriedade no estado antes de pertencer a alguém (res nullius – coisa de ninguém). Todavia, essa sofre criticas fortes Gonçalves diz que “[…] a ocupação é apenas um modo de aquisição da propriedade, mas não tem substancia para justificar o direito de propriedade e, portanto, para servir-lhe de fundamento jurídico.” (2010, p.248).
A doutrina majoritária questiona a falta de solução dessa teoria no caso de existir várias formas de propriedade, as quais, não são possíveis ocupar, como por exemplo, os produtos industriais.
Outro equivoco, apontado pela doutrina na teoria decorre que se presume a apropriação por ocupação, apenas, e desconsidera as propriedades que foram dadas em concessões, doações e distribuições do Estado.
Nesse mesmo sentido, o ordenamento jurídico pátrio baseia a apropriação por ato-fato, logo, é absolutamente incorreto, atribuir força de criar lei, ao ato que pode ocorrer ao mero acaso ou a força, como é o caso da ocupação. “Não existe essa auto-eficácia.” (ALVES, 1992, p.143)
Por fim, Gonçalves critica que pela teoria da ocupação seria possível “[…] uma só pessoa poder ser proprietária dum vasto continente, se este fosse desabitado, o que ninguém hoje admitiria.” (GONÇALVES, 2010, p.248).
A Teoria do Trabalho ou da Especificação, com base nessa, afirma-se que não é a mera apropriação que submete a coisa ao domínio humano, “[…] mas somente a sua transformação por meio da forma dada á matéria bruta pelo trabalho humano é que poderia gerar a propriedade individual.” (ALVES, P.144).
Essa concepção foi germe dos regimes socialistas do século passado, que em maior radicalismo, serve também de fundamento da Teoria Negativista da Propriedade. Para os que se filiam a essa teoria a propriedade é um roubo (atribuída pela doutrina a Proudhon), isso por que, a origem da propriedade residiria na usurpação e a violência. Logo, deveria ser negada a propriedade individual.
Ambas as teorias (Trabalho e Negativista da Propriedade) alicerçam-se no fato de apenas o trabalho conseguiria justificar a aquisição da propriedade. (SAMPAIO, 2005)
As teorias excluem, assim sendo, os incapazes, doentes, as crianças, os velhos, os inválidos, ou os não aptos ao trabalho, pois esses não poderiam ter propriedade nenhuma. O que indubitavelmente geraria grandes injustiças.
Formar-se-ia com isso, também uma celeuma, um ciclo vicioso, no caso das empresas e indústrias, pois se o trabalhador se tornasse proprietário motivado pelo direito, acabaria por perder a fábrica ou empresa para os seus próprios empregados e assim, continuamente.
Como muito bem leciona Gonçalves:
“Na realidade, o trabalho deve ter por recompensa o salário e não a própria coisa por ele produzida. Ademais, se o trabalho fosse o fundamento único ou principal da propriedade, a criança, o velho, o inválido, não podendo trabalhar, não deveriam ter propriedade, a criança, o velho, o inválido, não podendo trabalho, não deveriam ter propriedade alguma, e toda a riqueza deveria pertencer só aos homens robustos e aptos para o trabalho, Este é somente um dos meios de produzir ou de valorizar as riquezas e, por isso, não pode ser fundamento da propriedade. Há muitas coisas que, embora sejam objeto da propriedade, não custaram trabalho algum”. (p.248)
Logo, o trabalho não pode servir de fundamento ao direito a propriedade, visto que ele deve propiciar o salário e não um bem específico. E mesmo no regime socialista, não pode ser aceita, porque não respondeu á dúvida sobre se deve ou não existir propriedade, e ateve-se apenas a discussão sobre quem deveria ser o proprietário. Como leciona Sampaio “[…] Esta teoria, quando muito, permitiria identificar-se a pessoa titular do direito de propriedade, mas não explicaria a existência do direito.” (p.98)
Teoria da Lei ou Teoria da Criação Legal para essa teoria, que tem entre os defensores Montesquieu[12], a propriedade privada adviria da lei, como uma concessão estatal, de forma que tirada a lei, não mais existiria a propriedade individual. Gonçalves leciona,
“A teoria em tela, sustentada por MONTESQUIEU, em seu, De l’ esprit dês lois, e por BENTHAM, no Traité de législation, assenta-se na concepção de que a propriedade é instituição do direito positivo: existe porque a lei a criou e a garante. Essa teoria não está, porém, imune a críticas, pois não pode a propriedade fundar-se somente na vontade humana, porque o legislador poderia ser levado a suprimi-la, quando deveria apenas ter o poder regular-lhe o exercício. Contrapõe-se, especialmente, que a propriedade sempre existiu, mesmo antes de ser regulamentada pela lei”. (p.249)
Então, como bem demonstra Gonçalves, essa teoria não responde a pergunta fundamental por ela levantada, ou seja, a razão de ser da propriedade, logo, seu amparo doutrinário é escasso.
A Teoria da Natureza Humana, também conhecida como Teoria Jusnaturalista tem como principal argumento que a propriedade é um direito natural do homem, uma vez que inseparável de sua natureza, sendo com isso indispensável à satisfação de suas necessidades mais elementares. Todavia, em muitos aspectos a teoria não é suficiente, em especial, uma vez que sendo um direito natural de todos os homens, porque muitos deles não conseguem a titularidade, não obstante sua natureza humana. (ALVES, 1992)
Gonçalves diz que a maior parte da doutrina é adepta da teoria da natureza humana, pois dizem que a propriedade privada “é condição da existência e da liberdade de todo o homem”. E que inclusive, setores mais ferrenhos pregam que os homens desprovidos de qualquer bem (em especial imóveis) deve reivindicar (mesmo que necessário o uso da força), a sua parcela. Pois, “[…] Embora esta seja inerente à natureza humana, compete ao legislador, desde que os homens se organizaram em Estado, regular o seu exercício.” (p.249)
A Constituição Brasileira de 1988 em muito se filia à teoria naturalista, respeitando a garantia constitucional do direito a propriedade privada, disso tratar-se-á na decorrer, com mais ênfase quando se falará sobre na função social da propriedade.
Visto os aspectos históricos e os aspectos filosóficos pode-se, a partir de agora, verificar como o instituto da propriedade foi construindo-se nas constituições brasileiras.
1.3 CONSTITUIÇÕES DO BRASIL
No Brasil, Bonavides (1993) afirma ser possível elencar três fases distintas na evolução constitucional, sendo elas: primeira fase – ligada aos padrões constitucionais: inglês e francês (do século XIX); a segunda fase baseia-se no modelo norte-americano; e a terceira fase ao constitucionalismo de origem alemã (do século XX).
Na primeira fase, o presente trabalho destaca a Constituição de 1824, e põe foco na visão da propriedade privada como garantia de direitos individuais, como ensina José Afonso da Silva “[…] No artigo 179, a Constituição trazia uma declaração de direitos individuais e garantias que, nos seus fundamentos, permaneceu nas constituições posteriores.”. (2006).
Constata-se um evidente viés liberal na Constituição Política do Brazil[13], que refletiu na juridicização da propriedade, observe:
“Art. 179. A inviolabilidade dos Direitos Civis, e Politicos dos Cidadãos Brazileiros, que tem por base a liberdade, a segurança individual, e a propriedade, é garantida pela Constituição do Imperio, pela maneira seguinte.
VII. Todo o Cidadão tem em sua casa um asylo inviolavel. De noite não se poderá entrar nella, senão por seu consentimento, ou para o defender de incendio, ou inundação; e de dia só será franqueada a sua entrada nos casos, e pela maneira, que a Lei determinar.
XXII. E’garantido o Direito de Propriedade em toda a sua plenitude. Se o bem publico legalmente verificado exigir o uso, e emprego da Propriedade do Cidadão, será elle préviamente indemnisado do valor della. A Lei marcará os casos, em que terá logar esta unica excepção, e dará as regras para se determinar a indemnisação”. (grifo nosso)
Constata-se que ao garantir o direito à propriedade em toda sua plenitude, a constituição manteve o caráter de usar, gozar, dispor e abusar da propriedade, ou seja, o extremismo romanista.
A Constituição de 1891[14] pertence à segunda fase da evolução constitucional do Brasil, influenciada pelo liberalismo norte-americano, nela o conceito de propriedade praticamente não se alterou, permanecendo marcado pelo individualismo. Forte nisso, artigo 72, Seção II, intitulado Declaração de Direitos:
“Declaração de Direitos
Art 72 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 17 – O direito de propriedade mantém-se em toda a sua plenitude, salva a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia.”
Seguindo na linha cronológica, tem-se a Constituições de 1934, 1937 e 1946, as quais, pertencem à terceira fase da evolução constitucional do Brasil.
Sobre a primeira José Afonso da Silva diz “[…] Ao lado da clássica declaração de direitos e garantias individuais, inscreveu um titulo sobre a ordem econômica e social […] com normas quase todas programáticas, sob a influência da Constituição Alemã de Weimar.” (p.82)
A grande inovação dessa Carta Maior, no que importa ao direito a propriedade, reside no fato dela inserir no mundo jurídico brasileiro, uma subordinação do interesse individual ao coletivo e social. Isso se deu, no artigo 113, 17 da Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil (de 16 de julho de 1934) abaixo:
“Dos Direitos e das Garantias Individuais
Art 113 – A Constituição assegura a brasileiros e a estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à liberdade, à subsistência, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
17) É garantido o direito de propriedade, que não poderá ser exercido contra o interesse social ou coletivo, na forma que a lei determinar. A desapropriação por necessidade ou utilidade pública far-se-á nos termos da lei, mediante prévia e justa indenização. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, poderão as autoridades competentes usar da propriedade particular até onde o bem público o exija, ressalvado o direito à indenização ulterior.”
Com isso, fica evidente, que de modo indireto, a Constituição de 1934 implantou-se a função social da propriedade. Simone Nunes Ferreira[15] em seu texto Direito de propriedade: nas Constituições brasileiras e do Mercosul, destaca ainda que, o artigo, 113, 17 da Carta Maior de 1934 determinou “A legislação complementar, que daria efetividade à vedação do exercício da propriedade contra o interesse social ou coletivo, jamais foi editada.”.
A Constituição de 1937 foi um grande retrocesso para o Brasil, nesse sentido, doutrina, José Afonso da Silva:
“A Carta de 1937 não teve, porém, aplicação regular. Muitos de seus dispositivos permaneceram letra morta. Houve ditadura pura e simples, com todo Poder Executivo e Legislativo concentrado nas mãos do Presidente da República, que legislava por via de decretos-leis que ele próprio depois aplicava, como órgão do Executivo”. (p.83)
Essa Constituição passou por muitas modificações vindas de emendas (vinte e uma no total), que eram elaboradas, na opinião de Silva, “ao sabor das necessidades e conveniências do momento e, não raro, até o capricho do chefe do governo.” (p.83)
Fora isso, em seu texto, também retrocedeu em direitos a propriedade, como pode ser observado, a seguir, na Constituição de 1937, em seu artigo 122, 14, o qual garantiu a propriedade privada, mas delegou a lei infraconstitucional regular o exercício no que importa ao conteúdo e limites:
“DOS DIREITOS E GARANTIAS INDIVIDUAIS
Art 122 – A Constituição assegura aos brasileiros e estrangeiros residentes no País o direito à liberdade, à segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
14) o direito de propriedade, salvo a desapropriação por necessidade ou utilidade pública, mediante indenização prévia. O seu conteúdo e os seus limites serão os definidos nas leis que lhe regularem o exercício;”
A constituição a seguir, nasce embebida nos ideais dos movimentos pela redemocratização do país, no pós II Guerra Mundial, nesse cenário foi elaborada a Constituição de 1946. A qual consagrou no direito pátrio, a propriedade como um direito-dever. Ela positivou em seus artigos:
“Dos Direitos e das Garantias individuais
Art 141 – A Constituição assegura aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade dos direitos concernentes à vida, à liberdade, a segurança individual e à propriedade, nos termos seguintes:
§ 16 – É garantido o direito de propriedade, salvo o caso de desapropriação por necessidade ou utilidade pública, ou por interesse social, mediante prévia e justa indenização em dinheiro. Em caso de perigo iminente, como guerra ou comoção intestina, as autoridades competentes poderão usar da propriedade particular, se assim o exigir o bem público, ficando, todavia, assegurado o direito a indenização ulterior.
Da Ordem Econômica e Social
Art 147 – O uso da propriedade será condicionado ao bem-estar social. A lei poderá, com observância do disposto no art. 141, § 16, promover a justa distribuição da propriedade, com igual oportunidade para todos.”
Os artigos mostram que a Lei inovou no ordenamento jurídico, pois a partir dessa, o proprietário não tinha mais apenas a obrigação de abstenção, passando-se a exigir uma obrigação social, condicionando assim, a propriedade a um bem estar social. (LOREIRO, 2003)
Os conflitos políticos no Brasil que vinham desde antes da Constituição de 1946, se agravaram, e em meio a esses (ou em razão desses) foi promulgada Constituição de 1967 em 24 de janeiro de 1967 e entrou em vigor em 15 de março de 1967, período em que assumia a Presidência do país o Marechal Arthur da Costa e Silva.
O contexto histórico permite dizer que a Carta Política de 1967 ocupava-se fundamentalmente com a segurança nacional. E assimilou características básicas da Constituição de 1937, sendo inclusive tão autoritária quanto está.
O período foi de intensas crises políticas, culminando com o Ato Institucional 5 que rompeu com a ordem constitucional posta na Constituição de 1967, e atribuiu poderes do Executivo aos Ministros da Marinha de Guerra, do Exército e da Aeronáutica Militar, os quais elaboraram o novo texto constitucional, ao final promulgado em 17 de outubro de 1969, como Emenda Constitucional n.1 á Constituição de 1967. Teoricamente e tecnicamente, é correto afirmar que essa emenda na verdade é a Constituição Federal de 1969. (SILVA, 2006)
Todo esse panorama político foi narrado com o objetivo de explicar que inobstante o panorama político as Constituição de 1967 e 1969. Elas positivaram como finalidade da ordem social, realizar o princípio da função social da propriedade. Como se pode observar no extraído[16]:
“Da Ordem Econômica e Social
Art 157 – A ordem econômica tem por fim realizar a justiça social, com base nos seguintes princípios:
III – função social da propriedade;”
Embora, o tema Função Social tenha sido abordado a muito na história da propriedade, no plano fático, ainda hoje, o tema é polêmico e com avanços pontuais,
Nesse sentido, alerta com muita sabedoria Venosa que “[…] a moradia e o uso adequado da terra passam a ser a grande, senão a maior questão do século XX, agravada nesse inicio de século pelo crescimento populacional e empobrecimento geral das nações. […]”. Por isso, pensar a função social da propriedade e a utilização dos bens imóveis são dos maiores desafios do corrente século. (2002, págs. 151 e 152). É alicerçada nesses caminhar histórico que deve ser compreendida a Lei do Abandono de Rio Grande.
2. PRINCÍPIOS CONSTITUICIONAIS E A LEI MUNICIPAL 6.699/2009
No primeiro capitulo se viu um breve noticiar sobre a evolução do conceito de propriedade, por tudo pesquisado pode-se, entender o instituto como parte estruturante do regime jurídico político atual, e baseado nisso se interpretará a Lei Municipal de Rio Grande, (6.699/2009), usando como método de interpretação o sopesamento de princípios constitucionais, em destaque: Função Social versus Não-confisco.
2.1 APARENTE CONFLITO: FUNÇÃO SOCIAL E NÃO CONFISCO
Atente que no ordenamento jurídico brasileiro a propriedade privada, como um direito individual e social, deve ter seu exercício regular protegido no caso concreto, ao mesmo tempo, os valores constitucionais sociais, respeitados para o melhor resultado a fim de coibir os conflitos, ou seja, a propriedade e seu uso devem consagrar o bem individual e o bem comum.
Com isso se quer dizer que a garantia constitucional à propriedade privada, tem atrelada a ela dois elementos principiológicos antagônicos: Princípio da Função Social e Principio do Não-Confisco, ambos, positivados na lei Maior.
Dito isso, para compreender a Lei Municipal e os possíveis conflitos constitucionais da mesma, é necessário explanar, brevemente, sobre as técnicas de interpretação que poderiam ser utilizadas e os princípios de Função Social e Não-confisco. Destaca-se desde já, que se elegeu no presente ensaio a hermenêutica constitucional.
2.1.1 Técnicas de Interpretação
Escrever sobre técnicas de interpretação e hermenêutica é passear sobre um terreno de incertezas e discussões. Uma analise detalhada de cada método e cada corrente hermenêutica, por certo, renderia ensejo a um trabalho isolado, razão pela qual, não se fará um estudo aprofundado sobre o tema.
O que se tem por razão aqui é, tão somente, um resumo da evolução das técnicas de interpretação, em especial a nova hermenêutica dos princípios e direitos fundamentais. Com a intenção de evidenciar ao leitor o enfoque aos princípios, como método utilizado compreensão da Lei Municipal, no que importa a sua regular aplicabilidade.
Antes de tudo, será necessário explanar sobre, o quê é interpretar a lei, valendo-se da explicação de Caio Mário da Silva Pereira,
“A interpretação da lei, como processo mental de pesquisa de seu conteúdo real, permite ao jurista fixá-lo tanto em relação com a forma do comando das atividades humanas que venha a criar, inexistentes quando de sua elaboração, porém suscetíveis de subordinação á regra em tempo ulterior. Esta pesquisa de vontade legal, que, de tão importante e construtiva, não falta quem a classifique como última fase da elaboração normativa, sobe o fundamento de que a lei contém na verdade o que o intérprete nela enxerga, ou dela extrai, afina essência com o conceito valorativo da disposição, e conduz o direito no rumo evolutivo que permite conservar, vivificar e atualizar preceitos ditados há anos, há década, há séculos, e que hoje subsistem somente em função do entendimento moderno de seus termos.” (2010, p.161)
Sabe-se que a lei é a fonte essencial do direito, versa o comando, que deve ser compreendido pelo aplicador. Promulgada e vigente a norma, no ciclo completo de sua existência como norteadora da conduta social, deve ser efetivada pelos poderes executivo, administrativo e judiciário.
Esse compreender, exige o trabalho de entendimento sobre o conteúdo da norma. Ao longo dos tempos, foram e são utilizadas técnicas de interpretação.
Na velha perêmia “in claris cessat interpretatio” que significa “nas disposições claras cessa a interpretação”, fundou no Estado Romano, no inicio, a interpretação dos elementos literais. O doutrinador Pereira esclarece que conforme foi evoluindo culturalmente a sociedade romana, mais desenvolvida ficava a capacidade de interpretação, surgindo assim à hermenêutica, a qual mesmo ligada ao positivado na Lei, permitiu a sociedade um pensar a Lei, nas palavras do autor:
“Como acentua Ihering, o direito romano, a princípio, não se valia senão dos elementos literais, restringindo-se a interpretação á procura do que se achava fixado na palavra. Este apego à forma é natural em todos os povos que atravessam fase menos desenvolvida de sua evolução, não apenas no tocante ao direito, mas a todas as manifestações de inteligência. Somente quando o romano atingiu mais adiantado grau de cultura, ao alcançar o estágio de plenitude de seu florescimento, e conseguiu expressar-se na criação de conceitos abstratos, pôde formular regras de hermenêutica sob a dominação do elemento lógico, e assentou, então, que a interpretação é algo mais do que conhecimento literal da linguagem da lei, por envolver também perquirição da sua força e da sua vontade”. (p.169)
Conforme se leu, a hermenêutica tradicional, valendo-se da dominação do elemento lógico entendia que a Codificação na França de Napoleão, era um triunfo da razão, um racionalismo. Isso por que essa forma de interpretação prima pela explicação da lei escrita.
Com o avançar do tempo, os pensadores foram questionando o pragmatismo da escola exegética, e paulatinamente a investigação cientifica foi integrando-se a interpretação da lei, firmando a hermenêutica moderna (escola do direito livre). E valendo-se da expressão romana “scire leges non hoc est verba earum tener sed vim ac potestatem” traduzindo, “conhecer as leis não é memorizar as palavras delas, mas conhecer a sua força e seu poder”. Interpretar a lei não era apenas ler suas palavras, era buscar cientificamente uma explicação, seu fundamento e razão. (PEREIRA, 2010, p.162)
Após a segunda guerra mundial constatou-se que os Estado Totalitários praticaram inúmeros atos de enorme desrespeito a dignidade das pessoas. Todos os absurdos estavam cobertos pelo manto a legalidade. Como explica Isan Almeida Lima[17], em seu artigo Neoconstitucionalismo e a nova hermenêutica dos princípios e direitos fundamentais:
“Naquele momento histórico, o direito era entendido como sendo aqueles atos emanados do Estado. Respeitado o processo legislativo formal (caráter objetivo) e sendo emanado do Estado (caráter subjetivo), agente legitimamente competente para produção de normas jurídicas, o ato normativo, independente de seu conteúdo, seria considerado válido e legítimo”. (on line)
A hermenêutica constitucional surgiu da oposição quanto à legitimidade de alguns atos dos Governantes, atos de abuso de poder, atos revestidos de legalidade, todavia, desprovidos de valores morais perenes.
O presente trabalho filia-se da hermenêutica constitucional, para analisar a Lei do Município de Rio Grande no que tange aos dois conflitos aparente de normas: princípio da Função Social versus não confisco; e o ato discricionário do ente público na arrecadação da propriedade privada.
Acredita-se que, o método de interpretação hermenêutica constitucional pode ser utilizado. Visto que, não basta estar positivada a lei, é necessário que ela esteja harmonizada aos princípios fundamentais da Carta Maior de 1988.
Desde já, cumpre salientar, que entre os princípios e a política (e seu regime), a história mostra que os princípios são norteadores mais justos. E para buscar os ideais de justiça, deve o interprete se guiar pelos princípios, mesmo que eles colidam com as idéias do momento político.
Para seguir nesse caminho, é necessário entender que os princípios são mais perenes que a política, e com ela não devem se confundir, por isso urge fazer distinção entre política e princípio, que para Dworkin:
“Denomino ‘política’ aquele tipo de padrão que estabelece um objetivo a ser alcançado, em geral uma melhoria em algum aspecto econômico, político ou social da comunidade […] Denomino ‘princípio’ um padrão que deve ser observado, não porque vá promover ou asseguar uma situação econômica, política ou social considerada desejável, mas porque é uma exigência de justiça ou eqüidade ou alguma outra dimensão da moralidade.” (DWORKIN, 2007, p.36 apud, FARIA[18], online)
A tratar dessa distinção, nota-se que política e princípios podem caminhar no mesmo sentido e modo, todavia não se confundem.
Lenio Streck (2008) destaca que Dworkin ao convencionar princípios jurídicos com objetivos políticos permite aos intérpretes várias possibilidades para a edificação de soluções em harmonia com direito positivo, protegendo o cidadão de discricionariedades de qualquer natureza.
No caso de conflito de normas constitucionais, a solução interpretativa, como bem leciona Renato Luiz Miyasato de Faria, ocorre da seguinte forma:
“Quando os princípios se intercruzam (colidem) aquele que vai resolver o conflito tem de levar em conta a força relativa de cada um (ponderação), e, como essa dimensão é uma parte integrante do conceito de um princípio, deve ser feita a pergunta no sentido de quão importante ele é?” (on line)
Com isso se entende que o Direito é a conjunção entre leis em sentido estrito e princípios, os quais se harmonizam para resolver conflitos. Nesse sentido leciona Lenio Streck:
“Dworkin, contrapondo-se ao formalismo legalista e ao mundo de regras positivista, busca nos princípios os recursos racionais para evitar o governo da comunidade por regras que possam ser incoerentes em princípio. É nesse contexto que Dworkin trabalha a questão dos hard cases, que incorporam, na sua leitura, em face das dúvidas sobre o sentido de uma norma, dimensões principiológicas, portanto, não consideradas no quadro semântico da regra.” (STRECK, 2008, p.250)
De forma mais simples, pode se dizer, a sociedade enalteceu alguns princípios como fundamentais, os quais garantem a coerência do sistema. Afastar-se dos princípios é desestruturar a lógica do sistema, é filiar-se a uma política vazia.
Essa coerência depende da aplicação justa da lei no caso concreto. Para tanto, seguindo uma interpretação principiológica, deve caminhar do plano abstrato da lei, até concretizar-se na conduta do Poder Público.
Isso significa no caso em estudo, na lei do Abandono do município de Rio Grande, os atos do poder público devem beneficiar a coletividade para validar sua aplicabilidade, ao contrário servirá aos interesses políticos e não aos princípios legais, comprometendo a aplicabilidade da Lei e corrompendo o sistema.
Importa, pois, o cuidado com os valores principiológicos, deve ser legalmente previstos, e moralmente corretos. Se faltar um dos elementos (legalidade ou moralidade), os danos sociais são, não apenas graves, mas terrivelmente perigosos, porque colocam em risco o Estado Democrático de Direito.
2.1.2 Pensando a lei do município
Entendido o enfoque da interpretação, desde já, cumpre salientar que a propriedade é um direito individual, ela confere ao seu titular uma cadeia de faculdades cujo contendo se consagra como fundamento do direito civil com as prerrogativas de: usar, reaver, gozar e dispor do bem.
Todavia, quando excede aos poderes inerentes ao exercício regular, o cidadão fica sujeito ao poder de polícia do Estado. Isso ocorrendo, o estudo da propriedade sai da esfera do direito privado e “passa a constituir objeto do direito público e a submeter-se a regime jurídico derrogatório e exorbitante do direito comum”. (DI PIETRO, 2009, P.125)
No caso da lei do Município, os princípios devem ser visto, a partir da idéia que a arrecadação do bem, não é um exercício de disposição do cidadão comum, é considerado um ato unilateral, mas presumidamente, logo é uma situação de sujeição do cidadão ao exercício do poder público, assim sendo os ATOS para realização da arrecadação, devem estar em acordo com os princípios a que esta limitada a Administração Pública.
Não basta simplesmente a legalidade estrita da atuação estatal, atualmente, isso é considerado insuficiente a titulo de legitimação do direito. Assim, entende-se que o sistema não é legitimo, por simplesmente o Estado cumprir as regras legais que o integra, é obrigatória à ampliação da legalidade para a noção de juridicidade, na qual estão inseridos valores como: moralidade, eficácia, segurança jurídica e proporcionalidade.
Veja bem, como lembra Carvalho, a regra legal, é apenas um dos elementos definidores da noção de juridicidade, a qual ultrapassa o limite formal, e exige que os atos estejam em conformidade com os princípios gerais de Direito previstos explicita e implicitamente na Constituição. (2008)
Dito isso, se começará a entender os princípios da Função Social e Principio do Não-confisco. Que devem nortear o entendimento sobre Lei Municipal e sua aplicabilidade ou não aplicabilidade no caso concreto.
2.2 FUNÇÃO SOCIAL DA PROPRIEDADE
Relembrando, nos países ocidentais (incluso o Brasil) prevaleceram os valores capitalistas e argumentação naturalista de Locke e outros. O Código Civil de 1916 sofreu forte influência do contexto histórico europeu, em especial, ao código napoleônico. Nesse já havia a previsão do uso nocivo da propriedade, e permitia limitações ao direito de propriedade, destaque o direito de vizinhança e algumas restrições urbanísticas de direito público.
Impera falar-se disso, pois Silvio Venosa afirma e demonstra que, ainda hoje, a compreensão de propriedade persiste a ser componente efetivo para motivar o arcabouço econômico e social dos Estados. E explica que para sopesar valores (como propriedade privada e função social) se faz necessário um exercício interpretativo e axiológico, nas palavras do professor:
“A história, a filosofia e a sociologia da propriedade repercutem diretamente sobre suas conseqüências jurídicas. O juiz desde início de século, a cada decisão, sem se descurar da proteção ao proprietário, deve sempre ter em mira a função social de todos os bens. Assim, como não existe concepção de Direito para o homem, só, isolado em uma ilha, não existe propriedade, como entidade social e jurídica, que possa ser analisada individualmente. A justa aplicação do direito de propriedade depende do encontro do ponto de equilíbrio entre o interesse coletivo e o interesse individual. Isso nem sempre é alcançado pelas leis, normas abstratas e frias, ora envelhecidas pelo ranço de antigas concepções, ora falsamente sociais e progressistas, decorrentes de oportunismos e interesses corporativos. […]” (VENOSA, p. 157)
Nesse sentido, cabe observar, que a interpretação não pode ocorrer desvinculada da lei (strito senso) e a lei (lato senso) não pode ser desvinculada dos princípios e valores informativos do direito. A tarefa por certo derivara de um estudo exaustivo, para não ser levada a interpretações por modismos.
O conceito jurídico de propriedade é o mesmo desde o código de 1916, todavia, as interpretações devem (e tem sido) norteadas pela constituição e valores sociais de cada período, nas palavras do autor:
“[…] O juiz, ao proferir sentença, deve retratar a absorção do sentido social de sua realidade temporal e espacial e não expressar o sentimento individual de justiça, quando então estará substituindo o legislador, criando lei individual e egoística. Não pode o julgador substituir o Direito; tem o dever de ser seu intérprete. Nessa interpretação e integração de normas reside o papel criador do magistrado”. (VENOSA, 2002, p.157 e 158):
No momento atual, a propriedade sofre limitações de várias naturezas, em especial as de política urbana, que se alicerça no princípio da Função Social da Propriedade. Carlos Roberto Gonçalves afirma que um grande número de leis impõe restrições ao direito de propriedade, sendo exemplos: Código de Mineração, Código Florestal, Lei de Proteção ao Meio Ambiente, outras restrições de natureza administrativas, de natureza militar, eleitoral, entre outras. Nas palavras de Gonçalves:
“Todo esse conjunto, no entanto, acaba traçando o perfil atual do direito de propriedade no direito brasileiro, que deixou de apresentar as características de direito absoluto e ilimitado, para se transformar em um direito de finalidade social.” (2010, p.246)
Essas limitações, em muito se justificam nas teorias que buscam o fundamento jurídico da propriedade, sua origem e legitimidade, as quais, já foram explanadas anteriormente.
José Afonso da Silva resume as modificações no entendimento acerca da propriedade, no panorama constitucional atual da seguinte forma:
“O direito a propriedade fora, com efeito, concebido como uma relação entre uma pessoa e uma coisa, de caráter absoluto, natural e imprescritível. Verificou-se, mais tarde, o absurdo dessa teoria, porque entre uma pessoa e uma coisa não pode haver relação jurídica, que só se opera entre pessoas. Um passo adiante, à vista dessas críticas, passou-se a entender o direito de propriedade como uma relação entre um individuo (sujeito ativo) e um sujeito passivo universal integrado por todas as pessoas, o qual tem o dever de respeitá-lo, abstraindo-se de violá-lo, e assim o direito de propriedade se revela como um modo de imputação jurídica de uma coisa com a um sujeito[19]. Mas aí se manifesta uma visão muito parcial do regime jurídico da propriedade: uma perspectiva civilista, que não alcança a complexidade do tema, que é resultante de um complexo de normas jurídicas de Direito Público e de Direito Privado, e que pode interessar como relação jurídica e como instituição jurídica”[20]. (2006, p.271) (grifo do autor)
Valendo-se das idéias do doutrinador, pode-se afirmar que o regime jurídico da propriedade é um complexo de normas: administrativas, urbanísticas, empresariais (comerciais) e civis, sob o crivo das normas constitucionais. Assim, compreende-se que a função social é elemento da estrutura e do regime jurídico da propriedade, sendo assim, princípio ordenador da propriedade privada.
Nesse sentido, Venosa, ensina que:
“Dentro do que foi examinado, o direito de propriedade é o direito mais amplo da pessoa em relação á coisa. Esta fica submetida a senhoria do titular, do dominus, do proprietário, empregando-se esses termos sem maior preocupação semântica. Traduz-se na disposição do art. 524: ‘A lei assegura ao proprietário o direito de usar, gozar e dispor de seus bens, e de reavê-lo do poder de quem injustamente os possua.’ Ou, como descreve de forma mais atual o novo Código: ‘O proprietário tem a faculdade de usar, gozar e dispor da coisa e o direito de reavê-la de quem quer que injustamente a possua ou detenha’ (art. 1228).” (2002, p.158) (grifo do autor)
O pensamento do autor segue a doutrina majoritária, na qual o critério do conteúdo da propriedade se extrai do enunciado do Código, no artigo 1.228, caput, porém, é inafastável o valor constitucional da função social no panorama do direito civil nos dias de hoje.
Veja, a leitura do artigo 5º, XXIII garante A propriedade atenderá a sua função social,
Todavia, quis o legislador originário reafirmar a instituição da propriedade privada e a sua função social como princípios da ordem econômica (art. 170, II e III). Aqui, não reside um mero poder de polícia do proprietário (com limitações, ônus e restrições), e sim um fundamento da estrutura de um novo regime jurídico. (SILVA, 2006, p. 281).
Entendido isso, pode-se dizer que o Código Civil Brasileiro, como norma infraconstitucional, está comprometido com os ideais, desse regime jurídico social. E mais, as luzes desses, as normas positivadas no Código Civil, perpetuam uma pirâmide de hierarquia legal.
Nota-se então, poderia surgir, desse emblema um conflito aparente de normas, em primeiro no seara civil, quando Silvio Venosa enfatiza que ao falar de abandono ou derrelição está se tratando de ato de disposição, na dúvida o abandono não se presume. (2005, p.235)
Maior incompatibilidade legal, ainda, evidencia-se ao estudar o princípio da vedação ao confisco, previsto no artigo 150, IV, da Constituição Federal, o qual proíbe a União, Estados, Distrito Federal e aos Municípios, utilizar tributos, com efeito, de confisco de bens.
2.4 PRINCÍPIO DO NÃO-CONFISCO
Sobre o não-confisco, destaca-se que ele representa uma limitação negativa ao poder de tributar imposta ao Estado, pelo poder constituinte originário. Significa, também, um Direito Fundamental de Cidadania protegido por cláusula pétrea, para Eduardo Sabbag o princípio, “[…] apresenta-se como uma bússola ao intérprete, no sentido de estabilizar o sistema de limites impostos à avidez fiscal.”. (2011, p.230)
O instituto do confisco remonta a uma previsão milenar, desde o período da Roma Antiga até chegar ao texto constitucional atual. No ordenamento pátrio, na época do Império, “[…] sob a égide das Ordenações Filipinas, o confisco era legitimo, mas com um viés punitivo, em face dos crimes de lesa-majestade […]”. (p.232)
O doutrinador ainda explica que de forma implícita a proibição de confisco está contida desde o texto constitucional de 1824, e se filia a Cíntia Estefânia Fernandes na afirmação de que “o princípio do não confisco faz parte da tradição constitucional brasileira”. (p.233)
No presente trabalho, importa estabelecer a conexão do princípio do não confisco e o direito a propriedade. Paulo Cesar Bária de Castilho muito bem define o conceito de confisco e consequentemente define essa conexão, da seguinte forma: “confisco tributário consiste em uma ação do Estado, empreendida pela utilização do tributo, a qual retira a totalidade ou parcela considerável da propriedade do cidadão contribuinte, sem qualquer retribuição econômica ou financeira por tal ato.” (2002, p.39).
Então, atente, o poder de tributar deve respeitar os direitos fundamentais do particular, esse é o entendimento de parte da doutrina e do Ministro Celso Mello[21], do STF, relator do RE n. 374,981/RS, trecho do voto, abaixo:
“Em suma: a prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental, constitucionalmente assegurados ao contribuinte, pois este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos por este editados[…]”. (on line)
Nesse sentido, Sabbag, alerta sobre o perigo da tributação pesar abusivamente sobre a propriedade privada, e é categórico ao afirmar:
“É importante relatar que, não raras vezes, a confiscabilidade no tributo obsta que o cidadão exercite seu direito de propriedade sobre o próprio patrimônio, obrigando-o a se livrar do bem. Dessa forma, sobressai um paradoxal cenário: o legislador constituinte protege, ‘com a mão direita’, a propriedade privada (art. 5º, XXII) e, ‘com a mão esquerda’, abona a sua entrega à usurpação estatal pela via indireta da tributação escorchante.” (2011, p.237)
Exatamente nesse ponto, o presente trabalho atinge o seu primeiro ponto mais sensível, pois se entende que a linha tênue entre de aplicabilidade ou não aplicabilidade da Lei Municipal reside no fato: o poder estatal precisa respeitar o exercício a propriedade privada que, apriori, não pode ser exposta a uma carga tributária exacerbada.
Posto isso, urge completar que a doutrina excepciona a carga tributária exacerbada, quando o Estado procura alcançar interesses extrafiscais, munida com a função social e só para atendê-la. Nesse sentido leciona Luciano Amaro:
“Desde que a tributação se faça nos limites autorizados pela Constituição, a transferência de riqueza do contribuinte para o Estado é legitima e não confiscatória. Portanto, não se quer, com a vedação ao confisco, outorgar á propriedade uma proteção absoluta contra a incidência do tributo, o que anularia totalmente o poder de tributar. O que se objetiva é evitar que, por meio do tributo, o Estado anule a riqueza privada.”
Logo, o problema de maior complexidade no estudo do tributo, com efeito, confiscatório está na delimitação. É de enaltecer que no Brasil não foram estabelecidos parâmetros objetivos no ordenamento jurídico.
Para entender o que se firma na doutrina, precisa-se abrir um parêntese e explicar a diferença entre tributos fiscais e extrafiscais, resumidamente. O primeiro possui intuito estritamente arrecadatório; o segundo “são aqueles com finalidade reguladora (ou regulatória) de mercado ou da economia de um país.”(SABBAG, p.409)
Como foi dito a tomada de bens, usando como presunção valores de débitos fiscais, exacerbados, só são, doutrinariamente explicando, concedidos aos tributos revestidos pelo poder regulatório do Estado, ou seja, os extrafiscais.
Então, primeiro, a lei do Município, utiliza-se do tributo IPTU para realizar a presunção de débitos ficais, o Supremo Tribunal Federal, já pacificou que esse tributo será extrafiscal quando o objetivo de seu uso for para o absentismo e improdutividade nos imóveis rurais e a especulação imobiliária e a disfunção social nas propriedades urbanas. Logo, na analise inaugural, a lei municipal atende o objetivo extrafiscal do tributo.
No que tange a competência do Município em legislar sobre a matéria, também é pacifica na doutrina e jurisprudência, conforme depreende o artigo 156, inciso I, § 1º da Constituição, in verbis:
“Art. 156. Compete aos municípios instituir impostos sobre:
I – propriedade predial e territorial urbana;
§ 1º – O imposto previsto no inciso I poderá ser progressivo, nos termos de lei municipal, de forma a assegurar o cumprimento da função social da propriedade.”
De tudo visto até aqui, sobre a tributação por meio do IPTU, conclui-se, quando usado para desestimular a especulação imobiliária e disfunção social nas propriedades urbanas, o Imposto Predial e Territorial Urbano será extrafiscal, pois revestido de valores sociais. (CARRAZZA, 2004)
Logo, quando o tributo estudado for utilizado para atender ao bem comum, será permitido a titulo de excepcionalidade, mesmo nos casos de exacerbação tributária.
Bem, no caso do município de Rio Grande, o imposto não é o objeto que leva a arrecadação do bem, ele serve como prova de abandono, ou seja, o inadimplemento dos valores fiscais serve como presunção para o abandono. Menos razão ainda, tem a vedação do princípio do não confisco.
Pelo exposto, não poderia se falar em inconstitucionalidade na Lei do Abandono na cidade de Rio Grande, em razão do princípio do não-confisco.
Todavia, pelo que foi dito seguindo na mesma linha interpretativa, nota-se que a extrafiscalidade concedida ao poder publico é decorrente do interesse coletivo, e APENAS sob essa justificativa é válida.
O texto constitucional concedeu ao poder municipal autonomia para exercer o poder de polícia na propriedade privada, para que essa cumpra sua função social, mas levantou diques aos caprichos do legislador municipal e ao poder executivo municipal. O poder do agente público está limitado por princípios, como o já citado, não confisco, e outros, legalidade, transparência, eficiência e moralidade. (CARRAZZA, 2004).
A lei municipal no que tange a relativização da propriedade privada, supera os argumentos de inconstitucionalidade por vedação ao não-confisco, por que a função social prepondera no caso da Lei do Abandono, por certo, o cidadão que deixa a propriedade imobiliária abandonada, expõe a coletividade a enormes riscos de saúde (acumulo de sujeira e consequentemente doenças), riscos de segurança (o lugar abandonado pode servir de esconderijo para criminosos) entre outros males.
Nesse contexto, cumpre esclarecer que a função social da propriedade não se confunde com os sistemas de limitação da propriedade. Pois, como se observa esta diz respeito ao exercício do direito do proprietário. Enquanto, aquela trata da estrutura do direito.
Em outras palavras, a convivência privada está condicionada ao interesse coletivo, sendo compromisso de todas as esferas do poder harmonizar a propriedade privada com sua função social. Jose Afonso da Silva ainda atenta que, sua aplicabilidade é imediata enquanto garantia constitucional há função social. (2006)
Venosa, explica que os princípios constitucionais afastam-se do individualismo histórico, e não apenas busca coibir o uso abusivo da propriedade como também buscam efetivar a obrigação social. Nas palavras do autor:
“As vigas mestras para utilização da propriedade estão na Lei Maior. Cabe ao legislador ordinário equacionar o justo equilíbrio entre o individual e o social. Cabe ao julgador, como vimos, traduzir esse equilíbrio e apara os excessos no caso concreto sempre que necessário. Equilíbrio não é conflito, mas harmonização”. (2002, p.154)
Em nome dessa harmonização, é crescente o número de medidas administrativas regulando o uso da propriedade. É abuso de direito a má utilização do bem, ou seu uso sem finalidade, ou ainda com finalidade meramente emulativa.
Por tudo isso, a interpretação constitucional, ampara e justifica, quando Código Civil Brasileiro prevê a perda do bem imóvel, por ato unilateral, no caso em que o titular abre mão de seus direitos sobre a coisa, de forma tácita, o abandono (CC, art. 1276 e §1º), e fundada nesse artigo (logo com amparo constitucional da função social), surge a Lei do Abandono do Município de Rio Grande.
A doutrina de forma pacífica entende que a modalidade de perda da propriedade por abandono não fere o princípio do não-confisco. Primeiro por que entende que ao não pagar os impostos o proprietário caracteriza uma omissão anti-social, fere a função social da propriedade. E mais, o devido processo legal garantido no Código, confere ao detentor do titulo de propriedade todos os recursos para que o proprietário exerça seu direito, e ao não fazê-lo, ele abdica desse direito. Nas palavras de Diniz:
“O abandono (CC, art. 1275, III) é uma modalidade de perda de propriedade, pois é o ato unilateral em que o titular do domínio se desfaz, voluntariamente, do seu imóvel, porque não quer mais continuar sendo, por várias razões, o seu dono. É necessário, para que haja derrelição, a intenção abdicativa; a simples negligência ou descuido não a caracterizam. ‘ A aplicação do art. 1276 depende do devido processo legal, em que seja assegurado ao interessado demonstrar a não-cessação da posse’ (Enunciado n.242 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil). Há presunção absoluta (júris et de jure) da referida intentio se, cessados atos de posse, o proprietário deixar de satisfazer os encargos fiscais (tributos que recaiam sobre o imóvel) (CC, art. 1276, §2º) : ‘A presunção de que trata o §2º do art. 1276 não pode ser interpretada de modo a contrariar a norma-princípio do art. 150, IV, da Constituição da República’” (Enunciado n. 243 do Conselho da Justiça Federal, aprovado na III Jornada de Direito Civil.) (2008, p.182)
O Código e a Lei Municipal tratam que a coisa arrecada não reclamada por ninguém, será do domínio público, por ato discricionário. Ou seja, o Poder Público em razão de conveniência e oportunidade, decidirá os bens que serão arrecadados e os que não serão. Sobre o Ato discricionário a doutrina não é pacífica, e sobre esse ponto da lei, se falará no próximo capítulo.
3. LEI DO ABANDONO: ATO DE ARRECADAÇÃO
Como foi visto no capítulo anterior, o princípio constitucional do não-confisco, não macula a lei municipal do abandono, pois os valores sociais preponderam no caso em estudo e justificam o Código Civil no que trata das regras de abandono, consequentemente, amparam a Lei do Abandono.
Neste capítulo, se estudará[22] o ato para a arrecadação do bem imóvel, por via discricionária. Cumpre desde já, delimitar o objeto desse capítulo, se fará um breve perfil histórico sobre ato administrativo, depois uma tentativa conceitual (noticiando a sua classificação quanto a modo e formação), para por fim, analisar a discricionariedade do ato e a repercussão dessa forma de ação administrativa, no que importa a Lei do Abandono da Cidade de Rio Grande, em perspectiva com os ideais do Estado atual.
Nesse contexto entender-se-á, que o Estado visando “atingir os fins a que se propõem e em virtude dos quais existe”, desenvolve várias e contínuas atividades, “atuando por meio de seus agentes, os quais tomam decisões, expressas em atos que produzem efeitos jurídicos”. Dentre esses atos que produzem efeitos está o ato de arrecadação de imóveis abandonados em Rio Grande. (MEDAUAR, 2011, p.143)
Tudo isso foi dito, para entender que o compromisso de qualquer ATO administrativo, inclusive o em estudo na lei de Rio Grande, é limitado ao dever público, sendo vedada à autonomia da vontade, e nesse ponto vai se criticar a discricionariedade do ato de arrecadação do bem particular pelo ente público na citada lei.
Desde já, cumpre destacar que mesmo com caráter discricionário, como é o caso em tela, existe parâmetro nos limites legais, não é um poder absoluto, porque a lei estabelece restrições para a esfera de amplitude do ato, mas uma vez instituído ele se torna OBRIGATÓRIO, tanto para o particular como para a administração pública.
Para confirmar essa hipótese, é necessário compreender o conceito de ato administrativo, fazendo um brevíssimo relato histórico e explanando-se sobre os requisitos exigidos para que esses atos sejam válidos.
3.1 ATO ADMINISTRATIVO: ORIGEM DA EXPRESSÃO
Maria Sylvia Zanella di Pietro é categórica ao afirmar que “Onde existe Administração Pública, existe ato administrativo (…)”, mas nos primóridios a expressão usada não era – Atos da Administração Pública, o termo utilizado era: “atos do Rei, atos do Fisco, atos da Coroa”. (2010, p.191).
A expressão atos administrativos, seguindo o estudo do doutrinador Oswaldo Aranha Bandeira de Mello, “[…] surgiu no direito após a Revolução Francesa […].”. (2010, p.474)
O primeiro texto legal que fala em atos da Administração Pública em geral, foi a Lei 16/24-08-1790, que vedava aos tribunais conhecerem de “operações dos corpos administrativos”. E manteve-se na Lei de 3-9-1795, na qual veda “aos tribunais conhecer dos atos da administração, qualquer que seja a sua espécie”.
Celso Antônio Bandeira de Mello segue a linha histórica falando que:
“[…] Depois, a mesma interdição constou da Lei de 16 Fruitidos, do Ano III, relativamente aos ‘atos de administração de qualquer espécie’. Referindo-se a essa lei, o Diretório, de 2 Germinal, do Ano V, declarava que por ‘atos de administração’ se deviam entender os executados por ordem do governo, por seus agentes imediatos, sob sua fiscalização, e com fundos fornecidos pelo Tesouro.” (2010, p.375)
Di Pietro completa dizendo que “essas normas que deram origem, na França, ao contencioso administrativo, para separar as competências, houve necessidade de elaboração de listas dos atos da Administração excluídos da apreciação judicial.” E segue dizendo que a primeira menção, doutrinária, surge no Repertório Merlin, de Jurisprudência, no ano de 1812, no qual, o ato administrativo foi definido como “ordenança ou decisão de autoridade administrativa, que tenha relação com a sua função.” (2019, p.191).
Por tudo visto, nota-se que o ato administrativo encontra suas raízes em atos autoritários, e no caminhar da evolução jurídica humana, nos panoramas de revoluções e evoluções, percorreu um caminho longo, e apresenta-se hoje, submisso a princípios e valores sociais positivados na Carta Maior, que vedam a arbitrariedade do ente público, diferente dos primórdios, época em que validava a arbitrariedade absolutista dos soberanos. Pois, hoje soberano é o povo, tudo que se expresse em atos diferente disso, é imoral e ilegal.
Partindo dessa premissa, tentará se conceituar ato administrativo.
3.1.1 Tentativa conceitual
Celso Bandeira de Mello afirma que no ordenamento pátrio, “não há definição legal de ato administrativo”, e isso faz com que a doutrina discorde no que trata do conceito de ato administrativo. (2010, p.375). Nas palavras do doutrinador,
“Vale-se notar que a pacificação doutrinária ou jurisprudencial – quando ocorra – em trono de um conceito, não significa, de modo algum, que este sucesso se deva ao fato de ter sido encontrado o conceito “verdadeiro”, o “certo”. Em verdade, dado o caráter convencional do conceito, terá havido simplesmente a imposição ou difusão dele, em face do prestígio de quem o propôs ou, afinal, por qualquer outra razão haja contribuído para a adoção daquele “padrão”, daquele “modelo” representativo de um conjunto de elementos arrecadados nas indicações de direito positivo. […]
Resulta, pois, que a formulação do conceito de ato administrativo – como qualquer outro não expendido pelo direito positivo – há de nortear-se por um critério de utilidade, isto é, de “funcionalidade” ou, como habitualmente temos dito, de “operatividade”. Vale dizer: não há conceito verdadeiro ou falso. Portanto, deve-se procurar adotar um que seja o mais possível útil para os fins a que se propõe o estudioso.” (2010, p.380 e 381) (grifo do autor)
Feito o destaque crítico de Celso sobre o conceito de ato administrativo, em aspectos gerais, os doutrinadores concordam que o ato administrativo só começou a preponderar a partir do momento que se tornou nítida a separação de funções, subordinando-se cada uma delas o regime jurídico próprio.
Seguindo a lição de Di Pietro, para definir o ato administrativo, destacam-se seguintes dados:
“a. ele constitui declaração do Estado ou de quem lhe faça as vezes; é preferível falar em declaração do que em manifestação, porque aquela compreende sempre uma exteriorização do pensamento, enquanto a manifestação pode não ser exteriorizada; o próprio silêncio pode significar manifestação de vontade e produzir efeitos jurídico, sem que corresponda a um ato administrativo; falando-se em Estado, abrangem-se tanto os órgãos do Poder Executivo como os demais Poderes, que também podem editar atos administrativos;
b. sujeita-se a regime jurídico administrativo, pois a Administração aparece em todas as prerrogativas e restrições próprias do poder público; com isto, afastam-se os adot de direito privado praticados pelo Estado;
c. produz efeito jurídicos imediatos; com isso, distingue-se o ato administrativo da lei e afasta-se do seu conceito o regulamente que quanto ao conteúdo, é ato normativo, mais semelhante á lei; e afastam-se também os atos não produtores de efeito jurídicos diretos, como os atos materiais e os atos enunciativos;
d. é sempre passível de controle judicial;
e. sujeita-se à lei;
As duas últimas características colocam o ato administrativo como uma das modalidades de ato praticado pelo Estado, pois o diferenciam do ato normativo e do ato judicial.” (p. 195 e 196)
Para denominar atos administrativos, alguns, autores chamam de elementos, outros de requisitos, algumas vezes dividindo em intrínsecos e extrínsecos; outra corrente denomina pressupostos; outros ainda separam em requisitos de pressupostos. (DI PIETRO, 2010, MEDAUAR, 2011)
O presente trabalho, não adentrará na discussão terminológica, e filiar-se-á na divisão de Odete Meduar, que denomina: elementos do ato administrativo. Os quais, ela divide em cinco: agente competente, objeto, forma, motivo e fim.
Esses elementos são obrigatórios nos atos vinculados, e há discussão no que importa a atos discricionários. Assim, primeiro irá se comentar cada elemento e depois destacar e analisar o ato discricionário na lei do abandono de Rio Grande.
3.1.2 Elementos do Ato: obrigatório nos vinculados
Agente competente: Em linhas gerais, competente será o agente que a lei atribuir competência para praticar o ato, “quem detém os poderes jurídico-administrativos necessários para produzi-lo;” (MELLO. Celso de, 2010, p.391)
Objeto (conteúdo): Significa o efeito prático pretendido com a edição do ato administrativo ou a modificação por ele trazida ao ordenamento jurídico, “é aquilo que o ato dispõe, isto é, o que o ato decide, enuncia, certifica, opina ou modifica na ordem jurídica. É, em suma, a própria medida que produz a alteração na ordem jurídica. Em última instância, é próprio ato, em sua essência”. (DE MELLO. Celso, 2010, p.391)
Forma: A doutrina se divide em duas concepções da forma como elemento: restrita e ampla. Nas palavras de Di Pietro:
“Partindo-se da ideia de elemento do ato administrativo como condição de existência e de validade do ato, não há dúvida de que a inobservância das formalidades que precedem o ato e o sucedem, desde que estabelecida em lei, determinam a sua invalidade. É verdade que, na concepção restrita de forma, considera-se cada ato isoladamente; e, na concepção ampla considera-se o ato de dentro de um procedimento. Neste último, existe, na realidade, uma sucessão de atos administrativos preparatórios da decisão final; cada ato deve ser analisado separadamente em seus cindo elementos: sujeito, objeto, forma, motivo e finalidade.” (2010, p. 207)
A forma, em última analise abraça “tanto os modos de expressar a decisão em si quando a comunicação e as fases preparatórias, uma vez que todos dizem respeito á exteriorização do ato.” Destaca-se que nos atos editados como resultado de processo administrativo (como é o caso da lei em estudo), este não significa mero aspecto formal, a exigência do processo é conseqüência do princípio constitucional do devido processo legal. (MEDAUAR, 2011, p.145 e 146).
Motivo: esse elemento é de suma importância para o estudo da lei municipal, pois obrigatoriedade da motivação[23] dos atos é recente no ordenamento pátrio. Disso irá se tratar adiante, por hora, apenas classificar-se-á.
Di Pietro é muito didática ao explicar que “motivo é o pressuposto de fato e de direito que serve de fundamento ao ato administrativo” Para a autora o pressuposto de direito é “o dispositivo legal em que se baseia o ato”; e de fato “corresponde ao conjunto de circunstâncias, de acontecimentos, de situações que levam a administração a praticar o ato”. Atente, a autora afirma que “A ausência de motivo ou a indicação do motivo falso invalidam o ato administrativo”. (2010, p.211)(grifo nosso)
Fim: a conduta da administração pública, como já foi dito, alicerça-se no interesse público, essa é a meta, e o dever que justificam o próprio Estado Democrático de Direito, “o fim de interesse público vincula a atuação do agente, impedindo a intenção pessoal. Por isso, a afirmação do fim como elemento do ato administrativo representa uma das grandes conquistas do direito publico moderno.” (MEDAUAR, 2011, p.147). (grifo nosso)
A finalidade exposta é a lato senso, isso não desobriga o agente público a cumprir com a finalidade estrito senso de cada ato, que sempre deverá estar exposta no texto legal. (DI PIETRO, 2010)
Assim, define-se que o ato vinculado para ser perfeito, válido e eficaz é obrigatório que todos os elementos acima sejam atendidos. Eles são regrados pelo sistema jurídico visando atingir vários aspectos de uma atividade determinada. Essa submissão do agente público a lei é denominado de poder vinculado, “por que a lei não deixou opções; ela estabelece que, diante de determinados requisitos, a Administração deve agir de tal ou qual forma.” (DI PIETRO, 2010, p.212).
O estudo no presente trabalho é sobre o ato discricionário na lei do município de Rio Grande, motivo pelo qual, apenas se noticiou brevemente, sobre os elementos obrigatórios nos atos vinculados para se entender o ato discricionário. A partir de agora, irá se estudar o segundo.
3.2 DISCRICIONARIEDADE: COMO EVITAR A ARBITRARIEDADE?
Valter de Moura Agra é categórico em dizer que o ato discricionário é um “resquício da ditadura” e deveria ser banido do ordenamento jurídico brasileiro, pois está em desacordo com os ideais de soberania popular defendidos na Constituição Federal de 1988. (2006)
Para entender a indignação do ilustre doutrinador constitucionalista, é necessário dizer que nos atos discricionários, “o regramento não atinge todos os aspectos da atuação administrativa; a lei deixa certa margem de liberdade de decisão diante do caso concreto”. O poder discricionário permite que a administração pública atue calcada na oportunidade e conveniência da autoridade. (DI PIETRO, p.212)
Celso Bandeira de Mello é menos crítico que Agra, mas atenta para distinção entre discricionariedade e arbitrariedade, nas palavras do autor:
“Não se confunde discricionariedade e arbitrariedade. Ao agir arbitrariamente o agente estará agredindo a ordem jurídica, pois terá se comportado fora do que lhe permite a lei. Seu ato, em consequência, é ilícito e por isso mesmo corrigível judicialmente. Ao agir discricionariamente o agente estará, quando a lei lhe outorga tal faculdade (que é simultaneamente um dever), cumprindo a determinação normativa de ajuizar sobre o melhor meio de dar satisfação ao interesse público por força da indeterminação legal quando ao comportamento adequando à satisfação do interesse público no caso concreto”. (2010, p.432 e 433)
Então se pode entender que para alguns doutrinadores o ato discricionário é uma afronta ao ordenamento jurídico atual, e para outros embora válidos “não há ato propriamente discricionário”, pois o poder discricionário absoluto no ato administrativo, implicaria em arbitrariedade, motivo pelo qual, defende a doutrina majoritariamente, existem elementos que devem sempre ser vinculados, mesmo (ou especialmente) nos atos discricionários sob pena de se não observados, invalidarem o ato por estar em desacordo com os ideias de Estado Democrático de Direito.
A doutrina diverge a definir, qual ou quais, elementos são obrigatórios ao ato discricionário. Para Hely Lopes Meirelles, são elementos vinculados à competência, a finalidade e a forma (definida na lei). Celso Antonio diz que apenas o elemento competência é vinculado, pois a lei nem sempre diz o que é finalidade pública, cabendo ao administrador escolher.
Para maior parte dos autores: a competência, e a finalidade são elementos que vinculam a administração pública no ato discricionário, pois os outros podem ser aspectos discricionário. Nessa corrente filia-se o presente trabalho, e esses elementos (competência e finalidade) serão analisados no ato de arrecadação do bem, na lei do abandono.
O primeiro elemento a ser estudado na lei é a competência da autoridade pública para praticar o ato, nesse sentido, analisaremos a Lei Orgânica Municipal Rio Grande – Estado do Rio Grande do Sul 1990, a qual determina que:
“Art. 51 – Compete privativamente ao Prefeito, entre outras atribuições:
III – sancionar, promulgar e fazer publicar as leis aprovadas pela Câmara Municipal e tomar as medidas necessárias para sua fiel execução;”
A lei do município de Rio Grande determinou que:
“O PREFEITO MUNICIPAL DO RIO GRANDE, usando das atribuições que lhe confere a Lei Orgânica em seu artigo 51, III.
Faz saber que a Câmara Municipal aprovou e ele sanciona a seguinte Lei:
Art. 1º Perde-se a propriedade de imóvel urbano por abandono, independentemente de indenização, na forma do Código Civil Brasileiro.
Art. 5º Atendidas as diligências previstas no art. 4º e evidenciadas as circunstâncias mencionadas no art. 2º desta lei, o Chefe do Poder Executivo Municipal decretará a encampação e arrecadação do imóvel, ficando este sob guarda do Município.”
Assim, no que tange a competência o ato é legítimo e legal, uma vez que a matéria está incluída entre as atribuições do poder executivo chancelado pelo poder legislativo, levando em conta o grau hierárquico; no âmbito territorial de competência o agente apresenta-se como apto para o exercício de suas funções no limite temporal. Logo, o elemento competência é perfeito, válido e eficaz.
Com relação à finalidade, também existe vinculação e não discricionariedade, Di Pietro diz que “em dois sentidos pode-se considerar a finalidade do ato: em sentido amplo, ela corresponde sempre ao interesse público; em sentido restrito, corresponde ao resultado específico que decorre explícita ou implicitamente da lei, para cada ato.” (2010, p.214)
A finalidade “lato sensu” discricionária é o interesse coletivo, e na Lei do Abandono[24] é uma declaração expropriatória, com o fim de atender esse interesse coletivo, o resultado pretendido é movimentar um processo que vai retirar determinado bem do patrimônio de seu proprietário e transferir a função pública.
Como se observa na norma, a discricionariedade ainda diz respeito a uma escolha entre o agir e não agir do ente público para arrecadar o bem, a autoridade pública pode escolher sobre qual bem irá pesar a “mão” do Estado.
A crítica doutrinária reside no fato de que como se viu os atos vinculados não existe restrição ao Poder Judiciário, visto que todos os elementos são definidos em lei, caberá ao judiciário examinar, em todos os seus aspectos, a conformidade do ato com a lei, e se for o caso reconhecer ou não a legalidade do ato. Mas, como muito bem destaca Di Pietro “Com relação aos atos discricionários, o controle judicial é possível, mas terá que respeitar a discricionariedade administrativa nos limites em que ela é assegurada à Administração Pública pela lei.” (2010, P.217).
Veja bem, a norma é vinculada ao interesse público, mas pelo fato de ser discricionário o poder “delimitado previamente pelo legislador; este, ao definir determinado ato, intencionalmente deixa um espaço para livre decisão da Administração Pública, legitimando previamente a sua opção”. (2010, P.217).
Por certo, essa concentração de poder, nas mãos do agente público, é passível de críticas, pois essa prerrogativa de pré-validade da opção legítima da autoridade, “blinda” de certa forma sua conduta, podendo em alguns casos, gerar abuso de poder.
Agora, observe que a justificativa para o ato discricionário existir, também se fundamenta em argumentos protegidos constitucionalmente, em destaque a Ciência do Direito e a Ciência Política reconhecem que um dos pressupostos do Estado Democrático de Direito é a existência de três poderes independentes e harmônicos, quais sejam: o Poder Legislativo, o Poder Judiciário e o Poder Executivo.
Assim, o ato público de discricionário, é uma opção legitima de atuação estatal, todavia para defender os interesses públicos existem “algumas teorias que visam limitar o exercício do poder discricionário, de modo a ampliar a possibilidade de sua apreciação pelo Poder Judiciário” (2010, p.217).
Então, pensando na lei do município de Rio Grande, o ato como se viu é discricionário, logo para que o judiciário possa apreciar a conduta do agente público e penetrar na esfera de discricionariedade, é necessário um processo interpretativo baseado em algumas teorias, que visam garantir a efetividade do interesse coletivo.
3.3 TEORIAS: INTERESSE SOCIAL
Sobre a teoria de desvio de poder sabe-se que ela busca impor ao agente público, no exercício de suas competências, a observância da finalidade, dos objetivos preconizados pela lei. Perquire-se o elemento subjetivo do agente, a fim de determinar se a competência exercida está em conformidade com a finalidade legal, anulando-se o ato administrativo levado a efeito com vício de intenção. (MELLO. Celso Bandeira de, 2010).
Isso evidência, que a teoria do desvio de poder baseia-se na observação da finalidade que a autoridade pública confere a norma, ao desviar (dos fins de interesse público definidos na lei), o poder Judiciário está autorizado a decretar nulidade do ato.
Outra teoria e a dos Motivos Determinantes, nos atos discricionários, os motivos são trazidos através de conceitos imprecisos, indeterminados, cabendo ao administrador avaliá-los e decidir se são aptos a ensejar a emissão do ato administrativo, sempre percorrendo o caminho delimitado em lei.
Nas palavras de Di Pietro, sobre teoria dos motivos determinantes:
“[…] quando a Administração indica os motivos que a levaram a praticar o ato, este somente será válido se os motivos forem verdadeiros. Para apreciar esse aspecto, o Judiciário terá que examinar os motivos, ou seja, os pressupostos de fato e as provas de sua ocorrência. Por exemplo, quando a lei pune um funcionário pela prática de uma infração, o Judiciário pode examinar as provas constantes para verificar se o motivo (a infração) realmente existiu. Se não existiu ou não for verdadeiro.”
É na consideração dos motivos, que reside o ponto mais sensível do ato discricionário, pois a lei não pode ser valida se movida por intenções alheias ao interesse público específico. Isso acontece quando o ente público emite o ato, buscando finalidade especifica diversa ou, mesmo que correspondente a este, em desconformidade com a finalidade específica estatuída na norma de competência.
Para retomar o elemento motivo, é necessário, abrir um parêntese, e diferenciar motivo de motivação, e explicar o quão recente é a obrigatoriedade da motivação no direito brasileiro. Muito bem explica Odete Medauar:
“A enunciação dos motivos recebe o nome de motivação, muito conhecida também como exposição de motivos. Durante muito tempo vigorou no direito administrativo a regra da não obrigatoriedade de enunciar os motivos do ato, salvo imposição explícita da norma. A partir de meados da década de 70 essa tendência vem se invertendo, no sentido da predominância da exigência de motivação dos atos administrativos, principalmente naqueles que restringem o exercício de direitos e atividades, apliquem sanção, imponham sujeições como direito, expressem resultado de concursos públicos. Alguns ordenamentos constitucionalizaram a exigência de motivação, como o português, na revisão de 1982. No Brasil, nos trabalhos de elaboração da Constituição de 1988, houve tentativa de introduzir a regra da motivação como princípio da Administração, mas não permaneceu no texto definitivo, ficando explícita só a exigência de motivação das decisões administrativas dos tribunais (art. 193, X) (…)”. (2011, p.146)
Di Pietro segue no mesmo sentido de Medauar, e afirma que não se pode confundir motivação com motivo do ato. “Motivação é a exposição de motivos, ou seja, a demonstração, por escrito, de que pressupostos de fato realmente existiram”.
A Constituição do Estado do Rio Grande Do Sul, em seu artigo 19, não fala sobre o elemento motivo, mas elenca a motivação como princípio explícito da administração pública, in verbis:
“Art.19 – A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes do Estado e dos municípios, visando à promoção do bem público e à prestação de serviços à comunidade e aos indivíduos que a compõe, observará os princípios da legalidade, da moralidade, da impessoalidade, da publicidade, da legitimidade, da participação, da razoabilidade, da economicidade, da motivação e o seguinte:”
A doutrina atenta para o fato de que a previsão ou não previsão expressa da motivação na Carta Constitucional de 1988 não obsta a exigência de motivar, “pois encontra respaldo na característica democrática do Estado brasileiro (art.1º da CF), no princípio da publicidade (art. 37, caput) e, tratando-se de atuações processualistas, na garantia do contraditório (inc. LV do art. 5º)” (MEDAUAR, 2011, p.146).
No mesmo sentido caminha o entendimento de Di Pietro:
“Ainda relacionada com o motivo, há a teoria dos motivos determinantes, em consonância com a qual a validade do ato se vincula aos motivos indicados como seu fundamento, de tal modo, que se inexistentes ou falsos, implicam a sua nulidade. Por outras palavras, quando a Administração motiva o ato, mesmo que a lei não exija a motivação, ele só será válido se os motivos forem verdadeiros”. (2010, p.211)
Assim, o motivo é elemento chave para validade ou invalidade do ato, no caso em estudo, o ato de arrecadação do bem particular. E maior relevância e obrigatoriedade por ser um ato discricionário, caso em que a Administração deve demonstrar que este está em conformidade com os motivos indicados na lei, sem ela a população não teria meios para conhecer e fiscalizar a legitimidade das razões que levaram o ente público a praticar o ato.
O motivo para a arrecadação do bem só se justifica na sua finalidade lato senso, como se viu, ou seja, para atender o interesse coletivo. A lei do Município de Rio Grande nota-se noções imprecisas do legislador no que importa a finalidade e motivo:
“Art.11 O imóvel que passar à propriedade do Município em razão de abandono de seu antigo proprietário poderá ser empregado diretamente pela Administração, para programas de habitações populares ou ser objeto de concessão de direito real de uso a entidades civis que comprovadamente tenham fins filantrópicos, assistenciais, educativos, culturais ou esportivos.
Art.12 Não sendo possível a destinação indicadas no artigo anterior, em razão de suas características, o imóvel será leiloado e o valor arrecadado no leilão pagará as despesas realizadas pelo Município e o saldo será destinado um dos Fundos Municipais, que contemple os setores de assistêncial social, de habitação de interesse social ou de patrimônio sócio-cultural.”
Di Pietro afirma, nos casos em que a Administração “emprega esse tipo de conceito, nem sempre, existe discricionariedade; esta não existirá se houver elementos objetivos, extraídos da experiência, que permitam a sua delimitação, chegando-se uma única solução válida diante do direito.” (2010, p.218).
O que se quer destacar é o seguinte: a administração pública tem por finalidade o interesse coletivo, e a lei do município caminha nesse sentido, mas o leque de possibilidades para a utilização do bem, é aberto, e discricionário. Discricionário também, como já foi dito, é a escolha do imóvel que será arrecadado.
O ato é de conceito aberto e discricionário, mas evidentemente a finalidade do bem imóvel arrecadado deve converter-se em algo que beneficie a comunidade.
Nesse sentido, somente existirá uma interpretação válida da lei municipal, que atenderá a vontade da norma, e em nada se confundirá com discricionariedade da autoridade. Veja, isso é importante, pois como já foi dito o ato discricionário permite a autoridade pública agir em um grau de liberdade, o que blindaria a apreciação do Judiciário.
Mas, mesmo existindo há muito tempo à tese no Direito brasileiro de que o Poder Judiciário pode e deve analisar (quando submetido a ele, nunca de ofício) o ato discricionário. Parte da doutrina defende que Poder judiciário pode analisar a legalidade do ato discricionário, mas não o mérito desse ato. Esse tema ensejaria um outro trabalho para discorrer sobre todos os aspectos e discussões, as quais seriam possíveis, mas majoritariamente entende-se que é possível a atuação do poder judiciário em certos e determinados casos.
Assim, não se pode deixar de destacar que, entende-se como obrigatória a consciência de que o controle do ato administrativo discricionário pelo Poder Judiciário não interfere na separação dos poderes, garantidos na Constituição Federal. Sempre que a Administração passar da esfera do legítimo para o arbitrário, cabe em nome dos anseios populares, a intervenção do Poder Judiciário.
Delimitado por esses dispositivos legais caberá ao Poder Judiciário analisar a moralidade dos atos administrativos, forte nisso artigo 37, caput, e artigo 5º, LXXIII, da Carta Maior do Brasil de 1988. Nas palavras de Di Pietro:
“Essa tendência que se observa na doutrina, de ampliar o alcance da apreciação do Poder Judiciário, não implica invasão na discricionariedade em seus devidos limites, para distingui-la da interpretação (apreciação que leva a uma única solução, sem interferência da vontade do intérprete) e impedir as arbitrariedades que a Administração Pública pratica sob o pretexto de agir discricionariamente”. (2010, p.219) (grifo da autora)
Com isso não quer se negar à presunção de veracidade do ato administrativo, pois todo ato administrativo tem essa presunção de ser lícito e legitimo, de atender o direito positivo e o interesse coletivo.
O que se nota é que desde o surgimento do Estado Democrático de Direito cada vez mais se consolidando o princípio da razoabilidade, alicerçado nos direitos humanos fundamentais, narrados no inicio desse capítulo. O princípio surge também, para discutir a legitimidade desse ato, para anulá-lo quando ferir os valores do Estado Democrático de Direito e a soberania popular.
Hans Kelsen já dizia que ninguém pode ser juiz de sua própria causa, isso significa que o ato discricionário não pode ser blindado da analise de outro poder independente das funções tradicionalmente estabelecidas.
O que se defende aqui, é que no momento atual, a Lei do Município de Rio Grande, é válida, o ato discricionário, embora sendo passível de fortes críticas, não impede aplicabilidade e eficácia da norma municipal. Todavia, deve a administração pública se curvar à finalidade da norma, ou seja, o interesse coletivo.
CONCLUSÃO
Ao pesquisar e escrever sobre o tema aplicabilidade da lei do abandono pode-se notar o quão interdisciplinar é o assunto, e pensando mais, como a sociedade moderna, tornou-se complexa. Não é mais admissível que o poder público responda de maneira displicente aos reclames populares, a sociedade evoluiu e exige hoje, respostas complexas, e motivadas de seus representantes.
Para concluir esse trabalho é preciso partir da idéia de que Estado de Direito está associada a uma situação jurídica ou institucional, na qual existe uma submissão (do indivíduo e também da potência pública), ao respeito de uma hierarquia de normas, da separação de poderes e dos direitos fundamentais e a esses princípios estão vinculados todos os atos, incluso o atos da Lei Municipal de Rio Grande.
A grande celeuma, do direito moderno, está no efetivo reconhecimento dos direitos fundamentais do homem, pois isso aconteceu em momento histórico recente, em enunciado explícito, a partir da Declaração de Direitos, e por certo, está longe de esgotar as possibilidades, visto que o caminhar da evolução da Humanidade, alicerça-se na conquista de novos direitos, “Mais que conquista, o reconhecimento desses direitos caracteriza-se como reconquista de algo que, em termos primitivos, se perdeu, quando a sociedade se dividira entre proprietários e não proprietários.” (SILVA, 2006, 149).
Para mediar às relações desses proprietários e não proprietário, o direito como conjunto de normas, se divide em dois grandes ramos, que se curvam a técnicas distintas: Direito Público e Direito Privado. E no primeiro “não há espaço para autonomia da vontade, que é substituída pela idéia de função, de dever de atendimento do interesse público”, conforme Celso Antônio Bandeira de Mello (2010, p.27), e o segundo se pauta na autonomia da vontade, e no direito de livre disposição, dentro do que a lei não veda.
Isso evidencia que o papel da administração pública é de garantidor do Estado Democrático de Direito, a qual deve pautar-se com observância aos requisitos legais, para operar mudanças nas relações jurídicas de forma justa. Ou seja, a administração pública vale-se do interesse público e do dever público, para atuar, sempre nos limites da legalidade.
Mesmo nos atos discricionários, existe parâmetro nos limites legais, não sendo absoluto, porque a lei estabelece restrições para a esfera de amplitude do ato, e fora desses parâmetros, cabe ao judiciário interferir, pois, no Brasil ele é o detentor o monopólio da Jurisdição.
Esse limite deve ser baseado pela razoabilidade, pois é certo que em determinadas situações, “qualquer pessoa normal, diante das mesmas circunstâncias, resolveria que elas são certas ou erradas, justas ou injustas, morais ou imorais, contrárias ou favoráveis ao interesse público” (DI PIETRO, 2010, p.219)
As limitações ao direito da propriedade privada são, como se viu no primeiro capítulo desse trabalho, fruto de revoluções, o direito percorreu um longo caminho para chegar ao estágio de garantir a propriedade privada, em equilíbrio com sua função social.
Atualmente, o crescimento populacional e industrial, transformou o direito a moradia e o uso adequado das terras em uma questão de suma importância. Incluso nesse panorama de limites privados está a Lei Municipal do Abandono.
Ficou evidente no segundo capítulo do presente ensaio que o Estado moderno garante constitucionalmente direito de cidadania, incluso a propriedade privada, e criou um elemento garantidor dessa, Principio do Não-Confisco, o qual está positivado na Carta Maior de 1988, em seu artigo 150, IV. Mas, essa vedação, não permite que o privado se sobreponha ao interesse coletivo.
Com isso quer se dizer que se viu durante toda a pesquisa, que a convivência privada está condicionada ao interesse coletivo, e o “Direito Administrativo varia no tempo e no espaço, conforme o tipo de Estado adotado”. (DI PIETRO, 2010, p.3)
No Brasil vive-se em um Estado Democrático de Direito,
“[…]estruturado sobre o princípio da legalidade (em decorrência do qual até mesmo os governantes se submetem à lei, em especial a Constituição) e sobre o princípio da separação de poderes, que tem por objetivo assegurar a proteção dos direitos individuais, não apenas nas relações entre particulares, mas também entre estes e o Estado.” (DI PIETRO, 2010, p.2) (grifo da autora)
Veja bem, o ato discricionário é uma forma de atuação que limita o princípio da legalidade em nome do princípio da separação dos poderes. É extremamente complexo sopesar esses princípios, mas vale destacar que mesmo a separação dos poderes, tem por objetivo a defesa dos direitos individuais, em relações privada e em relações público privada.
Por tudo exposto, entende-se que a Lei Municipal do Abandono de Rio Grande é aplicável, mas apenas quando vinculada a um efetivo interesse público, e mais, embora atualmente o ato discricionário seja válido no ordenamento pátrio, não é sem razão as criticas que sofre esse tipo de ação administrativa.
Acadêmica de Direito na FURG/RS
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