Resumo: O artigo 285-A foi introduzido no Código de Processo Civil pela Lei 11.277 de 2006 fazendo parte da reforma legislativa em prol da celeridade. A norma autoriza o julgamento liminar do mérito pela improcedência do pedido sem a oitiva do réu quando a matéria for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferido sentença de total improcedência em casos idênticos. Presta-se somente a um objetivo: desafogar o judiciário e atender à determinação constitucional de duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII introduzido pela emenda constitucional 45 de 2004). No entanto, muito se tem falado da incompatibilidade deste artigo processual com os demais princípios constitucionais do processo, quais sejam: o contraditório, ampla defesa, devido processo legal e ofensa ao próprio Estado Democrático de Direito. Este trabalho se presta a investigar a existência ou não de incompatibilidade desta norma com a Constituição da República de 1988.
Abstract: The article 285-A was introduced in the Code of Civil Procedure by Law 11,277 of 2006 as part of legislative reform in favor celerity. The rule authorizes the trial court order of merit by rejection of the claim without a hearing the defendant when the case is only a matter of law and the court already has pronounced sentence of order in similar cases. Lends itself to only one goal: to unburden the judiciary and to meet the constitutional requirement of reasonable duration of proceedings (Article 5, LXXVIII introduced by constitutional amendment 45, 2004). However, much has been said of the incompatibility of this article with other procedural constitutional principles of the process, namely: the contradictory defense, due process and insult to the democratic state itself. This work lends to investigating whether or not this norm is incompatible with the Constitution of 1988.
Sumário: Introdução; 1- Argumentos pró-reforma; 2- A (in)constitucionalidade do artigo; Conclusão; Bibliografia
Introdução
O artigo 285-A foi introduzido no Código de Processo Civil pela Lei 11.277 de 2006 fazendo parte da reforma legislativa em prol da celeridade. A norma autoriza o julgamento liminar do mérito pela improcedência do pedido sem a oitiva do réu quando a matéria for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferido sentença de total improcedência em casos idênticos.
Presta-se somente a um objetivo: desafogar o judiciário e atender à determinação constitucional de duração razoável do processo (artigo 5º, LXXVIII introduzido pela emenda constitucional 45 de 2004).
No entanto, muito se tem falado da incompatibilidade deste artigo processual com os demais princípios constitucionais do processo, quais sejam: o contraditório, ampla defesa, devido processo legal e ofensa ao próprio Estado Democrático de Direito.
Este trabalho se presta a investigar a existência ou não de incompatibilidade desta norma com a Constituição da República de 1988.
1- Argumentos pró-reforma
Assim preconiza o artigo:
“Artigo 285-A caput Quando a matéria controvertida for unicamente de direito e no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em outros casos idênticos, poderá ser dispensada a citação e proferida sentença, reproduzindo-se o teor da anteriormente prolatada.”
O artigo 285-A emprega a mesma técnica de economia processual do julgamento prima facie do mérito nas hipóteses de prescrição e decadência para as causas tidas como seriadas ou repetitivas. O objetivo é evitar que os processos que tratem sobre casos análogos “(…) forcem um percurso inútil de todo o inter procedimental, para desaguar, logo tempo mais tarde, num resultado já previsto, com total segurança, pelo juiz da causa, desde a propositura da demanda (…)[1].
Acredita-se que esta medida de sumarização é necessária, pois se entende que o procedimento comum é indiferente às necessidades do direito material, não sendo adequado para tutelar as diversas situações conflitivas. Nestes termos, os direitos tidos como evidenciáveis prima facie exigem um procedimento mais célere, já que o procedimento comum acarreta um custo oneroso não somente para as partes, como também para a administração da justiça[2].
A Advocacia Geral da União defende a constitucionalidade do referido artigo já que este atende a exigência constitucional da razoável duração do processo:
“Contudo, não há dúvida quanto à constitucionalidade desses dispositivos, pois a aludida norma tem o condão de racionalizar a atividade jurisdicional, sendo que confere aos magistrados poderes necessários para decidir de forma rápida e definitiva os conflitos repetitivos, desde que os mesmos envolvam matéria exclusivamente de direito, sobre a qual já exista entendimento consolidado no mesmo juízo. Dessa forma, desonerando as partes injustamente demandadas e também a estrutura do próprio Poder Judiciário”.
(…)
“A questionada norma não prejudica as garantias processuais das partes envolvidas, como assim quer fazer crer o Requerente, uma vez que apenas antecipa o momento de prolação da sentença, tendo em vista a possibilidade do magistrado antever, com elevado grau de certeza, o desfecho da demanda e evitar a prática de uma série de atos processuais, os quais mostram-se desnecessários frente à total improcedência da matéria veiculada na ação”[3].
Neste sentido, José dos Santos Bedaque:
“O caminho mais seguro é a simplificação do procedimento, com a flexibilização das exigências formais, a fim de que possam ser adequadas aos fins pretendidos ou até ignoradas, quando não se revelarem imprescindíveis em determinadas situações. O sistema processual não deve ser concebido como uma camisa de força, retirando do juiz a possibilidade de adoção de soluções compatíveis com as especialidades de cada processo. As regras do procedimento devem ser simples, regulando o mínimo necessário à garantia do contraditório mas, na medida do possível, sem sacrifício da cognição exauriente[4]” (grifei).
O procedimento deve antes se atentar pelos princípios constitucionais que em tudo deve orientá-lo, deve ser mecanismo de efetividade dos direitos fundamentais em especial o contraditório. Em um Estado Democrático de Direito não cabe se falar em contraditório mitigado, se não há garantia plena o contraditório e ampla defesa não há Estado Democrático de Direito, pois aqueles são intrínsecos a este.
O direito de ação não pode ser entendido como mero direito a um procedimento qualquer, o procedimento deve desenvolver-se em contraditório, “(…) cercando-se de todas as garantias necessárias para que as partes possam sustentar suas razões, produzir provas, influir sobre a formação do convencimento do juiz[5].
A posição doutrinária defensora da constitucionalidade do artigo 285-A argumenta que não há dano ao princípio do contraditório visto que à parte ainda é assegurada o direito de recorrer, podendo o juiz inclusive retratar-se da sentença liminar de improcedência do pedido.
Como descrito pela Advocacia Geral da União:
“De outro giro, verifica-se também, que não há inconstitucionalidade nos dispositivos em apreço, mesmo porque a norma impugnada busca conferir maior racionalidade, eficiência, economia processual e celeridade ao serviço de prestação jurisdicional e a tramitação dos feitos processuais, sem, entretanto, ferir os princípios constitucionais da garantia do contraditório e amplo defesa.
Para tanto, pode se observar que se concede ao juiz a faculdade de, em casos nos quais a matéria controvertida for unicamente de direito e se no juízo já houver sido proferida sentença de total improcedência em caso análogo, dispensar a citação e proferir desde logo a decisão, reproduzindo a anteriormente prolatada.
E, com vistas a assegurar o respeito ao contraditório e a ampla defesa, resguarda-se o direito do autor apelar da decisão, permitindo-se ainda que o juiz opte nesta hipótese por não mantê-la e determine o prosseguimento da demanda no juízo (grifei)”[6].
Este raciocínio esconde a concepção do que vem a ser contraditório, que somente se resumiria a direito de informação e reação.
Esta é a definição de Antônio Cintra, Ada Pellegrini e Cândido Rangel Dinamarco; “(sic) Em síntese, o contraditório é constituído por dois elementos: a) informação ; b)reação (esta, meramente possibilitada nos casos de direitos disponíveis)”.
Na verdade o contraditório é mais que direito a informação e reação, é também direito de construção participada do provimento jurisdicional, tema que será desenvolvido no próximo tópico.
Ademais, a confiança exacerbada no juízo do Magistrado evidenciada pelas expressões: “a possibilidade do magistrado antever, com elevado grau de certeza, o desfecho da demanda”[7] e “num resultado já previsto, com total segurança, pelo juiz da causa, desde a propositura da demanda (…)[8]”é digno de crítica, nos remete a concepção do Juiz Hercules de François Ost[9], um juiz semi-deus que carrega o mundo em suas costas, responsável pelo único direito válido, modelo típico dos Estados Sociais do sec. XX em que há super valorização da jurisprudência e tendência ao autoritarismo.
2- A (in)constitucionalidade do artigo
Em via de contrapor o artigo em questão à Constituição da República de 1988 necessário é a investigação do que vem a ser as normas constitucionais evocadas tanto para a defesa da norma do artigo 285-A quanto para a inconstitucionalidade desta.
As reformas de sumarização do procedimento ocorrem em nome da efetivação do principio da duração razoável do processo. A “razoável duração do processo” normativizada pelo artigo 5º, LXXVIII remete ao princípio da razoabilidade, cuja amplitude conceitual proporciona ponderações que podem reduzir os objetivos que o texto visa alcançar, verificando no caso concreto se o juízo teve razões para demorar a sua decisão, levando-se em conta a sua carga de trabalho. Neste sentido, o artigo não assegura garantia abstrata da celeridade, mais o dever de preordenar meios para ser alcançada[10]. Conforme esclarece José Afonso da Silva:
“De certo modo enquanto não se aparelhar o judiciário com tais meios, a razoabilidade da demora fica sempre sujeita a saber se o magistrado tinha, ou não, possibilidade de fazer andar seu processo mais rapidamente”[11].
Igualmente doutrina Fernando Horta que explicita que a expressão duração razoável significa a “oportunização da prática de um ato processual em um tempo confortável, de modo que não haja colisão com o princípio constitucional da ampla defesa (…)”[12].
Neste mesmo sentido é o posicionamento do STF; “(sic) A razoável duração do processo (CF, art. 5°, LXXVIII), logicamente deve ser harmonizada com outros princípios e valores constitucionalmente adotados no Direito Brasileiro, não podendo ser considerada de maneira isolada e descontextualizada (…)”[13].
Assim, a razoável duração do processo não significa puramente procedimento veloz, mas processo otimizado, que alcança o melhor resultado em um espaço menor de tempo, assim se busca a duração razoável do processo, respeitando os demais direitos constitucionais processuais como contraditório, ampla defesa, devido processo legal.
Sendo que entende-se por Devido Processo legal a possibilidade efetiva de acesso à apreciação do judiciário de lesão ou ameaça de lesão a direito, deduzindo sua pretensão e defendendo-se da maneira mais ampla possível[14].
Ampla defesa como a “possibilidade de argumentação plena e sem compressão temporal no espaço discursivo”[15].
Neste sentido elucida Fernando Horta Tavares:
“Com efeito, o devido processo possibilita a criação de um espaço discursivo em que serão debatidos os argumentos das partes para a construção da decisão, por meio da aplicação dos princípios institutivos do processo (direitos-garantias), assim chamados por comportarem em si uma série de desdobramentos e fecundidade que implicam outros princípios, regras e teorias (LEAL, 2005, p. 102).
Esses princípios institutivos podem ser resumidos nos princípios do contraditório, da ampla defesa e da isonomia (LEAL, 2008, p.49-50), os quais são considerados como garantias processuais inafastáveis decorrentes do devido processo constitucional e devem, necessariamente, alicerçar a atividade jurisdicional legítima, bem como o próprio processo.
Só através da sua observância é possível a existência de uma democracia plena, construída e reconstruída por meio de um discurso dialógico produzido por cidadãos que tem não só sua dignidade, como também seus direitos fundamentais, assegurados”[16].
O contraditório é tido por uma parte da doutrina como somente direito de manifestação e de resposta, como ilustra a definição de Nelson Nery Jr:
“Por contraditório deve entender-se, de um lado, a necessidade de dar conhecimento da existência da ação e de todos os atos do processo às partes, e, de outro, a possibilidade de as partes reagirem aos atos que lhe sejam desfavoráveis. Os contentadores tem o direito de deduzir suas pretensões e defesas, de realizar provas que requereram para demonstrar a existência de seu direito, em suma, direto de serem ouvidos paritariamente no processo em todos os seus termos (grifei)[17].
O princípio do contraditório, além de fundamentalmente constituir-se em manifestação do princípio do estado de direito, tem íntima ligação com o da igualdade das partes e do direito de ação, pois o texto constitucional, ao garantir aos litigantes o contraditório e a ampla defesa, quer significar que tanto o direito de ação quanto o direito de defesa são manifestações do princípio do contraditório”[18].
No entanto, em um Estado Democrático de Direito é o povo que garante suas próprias conquistas por meio do devido processo constitucional, assim o contraditório não é meramente o direito de manifestação da parte a decisão deve ser construída em participação da parte autora, do réu e do magistrado.
Conforme elucida Fabrício Veiga:
“O exercício da função jurisdicional enquanto direito fundamental não pode consistir um ato eloqüente e solitário praticado pelo magistrado em busca da realização da justiça uma vez que o Direito Democrático é aquele produzido pelo povo no espaço político-processualizado continuamente aberto”[19].
Igualmente doutrina Habermas, “A idéia de autolegislação de civis exige que os que os que estão submetidos ao direito, na qualidade de destinatários, possam entender-se também enquanto autores do direito”[20].
A sumarização da cognição do processo sem oportunizar a construção participada tomando por base apenas uma jurisprudência do juízo que não foi construída a partir daquele caso concreto, mas sim de um caso semelhante é incompatível com a noção de contraditório e conseqüentemente com o Estado Democrático de Direito.
Nos dizeres de Rosemiro Pereira Leal, “O processo, ausente o contraditório, perderia sua base democrático-jurídico-principiológica e se tornaria um meio procedimental inquisitório em que o arbítrio do julgador seria a medida colonizadora da liberdade das partes[21]”.
O aparente conflito entre normas constitucionais não pode subsistir, nem mesmo se pode pensar em sacrificar uma em prol das demais. O princípio da unidade da Constituição consagra a hermenêutica de interpretação das normas constitucionais como preceitos integrados num sistema unitário de regras e princípios e não como normas isoladas, assim a “Constituição somente pode ser compreendida e interpretada corretamente se nós a entendermos como unidade, do que resulta que em nenhuma hipótese devemos separar uma norma do conjunto em que ela se integra (…)”[22].
Ademais intrinsecamente ligado ao princípio da unidade da Constituição o princípio da concordância prática ou da harmonização orienta o aplicador das normas constitucionais a, em se deparando com um possível conflito entre bens constitucionalmente protegidos, adotar a solução que “otimize a realização de todos eles, mas ao mesmo tempo não acarrete a negação de nenhum”[23].
Nos ensinamentos do Ministro Gilmar Mendes:
“Tem-se, pois, autêntica colisão apenas quando um direito individual afeta diretamente o âmbito de proteção de outro direito individual. Em se tratando de direitos submetidos à reserva legal expressa, compete ao julgador traçar os limites adequados, de modo, de modo assegurar o exercício pacífico de faculdades eventualmente conflitantes”[24].
É certo que a fixação de hierarquia entre os diferentes direitos fundamentais acabaria por desfigurar a constituição como um todo unitário e harmônico, a valoração hierárquica diferenciada somente é admitida em casos especialíssimos, configurando extrema exceção[25]. Assim, não se pode admitir sacrificar o direito ao devido processo legal do qual decorrem o contraditório, ampla defesa em prol do direito a celeridade. A celeridade não é hierarquicamente superior a esses, e a sua sobreposição como modo de preservar a constitucionalidade do artigo 285-A é ilegítima. A solução desse conflito há de se fazer mediante a utilização do recurso à concordância prática, de modo que cada um dos valores jurídicos em conflito ganhe realidade[26].
Em Moacyr Motta da Silva encontra-se o seguinte esclarecimento: “O juiz precisa reconhecer que, acima dos códigos e das normas substantivas, encontram-se os princípios jurídicos constitucionais, dotados de vocação política para interpretação, a integração e o conhecimento do direito positivo”[27].
Conclusão
Não resta dúvida que o anseio pela prestação jurisdicional célere é legítimo. A excessiva demora do judiciário em conferir resposta para o litígio importa em dupla ameaça ao Direito em tutela, pois quando o juízo oferece a resposta estatal para o caso concreto esta já vem a destempo sem nenhuma utilidade para os judicantes.
Noutro giro, a interpretação das normas constitucionais não pode ocorrer no sentido de restringir direitos e nem sequer colidir com outros direitos fundamentais. A celeridade não deve ser buscada a qualquer custo e procedimento não se deve curvar a comodidade estatal de modificação legislativa.
O Direito constitucional de duração razoável ao processo somente pode ser alcançado se houver modificação nas políticas públicas, não se pode sacrificar o Estado Democrático de Direito do qual o principio do devido processo legal é intrínseco a fim de reduzir o processo a mero instrumento formal de provocar o Estado não assegurando condições míninas para a construção do contraditório e da ampla defesa.
Nos dizeres de Fabrício Veiga: “A marca fundamental do contraditório no paradigma do Estado Democrático é a igual oportunidade de participação dos interessados na construção dos provimentos estatais”[28]. Somente há contraditório onde há construção participada, assegurando o efetivo direito de defesa e não mera manifestação formal, ninguém pode ser condenados sem ela[29].
Logo, a sumarização da cognição não é o caminho para a duração razoável do processo. O artigo 285-A por apenas servir a um princípio constitucional (diga-se a uma interpretação errônea do que vem a ser duração razoável, que não é mera celeridade, mas sim efetividade) em detrimento de outros igualmente importantes como contraditório, ampla defesa, devido processo legal, chocando-se até mesmo com o Estado Democrático de direito, não pode ser considerado constitucional, pois a constituição é um todo único que deve ser interpretado em conjunto, se o aparente conflito de normas constitucionais suscitado pela norma do artigo 285-A não possibilita interpretação harmônica, não atende, portanto, aos parâmetros constitucionais.
Informações Sobre o Autor
Laís Zica Quinaud