Incorporação do Adicional Noturno e da Gratificação de Função ao Salário: Entre o Sinalagma Contratual e o Princípio da Estabilidade Financeira

Rick Leal Frazão – Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA), Especialista em Direito do Trabalho e Direito Processual do Trabalho pela Faculdade Legale. Advogado inscrito na OAB/MA. E-mail: [email protected]

Resumo: Trata da incorporação definitiva do adicional noturno e da gratificação de função ao salário após o decurso de extenso lapso temporal. Considerando a incoerência na distinção de tratamento jurídico feita pelo Tribunal Superior do Trabalho entre os dois institutos e as mudanças pretendidas pela Reforma Trabalhista, que visam consolidar a não incorporação, verificou-se a necessidade de estudar o tema. O trabalho traça um comparativo entre os institutos, considerando seus fundamentos, objetivos, conceitos, previsão normativa, natureza jurídica e histórico jurisprudencial. Estabelecidas as similitudes e distinções, o estudo avalia se os argumentos usados pelo tribunal para incorporação da gratificação de função são aplicáveis também ao adicional noturno. Percebendo que se tratam de argumentos principiológicos e constitucionais, conclui que a estabilidade financeira, a contratualização do salário-condição, a função social do contrato de trabalho e a isonomia não só justificam a incorporação definitiva das referidas verbas como impedem a alteração pretendida pela Reforma Trabalhista.

Palavras-chave: Adicional noturno. Gratificação de função. Incorporação.

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Abstract: It treats about the definitive incorporation of the extra for night work and the function bonus to the salary after of an extensive time lapse. Considering the inconsistency in the distinction of legal treatment made by the Superior Labor Court between the two institutes and the changes intended by the Labor Reform, which aim to consolidate the non-incorporation, there was a need to study the topic. The work draws a comparison between the institutes, considering their foundations, objectives, concepts, normative prediction, legal nature and jurisprudential history. Having established similarities and distinctions, the study evaluate if the arguments used by the court to incorporate the function bonus are also applicable to the extra for night work. Realizing that these are principiological and constitutional arguments, it concludes that financial stability, the contractualization of the conditional salary, the social function of the employment contract and isonomy not only justify the definitive incorporation of these funds, but also prevent the change intended by the Labor Reform.

Keywords: Extra for night work. Function bonus. Incorporation.

 

Sumário: Introdução. 1. Adicional Noturno . 1.1. Conceito e previsão normativa. 1.2. Fundamentos. 1.3. Natureza jurídica e objetivos. 1.4. Incorporação do adicional noturno. 2. Gratificação de Função. 2.1. Conceito e previsão normativa. 2.2. Fundamentos. 2.3. Natureza jurídica e objetivos. 2.4. Incorporação da gratificação de função. 3. Análise de Adequação. 3.1. Confrontação entre os institutos. 3.2. Princípio da estabilidade financeira. 3.3. Contratualização do salário-condição. 3.4. Função econômica e social do jus variandi. 3.5. Isonomia com os servidores públicos e o caso das horas extras habituais. 4. Considerações Finais. Referências.

 

Introdução

O Tribunal Superior do Trabalho (TST) possui jurisprudência pacífica no sentido de que o adicional noturno não se incorpora ao salário do empregado, de modo que cessado o labor noturno, também cessa o adicional. Por outro lado, também firmou o entendimento de que a gratificação de função se incorpora após 10 anos de exercício, ante o princípio da estabilidade financeira, de modo que, embora o empregado seja reversível à função anterior, seu salário não pode baixar.

Essas diretrizes jurisprudenciais parecem ser contraditórias, isto é, ao que parece, o tribunal deu soluções diametralmente opostas para situações semelhantes, quiçá idênticas. Como se isso não bastasse, a Reforma Trabalhista (Lei 13.467/17) veio de encontro ao TST dizendo que a gratificação de função não se incorpora ao salário independente do tempo decorrido.

Ou esses institutos jurídicos são realmente distintos a ponto de exigirem respostas distintas, ou o tribunal superior errou ao julgar, sendo imprescindível verificar a adequação jurídica da resposta dada pelo TST em ambos os casos.

É sabido que nas últimas décadas muito se discute sobre a falta de critérios ao julgar e oscilações jurisprudenciais dos tribunais superiores, além dos inúmeros questionamentos quanto à constitucionalidade da Reforma Trabalhista.

Diante desse cenário, exsurge o seguinte problema: o adicional noturno e a gratificação de função se incorporam ao salário do empregado após o decurso de longo período contratual?

Para responder ao problema proposto neste trabalho, apresentam-se duas hipóteses: o TST errou, sendo ambas as verbas incorporáveis após extenso lapso contratual, e a Reforma Trabalhista não pode, por si só, alterar esse fato.

Além do objetivo geral de dizer se tais verbas se incorporam ou não ao salário com o tempo, o trabalho tem como objetivos específicos: fazer uma pesquisa sobre o conceito, a natureza jurídica, os fundamentos históricos, sociais e biológicos dos dois institutos e seus históricos jurisprudenciais sobre incorporação; analisar se os caracteres apurados justificam um tratamento diferenciado; perscrutar os argumentos invocados pelo TST para justificar a incorporação da gratificação de função pós decênio para ver se eles se aplicam ao adicional noturno e verificar se esses argumentos permanecem ou não aplicáveis após a Reforma Trabalhista.

A presente pesquisa possui grande relevância, pois se aplicada na prática pode gerar sensível diminuição ou aumento nos salários de milhões de trabalhadores brasileiros que recebem essas verbas, alterar os resultados de milhares de processos trabalhistas, gerar subsídio para a análise de outras verbas que se incluam na mesma categoria jurídica e também impactar o sistema previdenciário, visto que as verbas incorporadas refletem na aposentadoria e em outros benefícios.

A pesquisa foi qualitativa e lançou mão da mais abalizada doutrina no que diz respeito ao aspecto bibliográfico para caracterização e análise dos institutos em debate, além da avaliação sistemática de precedentes e jurisprudência dos tribunais superiores na comparação entre eles.

Foram utilizadas as categorias metodológicas senso comum erudito e dúvida radical de Pierre Bourdieu e a categoria constrangimento epistêmico de Lênio Streck.

O primeiro e o segundo capítulos discutem o conceito, a previsão normativa, os fundamentos, a natureza jurídica, os objetivos e o histórico jurisprudencial sobre incorporação do adicional noturno e da gratificação de função, respectivamente, e o terceiro os confronta, avaliando os argumentos extraídos dos precedentes que embasaram a Súmula nº 372 do TST e a alteração pretendida pela Reforma Trabalhista no arcabouço jurídico preexistente.

 

1 Adicional Noturno

Delgado (2017, p. 857) ensina que “os adicionais consistem em parcelas contraprestativas suplementares devidas ao empregado em virtude do exercício do trabalho em circunstâncias tipificadas mais gravosas”, isto é, quando o trabalho é realizado em lugar, tempo ou condições que expõem o empregado a maior risco, desgaste ou desconforto, as normas trabalhistas podem prever em seu favor um adicional que remunere esse inconveniente.

Os adicionais podem ter como base jurídica diversas normas trabalhistas, tais como a lei, a convenção coletiva de trabalho (CCT), o acordo coletivo de trabalho (ACT) e o contrato individual. Os mais conhecidos são os adicionais legais: adicional de horas extras, noturno, de transferência, de periculosidade e de insalubridade.

Neste tópico, serão analisados os aspectos atinentes ao adicional noturno.

 

1.1 Conceito e previsão normativa

O adicional noturno ou adicional pelo trabalho noturno é aquele devido ao trabalhador pelo exercício de suas funções no período que a lei define como noite, visto que tal circunstância é considerada prejudicial ao ser humano.

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Surgiu no ordenamento jurídico brasileiro com a Constituição Federal de 1937 (BRASIL) e foi mantido e aperfeiçoado nas constituições seguintes até chegar no atual art. 7º, IX, da Constituição Federal (BRASIL, 1988) que prevê a remuneração do trabalho noturno superior à do diurno.

Regulamentando a norma constitucional, a CLT (BRASIL, 1943) definiu em seu art. 73, caput e §§1º e 2º que a noite vai das 22:00 h de um dia às 05:00 h do dia seguinte e que o parâmetro de cálculo do adicional é 20% sobre a hora diurna para cada hora noturna, estabelecendo ainda que a hora noturna é reduzida para 52 minutos e 30 segundos.

A mesma matéria foi tratada de maneiras diversas para outras categorias, por exemplo, no âmbito rural o adicional é de 25%, não havendo previsão legal de hora reduzida, conforme Lei 5.889/73 (BRASIL), para os trabalhadores portuários a Lei 4.860/65 (BRASIL) define que é noite das 19:00 h de um dia às 07:00 h do dia seguinte e a que a hora noturna dura 60 minutos, para os trabalhadores da indústria petroquímica, regulados pela Lei 5.811/72 (BRASIL), também não há redução da hora e o percentual é de 20%, já para os advogados a noite começa às 20:00 h e termina às 05:00 h do dia seguinte, fazendo jus a um percentual de 25%, consoante art. 20, §3º, do Estatuto da Ordem dos Advogados do Brasil (BRASIL, 1994).

Para um parâmetro internacional, pode-se destacar o art. 1º, ‘a’ da Convenção 171 da OIT (BRASIL, 2004) que prevê o período noturno das 00:00 h às 05:00 h, enquanto na Espanha é das 22:00 h às 6:00 h, na Alemanha das 20:00 h às 06:00 h, em Portugal das 22:00 h às 07:00 h, na França e na Itália das 22:00 h às 05:00 h e na Argentina das 21:00 h às 06:00 h (MARTINS, 2008, p. 517).

Como se vê, não há consenso sobre o tema, exceto quanto à necessidade de restrição ao trabalho noturno e à necessidade de compensação pecuniária quando ele ocorrer (LIMA; FIGUEIREDO, 2015), e isso se dá porque os fundamentos e objetivos do adicional noturno são os mesmos independente do local.

 

1.2 Fundamentos

Delgado (2017, p. 858) explica que os adicionais se distinguem de outras parcelas salariais por seu fundamento e objetivo. Fundamentos são os motivos pelos quais se paga uma verba e objetivos são as finalidades buscadas com esse pagamento.

O trabalho noturno gera impactos psicossociais negativos, porque quem trabalha à noite tem menor integração comunitária, interação social e convivência familiar, visto que tudo funciona de dia, o que promove sentimentos de exclusão e de aflição (PEREIRA-JORGE, 2018).

Além disso, há um agravante significativo decorrente do desajuste cronobiológico do sono de quem trabalha à noite e dorme de dia, os quais ainda tem o descanso prejudicado se exercerem outras atividades que para a maioria seriam comuns, tais como cuidar dos filhos (ROTENBERG et al, 2001).

Estes impactos, percebidos pela ciência com o decorrer do tempo como prejudiciais aos trabalhadores, e a virada histórica que promoveu um Estado de bem-estar social, mais atuante na regulação do mercado (DAMIANO, 2005), levou à criação de normas para tutelar o trabalho noturno.

 

1.3 Natureza jurídica e objetivos

Outrora houve quem atribuísse natureza indenizatória a este adicional, contudo tal posicionamento não remanesce, porque tais danos não são aferíveis a priori e nem poderiam ser tabelados em uma porcentagem vinculada ao salário, sob pena de quebra do princípio da reparação integral e da isonomia (NAZAR; OLIVEIRA, 2019, p. 236).

Enquanto alguns autores, como Leite (2017, p. 439-440), ao conceituar os adicionais afirmam que eles compõem o salário, outros como Garcia (2017, p. 248) afirmam que os adicionais teriam natureza salarial apenas para fins de incidência do FGTS e contribuições sociais, bem como gerar reflexos em outras verbas trabalhistas.

Seja como for, para a maioria da doutrina, o adicional noturno se presta a remunerar o esforço extra necessário para desempenhar o trabalho, diante das circunstâncias que o tornam mais desgastante. Não se tratando de verba compensatória por fatos danosos, mas remuneratória.

Isso é tão verdade que nunca se ouviu falar de uma decisão que negasse indenização ao trabalhador por dano existencial, a título de exemplo, sob o fundamento de bis in idem, visto já ter o empregador indenizado o dano com o anterior pagamento de adicionais.

É cediço que o contrato de trabalho é sinalagmático (GRAVELHO, 2016), em outras palavras, as obrigações além de serem recíprocas dependem uma da outra e por isso passam a guardar uma relação de proporcionalidade.

Ora, se o empregado, que já é parte hipossuficiente na relação juslaboral, está exercendo um trabalho extraordinário, é imperativo que receba uma remuneração também extraordinária para que se mantenha intacto o sinalagma, sob pena de locupletamento ilícito por parte do empregador.

Nestes termos, o objetivo primordial do adicional noturno é remunerar o esforço extra despendido pelo empregado, de modo a reequilibrar o contrato de trabalho.

 

1.4 Incorporação do adicional noturno

A jurisprudência do TST consolidada há bastante tempo sobre o tema é expressa na Súmula nº 60, I (BRASIL, 2005) que diz “o adicional noturno, pago com habitualidade, integra o salário do empregado para todos os efeitos” e na Súmula nº 265 (BRASIL, 2017) que afirma “a transferência para o período diurno de trabalho implica a perda do direito ao adicional noturno”.

Isto é, enquanto o trabalhador exerce suas atividades em período noturno ele faz jus à verba e ela possui natureza salarial para todos os efeitos, mas a referida natureza salarial não obsta que ela seja suprimida tão logo cesse o labor noturno, o que seria determinado a critério do empregador.

Segundo Garcia (2017, p. 250), esta previsão tem fundamento no chamado jus variandi, de titularidade do empregador, que lhe assegura o poder de gerir a empresa e, com isso, estabelecer certas alterações que podem alcançar algumas condições de trabalho, pertinentes aos contratos de emprego. Além do que, segundo o mesmo autor, a alteração seria benéfica ao trabalhador e à sua saúde, o que levaria à melhoria de sua condição, conforme os ditames do art. 6º e 7º da Constituição Federal.

Apenas para corroborar os fundamentos invocados pelo TST, tomam-se como exemplos o adicional de transferência que é pago enquanto durar essa situação, nos termos do art. 469, §3º da CLT (BRASIL, 1943) e os adicionais de insalubridade e periculosidade que se submetem ao mesmo raciocínio, ou seja, enquanto perdurar o labor em condições insalubres ou perigosas permanecerá o direito ao adicional, cessando assim que o trabalhador retornar à normalidade, conforme art. 194 da CLT (BRASIL, 1943).

Esse é o estado da arte, ou melhor, o senso comum erudito (BOURDIEU, 1989, p. 49) hoje vigente na jurisprudência e a na doutrina sobre o tema.

Infelizmente a doutrina, como há muito denuncia Streck (2019), deixou de realizar seu papel de constrangimento epistemológico dos tribunais para tornar-se mera repetidora de suas decisões, as quais muitas vezes imbuídas de juízos políticos, morais e econômicos vilipendiam os limites hermenêuticos das normas e a ortodoxia constitucional em prol de pautas momentâneas e gambiarras pragmático-consequencialistas.

Exatamente por isso este tema merece ser revisitado pela aplicação de uma dúvida radical (BOURDIEU, 1989, p. 34) quanto às bases sobre as quais se fundam estes entendimentos há muito sedimentados.

 

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2 Gratificação de Função

As gratificações, de um modo geral, surgiram no contexto histórico das relações de trabalho como liberalidades do empregador pela ocorrência de fatos relevantes, tais como uma elevação excepcional de lucro ou o aniversário da empresa (DELGADO, 2017, p. 861). Com o tempo, esse costume passou a ter reconhecimento e disciplina jurídicos, chegando em alguns casos a tornar-se compulsório (LEITE, 2017, p. 452), como ocorreu com a gratificação natalina, hoje denominado 13º salário, conforme dispõe o art. 7º, VIII da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

Neste tópico, serão analisados os aspectos atinentes à gratificação de função.

 

2.1 Conceito e previsão normativa

A gratificação de função é devida ao empregado que exerce uma função de confiança em sentido lato, por exemplo, os que possuem poderes de organização interna, como os gerentes, ou lidam com valores, como os tesoureiros e caixas.

Inicialmente essa verba surgiu como uma liberalidade e também um incentivo por parte do empregador ao empregado que exerce uma função que lhe é cara e depois passou a ser regulamentada por lei para os exercentes de cargo de confiança.

Delgado (2017, p. 396) apresenta excelente digressão histórica na qual explica que antes da Lei 8.966/94 (BRASIL), que alterou o art. 62 da CLT, para ter cargo de confiança era necessário possuir: a) função e poderes elevados de gestão; b) função de poderes de representação e c) inequívoca distinção remuneratória em relação aos demais empregados.

Essa distinção remuneratória poderia se manifestar em um valor maior do salário-base ou em uma rubrica específica, a chamada gratificação de função (embora à época não existisse o parâmetro objetivo para aferir esta verba).

Os critérios, a princípio mais restritos, se modificaram com a Lei 8.966/94 (BRASIL) que passou a prever os seguintes requisitos: a) função e poderes elevados de gestão até o nível de chefe de departamento ou filial (mais baixos na hierarquia que a redação anterior) e b) distinção remuneratória no patamar de 40% do salário do cargo efetivo (fixou parâmetro objetivo).

Como se pode observar, a lei, em um silêncio eloquente, suprimiu o requisito “poderes de representação”, ampliando significativamente o número de pessoas abrangidas por este dispositivo.

Em se tratando especificamente da categoria dos bancários, para exercer cargo de confiança sequer é preciso ser chefe, basta ter poderes fiscalizatórios e neste caso o parâmetro objetivo passa a ser 1/3 do salário do cargo efetivo, como dispõe o art. art. 224, §2º da CLT (BRASIL, 1943).

Para que fique claro, existem gratificações em geral, como, por exemplo, uma gratificação pelo aniversário da empresa ou gratificação de tempo de serviço e existe a gratificação de função que tem um motivo específico e é devida a quem ocupa cargo de confiança.

 

2.2 Fundamentos

No caso da gratificação de função, o motivo relevante que enseja o pagamento é o exercício de uma função cara ao empregador, que traz maior responsabilidade e geralmente está associada à direção de pessoas.

Embora no primeiro momento não se observe um elemento de prejudicialidade, afinal trata-se de uma gratificação e não de um adicional, o que se verifica após análise mais acurada é que o exercente de cargo de confiança está sujeito à uma disciplina normativa mais gravosa que o resto dos trabalhadores.

Tem-se: a não submissão ao controle normal de jornada, o que impede, via de regra, o pagamento de horas extras, nos termos do art. 62, II e parágrafo-único da CLT (BRASIL, 1943), a possibilidade de transferência independente de anuência, desde que haja necessidade real do serviço, conforme art. 469, §1º, da CLT (BRASIL, 1943) e Súmula nº 43 do TST (BRASIL, 2003) e a possibilidade, em tese, de reversão ao cargo anterior sem que isso viole a intangibilidade do contrato de trabalho.

Todos esses fatores somados à responsabilidade e à cobrança extra que a posição gera conferem ao exercício do cargo de confiança um caráter de prejudicialidade e desgaste que fundamenta o pagamento da gratificação de função.

Como leciona Nascimento (1989, p. 120): “[…] o empregado exercente de cargo de confiança só pode ser considerado um tipo especial de empregado num ponto: a restrição de direitos trabalhistas que sofre. No mais, em nada difere do empregado comum, a não ser também pelas vantagens econômicas maiores do cargo”.

A base dessa verba seria, em resumo, a ampliação da jornada e a redução da proteção objetiva do contrato de trabalho.

 

2.3 Natureza jurídica e objetivos

Embora a ampla maioria da doutrina classifique este instituto como uma gratificação, acompanhando o nomen juris, há quem admita que ela se parece muito ou ao menos funciona como um adicional (DELGADO, 2017, p. 863).

Seu objetivo, à semelhança do adicional, seria remunerar o esforço extra despendido pelo empregado para exercer a função de confiança, de modo que também teria natureza salarial para todos os fins enquanto houvesse o exercício, mas também seria removível a critério do empregador, bastando tão somente reverter o empregado à função anterior (o que é autorizado por lei).

 

2.4 Incorporação da gratificação de função

Não obstante a autorização legal para reconduzir o empregado à sua função anterior, prevista no art. 468 da CLT (BRASIL, 1943), o TST em sua Súmula nº 209 (BRASIL, 2003) dizia que “a reversão do empregado ao cargo efetivo implica a perda das vantagens salariais inerentes ao cargo em comissão, salvo se nele houver permanecido 10 (dez) ou mais anos ininterruptos”.

Em 1985, o tribunal, cancelou a referida súmula, passando a entender que independente do prazo a gratificação de função não se incorpora ao salário.

Após vários anos de oscilação a tese foi recuperada em 1996 pela Orientação Jurisprudencial nº 45 da SBDI-1 do TST (BRASIL, 2005), a qual depois foi convertida na Súmula nº 372 do TST (BRASIL, 2005) com o seguinte enunciado: “I – Percebida a gratificação de função por dez ou mais anos pelo empregado, se o empregador, sem justo motivo, revertê-lo a seu cargo efetivo, não poderá retirar-lhe a gratificação tendo em vista o princípio da estabilidade financeira. (ex-OJ nº 45 da SBDI-1 – inserida em 25.11.1996) II – Mantido o empregado no exercício da função comissionada, não pode o empregador reduzir o valor da gratificação. (ex-OJ nº 303 da SBDI-1 – DJ 11.08.2003)”.

Importa ressaltar que o lapso de 10 anos não é aleatório, mas coincide com o período de labor necessário à época para obter a estabilidade prevista no art. 492 da CLT (BRASIL, 1943) então vigente e que, mesmo com a substituição da estabilidade decenal pelo Fundo de Garantia pelo Tempo de Serviço (FGTS), o TST continuou aplicando este entendimento.

 

3 Análise de Adequação

Feito o panorama geral sobre os dois institutos, passa a ser possível confrontá-los.

 

3.1 Confrontação entre os institutos

Embora a gratificação de função e o adicional noturno possuam fundamentos diferentes, este no impacto biopsicossocial e aquela no exercício de função de confiança, ambos possuem o mesmo objetivo: remunerar o esforço extra de um empregado submetido a circunstâncias mais desgastantes que o normal.

Como já citado alhures, a doutrina aponta fortes semelhanças entre o adicional noturno e as gratificações, o que significa por tabela uma paridade lógica com a gratificação de função.

Não é à toa que ambos os institutos se incluem na categoria jurídica denominada salário-condição, aquele que é pago mediante a presença de determinada circunstância e suprimido com o desaparecimento da mesma (RENZETTI, 2018, p. 203).

As similitudes sobrepujam notoriamente as diferenças e por isso não faz sentido o tratamento incongruente que o TST deu para o tema, determinando a manutenção da gratificação de função após 10 anos e negando a do adicional.

Para responder aos questionamentos propostos é imprescindível, agora que se conhece as bases de cada instituto, avaliar se os argumentos utilizados para justificar a manutenção da gratificação de função se aplicam ao adicional noturno ou não.

Ao final, também será necessário verificar se esses argumentos permanecem aplicáveis mesmo após a Reforma Trabalhista, a qual buscou impedir a incorporação da gratificação, nos mesmos termos do adicional, conforme consta no art. 468 da CLT (BRASIL, 1943, grifo nosso): “Art. 468 – Nos contratos individuais de trabalho só é lícita a alteração das respectivas condições por mútuo consentimento, e ainda assim desde que não resultem, direta ou indiretamente, prejuízos ao empregado, sob pena de nulidade da cláusula infringente desta garantia. Parágrafo único – Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança. § 1º. Não se considera alteração unilateral a determinação do empregador para que o respectivo empregado reverta ao cargo efetivo, anteriormente ocupado, deixando o exercício de função de confiança. § 2º. A alteração de que trata o § 1º deste artigo, com ou sem justo motivo, não assegura ao empregado o direito à manutenção do pagamento da gratificação correspondente, que não será incorporada, independentemente do tempo de exercício da respectiva função

Passa-se a analisar os argumentos extraídos dos precedentes que fundamentaram a Súmula nº 372 do TST.

 

3.2 Princípio da estabilidade financeira

O art. 7º, VI, da Constituição Federal (BRASIL, 1988) consagrou a regra da irredutibilidade salarial, a qual tão somente se excepciona em caso de norma. Ao interpretar o referido dispositivo, o Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2009) decidiu que a irredutibilidade seria nominal e não material, isto é, recai sobre o valor, mas não sobre o poder aquisitivo correspondente.Este princípio tem como fundamento a natureza alimentar e forfetária do salário (BASILE, 2019, p. 10), o que determina a sua imprescindível estabilidade, afinal o empregado vive do salário e provê as demandas que constituem seu mínimo existencial (SARLET; ZOCKUN, 2019) utilizando esse valor.Como já discutido, a gratificação de função é salário e se incluída no orçamento familiar por longo período passa a ser parte intrínseca do mesmo. Nesse sentido já decidiu o Tribunal Superior do Trabalho (BRASIL, 1995): “Sem dúvida que é facultado ao empregador determinar o retorno do reclamante a seu cargo efetivo, exonerando-o do cargo de confiança por ele ocupado. Contudo, se por longos anos vem o trabalhador exercendo a função de confiança mencionada, há que se respeitar integração da gratificação referida no salário do laborista. É o que se tem chamado “estabilidade econômica” da relação laboral vez que não se pode olvidar que após mais de dez anos de exercício de uma função de confiança, o obreiro já tem por certa a percepção da gratificação respectiva. Este valor compõe o patamar salarial do obreiro por tanto tempo que este não mais cogita a hipótese de vir a não mais percebê-lo. Não há, neste raciocínio, qualquer incongruência com o teor do art. 468, parágrafo único, da CLT. O preceito legal mencionado apenas declara lícita a exoneração do laborista da função de confiança por ele ocupada e seu retorno ao cargo efetivo. Nada esclarece, porém, quanto aos efeitos financeiros de tal exoneração. Não se pode admitir que o poder de exonerar o ocupante de função de confiança seja objeto de abuso de direito. Não há na decisão regional qualquer indício de que o empregado houvesse cometido qualquer falta que justificasse a sua exoneração da função de confiança. Destarte, o ato do reclamado se apresenta como nitidamente imotivado. Subitamente, o empregador decidiu exonerar da função de confiança aquele que, por 14 anos, desempenhara de modo satisfatório o cargo de maior responsabilidade. Por outro lado, o laborista, por certo, dado o grande período de tempo em que ocupou a função de confiança, já contava em seu orçamento familiar com valor da gratificação respectiva, e agora é repentinamente dela privado, por ato sem qualquer motivação aparente. Assim, resta concluir que a hipótese dos autos é a de autêntico abuso de direito; o qual não deve ter guarida”.

Conquanto o precedente se arvore na omissão legislativa quanto aos efeitos financeiros da reversão, a qual foi sanada pela Reforma Trabalhista, seu principal argumento é uma implicação constitucional decorrente do princípio da irredutibilidade salarial, qual seja, a retirada dessa verba acarreta redução nominal do salário do empregado e mais, se feita sem motivo legalmente justificável, a retirada do cargo de confiança, com a consequente redução salarial, implicaria ainda abuso de direito.

O próprio Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2015) já reconheceu o nível constitucional e a eficácia da estabilidade financeira. O precedente aqui citado diz respeito aos servidores públicos, mas o raciocínio e o fundamento constitucional são igualmente aplicáveis aos trabalhadores empregados.

É o que afirma a ANAMATRA em sua 2ª Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho (2017, p. 21) no Enunciado nº 26: “I. Uma vez percebida a gratificação de função por dez ou mais anos pelo empregado, se o empregador, sem justo motivo, revertê-lo a seu cargo efetivo, não poderá retirar-lhe a gratificação, tendo em vista os princípios da razoabilidade, proporcionalidade e segurança jurídica, garantidores da estabilidade financeira. II. Mantido o empregado no exercício da função comissionada, não pode o empregador reduzir o valor da gratificação”.

A densidade semântica do texto corroborado pelo princípio interpretativo da máxima efetividade (MENDES, 2017, p. 95) conduz ao entendimento de que a irredutibilidade salarial apresenta feição não de princípio, mas de verdadeira regra sujeita à lógica do tudo ou nada (DWORKIN, 2002, p. 39). O texto é bem claro, salvo norma coletiva não há outro meio constitucionalmente autorizado a reduzir os salários, nem mesmo a lei (o que significa que a Reforma Trabalhista, mera lei ordinária, não teria o condão de alterar o cenário normativo).

Nesse contexto, a estabilidade financeira enquanto implicação lógica da irredutibilidade salarial obstaria a retirada da gratificação de função percebida por longo período, afinal sua posição topográfica revela tratar-se de um direito fundamental.

Mais do que direito fundamental, em se tratando de mínimo existencial, a referida verba estaria inserida no núcleo essencial da norma (MENDES, 2017, p. 190-194) e, portanto, intangível por ponderações, ainda que considerado o interesse público ou outros direitos fundamentais, sob pena de quebra da proporcionalidade.

O adicional noturno, no mesmo sentido, por ser norma de saúde e segurança do trabalho faz parte do chamado patamar civilizatório mínimo, cuja indisponibilidade já foi declarada absoluta pelo Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2016).

Também inserido, por esse motivo, no rol de direitos fundamentais, não há elementos que justifiquem um tratamento diferenciado entre o adicional e a gratificação neste quesito, afinal enquanto verbas salariais ambas se incorporam ao salário após longo período e se a gratificação permanece não há motivo para que o adicional não permaneça também.

 

3.3 Contratualização do salário-condição

Para as teorias contratualistas modernas, que encontram maior aceitação doutrinária hoje, a relação de emprego é contratual, mas pontuada por diversas normas cogentes de caráter público que se superpõem à vontade das partes (CALVO, 2019, passim).Todo contrato se baseia na confiança, sobretudo os contratos cuja execução e efeitos se protraem no tempo, e é por isso que o art. 422 do Código Civil (BRASIL, 2002) consagra a boa-fé enquanto dever de lealdade, probidade e respeito entre as partes, a ser guardada em toda a relação antes, durante e depois do contrato (FIUZA, 2015, p. 176).Dois dos conceitos parcelares da boa-fé (TARTUCE; NEVES, 2014, p. 211-219) determinam que o não uso de um direito ao longo do tempo resulta em sua supressão (supressio) e que as práticas reiteradas promovem o surgimento de um direito da outra parte (surrectio) Isso ocorre porque a reiteração no tempo de uma determinada prática, seja ela comissiva ou omissiva, gera no outro contratante a expectativa de que esse comportamento se manterá, de modo que a mudança repentina dessa conduta, ainda mais se for imotivada, caracteriza deslealdade por frustrar uma expectativa justa.O contrato de trabalho, por ser sinalagmático, pressupõe contraprestações recíprocas, o que faria pensar em um primeiro momento que a manutenção do salário-condição pós exaurimento da condição ensejaria enriquecimento sem causa do empregado, nos termos do art. 884 do Código Civil (BRASIL, 2002).Ocorre que nesta quadra da história o Direito Privado não ostenta mais uma natureza exclusivamente patrimonial como no século XIX (FIUZA, 2015, p. 49), visto que a supremacia constitucional imbuiu cada instituto privado de uma função social pautada na dignidade humana e na centralidade da pessoa e da personalidade.Isto é, a função social dos contratos mitiga a autonomia da vontade (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 221-233), não podendo os contratantes agirem como bem quiserem, visto que as normas privadas estão salpicadas de normas de caráter público, as quais incluem deveres acessórios decorrentes da eficácia horizontal dos direitos fundamentais (SARLET; MARINONI; MITIDIERO, 2018, p. 364-367).Dito isso, a função social do contrato de trabalho é viabilizar a existência digna de cada ser humano nele envolvido, em especial do trabalhador que se encontra em posição de franca hipossuficiência ante o empregador.A boa-fé seria então uma dessas normas de caráter público que no cumprimento da função social do contrato de trabalho obstaria a retirada do salário-condição após a passagem de extenso intervalo contratual.Nessa esteira preceitua o Tribunal Superior do Trabalho (BRASIL, 1996a): “O empregado que permanecer no exercício de cargo em comissão por dez anos ininterruptos tem a gratificação incorporada a seu salário, não perdendo a vantagem caso ocorra a reversão ao cargo efetivo. Assim o é, considerando a contratualização da gratificação, pela habitualidade do seu pagamento, e o princípio da estabilidade econômica do trabalhador. O fato de o art. 468, parágrafo único, da CLT dispor que a reversão ao cargo efetivo não constitui alteração contratual não conduz à conclusão de que a estabilidade econômica do trabalhador possa estar sujeita ao comando arbitrário do poder potestativo empresarial”.

O Tribunal Superior do Trabalho (BRASIL, 1996b) também já disse que: “O empregado que exerce a função gratificada por dez anos ou mais, tem o direito à incorporação da remuneração respectiva ao patrimônio contratual do reclamante, tendo em vista que o longo período de permanência do trabalhador no cargo atrai a presunção de que correspondeu a confiança especial, introduzindo-o a adequar-se à remuneração proporcionada e sedimentada pela reintegração da confiança”.

É nítido que, por força da boa-fé, a habitualidade prolongada promove a contratualização das verbas trabalhistas, porque este aspecto remove o caráter temporário, condicional ou de mera liberalidade dessas rubricas e as transforma em salário propriamente dito.

É o que se depreende da Súmula nº 207 (BRASIL, 1963) do Supremo Tribunal Federal “as gratificações habituais, inclusive a de Natal, consideram-se tacitamente convencionadas, integrando o salário” e da Súmula nº 152 (BRASIL, 1982) do TST “o fato de constar do recibo de pagamento de gratificação o caráter de liberalidade não basta, por si só, para excluir a existência de ajuste tácito”.

Uma vez inserida no patrimônio contratual pela habitualidade uma verba não pode ser simplesmente retirada, porque o art. 468, caput, da CLT (BRASIL, 1943) veda a modificação unilateral do contrato de trabalho, sobretudo se gerar prejuízo ao empregado.

 

3.4 Função econômica e social do jus variandi

Mitigando a norma mencionada no fim do tópico anterior, existe o chamado jus variandi, direito decorrente do poder diretivo que permite ao empregador fazer certas alterações unilaterais no contrato de trabalho (RENZETTI, 2018, p. 135-136) que devem ser acatadas pelo empregado.

De acordo com Renzetti (2018, p. 137), para o exercício do jus variandi são necessários dois requisitos: mútuo consentimento e ausência de prejuízo.

A redação dada pela Reforma Trabalhista ao art. 468, §1º, da CLT (BRASIL, 1943) é sofrível pois diz não se considerar unilateral a reversão do empregado em função de confiança ao cargo efetivo, como se o texto da lei pudesse modificar por palavras um fato da vida, tornando bilateral o que é unilateral.

A bem da verdade o que a lei quis dizer é que esta é uma exceção à regra da inalterabilidade contratual lesiva, ou seja, esta é uma hipótese na qual se admite a alteração.

É relevante notar que o texto não prevê exceção no que concerne à lesividade, em outras palavras, essa modificação pode ser feita unilateralmente pelo empregador, mas não pode ser realizada se causar prejuízo ao empregado.

Há quem argumente, como exposto alhures, que transpor o funcionário do horário noturno para o diurno ou retirar de seus ombros o peso de um cargo de chefia lhe seria sempre benéfico, mas essa interpretação vê apenas um aspecto do problema, desprezando a inteireza do contexto (por vezes o impacto financeiro pode ser pior que o biológico). Contudo não se adentrará neste mérito por não ser objeto de estudo do presente trabalho.

Certo é que não se nega a existência ou a aplicabilidade do jus variandi ao caso, mas se questiona os seus limites, os quais decorrem de seu fundamento, o poder diretivo.

Segundo Cairo Júnior (2017, p. 286-287), o empregado, que não possui os meios de produção, oferece ao empregador sua força de trabalho em troca do salário (cede parcela de sua liberdade/capacidade de autodeterminação), por sua vez, o empregador, detentor dos meios de produção, assumindo o risco do negócio, admite, assalaria e dirige a prestação de serviços, nos termos do art. 2º da CLT (BRASIL, 1943).

O poder diretivo consiste na faculdade que o empregador possui de organizar e fiscalizar a atividade laborativa, inclusive aplicando punições se necessário, com o objetivo de bem exercer a atividade empresarial, tudo isso nos termos e limites do ordenamento jurídico (CAIRO JÚNIOR, 2017, p. 286-290).

Isto significa que o exercício do jus variandi está sujeito ao propósito e limites do poder diretivo e assim como qualquer instituto de Direito Privado é balizado por sua função social.

O Tribunal Superior do Trabalho (BRASIL, 1996c) exarou decisão no seguinte sentido: “Como regra geral, a gratificação paga pelo exercício de cargo comissionado tem natureza transitória, retratando e atendendo à real necessidade do exercício do “jus variandi” pelo empregador na direção da empresa. Evidente, porém, que, também por força da realidade, a gratificação pode perder sua natural transitoriedade, para revestir-se de caráter permanente, fato que a legislação não poderia deixar de reconhecer, através de previsões específicas suficientes a permitir a adequação da norma abstrata ao caso concreto. O exercício de cargo comissionado durante muitos anos demonstra que o desempenho da função era ratificada ao longo do tempo pelo empregador, comprovando que os objetivos propostos pela empresa eram atingidos, sem que houvesse necessidade de modificação quanto à pessoa exercente do cargo, fatores removedores da anterior instabilidade da função e construtores de uma base estável de apoio à segurança salarial”.

Como se vê, conquanto não use essa expressão, o tribunal reconhece que o jus variandi possui uma função econômica que é bem curar a atividade empresarial e que a manutenção do empregado por largo período demonstra o sucesso desse propósito, até porque nenhum empregador endossaria por tanto tempo em função que lhe é cara um funcionário que lhe desse prejuízo ou não fizesse por merecer.

Dito isso, cumprida a função econômica do jus variandi restaria arbitrário qualquer uso seu que causasse prejuízo ao outro contratante (empregado), consubstanciando verdadeiro abuso.

O precedente reconhece que o transcorrer do tempo faz com que o transitório ou o condicional se torne permanente, o que vale tanto para o adicional noturno quanto para a gratificação de função.

A conclusão é que o jus variandi autoriza a modificação contratual, mas não pode ser utilizado como pretexto para reduzir a remuneração do empregado porque já exauriu sua função econômica, esbarrando a pretendida redução na função social do próprio contrato de trabalho.

 

3.5 Isonomia com os servidores públicos e o caso das horas extras habituais

Outro fundamento invocado pelo Tribunal Superior do Trabalho (BRASIL, 1993) para justificar a incorporação da gratificação de função foi a isonomia: “O princípio da analogia, cuja aplicação é autorizada pelo art. 8º da CLT. Os servidores públicos, que são trabalhadores como os empregados das empresas privadas, tiveram reconhecido pela legislação ordinária (Lei nº 6.732/79 e hoje artigo 62, § 2º da Lei nº 8.112/90) o direito de incorporação da gratificação pelo exercício de função de Direção, Chefia ou Assessoramento. Nada demais, pois, que se reconheça, também, esse direito, aos empregados das empresas privadas, quando exerceram, por longo tempo, gozando da confiança do empregador e sem nunca a terem perdido, função de confiança, mormente quando o legislador, dispondo sobre a espécie (art. 468, parágrafo único da CLT), esqueceu-se de explicitar se a reversão ao cargo efetivo, quando o trabalhador deixar o exercício de função de confiança, importa na perda da gratificação respectiva, mesmo tendo prestado relevantes serviços ao empregador, naquela situação, por longo tempo”.

A analogia foi utilizada porque à época a CLT não dispunha diretamente sobre a questão como o faz hoje, ficando inviável o uso deste mecanismo integrativo pela atual ausência de lacuna (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 92-93).

A alteração da Lei 8.112/90 (BRASIL, 1990) também faz com que não seja possível traçar um paralelo tão bem definido como era quando do julgamento do precedente, mas isso não inviabiliza o argumento por completo, porque a despeito da inexistência de direito adquirido a regime legal, o Supremo Tribunal Federal (BRASIL, 2015) reconheceu, no que concerne ao servidor público, a constitucionalidade do instituto da estabilidade financeira: “O Supremo Tribunal Federal, após reconhecida a repercussão geral da matéria no RE 563.965-RG, sob a relatoria da Ministra Cármen Lúcia, reafirmou a jurisprudência da Corte no sentido da constitucionalidade do instituto da estabilidade financeira. Ficou ressalvada a possibilidade de alteração dos critérios de reajustes da vantagem pessoal incorporada, tendo em conta a inexistência de direito adquirido a regime jurídico, desde que assegurada a irredutibilidade remuneratória. Entendimento aplicável ao caso dos autos. Precedentes”.

Então apesar de não ser mais possível invocar a isonomia para justificar diretamente o tratamento legal paritário é certo que irredutibilidade salarial se aplica a todos os trabalhadores e, por isso, aplicar a estabilidade financeira apenas para os servidores públicos acabaria violando o art. 5º da Constituição Federal (BRASIL, 1988).

É evidente que fica difícil comparar sujeitos submetidos a regimes jurídicos tão diferentes e por isso para arrematar a análise é preciso analisar um instituto semelhante aos ora debatidos cujo histórico jurisprudencial corrobora os argumentos até aqui expostos.

O adicional de horas-extras, verba devida ao trabalhador que excede a jornada legalmente estabelecida (SARAIVA; SOUTO, 2018, p. 195), também ostenta a natureza de salário-condição, sendo devido no montante de 50% da hora normal, nos termos do art. 59, §1º, da CLT (BRASIL, 1943).

Conquanto tenha sido prevista para ser uma exceção, em muitos casos a sobrejornada tornou-se regra e o valor decorrente das horas-extras acrescidas de seus respectivos adicionais passou a integrar a renda do trabalhador, redundando no mesmo problema que ensejou este trabalho: após longo período, essa verba se incorpora ou não? O empregador pode retirá-la arbitrariamente?

Pois bem, a Súmula nº 76 do TST (BRASIL, 2003), hoje cancelada, dizia que “o valor das horas suplementares prestadas habitualmente, por mais de 2 (dois) anos, ou durante todo o contrato, se suprimidas, integra-se ao salário para todos os efeitos legais” e a Súmula nº 291 do TST (BRASIL, 2011), hoje vigente, diz: “A supressão total ou parcial, pelo empregador, de serviço suplementar prestado com habitualidade, durante pelo menos 1 (um) ano, assegura ao empregado o direito à indenização correspondente ao valor de 1 (um) mês das horas suprimidas, total ou parcialmente, para cada ano ou fração igual ou superior a seis meses de prestação de serviço acima da jornada normal. O cálculo observará a média das horas suplementares nos últimos 12 (doze) meses anteriores à mudança, multiplicada pelo valor da hora extra do dia da supressão”.

Como se pode ver, a supressão das horas-extras habituais no primeiro momento era vedada porque se reconhecia sua incorporação e depois passou a ser permitida mediante o pagamento de uma espécie de indenização, reconhecendo-se com isso a lesividade desta alteração contratual.

Se por um lado o histórico jurisprudencial demonstra que cada vez mais regride a proteção jurídica do salário, por outro corrobora a ilicitude da supressão do salário-condição percebido por longo período, afinal no Direito Privado, via de regra, é o ilícito que gera indenização (FARIAS; ROSENVALD, 2017, p. 639-651).

 

4 Considerações Finais

Após análise dos fundamentos e objetivos do adicional noturno e da gratificação de função deduz-se que esses institutos não são idênticos, mas possuem inúmeras similaridades, motivo pelo qual se enquadram em uma categoria jurídica comum denominada salário-condição.

Perscrutando a aplicabilidade dos argumentos usados pelo TST para fundamentar a incorporação da gratificação constatou-se que: a) o princípio da irredutibilidade salarial confere estabilidade à gratificação de função após o decurso de longo período, ficando a redução nominal obstada, conforme entendimento do STF; b) o decorrer do tempo contratualiza a gratificação de função, cuja retirada imotivada constitui violação do dever jurídico de boa-fé, pois frustra justa expectativa do empregado; c) o jusvariandi justifica a retirada da função de confiança, mas impede a supressão dessas verbas após longo período porque o instituto já exauriu sua função econômica, restando eventual redução bloqueada pela função social do contrato e d) a isonomia entre trabalhadores do setor público e do setor privado, bem como a necessária coerência do ordenamento jurídico, considerado o tratamento que se dá à supressão das horas-extras habituais, demonstram a ilicitude da retirada da gratificação após largo lapso temporal.

Guardadas as proporções, todos os argumentos utilizados pelo TST são aplicáveis ao adicional noturno, o que conduz ao entendimento de que o tribunal se equivocou ao dar tratamento diferenciado aos institutos.

A conclusão a que se chega é que a passagem do tempo possui a capacidade de incorporar ao salário de modo definitivo tanto a gratificação de função quanto o adicional noturno e ainda que seja lícito ao empregador remover o empregado da função ou colocá-lo em período diurno, após determinado lapso temporal, não poderá suprimir tais verbas.

Não obstante o patente movimento histórico de precarização do trabalho observado tanto da lei quanto na jurisprudência estudadas, a verdade é que os fundamentos invocados pelo TST possuem escopo constitucional e principiológico, logo nem mesmo a reforma trabalhista poderia alterar o resultado jurídico da questão.

Cabe aos juristas preservar a técnica e a dogmática jurídicas, zelando pelo texto constitucional e por sua efetividade para que a estrutura social nele desenhada não ceda às investidas políticas neoliberais que pretendem extirpar os preciosos direitos ali insculpidos.

 

Referências

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