Inserção da mediação e práticas restaurativas na organização judiciária

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Sumário: 1. Parâmetros introdutórios; 2. Um Olhar Sobre o Ambiente Judicial; 3. O Paradigma que nos Fundamenta; 4. Soluções Persuasivas e o Acesso à Justiça; 5. Condições para Inserção. 6. O Enigma do Voluntariado. 7. Considerações Finais.


1. Parâmetros introdutórios.


Situemo-nos inicialmente, em torno de parâmetros jurídicos e sócio-culturais que vêm caracterizando a modernidade deste início de milênio.


No plano jurídico destacamos, de plano, que a vigente Constituição da República Federativa do Brasil de 1988, em seu Preâmbulo, proclama caber ao Estado Democrático assegurar os valores supremos “de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias…”.


Essa mesma Constituição, no Titulo I, Dos Princípios Fundamentais, art. 1º, dispõe que a República Federativa do Brasil tem entre os seus fundamentos a soberania, a cidadania, a dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa e o pluralismo político. Será que as nossas instituições republicanas já se ajustaram a esses princípios?


Com efeito, considerando que a cidadania e a dignidade da pessoa humana estão entre os princípios fundamentais, infere-se que é dever dos Poderes da República contribuir para que essa cidadania assuma, com dignidade, sempre que possível e pacificamente, a solução das suas controvérsias.


Enfim, ao caber à cidadania a prerrogativa de solucionar, pacificamente, as controvérsias, é dever da organização judiciária prover ou colaborar com a criação e funcionamento de espaços adequados e seguros, onde se darão os encontros de negociação e mediação de controvérsias, amigável e extrajudicialmente, prévia, incidental ou como alternativa ao processo judicial.


Em livro recentemente publicado, acentuamos que[1], sem se excluir do sistema político-jurídico estatal, impõe-se, cada vez mais, aquela atuação multidisciplinar, mediadora, situada no mundo da vida, no plano da persuasão de uma consciência emancipatória (em rede), algo que se antecipe ou complemente (ou suplemente) o jurídico-formal, fruto do protagonismo de seres humanos livres, iguais e responsáveis, sob instituições democráticas.


Com vistas a uma contextualização do tema, outros parâmetros também devem ser considerados, como segue:


a) a massificação dos conhecimentos tem concorrido para a superação do patrimonialismo excludente, pois o conhecimento se expande e fortalece no compartilhamento;


b) essa massificação dos conhecimentos, graças às cibernética, às novas tecnologias de comunicação, de mobilidade e aos mais recentes desenvolvimentos das instituições democráticas, vem disseminando um sentimento-idéia difuso de igualdade;


c) em face dessa emancipação social em ambientes crescentemente urbanos e virtuais, a repressão torna-se cada vez menos eficaz;


d) a moral pós-convencional, pluralista, na fase atual da modernidade, estimula o dissenso conteudístico e gera a necessidade do desenvolvimento de meios e oportunidades de coesão, voltados para um consenso instrumental;


 


 e) o pensamento sistêmico, com suas dimensões de complexidade, instabilidade e intersubjetividade, vem contribuindo para a superação do simplismo polarizador do “ou-ou”, que nega a alteridade, as diferenciações e as alternativas;


f) Uma pedagogia da autonomia e uma ética da alteridade tendem a ser percebidas como fundamentos da cultura de paz e direitos humanos;


g) os direitos de acesso à justiça vêm sendo associados aos acessos à igualdade de oportunidades, à existência digna, à igual liberdade e à estabilidade democrática;


i) a cultura de paz e direitos humanos busca fundamentar-se no reconhecimento do conflito como contingência das relações humanas e no desenvolvimento de uma comunicação construtiva, transformadora do conflito e restauradora dos vínculos afetivos de coesão interpessoal ou social.


2. Um novo olhar sobre o ambiente judicial


Há uma crise no Judiciário? O acúmulo de processos pendentes é decorrência de problemas de administração e da ausência de controle da produtividade dos magistrados? A falta de recursos para dotar os Juizados Especiais das condições adequadas de atuação é um problema financeiro ou também seria um problema administrativo decorrente de algum elitismo? A questão estaria na litigiosidade que eterniza, sob infindáveis contraditórios, os processos? Que outras razões têm contribuído para que a beligerância, no Brasil, esteja tão acentuada?


Verifica-se, atualmente, nos Estados Democráticos de Direito, uma negociação complexa e permanente entre o público e o privado, não se confundindo o interesse público, necessariamente, com o interesse estatal, corporativo, deste ou daquele órgão público.


Na modernidade tardia deste início de milênio, o interesse público deve ser percebido como produto de um processo discursivo, includente e multicultural, entre cidadãos organizados democraticamente, dotados, portanto, de uma estabilidade democrática básica, necessária à efetivação dos direitos à igual liberdade, à igualdade de oportunidades e à existência digna, com vistas ao postulado maior da dignidade da pessoa humana.


Ocorre que ainda é atribuído ao Poder Judiciário o exercício tradicional, mediante postulação, da pragmática das decisões em face de litígios judicializados, pela aplicação da norma jurídica ao caso concreto, enquanto manifestação coativa do Estado-juiz, com fundamento constitucional e consoante a dogmática e a hermenêutica. Essa atribuição se dá, evidentemente, no pressuposto de que a administração dos conflitos interpessoais, sociais e interinstitucionais é matéria exclusivamente jurídico-normativa.


No entanto, conforme antes referido, já no Preâmbulo da nossa Constituição jurídico-política verifica-se a responsabilidade orgânica das instituições democráticas em servir e apoiar a cidadania. Cabe, sim, ao judiciário, acolher o protagonismo social na busca de soluções pacíficas para as controvérsias, com abordagens multiculturais e multidisciplinares, com vistas não apenas à aplicação da lei ou à prevenção da litigiosidade e da violência, mas, também, à promoção de uma cultura de paz e direitos humanos.


A migração entre abordagens persuasivas (negociadas) e impositivas (argumentadas), num e noutro sentido, no âmbito ou fora do ambiente judicial, conforme as circunstâncias e o desejo das pessoas envolvidas, é prática recorrente em outros países, notadamente os de cultura anglo-americana. Países orientais, como China e Japão, contemplam, prioritariamente, as soluções dialógicas de coesão.


Aqui entre nós – com vistas proteger os princípios republicanos da moralidade e da impessoalidade, ameaçados, historicamente, pelo nepotismo – instituiu-se, constitucionalmente, a obrigatoriedade do concurso público, estabelecendo-se uma rígida polaridade funcional entre cidadãos servidores do estado e cidadãos particulares. Essa polaridade formal, embora vista como necessária nas condições da nossa cultura político-jurídica, tem, no entanto, estimulado atitudes que revelam preocupante divórcio entre os cidadãos de estado e os cidadãos do mundo da vida, apropriados de funções estatais. Tal divórcio dificulta a fluidez daquela migração da negociação ou mediação para a argumentação processual e vice-versa. Uma vez judicializado, o conflito interpessoal converte-se num caso jurídico-formal, a ser resolvido pelos operadores do direito.


Este fenômeno é preocupante, pois o controle social sobre a burocracia perde eficácia. Com efeito, sob o paradigma dessa cultura reducionista, alguns magistrados, advogados e outros operadores do direito, em maior ou menor grau – consciente ou inconscientemente – resistem às idéias de uma ampliação e aprofundamento multidisciplinar da função judicial. Ainda prestigiam a verticalidade hierárquica da atividade coativa e desconhecem a efetividade das abordagens dialógicas e restaurativas, sendo exemplo desta cultura a subalternidade com que foi operacionalizada Lei 9.099/95, dos Juizados Especiais.


Em ainda incipiente esforço para superar tais resistências, o Conselho Nacional de Justiça tem indicado a necessidade do desenvolvimento dos espaços persuasivos de negociação, conciliação e mediação, no âmbito da administração formal da justiça. Os resultados, no entanto, continuam tímidos e, em algumas situações, contraproducentes.


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Tal se deve, a nosso ver, à desconsideração dos pressupostos epistemológicos para uma vantajosa inserção de abordagens dialógicas e restaurativas na organização judiciária, conforme procuraremos demonstrar adiante.


3. O paradigma que nos fundamenta.


Para que possamos examinar esses pressupostos epistemológicos, cabem, previamente, alguns esclarecimentos e contextualizações.


Comecemos por uma definição. Definimos esses pressupostos epistemológicos como o estudo do paradigma que fundamenta os vários saberes e práticas tidos como necessários à efetividade do direito humano de acesso à justiça, respeitados os objetos de cada um desses saberes.


Assim, quais seriam os múltiplos saberes científicos que deveriam compor o estudo em torno de uma vantajosa inserção de meios alternativos à mera punição ou imposição na organização judiciária?


O pensamento sistêmico é o paradigma escolhido. Assim, direito, sociologia, psicologia, comunicação, pedagogia e administração devem estar integrados, multidisciplinarmente, na gestão dos conflitos.


Segundo o pensamento sistêmico, o objeto do direito não deve ser visto como algo desligado dos objetos de outros saberes científicos a respeito de fenômenos que interferem na administração da justiça.


No dizer de Edgar Morin,[2] “a complexidade é a união da simplicidade com a complexidade; é a união dos processos de simplificação que são seleção, hierarquização, separação, redução, com os outros contraprocessos, que são a comunicação, que são a articulação do que foi dissociado e distinguido; e é a maneira de escapar à alternação entre o pensamento redutor que só vê os elementos e o pensamento globalizado que só vê o todo”


A dogmática e a hermenêutica jurídicas têm por objeto o sistema político-normativo e as instituições que o estabilizam constitucionalmente.


Como aplicá-las, satisfatoriamente, sem a agregação das disciplinas que estudam a comunicação e a teoria dos conflitos nas relações interpessoais e interinstitucionais?  Parece inviável contemplar a dimensão empírica, o modal pragmático da aplicação do sistema normativo ao caso concreto sem considerar as ciências da comunicação e da psicologia, e suas contribuições às várias abordagens do conflito.


Assim, numa aligeirada aplicação do que denominamos epistemologia dos pressupostos, a organização judiciária deve acolher um compartilhamento de saberes e poderes multidisciplinares, em sua aplicação transdisciplinar.


Neste sentido, o homem e a mulher, enquanto seres concretos, psíquicos, emocionais e corporais, intrinsecamente conflituosos, devem ser trazidos a uma posição de co-responsabilidade colaborativa.


O atual monopólio do jurídico na organização judiciária é reducionista. O trato institucional do conflito deve evoluir em direção a um sistema que contemple, sim, o primado judicial, mas como coordenador científico e operacional de uma organização judiciária multidisciplinar, ampliada, pois, em sua complexidade, no sentido da dimensão cidadã e humana da justiça.


Os novos paradigmas em mediação e os valores da justiça restaurativa operam práticas multidisciplinares, em espaços necessariamente autônomos e apropriados para o diálogo entre cidadãos livres e iguais que, voluntariamente, com o apoio de mediadores ou facilitadores competentes e sensíveis, escolhidos ou aceitos, assumem, nas reuniões individuais preparatórias e nos encontros ou círculos restaurativos, as suas responsabilidades. Em ambiente seguro e de confidencialidade, reconhecem a realidade do conflito e as circunstâncias do outro, perdoam o mal feito que resolvam perdoar, obtém a reparação em lugar de uma mera punição do causador do dano, dialogam, restauram relações e vínculos comunitários e produzem outras conseqüências de paz.


4. Soluções Persuasivas e o Acesso à Justiça.


As práticas de coesão, discursivas, persuasivas, restaurativas, voluntárias e dialógicas devem ser desenvolvidas em todos os ambientes, vindo ao encontro do pensamento de Habermas[3], para quem “sob as condições de uma compreensão pós-metafísica do mundo, só tem legitimidade o direito que surge da formação discursiva da opinião e da vontade de cidadãos que possuem os mesmos direitos”. Numa abordagem sistêmica acentua, ainda, aquele autor: “Uma autonomia privada assegurada serve como garantia para a emergência da autonomia pública, do mesmo modo que uma percepção adequada da autonomia pública serve como garantia para a emergência da (autonomia) privada”.


A autonomia da vontade e as abordagens persuasivas, dialógicas, correspondem a uma cultura de mediação de conflitos e aos valores de uma justiça restaurativa.


Epistemologicamente, os meios alternativos de resolução de controvérsias não devem ser encarados como alternativas ao juízo estatal, mas como alternativas ao decisionismo judicial, no sentido de que os protagonistas da disputa assumem o poder de decidir sobre o seu próprio conflito.


As iniciativas voltadas para a sua aplicação devem ocorrer diretamente, no âmbito da cidadania, ou complementarmente, no interior da atuação judicial.


Com efeito, em sociedade globalizada e complexa, torna-se necessária uma administração dual da justiça, de modo que a estrutura burocrática do estado-juiz e a dogmática formal não inibam a fluidez do processo comunicativo e não comprometam as condições de atuação das redes informais ou minimamente formais, de relacionamento persuasivo.


Conforme verificamos no Preâmbulo e nos Princípios Fundamentais da Constituição, ao aprimoramento democrático do estado-juiz impõe-se a incorporação de abordagens persuasivas, restaurativas, dialógicas, pretendendo-se que as limitações ditadas pela sua vocação tradicional, impositiva, não comprometam a efetividade da prestação jurisdicional.


Aquela vocação tradicional, em verdade, põe em risco os meios alternativos e restaurativos de acesso à justiça e a própria jurisdição, em face de uma tendencialmente ameaçadora cooptação (reducionista) exercida pela tradição formalista do estado-juiz, que se dá quando este, sob pressão midiática, cuida de utilizar a mediação de conflitos como simplório e subalterno instrumento de aceleração de processos judiciais.


O foco não deve ser a aceleração, mas a qualificação. Espaços especializados, capacitados, reconhecidos, dignificados de mediação e de práticas restaurativas em geral transformam o conflito, revigoram o tecido social, a coesão social, desenvolvem a consciência de cidadania e evitam a repetição de ações, a redundância de litígios, o interminável retrabalho.


Isto é educação, que, enquanto prioridade, não deve ser tida como atribuição exclusiva de determinada secretaria ou ministério. Todas as instituições e, muito especialmente o Poder Judiciário, devem assumir responsabilidades pedagógicas na condução das questões de sua competência.


Examinemos o exemplo da Lei 9.099/95. A conciliação, inclusive penal, e a respectiva transação, foram concebidas com vistas à obtenção de um resultado célere e não como oportunidades de ampliação dos espaços de consenso e participação do jurisdicionado na administração da justiça. A improvisação de conciliadores subordinados a um “processo de resultados” amesquinhou a inovação e comprometeu os próprios resultados.


Como pressuposto ao desenvolvimento de meios apropriadamente persuasivos de resolução de disputas no âmbito do Poder Judiciário, espera-se que esse poder sofra, concomitantemente, um choque de democracia, e se converta numa estrutura/movimento substancialmente pedestre, muito mais afeito à oralidade, tendo claras e equitativamente consideradas as suas duas práticas complementares: coesão social e coerção.


As instituições democráticas, em seu desenvolvimento, necessitam de um judiciário que afirme e efetive os direitos, tendo em conta, porém, que esses direitos supõem condutas humanas que podem e devem ser reparadas, restauradas, com respeito à autonomia da vontade e à responsabilidade dos protagonistas diretos do conflito. A democracia que prestigia o direito espera dos operadores do direito uma renovada contribuição à democracia.


É verdade que a nossa herança ibérica, cartorial e paternalista tem inibido o desenvolvimento de uma rede informal, comunicativa, de resolução autonomista das disputas.


No entanto, não é a paternidade, mas o apoio institucional do estado-juiz e dos operadores do direito em geral, o elemento que falta para que as culturas da mediação, da restauratividade de vínculos e até da arbitragem efetivamente se desenvolvam entre nós. E como o estado-juiz tem um papel estratégico a desempenhar no desenvolvimento das soluções alternativas de controvérsias, é de se esperar que as respectivas propostas modernizadoras não se limitem ao suposto aperfeiçoamento dos modelos cartoriais e paternalistas.


Não há, nas condições atuais do fenômeno jurídico em sociedades abertas como a nossa, alternativa substitutiva do poder de império do estado-juiz. O que há é a necessidade de uma apropriada complementaridade de abordagens, no interior e exteriormente ao sistema judicial, cujos pressupostos e amplitude estamos modestamente considerando.


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Os princípios da mediação não induzem ao entendimento de que a livre escolha de qualquer dessas abordagens terá que ser efetuada, necessariamente, fora do âmbito físico e administrativo da justiça estatal. Desde que asseguradas as condições necessárias, será possível e recomendável a existência de espaços paraprocessuais de mediação.


5. Condições para a Inserção.


Verifiquemos, pois, alguns pressupostos a serem considerados para uma inserção vantajosa da mediação e práticas restaurativas na organização judiciária, conforme os valores constitucionais, ampliando as possibilidades e abrangência de disposições como as da Lei nº 9.099/95 e dos artigos 277, § 1º, e 331, do Código de Processo Civil.


Para preservar os princípios da impessoalidade e da moralidade administrativa, os mediadores de conflitos em atuação orgânica perante o Poder Judiciário devem ser submetidos a concurso, seqüenciado por um estágio probatório e supervisionado, com aplicação periódica de critérios específicos de avaliação de desempenho.


Como na mediação não se está a tratar, terapeuticamente, das pessoas em conflito, mas apenas se lida com o conflito entre as pessoas, a abordagem é multidisciplinar, não sendo razoável limitar o seu exercício às pessoas com bacharelado em direito ou aos de formação em psicologia.


Qualquer profissional, desde que devidamente capacitado nos métodos e na arte de mediar, com perfil cooperativo, conduta ilibada e conhecedor dos limites de ordem pública aplicáveis à matéria objeto da respectiva mediação, pode, após a respectiva aprovação em concurso, atuar como mediador, organicamente, junto à organização judiciária.


É fundamental que o mediador esteja habilitado, portanto, a lidar e a migrar entre os vários modelos de mediação, a exemplo do modelo satisfativo (mais focado no acordo e nas questões objetivas) e no transformativo (mais focado nas emoções e nos padrões relacionais), consoante as características e circunstâncias que o conflito vai ensejando.


O mediador deve ser alguém com maturidade e discernimento, condignamente remunerado, de sorte a merecer o reconhecimento e o respeito dos demais integrantes da organização judiciária, facilitando, assim, no plano simbólico, a compreensão da relevância do seu papel perante o jurisdicionado.


O mediador deve gozar de autonomia no exercício da mediação, não podendo estar submetido a qualquer hierarquia em seu espaço mediador ou sofrer pressão a pretexto de demora.


O ambiente de trabalho do mediador não deve estar confundido com os espaços de litigiosidade, sendo necessário o asseguramento da confidencialidade e das condições adequadas de tempo e lugar para as entrevistas de pré-mediação.


A mediação poderá ser prévia ou incidental, nos limites eventualmente determinados pelas normas de ordem pública aplicáveis ao caso considerado.


A mediação pode ser adotada amplamente no ambiente judicial, no campo cível, criminal, previdenciário, etc, cabendo, nos envolvimentos de direitos coletivos ou indisponíveis, o controle ministerial da legalidade e, ao magistrado, em qualquer circunstância, a homologação, quando necessária ou solicitada.


Além dos mediadores que atuem, organicamente, na qualidade de funcionários públicos, a organização judiciária deveria cadastrar mediadores que se disponibilizem a trabalhar, quando e desde que opcionalmente escolhidos pelos solicitantes da mediação. Nesta hipótese, seriam contratados pelos solicitantes e remunerados consoante tabela de honorários previamente aprovada.


O cadastramento deveria ser efetuado a partir da indicação de Conselhos profissionais de profissões que de algum modo lidam com os elementos do conflito. A possibilidade de opção pela arbitragem também poderia ser estimulada, consoante os mesmos critérios.


6. O enigma do voluntariado.


Salvo exceções, a natureza da atuação mediadora e restaurativa não é compatível com o voluntariado, em face da subalternidade, eventualidade e rotatividade dos trabalhos voluntários. Sempre que o voluntariado é adotado como regra na atuação orgânica a própria instituição judicial fica sem condições de investir, efetivamente, na capacitação dos mediadores.


Dentre as exceções à regra geral de que a mediação e as práticas restaurativas, no âmbito do Poder Judiciário, devem ser atividades remuneradas, identificamos as mediações voluntariamente conduzidas por magistrados ou outros profissionais aposentados, após estágio supervisionado e a comprovação de independência econômica, equilíbrio emocional e perfil cooperativo.


Também podem ser apontadas como exceções aceitáveis as mediações e práticas restaurativas conduzidas voluntariamente por estudantes universitários em seus Núcleos de Prática de Mediação e Justiça Restaurativa ou estágios, sob a supervisão de professores capacitados e durante ou após cursarem a respectiva disciplina em sala de aula.


Finalmente, é razoável admitir-se o voluntariado em mediações comunitárias, onde os medidores, previamente capacitados e supervisionados, estejam imbuídos da importância dessas mediações para a paz e o desenvolvimento endógeno da comunidade à qual pertencem.


Nestas três circunstâncias de atividade voluntária legítima constatamos imensas possibilidades de políticas públicas de mediação de conflitos e de justiça restaurativa, incorporadas à organização judiciária, ou por ela apoiada. Embora a complexidade da atividade de mediação deva ser preservada e exercida, exclusivamente, por pessoas efetivamente capacitadas, atividades voluntárias de facilitação, de divulgação e de administração dos núcleos comunitários de mediação podem e devem ser estimuladas.


Políticas públicas com tais objetivos seriam modos de expansão extrajudicial do acesso à justiça e de desenvolvimento desses novos ou renovados paradigmas de prevenção da violência.


Entendemos que núcleos comunitários de mediação e justiça restaurativa, preferentemente de iniciativa das municipalidades, deverão ser instalados nas comunidades, após a capacitação das pessoas que os assumam, com o apoio de instituições da sociedade civil, do Estado, do Ministério Público, da Defensoria Pública e do Poder Judiciário.


Fica a pergunta. Por que ainda não foi regulamentada a eleição de juíz de paz conciliador, remunerado, com mandato de quatro anos, prevista no art. 98, II, da CF/88?


7. Considerações Finais


As intercessões das abordagens persuasivas da conciliação/mediação e práticas restaurativas em geral, com as abordagens tradicionais do sistema judiciário devem considerar a complexidade do paradigma de uma justiça dual, da norma ao conflito, do conflito à norma, tendo o ser humano como referência, sob pena do amesquinhamento, pelo sistema oficial, do conteúdo transformador, restaurativo e emancipatório dos meios transformativos ou restaurativos de solução de controvérsias.


Incorporar as abordagens dialógicas à organização judiciária com a natureza de atividade voluntária e subalterna revela descompromisso com a cidadania e desconhecimento da complexidade, eficácia e significação pedagógica desses meios de solução pacífica de controvérsias.


De regra, o juiz não deve mediar. Até mesmo a conciliação deve ser conduzida por uma equipe multidisciplinar independente da atuação judicial. Será fundamental, no entanto, que os juízes tenham a compreensão de que o julgamento é o mais poderoso e, ao mesmo tempo, o mais precário modo de solucionar uma controvérsia. E que sempre será preferível uma solução dialógica, restaurativa.


É com esta visão que devem ser debatidos e aperfeiçoados tanto o projeto-de-lei da mediação paraprocessual, que visa a suplementar o processo civil com várias alternativas e oportunidades de encontro dialógico, quanto o projeto-de-lei da mediação penal e outras práticas restaurativas, voltado para a adoção de núcleos de justiça restaurativa, num alargamento do processo penal, relativamente às infrações de pequeno ou médio potencial ofensivo; ambos em tramitação no Congresso Nacional.


Enfim, como referiu Cappelletti[4] “O acesso à justiça não é apenas um direito social fundamental, crescentemente reconhecido; ele é, também, necessariamente, o ponto central da moderna processualística. Seu estudo pressupõe um alargamento e aprofundamento dos objetivos e métodos da moderna ciência jurídica”.


Como alargar e aprofundar os objetivos e métodos da moderna ciência jurídica apenas em si mesma, sem a compreensão de que o objeto de qualquer ciência é apenas e nada mais do que o objeto de uma ciência.


É verdade que na ciência estão os princípios, os critérios técnicos, mas também é verdade que é no sentimento do mundo, na troca de olhares, no reconhecimento e no perdão, enfim, no amor, que se faz a humanidade e a ciência da humanidade.


 


Notas:

[1] VASCONCELOS. Carlos Eduardo de. Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas. São Paulo: Método. 2008. p 165.

[2] MORIN, Edgard. Introdução ao pensamento complexo. Traduzido do francês por Eliane Lisboa. Porto Alegre: Sulina, 2006. p. 102 e 103. 120 p.

[3] HABERMAS, Jürgen. Direito e Democracia: entre facticidade e validade, volume II, 2ª ed., tradução de Flávio B, Siebeneichler. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003. p. 146.

[4] CAPPELLETTI, Mauro; GARTH, Bryant. Acesso à Justiça. Porto Alegre: Fabris, 1998, p. 11-13.


Informações Sobre o Autor

Carlos Eduardo de Vasconcelos

Mestre em Direito das Relações Sociais pela PUC/SP, membro da Comissão de Mediação, Conciliação e Arbitragem do Conselho Federal da OAB, presidente da Comissão de Conciliação, Mediação e Arbitragem da OAB/PE, Coordenador Pedagógico das Práticas Jurídicas e Restaurativas da Faculdade dos Guararapes/PE, Diretor de Pesquisa e Estatística do Conselho Nacional das Instituições de Mediação e Arbitragem – CONIMA, integrante do quadro de arbitralistas do Centro de Mediação e Arbitragem de Pernambuco – CEMAPE, professor, articulista e palestrante, autor do livro Mediação de Conflitos e Práticas Restaurativas.


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