Direito Civil

Instituto do Débito Conjugal Enquanto Instrumento de Legitimização do Ato Ilícito de Estupro Marital

Thais Elislaglei Pereira Silva da Paixão

Resumo: Historicamente a mulher sempre foi relegada à submissão, posta à sombra do homem, não sendo vista como sujeita de direitos e deveres. Este trabalho tem como objetivo analisar e entender a forma como a mulher é tratada na legislação cível brasileira apontando que o instituto do débito conjugal se constitui em instrumento de legitimação do ato ilícito de estupro marital, bem como resulta na perpetuação do machismo estrutural que tolera a violência contra a mulher e a culpabiliza pela violência sofrida, invisibilizando tal prática criminosa.  

Palavras Chaves: Débito Conjugal; Estupro Marital; Mulher; Violência.

 

Abstract: Historically women have always been relegated to submission, placed in the shadow of man, not seen as subject of rights and duties. This study aims to analyze and understand the way in which women are treated in Brazilian civil law, pointing out that the marital debt institute constitutes an instrument for legitimizing the unlawful act of marital rape, as well as results in the perpetuation of structural machismo that tolerates violence against women, as well as blaming it for the violence suffered, making this criminal practice invisible.

Keywords: Conjugal Debit; Marital Rape; Woman; Violence.

 

Sumário: Introdução. 1. Metodologia. 2. Síntese histórica do tratamento dispensado à mulher nos códigos civis brasileiros. 3. Do pátrio poder ao poder familiar. 4. A constitucionalização do direito civil e a evolução dos direitos da mulher. 5. Débito conjugal e objetificação da mulher. 5.1 Códigos civis de 1916 e 2002. 5.2 Estatuto da mulher casada. 6. Estupro marital e a evolução histórico-legal: o inimigo íntimo sob a proteção da lei. Considerações finais. Referências.

 

INTRODUÇÃO

Historicamente a mulher sempre foi relegada à submissão, posta à sombra do homem, uma vez que não era vista como sujeita de direitos e deveres e rotulada como fraca, submissa e incapaz.

Nas legislações antigas, como as leis romanas, a mulher não possuía direitos, lhe sendo imposto um excesso de deveres, sendo que o seu papel estava diretamente ligado aos afazeres domésticos e rurais, especificamente plantio e colheita.

A força da sociedade machista sempre tratou a mulher de forma secundária nos planos político, social e econômico. Com o início das revoluções eclode também a geração dos direitos fundamentais e a voz das mulheres, que passaram a clamar por mais direitos e menos preconceito, começou a ecoar mais forte.

Com isso, os primeiros passos do Movimento Feminista começaram a tomar forma à medida que direitos eram conquistados através das manifestações, e a mulher decidiu que o seu papel já não poderia mais ser algo subsidiário, sempre relegado a segundo plano.

Neste sentido, o presente trabalho tem como objetivo analisar e entender a forma como a mulher é tratada na legislação cível brasileira apontando que o instituto do débito conjugal se constituía em instrumento de legitimação do ato ilícito de estupro marital, que é o ato de manter uma relação sexual com a cônjuge, companheira e/ou namorada sem o seu consentimento. Para tanto delimita-se como marco inicial o Código Civil de 1916 e marco final o Código Civil de 2002, passando pelo processo de constitucionalização do Direito Civil, a partir da promulgação da Constituição Federal de 1988.

A relevância deste artigo fundamenta-se na necessidade de desconstrução social do machismo estrutural legitimado pela lei cível, uma vez que a sociedade patriarcal vê e trata a mulher como objeto e não como sujeita de direitos e deveres, resultando, com isto, nos números alarmantes de violência contra a mulher.

A pesquisa bibliográfica é a metodologia adotada na elaboração do presente trabalho, analisando os Códigos Civis de 1916 e 2002, bem como o Estatuto da Mulher Casada, a Constituição Federal de 1988, além de livros, artigos e jurisprudências que versam sobre a matéria ora tratada.

É importante destacar que foi adotada a abordagem dedutivo e histórico, visto que o recorte histórico é de fundamental importância para compreender a evolução histórica dos direitos fundamentais das mulheres ao longo dos anos.

Com isso, foi possível demonstrar o tratamento dispensado à mulher ao longo de quase um século, bem como identificar os malefícios a ela causados por uma legislação machista e misógina que nada mais é do que o resultado da organização social fundada no patriarcado.

 

  1. METODOLOGIA

O conhecimento se constitui elemento fundamental na construção da humanidade, razão pela qual cada vez mais se evidencia e propaga no contexto da sociedade atual, visto que o saber é absorvido pelos processos de globalização e de mercantilização.

Nesse sentido, é indispensável que o processo de pesquisa e sua metodologia disponha de rigor científico na definição dos seus procedimentos, exigindo do pesquisador clareza na definição do método a ser utilizado.

No presente trabalho adota-se o procedimento da pesquisa bibliográfica, com abordagem dedutivo e histórico.  É comum a pesquisa bibliográfica ser caracterizada como revisão de literatura ou revisão bibliográfica. Tal definição é equivocada e se dá pela falta de compreensão de que a revisão de literatura nada mais é do que um pré-requisito para toda e qualquer pesquisa. A pesquisa bibliográfica, por sua vez, constitui-se no conjunto ordenado de procedimentos de busca por soluções, que se atentam ao objeto de estudo e que, por isso, não pode ser aleatório.

A pesquisa bibliográfica, portanto, permite fundamentar teoricamente o objeto de estudo, contribuindo com elementos que subsidiam a análise futura dos dados obtidos e se difere da revisão bibliográfica, visto que além de observar os dados contidos nas fontes pesquisadas, ainda permite a compreensão crítica do significado existente nestes dados.

De acordo com Gil (2010, p.29) “a pesquisa bibliográfica é elaborada com base em material já publicado. Tradicionalmente, esta modalidade de pesquisa inclui material impresso como livros, revistas, jornais, teses, dissertações e anais de eventos científicos”.

O método dedutivo, por sua vez, é a modalidade de raciocínio lógico que faz uso da dedução para obter uma conclusão a respeito de determinadas premissas.  Essencialmente, os raciocínios dedutivos se caracterizam por apresentar conclusões que devem, necessariamente, ser verdadeiras caso todas as premissas sejam verdadeiras e se o raciocínio respeitar uma forma lógica válida. Logo, partindo de princípios reconhecidos como verdadeiros (premissa maior), o pesquisador estabelece relações com uma segunda proposição (premissa menor) para, a partir de raciocínio lógico, chegar à verdade daquilo que propõe (conclusão).

No presente trabalho temos como premissa maior “o instituto do débito conjugal como legitimador do estupro marital”. A premissa menor é que “a legislação cível ao longo dos anos trata as mulheres de forma machista e misógina, não a considerando como sujeita de direitos e deveres”. A partir da análise da legislação cível brasileira, conclui-se que, de fato a esta contribui diretamente para o processo de objetificação e inferiorização da mulher.

A fim de entender como o instituto do débito conjugal, previsto no Código Civil de 1916, legitima o ato ilícito do estupro marital, é de fundamental importância a abordagem histórica do direito civil brasileiro, analisando-se neste trabalho os Códigos Civis de 1916 e 2002, bem como o Estatuto da Mulher Casada, a Constituição Federal de 1988, além de livros, artigos e jurisprudências que versam sobre a matéria ora tratada e com isso apresenta-se uma análise crítica acerca da forma excludente e discriminatória como a mulher foi tratada pela legislação cível brasileira ao longo dos anos, interferindo diretamente no julgamento dispensado o estupro marital.

 

  1. SÍNTESE HISTÓRICA DO TRATAMENTO DISPENSADO À MULHER NOS CÓDIGOS CIVIS BRASILEIROS

O Código Civil de 1916 retratava uma sociedade marcadamente conservadora e patriarcal e consagrou a superioridade masculina, uma vez que transformou a força física do homem em poder pessoal e autoridade, razão pela qual outorgou-lhe o comando exclusivo da família.

Deste modo, a mulher ao casar perdia sua plena capacidade e tornava-se relativamente capaz assim como os índios, os pródigos e os menores. Somente poderia trabalhar se o seu marido a autorizasse.

A família era identificada pelo nome do homem, sendo que a mulher era obrigada a adotar os apelidos do marido. O casamento era vínculo indissolúvel, sendo permitido tão somente o desquite, que rompia a sociedade conjugal, mas não dissolvia o casamento. A não dissolução do casamento significava que o casal poderia viver separado, mas um novo casamento era vetado a ambos.

É importante ressaltar que desquite significa não quites, isto é, em débito para com a sociedade. Da simples análise conceitual do instituto do desquite é possível extrair a carga discriminatória que era imposta à mulher desquitada, visto que esta passava a estar em débito com a sociedade a partir do momento que assumia tal condição.

Daí se explica a razão pela qual os casamentos duravam décadas até final dos anos noventa, visto que a maioria das mulheres, independente das condições conjugais, se privava da possibilidade de libertar-se de um casamento, muitas vezes “doente”, para não carregar a marca de uma mulher que estava em “débito com uma sociedade” e que, por isso, sofreria todo tipo de discriminação.

De acordo com o Código Civil de 1916 somente o casamento constituía a família legítima.  Contudo, isso não impedia a vasta existência dos vínculos extramatrimoniais que não eram reconhecidos e ainda eram punidos. Tais relacionamentos recebiam o nome de concubinato, eram condenados à clandestinidade e à exclusão não só social, mas também jurídica, uma vez que não gerava qualquer direito.

Considerando que a mulher era relegada a segundo plano, não sendo tratada como sujeita de direitos e deveres, não restam dúvidas que era a mulher e os seus filhos os grandes prejudicados neste tipo de relação, visto que ao homem “tudo” era permitido.

“A condição matrimonial dos pais levava a uma cruel divisão entre os filhos. Era alijada de qualquer direito a prole concebida fora do casamento. Nominados de naturais, adulterinos, incestuosos, todos eram rotulados como filhos ilegítimos, sem direito de buscar sua identidade. Não podiam ser reconhecidos enquanto o pai fosse casado. Só o desquite ou morte permitia a demanda investigatória de paternidade. Os filhos eram punidos pela postura do pai que saia premiado, pois não assumia qualquer responsabilidade pelo fruto de sua aventura extramatrimonial. Quem era onerada era a mãe que acabava tendo que sustentar sozinha o filho, pagando o preço pela “desonra” de ter um filho “bastardo”. (DIAS, 2010, p. 01)

Em 1962 foi editada a Lei 4.121. O Estatuto da Mulher Casada se constitui no primeiro grande marco para romper a hegemonia masculina, visto que devolveu a plena capacidade à mulher, que passou à condição de colaboradora na administração da sociedade conjugal, sendo dispensada a autorização marital para o trabalho e criou-se o instituto dos bens reservados.

Entendia-se como bens reservados o patrimônio adquirido pela esposa com o produto de seu trabalho, sendo que estes bens não respondiam pelas dívidas do marido, ainda que presumivelmente contraídas em benefício da família.

Em 1977 foi aprovada a Lei do Divórcio. É importante ressaltar que para sua aprovação fez-se necessária a alteração da Constituição Federal, pondo fim ao quórum de dois terços para aprovação de emendas à Constituição e passa a ser exigida apenas maioria simples e não mais maioria qualificada. Após esta alteração aprovou-se a Emenda Constitucional nº 9 que introduziu a dissolubilidade do vínculo matrimonial.

Apesar de se chamar Lei do Divórcio, a nova lei não regulou o divórcio e apenas limitou-se a substituir a palavra “desquite” pela expressão “separação judicial”, mantendo as exigências e limitações à sua concessão que outrora já eram previstas.

Por outro lado, possibilitou alguns avanços em relação à mulher, uma vez que tornou facultativa a adoção do patronímico do marido, bem como estendeu ao marido o direito de pedir alimentos, que antes só eram assegurados à mulher “honesta e pobre”.

Neste sentido é importante se atentar para o termo honesta, visto que se trata de valor subjetivo ao qual o legislador buscou objetivar. Assim era considerada mulher honesta aquela que se enquadrasse no padrão patriarcal de submissão ao “macho”. Logo, ser submissa ao marido era condição indispensável para ser considerada uma mulher honesta, razão pela qual um número significativo de mulheres não se adequava a tal qualificação.

A Lei do Divórcio também promoveu a mudança do regime legal de bens e tal mudança foi significativa. Antes da lei, diante do silêncio dos nubentes o regime de bens adotado era o da comunhão universal de bens. Com a lei, passou a vigorar como regime legal a comunhão parcial de bens.

Embora tais avanços sejam importantes, foi a Constituição Federal promulgada em 1988 que promoveu a maior reforma já ocorrida no Direito de Família, quando determina expressamente a igualdade entre homens e mulheres, em direitos e obrigações (inciso I do art. 5°), bem como afirma que os direitos e deveres referentes à sociedade conjugal são exercidos igualmente pelos cônjuges, independente de sexo (§ 5º do art. 226).

A Carta Magna já no seu preâmbulo preceitua a igualdade e com isso, põe fim à desigualdade de sexo, formal e expressamente, estabelecendo como objetivo fundamental do Estado promover o bem de todos.

“Nós, representantes do povo brasileiro, reunidos em Assembleia Nacional Constituinte para instituir um Estado Democrático, destinado a assegurar o exercício dos direitos sociais e individuais, a liberdade, a segurança, o bem-estar, o desenvolvimento, a igualdade e a justiça como valores supremos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos, fundada na harmonia social e comprometida, na ordem interna e internacional, com a solução pacífica das controvérsias, promulgamos, sob a proteção de Deus, a seguinte” CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA FEDERATIVA DO BRASIL. (BRASIL, 1988)

O passo seguinte e de fundamental importância foi garantir a isonomia entre os filhos, visto que proibiu qualquer designação discriminatória relativa à filiação. Deste modo, o conceito de família recebeu da Constituição novo tratamento, fugindo da ideia tradicional de família constituída pelo casamento e abrangendo neste conceito a união estável entre o homem e a mulher e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes.

Ocorre, porém, que apesar da implantação de uma nova ordem constitucional, o legislador não se preocupou em adequar os dispositivos da legislação infraconstitucional não recepcionados pelo novo sistema jurídico, embora tenha se transformado em normas sem qualquer eficácia por divergir da Lei Maior.

A mulher continuava sendo tratada como objeto do homem, apesar da Jurisprudência pugnar pela inconstitucionalidade de dispositivos que contrariavam o princípio da igualdade entre os sexos.

O código Civil de 2002 tenta se adequar às transformações sociais ocorridas, no entanto, ainda mantém princípios que não são adequados aos tempos de hoje e à conformação familiar atual. Mantém de forma inconteste a sacralização da família aliada à preservação do casamento. Sacraliza a família quando no seu artigo 1542 permite o casamento por procuração, mas preserva o casamento quando proíbe a representação dos cônjuges por mandatário nas ações de separação (art. 1542) e divórcio (art. 1582).

Os avanços contidos no Código Civil de 2002 são notórios, entretanto, os resquícios de uma sociedade patriarcal que por séculos subestimou a capacidade da mulher não deixou de existir. Embora tenhamos evoluído do pátrio poder para o poder familiar ainda é possível perceber que a legislação continua a retirar a credibilidade da mulher. Para tanto, basta analisar o artigo 1.600, que assim determina: “Não basta o adultério da mulher, ainda que confessado, para ilidir a presunção legal da paternidade”. Ou seja, ainda que a mulher afirme que se relacionou com outro homem e que este é o pai do seu filho (a), não é o suficiente para por fim à paternidade presumida do cônjuge ou companheiro.

Na verdade, um dos grandes méritos do atual Código Civil é ter afastado toda terminologia discriminatória em relação à mulher, a referência familiar e à filiação. No entanto, a tentativa de pôr fim às regras jurídicas que já não mais existiam não pôs fim ao tratamento discriminatório, uma vez que alguns dispositivos que denotam este tipo de tratamento ainda são encontrados no código civil vigente.

 

  1. DO PÁTRIO PODER AO PODER FAMILIAR

O Código Civil de 1916 adotou a ideia de pátrio poder com as mesmas acepções do direito romano, impondo a figura do pai dominando todo seio familiar. Neste sentido determina o artigo 233 do referido código:

“Art. 233. O marido é o chefe da sociedade conjugal. Compete-lhe: I – a representação legal da família; II – a administração dos bens comuns e dos particulares da mulher, que ao marido competir administrar em virtude do regime matrimonial adotado, ou de pacto antenupcial (arts. 178, § 9º, I, c, 274, 289, I e 311); III – o direito de fixar e mudar o domicílio da família (arts. 46 e 233, n. IV); IV – O direito de autorizar a profissão da mulher e a sua residência fora do teto conjugal (arts. 231, II, 242, VII, 243 a 245, II e 247, III); V – prover a mantença da família, guardada a disposição do art. 277”.  (BRASIL, 1916)

Silvio Rodrigues traz o seguinte entendimento sobre o Pater Poder:

“No direito romano o pátrio poder é representado por um conjunto de prerrogativas conferidas ao pater, na qualidade de chefe da organização familiar, e sobre a pessoa de seus filhos. Trata-se de um direito absoluto, praticamente ilimitado, cujo escopo é efetivamente reforçar a autoridade paterna, a fim de consolidar a família romana, célula base da sociedade, que nela encontra o seu principal alicerce” (RODRIGUES, 2004, p.353).

Com isso, garantia exclusivamente ao pai o poder de decidir e conduzir a vida dos filhos menores, cabendo à mulher, em caso de discordância, recorrer ao Poder Judiciário para resolver a lide.

“Art. 379. Os filhos legítimos, ou legitimados, os legalmente reconhecidos e os adotivos estão sujeitos ao pátrio poder, enquanto menores.

Art. 380. Durante o casamento compete o pátrio poder aos pais, exercendo-o o marido com a colaboração da mulher. Na falta ou impedimento de um dos progenitores, passará o outro a exercê-lo com exclusividade.

Parágrafo único. Divergindo os progenitores quanto ao exercício do pátrio poder, prevalecerá a decisão do pai, ressalvado à mãe o direito de recorrer ao juiz para solução da divergência”.

Assim, atendendo ao ideal machista da sociedade patriarcal, o homem estava no centro de tudo, sobretudo no centro da família. Dias (2013) assevera que a conotação machista do vocábulo pátrio poder é flagrante, pois só menciona o poder do pai com relação aos filhos.

Deve-se ressaltar, ainda, que além de colocar o pai como único detentor do pátrio poder, cabendo à mãe apenas o papel de auxiliá-lo, ainda enumera as classes de filhos, implicando, portanto, em um outro tipo de discriminação, embora lhe garanta direitos.

O Código Civil de 2002, respaldando-se nos princípios constitucionais determinados pela Constituição Federal de 1988, garantiu mais equilíbrio entre os cônjuges na relação familiar, protegendo os filhos, e com isso substituiu o pátrio poder, que era exclusividade do pai, pelo poder familiar que é exercido conjuntamente por pai e mãe.

Diniz traz a seguinte definição e características do poder familiar:

“O poder familiar constitui um múnus público, isto é, uma espécie de função correspondente a um cargo privado, sendo o poder familiar um direito-função e um poder-dever,… é irrenunciável, pois os pais não podem abrir mão dele; é inalienável ou indisponível, no sentido de que não pode ser transferido pelos pais a outrem, a título gratuito ou oneroso, salvo caso de delegação do poder familiar, desejadas pelos pais ou responsáveis para prevenir a ocorrência de situação irregular do menor,… é imprescritível, já que dele não decaem os genitores pelo simples fato de deixarem de exercê-lo, sendo que somente poderão perdê-lo nos casos previstos em lei; é incompatível com a tutela, não podendo nomear tutor a menor cujo pai ou mãe não foi suspenso ou destituído do poder familiar; conserva, ainda, a natureza de uma relação de autoridade por haver vínculo de subordinação entre pais e filhos, pois os genitores têm poder de mando e a prole o dever de obediência”. (DINIZ, 2008, p. 539).

Deve-se destacar, porém, que tais características têm como objetivo principal a proteção do menor e a sua permanência no seio familiar, visto que é dever da família assegurar a criança à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao esporte, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária.

De modo taxativo, no artigo 1.634, o Código Civil determina que cabe a ambos os pais em qualquer que seja a situação conjugal, o pleno exercício do Poder Familiar. Logo, mesmo estando separados os pais, nada afeta ao exercício deste direito, cabendo o pleno gozo aos progenitores.

“Art. 1.634.  Compete a ambos os pais, qualquer que seja a sua situação conjugal, o pleno exercício do poder familiar, que consiste em, quanto aos filhos: I – dirigir-lhes a criação e a educação; II – exercer a guarda unilateral ou compartilhada nos termos do art. 1.584; III – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para casarem; IV – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para viajarem ao exterior; V – conceder-lhes ou negar-lhes consentimento para mudarem sua residência permanente para outro Município; VI – nomear-lhes tutor por testamento ou documento autêntico, se o outro dos pais não lhe sobreviver, ou o sobrevivo não puder exercer o poder familiar; VII – representá-los judicial e extrajudicialmente até os 16 (dezesseis) anos, nos atos da vida civil, e assisti-los, após essa idade, nos atos em que forem partes, suprindo-lhes o consentimento; VIII – reclamá-los de quem ilegalmente os detenha;     IX – exigir que lhes prestem obediência, respeito e os serviços próprios de sua idade e condição”. (BRASIL, 2002)

A regulamentação do Poder Familiar provoca significativa mudança no papel da mulher na sociedade e na família, uma vez que deixa de ser mera auxiliar no processo de tomada de decisão acerca dos filhos menores e passa a ser protagonista neste processo decisório.

Não restam dúvidas que a conquista de tal direito se deu graças aos esforços do Movimento Feminista que participou ativamente enquanto instância propositiva na construção dos princípios que são alicerces da Constituição de 1988, através da pressão exercida pela organização e mobilização das mulheres.

 

  1. A CONSTITUCIONALIZAÇÃO DO DIREITO CIVIL E A EVOLUÇÃO DOS DIREITOS DA MULHER

A Constitucionalização do Direito Civil é a interpretação, estudo e análise do Código Civil a partir dos princípios constitucionais. Para entender o processo de constitucionalização do direito civil, é de fundamental importância reportamos à Teoria Pura do Direito de Hans Kelsen.

Para Kelsen:

“A ordem jurídica não é um sistema de normas jurídicas ordenadas no mesmo plano, situadas umas ao lado das outras, mas é uma construção escalonada de diferentes camadas ou níveis de normas jurídicas. A sua unidade é produto da conexão de dependência que resulta do fato de a validade de uma norma, que foi produzida de acordo com outra norma, se apoiar sobre essa outra norma, cuja produção, por sua vez, é determinada por outra; e assim por diante, até abicar finalmente na norma fundamental – pressuposta. A norma fundamental – hipotética, nestes termos – é, portanto, o fundamento de validade último que constitui a unidade desta interconexão criadora”. (KELSEN, 1987. p. 240)

Surge assim a chamada Pirâmide de Kelsen, sendo que a norma fundamental é a superior dentre o ordenamento jurídico, razão pela qual é o fundamento supremo de validade da ordem jurídica inteira. Neste sentido, a Constituição Federal está no topo da pirâmide, como norma suprema de validade de todo o ordenamento jurídico brasileiro.

Daí advém a Constitucionalização do Direito Civil, uma vez que a sua validade se vincula necessariamente à sua adequação aos Princípios Constitucionais vigentes.

“A Constituição se coloca no vértice do sistema jurídico do país, a que confere validade, e que todos os poderes estatais são legítimos na medida em que elas o reconheçam e na proporção por ela distribuídos. É, enfim, a lei suprema do Estado, pois é nela que se encontram a própria estruturação deste e a organização de seus órgãos; é nela que se acham as normas fundamentais de Estado, e só nisso se notará sua superioridade em relação às normas jurídicas”. (KELSEN, 1987. p. 240)

Embora a Constituição Federal tenha sido promulgada em 1988, o Código Civil de 1916 permaneceu vigente até 10 de janeiro de 2003. Isso representa um demora de quinze anos para que a legislação cível de fato se adequasse à nova ordem constitucional.

É importante destacar que a tramitação do projeto do Código Civil de 2002, no Congresso Nacional, durou 27 anos. A Comissão de Revisão e Coordenação dos Projetos de Códigos do Ministério da Justiça constituiu, em 23 de maio de 1969, a Comissão Revisora e Elaboradora do Código Civil, coordenada pelo professor Miguel Reale, sendo que a mensagem presidencial nº 160, de 10 de junho de 1975, assinada pelo Presidente Ernesto Geisel, encaminhou, ao Congresso Nacional, o Projeto de Lei nº 634, de 1975, que deu origem ao novo Código Civil brasileiro.

Em 1981 foi criada uma nova comissão para dar continuidade ao projeto, mas não houve avanço significativo e apenas em 1983, os trabalhos de fato caminharam sob o comando de outra comissão que em maio do mesmo apresentou mais de 90 (noventa) subemendas.

Em função da luta pela redemocratização do país e com a iminência da instalação da Assembleia Constituinte os trabalhos foram suspensos e apenas em 2001 o anteprojeto foi ressuscitado e adequado à nova ordem constitucional.

Tal demora se deve basicamente ao patriarcado, visto que enquanto a ordem constitucional anterior colocava o homem como ser supremo e central da sociedade, esta nova ordem constitucional determina a igualdade entre homens e mulheres, retirando do homem a condição de único chefe da unidade familiar e colocando a família como unidade de coabitação e organização conjunta, onde todos têm os mesmos direitos e os mesmos deveres, independente de sua condição sexual.

Considerando que o patriarcado é um sistema social em que homens adultos mantêm o poder primário e predominam em funções de liderança política, autoridade moral, privilégio social e controle das propriedades, adequar o código civil à nova ordem constitucional significava, antes de tudo, a derrocada da hegemonia masculina que até então mantinha o homem como a figura central da sociedade brasileira.

Deve-se ressaltar ainda que a garantia constitucional dos princípios da igualdade e isonomia entre os sexos é resultado da efetiva participação das mulheres no processo de construção da Constituição Federal de 1988, visto que valoriza a participação cidadã e a inclusão social por meio dos direitos fundamentais. Embora o número de mulheres que compôs a assembleia constituinte fosse demasiadamente reduzido, as mulheres estavam devidamente organizadas e exerceram grande pressão popular, alcançando êxito na maioria das suas reivindicações e àquela época ficou conhecido o movimento chamado de lobby do batom.

Por meio desta estratégia política a Campanha “Mulher e Constituinte”, com o lema “Constituinte pra valer tem que ter direitos da Mulher”, se desenvolveu frente à ação dos parlamentares constituintes, requerendo o reconhecimento da mulher enquanto sujeita de direitos e deveres, como condição para efetiva democratização do país.

A criação do Conselho Nacional dos Direitos da Mulher, no ano de 1985 foi um marco nesse processo de articulação política, constituindo-se enquanto espaço de deliberação dos temas femininos, articulando e promovendo debates e campanhas a fim de auxiliar na promoção de direitos das mulheres garantindo a igualdade perante os homens. O Conselho Nacional dos Direitos da Mulher tornou-se um espaço de vigilância do exercício pleno da cidadania feminina.

Em 1987 foi escrita a Carta das Mulheres aos Constituintes, onde apresentavam o conjunto de proposições, com o fim de garantir a efetiva democratização do país com igualdade de direito entre homens e mulheres, sendo que 80% (oitenta por cento) das reivindicações foram atendidas e passou a compor a Carta Magna do País. (BERTOLIN et al, 2018)

Com a efetiva garantia constitucional da igualdade entre homens e mulheres na Constituição Federal de 1988 o direito civil brasileiro tornou-se obsoleto e inconstitucional. Embora o Código Civil de 1916 tenha sido revogado apenas em 11 de janeiro de 2013, a jurisprudência majoritária passou a declinar a aplicação de muitos dispositivos apontando para a inconstitucionalidade deles.

De certo o processo de constitucionalização do Direito Civil Brasileiro, embora tardiamente, aconteceu e resultou na evolução dos direitos das mulheres, contudo, muito ainda há para ser mudado no Código Civil de 2002, visto que os resquícios do patriarcado ainda persistem em alguns dispositivos que reforça e legitima a desigualdade entre homens e mulheres.

Há de se ressaltar, ainda, que da constitucionalização do direito civil advém os princípios norteadores do Código Civil de 2002 – eticidade, socialidade e operabilidade. Com o princípio da Socialidade, o Código Civil de 2002 distancia-se do caráter individualista da codificação anterior, sendo que o “nós” prevalece sobre o “eu”, conferindo função social a todos os institutos civis. Com a Eticidade, resta comprovada preocupação precípua com a ética e a boa-fé, sobretudo com a boa-fé objetiva, aquela que existe no plano da conduta de lealdade dos participantes negociais. No que se refere a Operabilidade, é importante destacar que este princípio dispõe de dois sentidos: simplicidade dos institutos jurídicos, como ocorreu com a prescrição e decadência; o de efetividade, por meio do sistema de cláusulas gerais e conceitos indeterminados adotado pela atual codificação.

 

  1. DÉBITO CONJUGAL E OBJETIFICAÇÃO DA MULHER

Numa retrospectiva às origens da instituição do matrimônio, este instituto é encontrado sob diversas formas em civilizações antigas. No entanto, o casamento na forma em que conhecemos na civilização ocidental foi delineado sob influência da Igreja Católica, razão pela qual o casamento monogâmico era visto como uma forma de controlar os desejos da carne e seus pecados. Com isso, o mútuo comprometimento entre homem e mulher transformou o sexo no instrumento conjugal que garante o crescimento da família através da prole.

A partir da instituição do casamento surgem direitos e deveres para ambos os cônjuges, e, sob a influência da igreja católica, surgiu o poder-dever do débito conjugal, que nada mais é que a obrigação dos cônjuges satisfazerem o desejo sexual um do outro, isto é, o direito-dever do marido e sua mulher de realizarem o ato sexual entre si.

Tal entendimento não ficou restrito apenas à igreja, sendo adotado pelo ordenamento jurídico pátrio conforme será devidamente analisado sob a perspectiva do tratamento dispensado à mulher, de quem efetivamente era e é cobrado o dever da satisfação sexual para com o cônjuge.

 

5.1 Códigos Civis de 1916 e 2002

No Brasil, o débito conjugal nasceu de um conceito de família arcaico, idealizado pelo Código Civil de 1916, visto que naquela época havia uma concepção de família que não se preocupava com a realização pessoal de todos os seus componentes. A família tinha como figura central o homem e o conteúdo patrimonial, pouco importando a relação de afeto.

A mulher ocupava posição de completa submissão ao marido, sendo que este só possuía privilégios na relação de casamento, enquanto a mulher só detinha deveres a serem cumpridos, bem como determinados atos da vida civil só poderiam ser exercidos pela mulher com anuência do marido, e a possibilidade de ingressar no mercado de trabalho era uma destas limitações.

Com a desigualdade e machismo patente, embora o dever de débito conjugal seja destinado a homens e mulheres, sem distinção, na realidade isso não ocorria, uma vez que a mulher estava colocada em condições de total submissão.

O dever de coabitação estatuído no Código Civil de 1916, possuía claro cunho sexual e impunha aos cônjuges não somente a vida comum em domicílio conjugal, como também a obrigação de manter relação sexual. Ocorre, porém, que diante da posição de inferioridade imposta às mulheres pelo patriarcado, era entendido pela doutrina e pela jurisprudência que esse dever era exclusivamente da mulher.

Diante deste entendimento a sociedade brasileira, por meio da legislação cível, legitimou a violência sexual dentro do casamento, surgindo o que ora denominamos de estupro marital, isto é, o marido diante da recusa da sua mulher em realizar o ato sexual, sentia-se legitimado a obriga-la, sob o argumento de que este era um dever a ser cumprido, não tendo a mulher a liberdade de escolha.

O artigo 1566 do Código Civil de 2002, no seu inciso II, mantém para os cônjuges o dever de “vida em comum, no domicílio conjugal”. Tal dever, assim como no Código Civil de 1916, possui dois sentidos: o primeiro refere-se ao dever de moradia sob um mesmo teto; o segundo concerne ao dever de manter práticas sexuais com o cônjuge.

Com a constitucionalização do direito civil, entretanto, houve uma mudança na doutrina e jurisprudência quanto ao direito-dever do marido e sua mulher de realizarem o ato sexual entre si. O débito conjugal deixa de ser ilimitado, uma vez que deve ser exercido em harmonia com outros direitos e deveres a ele diretamente ligados, como o direito ao respeito, à liberdade sexual.

A sociedade brasileira, contudo, é norteada pela ideologia patriarcal que é a estrutura de pensamento baseada na dominação dos homens sobre as mulheres, e por esta razão a recusa à prática do ato sexual ainda é apontada como justificativa da violência doméstica e familiar contra a mulher. Deve-se ressaltar que até 2005 o estupro marital não era punível, uma vez que o casamento era excludente de punibilidade do crime de estupro.

 

5.2 Estatuto da Mulher Casada

A Lei 4.121, de 27 de agosto de 1962, se constitui num marco da evolução dos direitos civis das mulheres no Brasil. Conhecida como Estatuto da Mulher Casada, esta lei contribuiu para a emancipação da mulher em diversas áreas.

O Código Civil de 1916 determinava a incapacidade relativa da mulher casada para determinados atos da vida civil, dependendo, portanto, da prévia autorização do marido, visto que ele era o único e exclusivo chefe da família. Com o Estatuto da Mulher Casada, o marido deixa de ser o chefe da sociedade conjugal.

A lei alterou mais de dez artigos do Código Civil vigente à época, dentre eles o artigo 6º que atestava a incapacidade relativa da mulher. Com isso foi possível que a mulher se tornasse economicamente ativa, independente da autorização do marido. Além disso, a mulher passa a ter direito sobre os seus filhos, compartilhando do pátrio poder e podendo requisitar a guarda em caso de separação.

Embora os avanços tenham sido significativos o Estatuto da Mulher Casada não interferiu no instituto do débito conjugal. E assim a mulher continuou sofrendo com a submissão que lhe era legalmente imposta, vendo se obrigada a cumprir com o dever de ter relação sexual com o seu marido, sob pena de se assim não o fizer ser violentada sem poder recorrer ao Estado para protegê-la.

 

  1. ESTUPRO MARITAL E A EVOLUÇÃO HISTÓRICO-LEGAL: O INIMIGO ÍNTIMO SOB A PROTEÇÃO DA LEI

Para Beauvoir a sociedade foi pautada de maneira tal que o homem lê-se como o sujeito, o absoluto e essencial, enquanto a mulher é “o outro”, o inessencial. Esta forma como o homem se ver e como a mulher é vista refletiu-se no ordenamento jurídico pátrio e sua consequente aplicação, bem como em todos os espaços sociais. (BEAUVOIR, 1970)

Assim, na família e na relação matrimonial o homem é o essencial e a mulher é o outro que tem o dever de servi-lo de modo a deixar o ser essencial satisfeito, independente das condições de vida ou sobrevida do “outro” – a mulher.

Em função da essencialidade do homem e a irrelevância do sentir e ser feminino, até a promulgação da Constituição Federal de 1988 sequer era vislumbrada a possibilidade de configuração do estupro marital. Isso não significa que esta não era uma realidade vivida por significativo número de mulheres que cotidianamente precisavam submeter-se à vontade exclusiva dos seus maridos para lhes satisfazer sexualmente. Na verdade, o que sempre houve e há, ainda nos dias de hoje, é a invisibilização da violência sexual sofrida pelas mulheres dentro do seu próprio lar.

Na doutrina jurídico-penal brasileira existem duas correntes que tratam o assunto de forma divergente:

A primeira corrente formada por doutrinadores como Nelson Hungria, afirma que é impossível ocorrer o crime de estupro cometido pelo marido em relação a sua mulher, uma vez que a relação sexual entre pessoas casadas trata-se de uma das obrigações desse contrato, e, portanto, qualquer um dos consortes tem o direito de exigi-la.

Noronha concorda com esse posicionamento e afirma que “a violência por parte do marido não constituirá, em princípio, crime de estupro, desde que a razão da esposa para não aceder à união sexual seja mero capricho ou fútil motivo”. (NORONHA, 2009, p. 70.

A segunda corrente é representada por juristas como Damásio de Jesus e Mirabete, e contraria a primeira corrente, visto que eles acreditam que é perfeitamente possível a configuração do estupro marital, uma vez que a lei não permite o uso de violência ou grave ameaça na relação matrimonial, ou em qualquer tipo de relação social.

Jesus assim afirma:

Entendemos que o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria esposa. Embora com o casamento surja o direito de manter relacionamento sexual, tal direito não autoriza o marido a forçar a mulher ao ato sexual, empregando contra ela a violência física ou moral que caracteriza o estupro. Não fica a mulher, com o casamento, sujeita aos caprichos do marido em matéria sexual, obrigada a manter relações sexuais quando e onde este quiser. Não perde o direito de dispor de seu corpo, ou seja, o direito de se negar ao ato sexual […]. Assim, sempre que a mulher não consentir na conjunção carnal e o marido a obrigar ao ato, com violência ou grave ameaça, em princípio caracterizar-se-á o crime de estupro, desde que ela tenha justa causa para a negativa”. (DAMASIO, 2000, p.96).

Mirabete assim complementa:

“Embora a relação carnal voluntária seja lícita ao cônjuge, é ilícita e criminosa a coação para a prática do ato por ser incompatível com a dignidade da mulher e a respeitabilidade do lar. A evolução dos costumes, que determinou a igualdade de direitos entre o homem e a mulher, justifica essa posição. Como remédio ao cônjuge rejeitado injustificadamente caberá apenas a separação judicial”. (MIRABETE, 2003, p. 411).

É importante ressaltar que, embora o estupro seja um tipo penal e, portanto, deve ser tratado na esfera criminal, o entendimento da corrente doutrinária que afirma não ser possível a configuração do estupro marital tem as suas raízes fincadas no instituto do débito conjugal que tem o seu nascedouro no direito civil, a partir da obrigação de coabitação entre os cônjuges, uma vez que a doutrina civilista inclui a relação sexual enquanto parte fundamental da coabitação.

Até 2005 não havia o reconhecimento e tipificação, expressos em lei, da violência sexual cometida pelo marido ou companheiro. Deste modo, a discussão ficava a cargo da doutrina e da discricionariedade do Poder Judiciário. Neste sentido, é importante que se rememore o quão é machista e excludente o mundo jurídico no que diz respeito ao gênero, razão pela qual sempre prevaleceu a vontade e o desejo do homem como regra maior.

Com isso a configuração do ilícito do estupro marital se constituía na primeira grande dificuldade em que a vítima se esbarrava para alcançar a tão sonhada “justiça”, visto que, embora a constitucionalização do direito civil e direito penal, em andamento, buscasse e legitimasse o respeito aos direitos fundamentais do ser humano, independente de sexo ou condição sexual, a sociedade patriarcal continuava a se locupletar da falta de normas jurídicas objetivas para fazer prevalecer os critérios machistas e misóginos na organização familiar.

E assim, em 2004 decidiam os Tribunais:

 

“TJ-MA – APELAÇÃO CRIMINAL APR 197292001 MA (TJ-MA) – Data de publicação: 01/09/2004 . Ementa: Apelação criminal. Estupro. Tentativa. Alegada fragilidade das provas. Laudo de conjunção carnal. Palavra da vítima. Conjunto probatório harmônico. As declarações da vítima, nos crimes contra os costumes, têm peso preponderante, sobretudo se harmônicas com o laudo pericial e demais elementos do conjunto probatório.Marido agente do crime de estupro. Possibilidade. Em consonância com a garantia constitucional que proclama a igualdade entre homens e mulheres, e também em respeito a dignidade da mulher, o marido pode ser sujeito ativo do crime de estupro contra a própria parceira.Sentença condenatória. Ausência de fundamentação. Critério trifásico. Inversão da ordem de aplicação da pena. Nulidade. É nula a sentença condenatória que carece de fundamentação e inobserva a critério trifásico de aplicação da pena. Agravante de reincidência. Ausência de certidão de antecedentes criminais. Desnecessidade. Se o crime é cometido quando da saída temporária da penitenciária para passar o natal com a família, é evidente que o período de prova, cinco anos, nem foi iniciado, daí, correta e isenta de formalismo a aplicação da agravante de reincidência sem a certidão de antecedentes criminais. Lei 8.072 /90. Ausência de lesão grave ou morte. Aplicação.A lei de crimes hediondos não faz distinção entre a forma simples e a qualificada do crime de estupro.Parcial provimento do recurso para declarar a nulidade da sentença condenatória”.

 

Embora em 1993 o estupro marital tenha sido reconhecido pela ONU como uma violação dos direitos humanos, apenas em 2006, com a aprovação Lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), é que a violência sexual sofrida pela mulher no âmbito familiar passou a ser efetivamente reconhecida como um crime contra a mulher.

 

“Art. 7° São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:

[…]

III – a violência sexual, entendida como qualquer conduta que a constranja a presenciar, a manter ou a participar de relação sexual não desejada, mediante intimidação, ameaça, coação ou uso da força; que a induza a comercializar ou a utilizar, de qualquer modo, a sua sexualidade, que a impeça de usar qualquer método contraceptivo ou que a force ao matrimônio, à gravidez, ao aborto ou à prostituição, mediante coação, chantagem, suborno ou manipulação; ou que limite ou anule o exercício de seus direitos sexuais e reprodutivos;

[…]”

           

Em 2009 a Lei 12.015/09, exclui o casamento como causa de extinção de punibilidade para o crime de estupro, pondo fim a qualquer dúvida legal que pudesse existir quanto à possibilidade de configuração do ilícito penal do estupro marital. Até então o Código Penal considerava o estupro como crime contra a honra do homem e da família, razão pela extinguia-se a punibilidade com o casamento e, consequentemente, o marido via-se autorizado a obrigar a mulher a ter relações sexuais.

Com a normatização objetiva de tal ilícito a doutrina já não pode mais, com base exclusivamente nas obrigações cíveis, aceitar e tolerar a violência sexual no âmbito das relações conjugais como algo comum e aceitável, mudando as decisões dos Tribunais.

“TJ-RO – Apelação APL 00982531120088220501 RO 0098253-11.2008.822.0501 (TJ-RO) – Data de publicação: 11/07/2014. Ementa: Apelação Criminal. Estupro continuado. Crime cometido pelo marido contra a esposa. Preliminar. Reconhecimento de inimputabilidade. Réu indígena integrado à sociedade. Inviabilidade. Materialidade e Autoria comprovadas. Palavra da vítima. Confissão do réu. Outros elementos de prova. Harmonia. Absolvição. Descabimento. Experiência sexual anterior. Irrelevância. Dosimetria. Redução da pena fixada no mínimo legal. Impossibilidade. Regime semiaberto mantido. Inviável o reconhecimento da inimputabilidade do agente de origem indígena que encontra-se totalmente integrado à sociedade e aos costumes da civilização. A confissão do réu em harmonia com o conjunto probatório é suficiente para alicerçar o decreto condenatório quanto ao crime de estupro. A mulher pode ser vítima de crime de estupro praticado pelo próprio marido, pois embora a prática sexual constitua um dos deveres do casamento, a mulher tem a livre disponibilidade do próprio corpo que não é propriedade do homem. O fato de a vítima não ser mais virgem e já ter experiências sexuais anteriores não descaracteriza o crime de estupro. Não é possível a redução da pena-base fixada no mínimo legal. O réu primário, condenado a pena de sete anos de reclusão, poderá cumpri-la desde o início no regime semiaberto, se as circunstâncias judiciais não recomendarem a fixação de regime mais gravoso”.          

Do ponto de vista legal a Lei Maria da Penha, aliada à Lei 12015/09, garantiu o efetivo reconhecimento do ilícito penal, porém do ponto de vista cultural e social tal problema persiste.

Vivemos numa sociedade marcadamente patriarcal que insiste no processo de objetificação do Ser Mulher, resultando na culpabilização das mulheres vítimas de violência e colocando-as na condição de mero produto dos desejos masculinos.

Com isso a sociedade impõe à mulher o dever de saciar os desejos sexuais do marido, razão pela qual o estupro marital continua invisível aos olhos da sociedade, seja porque a sociedade insiste em não reconhecer como ilícito, seja porque as mulheres vítimas de estupro marital sentem-se intimidadas a expor tal situação e exigir a punição do seu algoz.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ante o exposto resta comprovado que historicamente as mulheres sempre foram relegadas a segundo plano, não sendo consideradas como sujeitas de direitos e deveres, sendo que a legislação cível sempre as colocou na condição de subordinação e discriminação em relação ao homem perante a sociedade.

Com a efetiva atuação do Movimento Feminista nas diversas frentes, a mulher passou a conquistar o seu espaço, sendo que a Constituição de 1988 é um marco da conquista dos direitos fundamentais das mulheres no Brasil, o que possibilitou, a partir da Constitucionalização do Direito Civil, que a mulher seja tratada como sujeita de direitos e deveres assumindo o papel de senhora do próprio destino, deixando de se submeter à vontade do homem. Do ponto de vista formal a igualdade entre homens e mulheres está garantida.

Entretanto, embora a norma jurídica tenha evoluído, os valores patriarcais persistem na nossa sociedade, razão pela qual as medidas discriminatórias afirmativas foram previstas na Carta Magna do nosso país. Neste sentido a Lei Maria da Penha constitui-se em medida discriminatória afirmativa que cria mecanismos para coibir e prevenir a violência doméstica e familiar contra a mulher.

Embora já tenha se passado quase treze anos desde a aprovação da referida lei, os índices de violência contra a mulher são alarmantes, bem como parte da sociedade mostra-se tolerante com tais atos sempre apresentando justificativas que buscam extinguir a culpabilidade do agressor.

Tal fato se dá em função do machismo estrutural que precisa ser descontruído socialmente. Não restam dúvidas que o direito civil brasileiro por muitos anos legitimou a violência doméstica contra a mulher à medida que a colocava na condição de propriedade do seu marido.

Deste modo, em que pese todos os avanços na legislação pátria, a sociedade brasileira, culturalmente tolera a violência contra a mulher e a coloca na condição de culpada pela violência sofrida, o que reforça o processo de invisibilização da violência contra a mulher.

Conforme dados do Ministério da Saúde/SVS – Sistema de Informação de Agravos de Notificação – Sinan Net, as notificações de estupro por cônjuges, companheiros e/ou namorados das vítimas aumentou quase sete vezes desde 2009, passando de 73, neste ano, para 890 em 2016.

Estes números ainda não representam a realidade, visto que de um lado muitas mulheres desconhecem que a violência sexual sofrida no casamento se configura num ilícito penal e que, portanto, pode e deve ser denunciada. E de outro lado existe a ideia incutida culturalmente que quando a mulher assume um relacionamento com um homem deve atender aos anseios sexuais, independentemente de sua vontade e possibilidade de realização do ato sexual.

Em ambos os casos a legislação civil se constitui em responsável direto para tal submissão da mulher, visto que durante muito tempo legitimou tal violência, condicionando a coabitação entre os cônjuges à prática do ato sexual, fazendo surgir o instituto do débito conjugal.

 

REFERÊNCIAS

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