Direito Constitucional

Interpretação Constitucional e Argumentação Jurídica: uma análise casuística

Sérgio Souza Botelho[1]

Resumo: A interpretação precede a argumentação jurídica, como forma de sua justificação, que possui concepções formal, material e pragmática a serem percorridas. A norma constitucional é dotada de amplo aspecto político e grande abertura do sistema, o que requer uma análise peculiar e uma fundamentação mais vigorosa, sobretudo em estados de tensão principiológica ou valorativa. Não obstante, tradicionalmente o Brasil possui uma matriz positivista arraigada, tributária da civil law, em detrimento do jusnaturalismo, que persiste até os tempos hodiernos. Porém, fortes influxos do pós-positivismo e da common law representam realidade na ciência jurídica nacional atual e atuam a favor da concretização dos direitos. Tal fenômeno se observa na atividade judicante do Supremo Tribunal Federal-STF, que, em caso concreto, diante de uma escolha trágica, mais do que um caso difícil, sobrelevou o direito fundamental à saúde ao patrimônio, por meio de um critério de ponderação de valores. Observa-se que a ductibilidade constitucional, a ser observada no caso brasileiro, aponta para o consenso e coexistência pluralista, valores presentes na Constituição – CR. Referida decisão aponta caminhos relacionados à crise ocasionada pela pandemia causada pelo COVID-19.

Palavras-chave: Interpretação constitucional. Argumentação. Direitos Fundamentais. Pós-positivismo. Caso Trágico.

 

Constitutional Interpretation and Legal Argumentation: a casuistic analysis

Abstract: The interpretation precedes the legal argument, as a form of justification, which has formal, material and pragmatic concepts to be covered. The constitutional norm is endowed with a broad political aspect and a wide openness of the system, which requires a peculiar analysis and a more effective foundation, especially in states of principiological or evaluative tension. Nevertheless, Brazil has traditionally had an ingrained positivist matrix, a tributary of civil law, to the detriment of jusnaturalism, which persists until modern times. However, strong influxes of post-positivism and common law represent reality in current national legal science and act in favor of the realization of rights. Such phenomenon is observed in the judicial activity of the Supreme Court-STF, which, in a concrete case, faced with a tragic choice, more than a hard case, raised the fundamental right to health to the patrimony, through a value weighting criterion. It is observed that the constitutional ductibility, to be observed in the Brazilian case, points to the consensus and pluralist coexistence, values wich are present in the Constitution – CR. This decision points to paths related to the crisis caused by the pandemic caused by COVID-19.

Keywords: Constitutional interpretation. Argumentation. Fundamental rights. Post-positivism. Tragic Case.

 

Sumário: Introdução. 1. Jusnaturalismo X Positivismo. 2. O Pós-Positivismo e o Neoconstitucionalismo. 3. Interpretação Constitucional e Argumentação. 4. Caso Concreto: Posicionamento do Supremo Tribunal Federal no Agravo Regimental no Recurso Extraordinário com Agravo nº 727.864. 4.1 Contextualização. 4.2 Preliminares. 4.3 Mérito.  5 Breves Considerações Atinentes ao Tema e Relacionadas com a Atual Situação Brasileira: Pandemia – Covid-19. Considerações Finais.

“Portanto, Trasímaco, nenhum chefe, em qualquer lugar de comando, na medida em que é chefe, examina ou prescreve o que é vantajoso a ele mesmo, mas o que é para o seu subordinado, para o qual exerce sua profissão, e é tendo esse homem em atenção, e o que lhe é vantajoso e conveniente, que diz o que diz e faz tudo quanto faz”.

(Platão. A República.) 

 

INTRODUÇÃO

Este artigo se ocupa da análise do posicionamento do Supremo Tribunal Federal em julgamento relacionado à questão das “escolhas trágicas”, em tema de direitos fundamentais à saúde e à vida, visitando o tema da discricionariedade, com foco na interpretação constitucional e na teoria da argumentação, a fim de se vislumbrar um padrão orientativo a título de formação de precedente judicial.

Cumpre salientar que, para tanto, como bosquejo de um conhecimento filosófico-jurídico propedêutico, a despeito de um largo espectro histórico-jurídico da humanidade, tendo-se em vista o escopo do presente trabalho, ter-se-á como base um olhar sobre os aspectos teorético-jurídicos vigentes no ocidente, sobretudo, de meados dos séculos XVII em diante, pelas limitações próprias e pelo objetivo deste artigo.

 

  1. JUSNATURALISMO X POSITIVISMO

De tal modo, cabe salientar que no Brasil, como reflexo de boa parte dos países ocidentais, o que em parte ainda vigora, houve uma forte adoção da teoria filosófico-jurídica do positivismo, relevante ao ponto do lema “ordem e progresso”, de origem comteana, figurar na flâmula nacional, em detrimento da corrente jusnaturalista. Ademais, é necessário que se entenda que há muitas vertentes dentro desses dois campos, as quais aqui não serão pormenorizadas, diante do estrito intento deste trabalho.

Nesse ponto, convém assinalar que:

(…) o contraponto “jusnaturalismo x juspositivismo” despertou, após séculos, o ceticismo de algum setor da doutrina que entendeu que estava enfrentando uma controvérsia insolúvel e, portanto, estéril. Assim, enquanto alguns tentaram vê-lo concluído, outros postularam uma “terceira via” (dritter Weg). (Tradução nossa) (CABANILLAS, 2019a, p. 127)

 

Em suma, o jusnaturalismo, primordialmente a partir do século XVII, pregava a existência de um Direito Natural, que continha normas universais de justiça, com base em princípios gerais de direito, axiomas jurídicos, estabelecidos pela razão, notadamente com cargas ética e valorativa, de aspecto deífico, com vistas a um ideal de justiça.

Nesse sentido, nos idos de 1762, Rousseau (2007, p. 33/37) mencionava,  referendando Hugo Grócio, que a vontade geral era inalienável, indestrutível e indivisível, traduzida no contrato social, no qual, através do soberano, isto é o corpo social, o homem prescindia de sua liberdade natural e de um direito sem limites, ao tempo em que ganharia a liberdade civil e a propriedade de tudo o que possuía.

Vê-se, assim, um teor fortemente metafísico na base do jusnaturalismo, melhor explicitado a partir de Kant (2004, p. 17), que identificava a fundamentação da metafísica[2] dos costumes com a busca e fixação do “princípio supremo da moralidade”, como crítica de uma razão pura prática, ao lado da generalidade da crítica da razão pura especulativa.

De fato, no jusnaturalismo Direito e Moral se imbricam, de forma que se reconhece a validade das leis, mas das leis justas, o que demanda uma carga valorativa de apreciação.

Além disso, Bonavides (2007, p. 259) registra que no jusnaturalismo, os princípios ainda habitavam uma esfera abstrata, cuja normatividade contrastava com o reconhecimento de sua dimensão ético-valorativa de ideia que inspira os postulados de justiça.

Em meados do século XVIII, e início do século XIX, todavia, sobretudo após a revolução industrial, o positivismo jurídico ganhou força, em detrimento da corrente jusnaturalista. A desconfiança na equidade humana, os avanços tecnológicos e científicos povoaram o ideário dos pensadores da época, que se ancoravam no culto à autoridade e às codificações, sob um broquel de segurança jurídica.

Não se descure que, durante o século das luzes, a ascensão econômica e política da burguesia impulsionou social e politicamente o estabelecimento do positivismo jurídico, já que o Estado de Direito tinha como base a submissão de todos ao império da lei, a separação dos poderes e a garantia de direitos individuais, caros anseios de uma classe então emergente.

E foi justamente da França, no limiar do século XIX, que, focado no estabelecimento de uma educação científica, Augusto Comte, célebre baluarte da filosofia positivista, ao que entendia ultrapassado o jusnaturalismo, justificou sua corrente de pensamento fenomênica como um estado fixo e definitivo, sucessor dos estados teológico (primeiro) e metafísico (segundo). (COMTE, 2009, ps. 18/19)

De tal maneira, em sua pureza, o positivismo, em base física e científica, pretendia o Direito como um sistema normativo dinâmico, cujas normas incompatíveis inexistiam, sendo dotado de completude e desvinculado de critérios de valor. Para esta senda bem aponta Gustav Radbruch que no positivismo jurídico, o juiz estava proibido de criar Direito, bem como, de negar-se a decidir, já que não havia lacunas na lei, pois o ordenamento jurídico, como fruto intelectual, era fechado e completo. (apud CABANILLAS, 2019b, ps. 128/129)

Kelsen abria sua obra mais famosa afirmando que a “Teoria Pura do Direito é uma teoria do Direito positivo” (1999, p. 11), que fornecia uma concepção interpretativa, propondo-se “garantir um conhecimento apenas dirigido ao Direito e excluir deste conhecimento tudo quanto não pertença ao seu objeto, tudo quanto não se possa, rigorosamente, determinar como Direito”.

De todo modo, a ideia avalorativa da certeza positivista, descrita em regras jurídicas, era tão presente à época, que as codificações já apontavam o princípio processual da vedação do non liquet.[3] E é assim que Bobbio (2006, p. 120) registra que o crescimento do Estado moderno fez com que as fontes de Direito se reduzissem à lei, passando-se a um monopólio de produção jurídica, no qual o Direito estatal devia regular cada caso possível.

Não obstante, esse posicionamento autossuficiente criou um apego exacerbado à lei, um fetichismo interpretativo, no que restou conhecido como a escola da exegese, tendente a um anacronismo social. Vieram, portanto, críticas como as tecidas pela Escola do Direito Livre, a da terceira via (dritter Weg) e tantas outras dentro do próprio positivismo.

Também Hart (1994, p. 312), que travou notável debate doutrinário com Ronald Dworkin, já na segunda metade do séc. XX, aproximou-se do Direito Natural, quando, com o seu positivismo moderado ou inclusivo, ao contrário do exclusivo, explicitou que “a regra de reconhecimento pode incorporar, como critérios de validade jurídica, a conformidade com princípios morais ou com valores substantivos”. Admite, ainda, este autor, a incompletude do Direito, diante da qual os tribunais devem exercer a função restrita de criação de direito, designada por ele como “poder discricionário”.

Ao cabo, conforme registra Miguel Reale (1994, ps. 27/29), sob a égide do positivismo, em geral, o aparelhamento conceitual passou a valer em si e por si, esterilizando-se em esquemas fixos, enquanto a vida prosseguia, sofrendo aceleradas mutações em seus centros de interesse. Perpassando-se então, a partir, do entardecer do séc. XIX, que havia poderosas razões de conflito entre os fatos e os códigos, pode-se dizer que cessou “o sono dogmático” dos “técnicos do direito” e as cogitações filosófico-jurídicas reconquistaram a perdida autonomia.

 

  1. O PÓS-POSITIVISMO E O NEOCONSTITUCIONALISMO

É em tal período histórico que a Moral se reaproxima do Direito e os valores, havendo que se reconhecer a necessidade premente de que o ser humano viesse a se despir de tamanha vaidade intelectual, a ponto de conceber um ordenamento jurídico de regras fechado em si e que, com um método interpretativo subsuntivo, estaria apto a resolver todos os impasses sociais que surgissem. Como que sob os auspícios de um iluminismo absurdamente individual e antropocentrista, de um regramento hermético em si mesmo, fosse capaz de prever e reger uma sociedade cambiante.

Vieram as duas grandes guerras mundiais, nas quais as atrocidades humanas evidenciadas encontravam abrigo na interpretação jurídica positivista, cuja objetividade triunfara sobre a subjetividade. Jusnaturalismo e o positivismo estrito mostravam-se incapazes de orientar um Direito justo, nem metafisicamente condicionado e sujeito a voluntarismos interpretativos, tampouco objetivamente fechado e distante do reconhecimento de valores humanos, ao que ascendeu a corrente filosófico-jurídica do pós-positivismo, fulcrada na dignidade da pessoa-humana. O melhor dos dois mundos era imperativo, uma via tertia, cujo equilíbrio pudesse ser maior.

Cabe considerar, pois, que, já em 1940, Miguel Reale confrontava Kelsen (REALE, ps. 118/119), quando, ainda em incipiência, fundava as bases de sua teoria tridimensional do Direito. Logo, sustentava o magnânimo jurista brasileiro que o Direito é mais do que a norma jurídica, esta um caminho, que, porém, para ser percorrido, necessita partir de determinado ponto e ser guiado por certa direção: o ponto de partida da norma é o fato, rumo a determinado valor.

A teoria neoconstitucionalista explicita que a superação histórica do jusnaturalismo e o fracasso político do positivismo possibilitaram reflexões acerca do Direito, sua função social e sua interpretação, buscando, em um pós-positivismo, superar a legalidade estrita com uma leitura moral do Direito, inspirada por uma teoria de justiça. (BARROSO, 2020)

A partir desse marco filosófico, pois, observa-se um novo constitucionalismo pós-guerra, o neoconstitucionalismo,[4] tendo como principais paradigmas teóricos o reconhecimento de força normativa à Constituição, o crescimento da jurisdição constitucional e a nova interpretação constitucional.

O reforço teórico de uma nova dogmática constitucional encontra respaldo em autores como Robert Alexy e Donald Workin, que não só primaram pela normatividade dos princípios constitucionais, como também buscaram métodos interpretativos, argumentativos e de solução de conflitos para sua aplicação in concreto, sobretudo diante de sua vagueza e maleabilidade, principalmente no que tange à efetivação dos direitos fundamentais.

À Constituição, tomada como elemento normativo de interpretação peculiar e alicerce que fundamenta todo o ordenamento jurídico, espraiando-se por todos os ramos do Direito, foi reconhecido o caráter vivo, aperfeiçoador, como nota de um compromisso de um povo organizado sob um território soberano, cuja finalidade é o ser humano e a sociedade.

 

  1. INTERPRETAÇÃO CONSTITUCIONAL E ARGUMENTAÇÃO

É certo, destarte, que texto legal, como sinal linguístico, diverge de “norma”, que é o resultado de sua interpretação, ou seja, aquilo que é revelado. É bem por isso que “interpretamos, em sentido estrito, para compreender; compreender é interpretar em sentido amplo” e assim o fazemos, não necessariamente porque a linguagem jurídica é ambígua e imprecisa, mas porque, “a interpretação e aplicação do direito são uma só operação, de modo que interpretamos para aplicar o direito”. (GRAU, 2006)

Portanto, para que enfim se tenha uma norma de decisão, seja ela legislativa, judicial ou executiva, e assim concretizante, antes se tem a interpretação jurídica. Logo, não existe norma jurídica, senão norma jurídica interpretada. (HABERLE in MENDES; VALE, 2020)

Ocorre, que para além dos cânones hermenêuticos tradicionais e utilizados na velha hermenêutica constitucional, o novo constitucionalismo exige uma nova interpretação constitucional, a dotar a Carta Maior de uma eficácia ótima, considerando-se o seu alto teor político e principiológico, no que a difere das normas jurídicas infraconstitucionais.

Nesse rumo, é lapidar a lição de Inocêncio Mártires Coelho, a corroborar um caráter deontólogico e axiológico da interpretação constitucional, para quem:

(…) a Constituição – enquanto objeto – determina a escolha do método próprio para o seu conhecimento, método esse que, por sua vez, ao ser manejado pelo intérprete, vai criando seus objetos hermenêuticos, num processo aberto e infinito, cuja consistência há de ser controlada submetendo-se os seus resultados a um critério de verdade baseado na justiça da decisão, em cada caso concreto. (COELHO, 2007, ps. 61/62)

 

  1. J. Canotilho (1993, p. 212) aponta que “não é possível descortinar, nas normas constitucionais, um programa-condicional (LUHMANN) reconduzível a um simples esquema subsuntivo”, pois, a abertura de uma norma constitucional significa que ela comporta uma delegação relativa nos órgãos concretizadores, enquanto sua densidade aponta para a maior proximidade da norma constitucional relativamente aos seus efeitos e condições de aplicação.

Para tanto, é notória a contribuição do jurista português que, a partir de um metódo hermenêutico-concretizador, consignou um catálogo tópico dos princípios da interpretação constitucional, instrumentais ao mister exegético, a envolver os princípios da unidade da constituição, do efeito integrador, da máxima efetividade, da justeza, da concordância prática  e da força normativa da Constituição. (CANOTILHO, ps. 226/229)

Tendo dito isso, convém salientar que argumentar é externar, fundamentar a interpretação da norma obtida, principalmente, com fins de persuasão. Isso permite o exercício do contraditório e possibilita um “controle” sobre a atividade jurisdicional. Ademais, uma argumentação bem realizada tende a uma maior pacificação social. Assim, a Constituição, em seu art. 93, inciso IX, estabelece que “todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos, e fundamentadas todas as decisões.”

Mas, além de explicar a decisão, argumentar é justificá-la. Nesse sentido, Neil MacCormick leciona que “na medida em que o Direito é aquilo que se esconde por trás dos pleitos jurídicos ou das acusações e das defesas, ele é algo sujeito à argumentação, às vezes, mas não sempre, conclusiva, mas sempre ao menos persuasiva,”sendo a argumentação uma justificação de uma decisão, que deve observar os fatos estabelecidos (aspecto descritivo) e as normas vigentes (aspecto normativo). (MACCORMICK, 2008, p. 21)

Pari passu, Manuel Atienza (2004, p. 36), ao se atentar ao dúplice sentido do verbete “argumentar”, diferencia as razões que explicam a decisão das que a justificam, pois quando se diz que os juízes são obrigados a motivar suas decisões, tem-se que devem justificá-las. É o que retrata os contextos de descobrimento e justificação das decisões judiciais.

Outrossim, leciona o referido autor que há três concepções ou aproximações básicas aplicáveis à argumentação jurídica: formal, material e pragmática. (ATIENZA, ps. 31/32)

Pela primeira, tem-se o estudo da lógica argumentativa, com certas condições a serem respeitadas para que o raciocínio seja considerado válido, centrando-se nas inferências.

Nesse ponto, convém que se mencione a teoria do discurso, como uma teoria processual sobre a correção das normas, como bem sustenta Robert Alexy (2016, p. 51), cuja filosofia do Direito se baseia no discurso, na correção, na positividade e na institucionalização da razão. Assim, uma norma seria correta se, e apenas se, puder ser resultado de um procedimento determinado e precisamente próprio de um discurso prático racional, o que faz necessário que se trate de um procedimento de argumentação, e não de um procedimento de decisão, enquanto teoria da justiça.

Por sua vez, a concepção material não se foca na inferência, mas nas premissas, ou seja, nas razões para se acreditar em algo ou para realizar ou pretender realizar uma ação, bem como na conclusão.

Finalmente, sob o ponto de vista pragmático, com base na retórica e no caráter dialético, a argumentação transcende ao aspecto individual e passa a ser dotada de um aspecto social, eis que é uma atividade linguística interativa que, nesse ponto, já requer enunciados aceitos para que a atividade seja levada a cabo.

 

  1. CASO CONCRETO: POSICIONAMENTO DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL NO AGRAVO REGIMENTAL NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO COM AGRAVO Nº 727.864

4.1 Contextualização

Trata-se de recurso de agravo, interposto contra decisão que conheceu do agravo para negar seguimento ao recurso extraordinário interposto pelo estado-membro do Paraná – PR, nos autos de ação civil pública ajuizada pelo Ministério Público do estado do Paraná-PR, contra decisão que determinava que o ente político deveria custear serviços hospitalares prestados por instituições privadas em benefício de pacientes do SUS atendidos pelo SAMU nos casos de urgência e de inexistência de leitos na rede pública.

O recurso foi, à unanimidade, improvido pela 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, aos 04/11/2014, uma vez que a decisão agravada se ajustava, fielmente, à diretriz jurisprudencial firmada pelo Supremo Tribunal Federal na matéria.

Em suma, nos termos da ementa,[5] o Pretório Excelso vislumbrou típica hipótese de omissão inconstitucional imputável ao Estado, a transgridir a autoridade da Lei Fundamental Da República, reforçando o papel do Poder Judiciário na implementação de políticas públicas instituídas pela Constituição e não efetivadas pelo Poder Público, dado o caráter Cogente e vinculante das normas constitucionais, inclusive daquelas de conteúdo programático, que veiculam diretrizes de políticas públicas, especialmente na área da saúde.

É patente o maior ônus argumentativo existente e enfrentado pelo STF, tanto pelo fato de ser um órgão colegiado, cujos votos podem dissentirem, quanto por tocar em questões sensíveis ao cerne da própria natureza humana e constituintes do Estado Democrático de Direito.

Adiante, tecer-se-ão comentários e incursões teórico-argumentativas a respeito.

 

4.2 Preliminares

Antes de analisar o mérito, o Pretório Excelso reafirmou a legitimação ativa do Ministério Público (CR, art. 129, III), reconhecendo-lhe como titular da função institucional de “defensor do povo”, para a proteção jurisdicional de direitos revestidos de metaindividualidade, a exemplo do direito fundamental à saúde, tratado no caso sob exame.

Ademais, a Corte Maior reiterou seus precedentes ao ratificar a tese da responsabilidade solidária das pessoas políticas que integram o Estado Federal Brasileiro, no contexto do Sistema Único de Saúde (SUS), a viabilizar o ajuizamento da ação contra um, alguns ou todos os referidos entes estatais.

Observe-se que, afora se tratar de reafirmação de posicionamento do Tribunal Máximo, aqui o Supremo buscou, notadamente, dotar o direito à saúde da máxima eficácia sociojurídica possível, balizando-se, portanto, pelo princípio da interpretação constitucional da máxima efetividade.

A despeito do método tópico-problemático, nota-se uma incursão maior pelo método hermenêutico-concretizador, visivelmente voltado à solução do caso concreto e que, ao contrário do método anteriormente citado, atua com o primado do texto constitucional sobre o problema, como bem já orientava Konrad Hesse.

E é este autor que preconiza as lições mestras do julgado em questão, quando, no embate entre o “ser” e o “deve ser,” argumenta pela força normativa da Constituição e pela necessidade de que se observe a “vontade de Constituição”, asseverando que “a resposta à indagação sobre se o futuro do nosso Estado é uma questão de poder ou um problema jurídico depende da preservação e do fortalecimento da força normativa da Constituição” e assim, da vontade de Constituição. Essa tarefa foi confiada a todos nós. (HESSE. 1991, p. 32)

Por isso, dentro da realidade fático-jurídica hábil, é dever estatal concretizar os direitos fundamentais na maior medida possível, tal qual assumido na Constituição da República, que não contém sugestões, mas normas cogentes.

O que corrobora a força normativa da Constituição, assim, como vontade popular consubstanciada em rara decisão política, é vivê-la, praticá-la, concretizá-la, sejam os Poderes constituídos, seja o povo, titular do poder de alterá-la legitimamente.

Observa-se, nessa quadra, praticamente um caráter descritivo, próprio das regras, a demandar um menor esforço argumentativo, o que não ocorre em relação aos princípios.

 

4.3 Mérito

Isto posto, o cerne do mérito recursal concentrou-se na apreciação da possibilidade de o Poder Judiciário, sem malferir o postulado da separação de poderes, determinar ao Estado, quando injustamente omisso no adimplemento de políticas públicas previstas na Constituição, que assegure concretamente à coletividade em geral, o acesso e o gozo de direitos afetados pela inexecução governamental de deveres jurídico-constitucionais.

Aqui, evidentemente, os aspectos material e pragmático se sobrelevarão na justificação da decisão judicial.

De tal modo, o STF, não obstante reconheça que não se inclui, ordinariamente, no âmbito das funções institucionais do Poder Judiciário a atribuição de formular e de implementar políticas públicas, considerou a dimensão política da jurisdição constitucional, in concreto, para dotar de eficácia os direitos fundamentais de segunda geração, diante da inércia estatal em cumprir com as políticas públicas previstas na Carta Basilar (violação negativa).

Nesse ponto, convém esclarecer a utilização implícita do princípio da conformidade funcional ou da justeza, segundo o qual o intérprete não pode alterar a repartição de funções constitucionalmente estabelecida  (CANOTILHO, p. 228). Orienta, pois, a própria intelecção adequada do princípio da separação dos poderes,

Em sequência, o Supremo manteve o acórdão da Corte Local pelos seus próprios fundamentos, dentre os quais, foram ponderados os valores vida e patrimônio, prevalecendo, no caso concreto, as medidas que protegem a vida humana e sua dignidade.

Nesse giro, caminha-se ao encontro de Alexy (2016, p. 19), para quem “toda colisão entre princípios pode expressar-se como uma colisão entre valores e vice-versa” e é exatamente o ponto fulcral da argumentação jurídica em questão, que depende da existência, e do alcance, do controle racional de tais valorações.

É que, sendo os princípios verdadeiros mandados de otimização, dotados de alta generalidade e realizáveis nas medidas fático-jurídicas possíveis, eventuais colisões entre os mesmos deverão ser aferidas no caso concreto, sendo que “um direito vale moralmente se pode ser fundamentado frente a cada um que participe em uma justificação racional”, pois a validez dos direitos humanos é a sua própria existência. (ALEXY. 2016, p. 61)

Nessa ordem de ideias, o problema colocado é a mensuração da dimensão atribuída in concreto a cada um dos princípios, sobretudo levando-se em conta sua carga axiológica, para solucionar a tensão existente entre sua contraposição, já que não se tarifam valores prima facie. É o ponto mais débil para muitos críticos do pós-positivismo, no sentido de se possibilitar voluntarismos infinitos. Contudo, em contraponto, é fato que os limites do raciocínio são os fins que o próprio texto constitucional persegue.

Ronald Dworkin (2002, p. 184), por meio do juiz ideal Hércules, tratou de diferenciar os princípios das regras jurídicas, posto que aqueles possuem uma dimensão de peso, cujo conflito não se resolve no critério do tudo ou nada.

Já para Alexy (2016, p. 17), o ponto nodal é que existem distintos graus de cumprimento entre as normas jurídicas, pois se se exige a maior medida possível de cumprimento em relação com as possibilidades jurídicas e fáticas, trata-se de um princípio, enquanto que se apenas se exige uma determinada medida de cumprimento, tem-se uma regra.

Em complemento, convém registrar o que Humberto Ávila (2005, p. 64) atenta: os princípios apontam um fim, são normas do que deve ser, dizendo respeito a um estado ideal de coisas.

Principalmente no caso em tela, que trata sobre direitos fundamentais, é notória a sua implicação moral e o sustentáculo metafísico dos mesmos, calcado antes de tudo no fundamento da dignidade da pessoa humana, mas, não aquela metafísica de base divina do jusnaturalismo primitivo e sim um conceito revisitado, tal qual defende Habermas (apud ALEXY, 2016, p. 72), de uma metafísica construtiva, racional e universal.

Logo, trata-se de uma questão de busca pela decisão mais correta, racionalmente fundamentada, nível a que se soma às normas jurídicas, no modelo de argumentação jurídica de Alexy (2016, p 20). Não se busca uma única resposta correta para o caso, mas aquela que se demonstre mais justificável, ante a fluidez de um ordenamento jurídico aberto.

E essa resposta tanto o mais difícil será a depender do que se está a analisar. Nesse rumo, fala-se em casos fáceis, difíceis e trágicos. MacCormick (apud ATIENZA, 2007, p. 77), considera que, nos casos fáceis, a justificação judicial é reduzida basicamente à lógica dedutiva (justificação de primeiro nível). Nos casos difíceis deve se acrescentar a essa uma de segundo nível regida pelos critérios de universalidade, consistência, coerência e adequação das consequências, basicamente elementos da concepção material argumentativa usada por Atienza, que menciona uma terceira categoria de casos:

 

Porém, além de casos fáceis e casos difíceis (e casos intermediários: que, em uma primeira aproximação parecem difíceis, mas quando estudados em profundidade são fáceis, no sentido de que têm uma resposta indiscutível), há casos trágicos: aqueles nos quais não é que haja mais de uma resposta correta, mas sim que não há qualquer resposta, nos quais é impossível fazer justiça através do Direito. (…) Os casos trágicos não envolvem uma rendição da razão, da argumentação, mas mostram seus limites: os limites da racionalidade, da argumentação jurídica. (…) Limites, no sentido de que o juiz – o jurista – que se depara com um caso trágico tem de reconhecer que a técnica jurídica, o uso dos instrumentos da argumentação jurídica e algumas outras coisas, não lhe permitem resolver uma situação de forma satisfatória. (…) Implica que qualquer solução exige um sacrifício de valor fundamental (…).(2007, p. 161) [Itálico não original]

 

Daí que “não é possível ter um Direito perfeitamente justo no contexto de sociedades tão justas como as nossas,” mas que a consciência do “trágico” deve ser virtude de quem julga, a caminho da mudança social. O que se busca, em geral, é uma decisão mais justa e correta possível frente às condições fático-jurídicas in concreto. (ATIENZA, p. 163)

Dessa forma, no caso, o Pretório Excelso assentou que o dever estatal de atribuir efetividade aos direitos fundamentais qualifica-se como expressiva limitação à discricionariedade administrativa, ao que a intervenção jurisdicional na espécie seria plenamente legítima.

Vê-se, portanto, uma postura proativa do Poder Judiciário, em que, a despeito da pecha adquirida, e em tempos de questionamento às instituições públicas, representa um legítimo ativismo judicial, pois nada mais faz do que cumprir com os compromissos adrede assumidos na Carta Basilar, efetivando-se em concreto direitos fundamentais, sob pena de uma melindrosa ratificação à omissão inconstitucional, o que, inclusive por muito tempo se observou na doutrina do mandado injunção.

Aqui, novamente, aplicam-se os princípios da interpretação constitucional da força normativa e justeza e, mais do que eficácia jurídica, busca-se um discurso que fundamente uma eficácia social in concreto. Entrementes, afasta-se o argumento da microjustiça míope no caso concreto, ao largo das demandas gerais e do planejamento da Administração, já que sequer a lei pode afastar alguma lesão ou ameaça de lesão a direito de apreciação do Poder Judiciário (art. 5º, XXXV, CR), o que, evidentemente precisa ser sopesado com as demais normas constitucionais, à míngua uma solução apriorística e de enfraquecimento da CR.

Por conseguinte, diante das alegações do estado-membro, sobre o custo dos direitos e a “reserva do possível”, sem desconhecer as idiossincrasias e cenários de escassez orçamentária dos entes públicos, a Corte registrou que comprovada, objetivamente, a alegação de incapacidade econômico-financeira da pessoa estatal, desta não se poderá afastar. Contudo, consignou que ao Poder Público não se admite criar óbice artificial a revelar a ilegitimidade, a arbitrariedade e a censura no vergaste ao mínimo existencial ínsito à dignidade da pessoa humana, vedando-se a chancela da reserva do possível abstrata e dolosamente como álibi à inefetividade das normas e obrigações constitucionais.

Com olhar no princípio da solidariedade e do que grava a Carta Maior, diante de um estado de tensão dialética e de um embate valorativo entre a garantia do direito à vida/saúde e um interesse público secundário (escassez de recursos financeiros), a Suprema Corte Brasileira vislumbrou uma escolha trágica a ser feita, que tendeu, no caso sob apreço, à prevalência do primeiro. Frisou-se que o direito público subjetivo à saúde representa prerrogativa jurídica indisponível assegurada à generalidade das pessoas pela própria Constituição da República, cujo caráter programático da norma constitucional não a transforma em mera promessa constitucional leviana.

Mais uma vez, retorna-se ao já mencionado em Dworkin e Alexy, a respeito da tensão de valores. Acresça-se o princípio da proporcionalidade, cujo preenchimento das dimensões de adequação, necessidade e proporcionalidade em sentido estrito descortinam o embaraço axiológico experimentado.

Também a se considerar a concordância prática e a ponderação nesse desiderato, que para Humberto Ávila (2016, p. 88), assim como a proporcionalidade, dentre outros, consubstanciam postulados, metanormas, ou normas de segundo grau, por estabelecerem a estrutura de aplicação de outras normas: princípios e regras.

Assim, asseverou a Corte Máxima que se torna essencial que, além de previsto o direito à saúde na Constituição, seja ele integralmente respeitado e garantido, o que representa verdadeiro fator de limitação da discricionariedade político-administrativa do Poder Público.

Antes de ser entendida como um poder, por conseguinte, a discricionariedade administrativa é um dever do administrador de alcançar a finalidade prevista no ordenamento jurídico, inclusive sob pena de desvio de poder. (MELLO, 2012, p. 15).

Logo, se se afirma que cabe ao Judiciário controlar a constitucionalidade dos atos estatais, em verdade, não se vulnera o princípio da separação dos poderes, mas sim o ratifica, em correção à inércia institucional que se afasta dos deveres constitucionalmente acometidos.

Sinalizou, a nobre Corte, para o combate à passividade judicial inconstitucional, sob pena de se chancelar e fomentar um comportamento estatal nocivo, perigoso e ilegítimo, muitas vezes ao alvedrio deliberado dos poderes públicos, uma das causas geradoras dos processos informais de mudança da Constituição e manipulação do texto constitucional para fins escusos, o que levaria ao fenômeno da erosão da consciência constitucional.

Nota-se que se busca distanciar de uma mera Constituição simbólica, cuja ausência de concretização normativa seja institucionalizada (NEVES, 1994, p. 155), ou mesmo de uma Constituição nominal, que não corresponda à realidade, nos dizeres de Karl Loewenstein (1979, p. 219).

Ademais, o Supremo baseou sua decisão no princípio da proibição do retrocesso, que obriga a abstenção de se atentar contra a realização dada ao direito social e que também nos levaria ao postulado da proibição da proteção deficiente dos direitos fundamentais.

 

5 Breves considerações atinentes ao tema e relacionadas com a atual situação brasileira: pandemia – COVID-19

Levando-se em conta tudo quanto fora exposto, na atual situação vivenciada, decorrente da pandemia do COVID-19, a exemplificar o ponto crítico a que chegamos na pós-modernidade da sociedade do risco, algumas reflexões, relacionadas ao tema, eis que conexo ao julgado analisado, para além dele, não poderiam deixar de ser aqui vertidas.

A primeira delas diz respeito à Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental nº 671, protocolada aos 31/03/2020, com pedido de liminar ajuizada pelo Partido Socialismo e Liberdade – PSOL, em que se busca evitar e reparar lesão a preceitos fundamentais correspondentes ao direito à saúde, à vida, à igualdade, bem como ao valor fundamental da dignidade da pessoa humana e, ainda, ao propósito dos constituintes de construir uma sociedade justa e igualitária.

Aduz, ainda, o peticionante que as diversas medidas adotadas pelo Poder Publico revelam-se insuficientes para resguardar os preceitos fundamentais que se busca proteger e requer, assim, a concessão de liminar para determinar aos entes políticos que, nas respectivas esferas administrativas e ante eventual escassez de bens e serviços necessários ao atendimento do interesse publico, em especial leitos em unidades de tratamento intensivo (UTI), executem a requisição administrativa da totalidade dos bens e serviços de pessoas jurídicas e físicas relativos a assistência a saúde prestados em regime privado, de forma a que o Poder Publico passe a regular imediatamente a utilização dos leitos de UTI, mesmo nas redes privadas, para todo doente que dele necessite, enquanto perdurar a necessidade por conta da pandemia.

 

Aos 03 (três) de abril de 2020, o Ministro Ricardo Lewandowski, negou seguimento à referida ação de controle de constitucionalidade abstrato e o fez basicamente por entender não constituir meio processual hábil para acolher a pretensão nela veiculada, com respaldo sobretudo, do princípio da separação dos poderes. Indiretamente observa-se uma possível fundamentação pela ausência de interesse de agir, tal qual obrada nas ações judiciais para obtenção de benefícios previdenciários,[6] haja vista a menção à legislação infraconstitucional reguladora das requisições de bens particulares sob discricionariedade da administração. Registre-se que da decisão foi aviado o agravo regimental, não obstante cabe ressaltar que nesse ponto, ainda que não invocado pelo decisum, há precedente aplicável.[7]

É imperioso mencionar que a discricionariedade da Administração Pública não pode ser entendida como expressão similar à chamada discricionariedade judicial, ainda que este subscritor não abone esta última, uma vez que discricionariedade demanda liberdade de escolha mediante conveniência e oportunidade, o que certamente não se aplica à atividade jurisdicional.

Noutro giro, ainda que o objeto do presente não ostente qualquer cunho político, é de se considerar que a argumentação não é apenas uma atividade destinada aos operadores do Direito em geral. Há também a argumentação legislativa e executiva, cada qual dotada de suas particularidades, haja vista o objeto distinto sobre o qual se debruçam.

De toda forma, mutatis mutandis, a questão das escolhas vista alhures aqui se aplica, sejam elas fáceis, difíceis ou trágicas. Quanto a esta última, é notável que a vivemos no presente átimo, diante de um desafio sem precedentes no Estado Democrático de Direito.

É dizer: uma escolha em um ou em outro sentido implica o sacrifício de um direito fundamental. A dignidade da pessoa humana, os valores sociais do trabalho e da livre iniciativa, o direito à saúde, à própria vida e ao trabalho, talvez nunca sofreram debates tão comezinhos e, provavelmente, jamais estiveram em tamanho estado de tensão principiológica.

Some-se a isso uma sociedade consternada, impaciente, dividida, receosa, insegura, cujos ideais políticos, ideológicos e filosóficos, quisera já multifacetados, hoje, em sua maioria, massivamente bipartidos, por vezes erroneamente preconcebidos de modo idiossincrático, intolerante e maniqueísta. Tem-se um conjunto de predicados indesejados e que precisam ser idealmente conduzidos, sob pena de institucionalização de comportamentos bárbaros e inadmissíveis.

Frise-se, ainda, que apenas do sítio do Supremo Tribunal Federal, no momento, a partir do Painel de Ações COVID-19,[8] tem-se um total número de 1641 (mil seiscentas e quarenta e uma) ações judiciais e 1450 (mil quatrocentas e cinquenta) decisões pela Corte emitidas.

Para longe de se resolver o imbróglio nacional com palavras românticas, até porque o Direito é mais do que argumentação, fato é que é nesse ambiente de crise socioeconômica que o corpo social, as instituições, os agentes públicos e os Poderes devem agir, de forma que incumbe ao núcleo desses últimos tomar decisões sensíveis, a corporificar escolhas trágicas, afetando direitos fundamentais de grande parte da população ou toda ela. O Executivo sobretudo, pela função que lhe é própria.

Aqui se poderia questionar sobre o papel majoritário dos agentes políticos, por outro lado, de um dever contramajoritário do Tribunal Constitucional, a depender das decisões tomadas. No caso brasileiro, principalmente, o momento político agrava as condições de um diálogo necessário entre os Poderes, rediscutindo-se o papel de cada um diuturnamente. Em um cenário de crise, sobretudo inédito, decisões sensíveis e excessos eventualmente cometidos, ainda que bem intencionados, são passíveis à crítica geral e à conformação devida em um Estado Democrático de Direito, não à margem de eventual responsabilização.

Também seria de se pensar, diante da pluralidade de concepções em relação ao caso concreto, na hipótese de típico desacordo moral razoável, quando a solução, em casos tais, precisa ser a mais adequada à fundamentação democrática do estado constitucional, isto é, não apenas aquela que dê primazia à pessoa humana, fundada no princípio pro homine, mas a que tenha em conta o valor igual de cada pessoa em dignidade, com inspiração nitidamente kantiana.

Ainda, sobre a questão, é salutar que se pondere que, à mercê de um direito constitucional à boa Administração Pública, a discricionariedade administrativa, no Estado Democrático, encontra-se vinculada ao direito fundamental à boa administração pública. (FREITAS, 2007, p. 125)

 

Cumpre, pois, que se aja social e dialeticamente, em modo interfederativo e interinstitucional, na busca de uma unidade e de um equilíbrio, de condutas razoáveis e racionais, pautadas pelo Direito e pela Moral, o que significa colocar o ser humano e a coletividade acima de questões alheias. Mister se faz, assim, a prática de uma ductibilidade constitucional, nos termos consagrados por Gustavo Zagrebelsky (2016, p. 15), que se paute pela coexistência de valores e princípios, de uma sociedade pluralista, que prime pela harmonia, pela tolerância, pela coexistência e pelo compromisso.

Evidentemente que se trata de um discurso óbvio e aparentemente ingênuo, mas, muitas vezes, cuja prática o relega à mera retórica e fomenta um velado retorno à barbárie, diante de atitudes desagregadoras disseminadas por toda parte.

E é aqui, outrossim, que a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição cada vez mais opera, pois “na democracia liberal o cidadão é intérprete da Constituição”, tal qual consagrara Peter Häberle (2002, p. 37), mas que sua atividade esteja a respaldar a força normativa da Constituição.

Nesse cenário, sobretudo, a argumentação patente e necessariamente deve ser obrada com esmero significativo, tal qual mencionado anteriormente, a fim de que sejam justificadas a contento as medidas oficialmente tomadas em benefício da população.

 

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Buscou-se, no presente, dotar a teoria de uma pragmaticidade, papel do Direito e do seu estudioso, muito além da crítica pela mera crítica, mas a partir de sua utilidade em prol da transformação social e da colaboração com a comunidade jurídica.

Isto posto, ao cabo, considera-se, pois, que não há norma, senão norma interpretada. Quem a vive a interpreta. Quem a opera e concretiza o direito, deve justificá-la.

Do jusnaturalismo, passando pelo positivismo, tratando do pós-positivismo, açambarcando o não positivismo, a interpretação faz parte da compreensão da norma, partindo-se para a sua justificação.

Um apego irrestrito ao positivismo engessaria a concretização dos direitos, ao passo que o jusnaturalismo tomado de forma isolada conduziria a um possível voluntarismo arbitrário, que acaba, outrossim, por se afastar do ideal de justiça. O equilíbrio, portanto, deve ser a linha mestra, a ser demonstrado argumentativamente na tomada de decisão.

Os limites da interpretação, sobretudo das normas mais maleáveis, existem no próprio ordenamento jurídico e sua abertura é necessária, não apenas salutar, ao obstaculizar um anacronismo sociojurídico, isto é, uma falta de correlação adequada entre o “ser” e o “dever ser”, ao longo do tempo.

Assim, a argumentação, operando após a interpretação, é gênero, o modo de explicar e justificar a tomada de decisão, com um mínimo de intento persuasivo, do qual a argumentação jurídica possui basicamente elementos formais, materiais e pragmáticos a serem observados. Mais do que isso, na atualidade, outrossim, a argumentação ostenta a nota da transparência na atuação que soi extravasar o caráter individual, sobretudo, no exercício das funções dos prepostos estatais.

O Supremo Tribunal Federal ao argumentar suas decisões tomadas em casos difíceis e trágicos, que abordam tensões entre princípios e valores, portanto com cargas deontológicas e axiológicas cujas dimensões de peso divergem, sobretudo na seara dos direitos fundamentais, tal qual no ARE 727864, pauta-se por critérios morais abrigados pelo ordenamento jurídico, do que não se afasta do Direito, sopesando-os no caso concreto, à luz de metanormas que orientam tal solução, a exemplo da ponderação e da proporcionalidade.

No caso concreto, que envolvia o custeio, pelo estado, de serviços hospitalares prestados por instituições privadas em benefício de pacientes do SUS atendidos pelo SAMU nos casos de urgência e de inexistência de leitos na rede pública, o STF decidiu pela preponderância, in concreto, do direito à saúde em detrimento do direito patrimonial.

Em tempos de pandemia, cujas decisões em casos difíceis e trágicos se encontram mais presentes do que em ambientes de normalidade, tal precedente, diante do sistema adotado pelo novo CPC/15, possui grande relevância, haja vista o dever legal dos tribunais de uniformizar sua jurisprudência e mantê-la estável, íntegra e coerente.

A macrojustiça deve ser buscada por meio de decisões argumentativamente forte o bastantes, transparentes, sabendo-se do preço das escolhas trágicas e demonstrando-se, em concreto, que tal sacrifício era justificável, razoável e inarredável.

Portanto, para além da argumentação jurídica, a justificação da tomada de decisões no atual cenário deve primar pela racionalidade e pela segurança jurídica, visando ao cumprimento dos objetivos e princípios constitucionalmente compromissados, orientada, em essência, pela dignidade da pessoa humana, fundamento e fim do Estado Democrático de Direito, possibilitando, assim, o exercício de um controle social e institucional adequados.

 

REFERÊNCIAS

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[1]Especialista em Direitos Difusos e Coletivos; Especialista em Direito Processual Civil; Especialista em Direito Constitucional Aplicado; Aluno regularmente inscrito no programa de Doutorado da Universidade de Buenos Aires; Analista; Advogado; Professor do Centro Universitário UniCathedral.

[2]Cabe considerar que para Heidegger (p. 35), “la metafisica es una transinterrogacion allende el ente, para reconquistarlo después, conceptualmente, em cuanto tal y em total” (A metafísica é um questionamento para além do ente, para reconquistá-lo mais tarde, conceitualmente, como tal e em sua totalidade”).

[3]Nesse sentido, é valido frisar que ainda hoje o CPC/15 estatui, no caput, do seu art. 140, que “o juiz não se exime de decidir sob a alegação de lacuna ou obscuridade do ordenamento jurídico”.

[4]Obviamente que há doutrina crítica em contrário, como o faz Elival da Silva Ramos (2015, p. 294) que diz se tratar de “uma elaboração imersa em tamanhas fragilidades” (…).

[5]ARE 727864 AgR, Relator(a): Min. Celso de Mello, Segunda Turma, julgado em 04/11/2014, acórdão eletrônico DJe-223 – Divulg 12-11-2014 Public 13-11-2014.

[6]RE 631240, Relator(a): Min. Roberto Barroso, Tribunal Pleno, julgado em 03/09/2014, Acórdão Eletrônico Repercussão Geral – Mérito DJe-220 DIVULG 07-11-2014 PUBLIC 10-11-2014.

[7]MS 25295, Relator: Min. Joaquim Barbosa, Tribunal Pleno, julgado em 20/04/2005, Dje-117 – Divulg 04-10-2007 – Public 05-10-2007 – DJ 05-10-2007.

[8]Disponível em: https://transparencia.stf.jus.br/extensions/app_processo_covid19/index.html. Acesso em: 05 maio 2020.

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