Interpretação do caput do artigo 304 do CPC/15

Resumo: O presente artigo científico tem como tema a interpretação do caput do art. 304 do Código de Processo Civil de 2015, dispositivo que trata da estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente na ausência de interposição de recurso, analisando sua interpretação quanto aos efeitos (interpretação declarativa, restritiva e extensiva), à fonte (interpretação autentica, doutrinária e jurisprudencial) e à natureza (interpretação literal, lógico-sistemática, histórica e teleológica), considerando a dúvida se o recurso é verdadeiramente o único meio de se evitar a estabilização.

Palavras-chave: Caput do art. 304 do CPC/15. Interpretação. Estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente. Recurso.

1. INTRODUÇÃO

O Código de Processo Civil de 2015 (CPC/15) trás consigo o desafio de reinaugurar o sistema processual civil brasileiro, prevendo inovações e atualizações. Muito do texto do CPC/15 é completamente novo, exigindo dos profissionais do Direito o exercício cuidadoso da interpretação para que deem à incipiente legislação a mais adequada e uniforme aplicação possível.

Nas palavras de Betioli (1989, p. 209), “‘Interpretar’ é fixar o verdadeiro sentido e o alcance de uma norma jurídica”. Com efeito, somente com a interpretação é que se dá concretude às normas.

Atenta à necessidade dos operadores do Direito de interpretar o CPC/15, esta pesquisa tem por objetivo analisar a interpretação do caput do art. 304 do CPC/15, considerando a parca literatura especializada ora existente e a dúvida se o recurso é verdadeiramente o único meio de impedir a estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, tal qual sugere uma primeira leitura do novo dispositivo legal.

2. A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS JURÍDICA

Receoso da falibilidade humana, Carlos Maximiliano (2011, p. 8) adverte que “Toda lei é obra humana e aplicada por homens; portanto imperfeita na forma e no fundo, e dará duvidosos resultados práticos, se não verificarem, com esmero, o sentido e o alcance das suas prescrições”.

Assim, antes de propriamente estudar o caput do art. 304 do CPC/15, objetivo geral desta pesquisa, convém estudar lições de introdução ao estudo do Direito sobre a interpretação das normas jurídicas, abordando alguns dos seus mais importantes tópicos de acordo com classificação adotada pela literatura especializada, a saber: a interpretação quanto ao efeito; a interpretação quanto à fonte; e a interpretação quanto à natureza.

2.1. INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS QUANTO AO EFEITO

Identificam-se, na busca do verdadeiro sentido e alcance das normas jurídicas, três diferentes formas de interpretação quanto ao seu efeito (ou resultado), quais sejam: interpretação declarativa, interpretação restritiva e interpretação extensiva.

Ao ensinar a espécie de interpretação denominada declarativa, o professor emérito da Universidade Federal de Juiz de Fora, Paulo Nader, anota:

“Nem sempre o legislador bem se utiliza dos vocábulos, ao compor os atos legislativos. Muitas vezes se expressa mal, utilizando com impropriedade os termos. Quando dosa as palavras com adequação aos significados que deseja imprimir na lei, falamos que a interpretação é declarativa. O intérprete chega à constatação de que as palavras expressam, com medida exata, o espírito da lei” (NADER, 2014, p. 264).

Com efeito, tem-se a interpretação declarativa quando o texto corresponde exatamente ao espírito da norma. Contudo, nem sempre o legislador consegue com que essa correspondência entre texto e espírito da norma ocorra com perfeição, surgindo, pois, a necessidade de aplicação das duas outras formas de interpretação, a restritiva e a extensiva.

Sobre a interpretação restritiva, uma das formas de superar a impossibilidade de aplicação da interpretação declarativa, Nader (2014, p. 265) ensina:

“Quando ocorre, porém, que o legislador é infeliz ao redigir o ato normativo, dizendo mais do que queria dizer, a interpretação é restritiva, pois o intérprete elimina a amplitude das palavras. Exemplo: a lei diz descendente, quando na realidade queria dizer filho”.

Ou seja, tem-se a interpretação restritiva quando o legislador diz mais do que realmente desejava dizer, fazendo com que o interprete tenha que reduzir a amplitude de suas palavras.

Mas o inverso também é possível. A interpretação extensiva, também denominada ampliativa,

“É a hipótese contrária à anterior. O intérprete constata que o legislador utilizou-se com impropriedade dos termos, dizendo menos do que queria afirmar. Ocorrendo tal hipótese, o intérprete alargará o campo de incidência da norma, em relação aos seus termos” (NADER, 2014, p. 265).

Um exemplo amplamente reconhecido pela doutrina e pelos tribunais de aplicação da interpretação extensiva é o do art. 535 do Código de Processo Civil de 1973 – CPC/73. Com uma interpretação apenas declarativa do texto do art. 535 do CPC/73 somente caberia o recurso de embargos de declaração em face de sentença ou acórdão, não se aplicando às demais decisões judiciais, contudo, doutrina e jurisprudência eram no sentido de admitir cabimento de embargos de declaração em face de qualquer decisão judicial, o que, inclusive, veio a ser expresso no art. 1.022 do CPC/15.

Ao comentar sobre estas modalidades de interpretação das normas jurídicas, Miguel Reale pontua que

“[…] o que se chama interpretação extensiva é exatamente o resultado do trabalho criador do intérprete, ao acrescer algo de novo àquilo que, a rigor, a lei deveria normalmente enunciar, à vista das novas circunstâncias, quando a elasticidade do texto normativo comportar o acréscimo. Desse modo, graças a um trabalho de extensão, revela-se algo de implícito na significação do preceito, sem quebra de sua estrutura. Pela interpretação restritiva, dá-se o contrário, porque o intérprete, limitando a incidência da norma, impede que a mesma produza efeitos danosos” (REALE, 2002, p. 278).

Tem-se, portanto, que nem sempre o legislador consegue com que o texto da norma expresse seu real sentido, isto é, por vez o legislador falha ao redigir a norma, dizendo mais ou dizendo menos do que aquilo que realmente desejava dizer, exigindo do interprete a missão de, respectivamente, restringir ou ampliar o alcance do texto da norma a fim de que se possa aferir o seu espírito e assim determinar seu efeito em um determinado caso concreto.

2.2. A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS QUANTO À FONTE

A interpretação das normas jurídicas quanto à fonte (ou origem) revela três espécies, quais sejam: interpretação autêntica, interpretação doutrinária e interpretação judicial.

     A interpretação autêntica,

“Também denominada legislativa, […] é a que emana do próprio órgão competente para a edição do ato interpretado. Assim, se este emanou do Executivo – decreto ou medida provisória – interpretação autêntica será a que for objeto de um novo decreto ou medida provisória com esclarecimentos sobre o conteúdo do ato anterior. Em igual sentido se o ato interpretado for uma lei, quando então caberá ao Legislativo a exegese” (NADER, 2014. p. 265).

     Seguindo com o estudo das espécies de interpretação das normas quanto à fonte, cabe ponderar que

A interpretação se diz doutrinária quando localizada em obras científicas, quase sempre tratados especializados, encontrando-se também em pareceres de jurisconsultos e lições de mestres do Direito (NADER, 2014. p. 265).

Na hipótese de um determinado membro do Poder que deu origem a uma lei ou ato normativo vir a publicar considerações sobre a norma, da qual participara do processo legislativo, não se verifica propriamente a ocorrência da interpretação autêntica, aproximando-se esta hipótese mais da interpretação doutrinária que da autêntica. Com efeito, somente uma norma que tenha passado pelo devido processo legislativo terá a natureza e peso de interpretação autêntica.

Com efeito, embora as considerações sobre uma determinada norma, quando publicadas por alguém que tenha participado de sua elaboração, tenha natural destaque, há que se ponderar que

“A lei não fica, entretanto, presa à personalidade do legislador que participou, com seu voto ou com a sua inteligência, na sua elaboração. Uma vez promulgada a lei, ela se desprende das matrizes do legislador para passar a ter vida própria. O fato de Rui Barbosa ter feito parte do Governo Provisório projetando a Constituição de 1891, não lhe dava nenhuma autoridade jurídica para proferir “interpretações autênticas”. O valor de sua interpretação decorria apenas de sua cultura jurídica e da procedência ou não de seus juízos” (REALE, 2002, p. 143).

Por fim, resta tratar da interpretação judicial, também denominada de jurisprudencial, de autoria dos juízes e tribunais. Assim como é próprio de toda mera interpretação, “Na exegese da norma o juiz deve apenas traduzir o sentido e o alcance nela contidos, devendo dar aos textos interpretação atualizadora, vedado-lhe, porém, substituir o critério do legislador pelo seu próprio” (NADER, 2014, p. 265).

Tem-se, portanto, que, quanto à fonte, as formas de interpretação das normas jurídicas se limitam à interpretação dada pelo Poder autor da norma, pelos estudiosos do Direito e pelos juízes e tribunais no exercício da função jurisdicional.

2.3. A INTERPRETAÇÃO DAS NORMAS QUANTO À NATUREZA

No estudo da interpretação das normas jurídicas quanto à natureza não se fala propriamente em “formas” de interpretação, assim como acontece no estudo da interpretação quanto ao efeito e à fonte, mas sim em “elementos” de interpretação. A diferença é que, quando se fala das espécies de interpretação quanto ao efeito e à fonte, não se cogita a atuação conjunta das espécies, por exemplo, não é possível a um só tempo aplicar a interpretação extensiva e a restritiva, mas na interpretação quanto à natureza é possível atuação dos diferentes elementos a um só tempo.

O estudo da interpretação das normas quanto à natureza diz de quatro elementos diferentes de interpretação, a saber: interpretação literal (ou gramatical), interpretação lógico-sistemática, interpretação histórica e interpretação teleológica.

A interpretação gramatical “[…] compõe-se da análise do valor semântico das palavras empregadas no texto, da sintaxe, da pontuação etc.” (NADER, 2014, p. 270).

Já na interpretação lógico-sistemática,

“É preciso, pois, interpretar as leis segundo seus valores linguísticos, mas sempre situando-as no conjunto do sistema. Esse trabalho de compreensão de um preceito, em sua correlação com todos os que com ele se articulam logicamente, denomina-se interpretação lógico-sistemática. Levados pelo apego ao texto, alguns mestres da Escola da Exegese sustentavam ser necessário distinguir a interpretação lógica da interpretação sistemática. A primeira cuidaria, apenas, do valor lógico das frases, abstração feita da posição distribuída a cada grupo de normas no conjunto geral do ordenamento jurídico. A interpretação sistemática viria num segundo momento, ou melhor, num terceiro momento, para elucidar dúvidas possivelmente ainda existentes, após a exegese gramatical e lógica. Com o decorrer do tempo, porém, foi se verificando a impossibilidade de separar essas duas ordens de pesquisas, a lógica e a sistemática. Interpretar logicamente um texto de Direito é situá-lo ao mesmo tempo no sistema geral do ordenamento jurídico” (REALE, 2002, p. 266).

Contudo,

“Muitas vezes o conhecimento gramatical e lógico do texto legislativo não é suficiente à compreensão do espírito da lei, sendo necessário o recurso à pesquisa do elemento histórico. Como força viva que acompanha as mudanças sociais, o Direito se renova, ora aperfeiçoando os institutos vigentes, ora criando outros, para atender o desafio dos novos tempos. […] O Direito atual, manifesto em leis, códigos e costumes, é um prolongamento do Direito antigo. A evolução da ciência jurídica nunca se fez mediante saltos, mas através de conquistas graduais, que acompanharam a evolução cultural registrada em cada época” (NADER, 2014, p. 273).

Mas, mesmo após o uso da interpretação gramatical, da lógico-sistemática e da histórica o trabalho do interprete não estará acabado, ainda lhe faltando aplicar a interpretação teleológica, que, conforme a precisa lição de Betioli (1989, p. 213), “busca o fim que a norma jurídica tenciona servir ou tutela”.

De acordo com Reale (2002, p. 276):

“A compreensão finalística da lei, ou seja, a interpretação teleológica veio se afirmando, desde as contribuições fundamentais de Rudolf von Jhering, sobretudo em sua obra O Fim no Direito. Atualmente, porém, após os estudos de teoria do valor e da cultura, dispomos de conhecimento bem mais seguro sobre a estrutura das regras de direito, sobre o papel que o valor nela representa: o fim, que Jhering reduzia a uma forma de interesse, é visto antes como o sentido do valor reconhecido racionalmente enquanto motivo determinante da ação. Fim da lei é sempre um valor, cuja preservação ou atualização o legislador teve em vista garantir, armando-o de sanções, assim como também pode ser fim da lei impedir que ocorra um desvalor.”

Calos Maximiliano, por sua vez, admitindo a importância da interpretação teleológica, assim resume a atividade do interprete das normas jurídicas:

“Ele examina o texto em si, o seu sentido, o significado de cada vocábulo. Faz depois obra de conjunto: compara-a com outros dispositivos da mesma lei, e com os de leis diversas, do país ou de fora. Inquire qual o fim da inclusão da regra no texto, e examina este tendo em vista o objetivo da lei toda e do Direito em geral. Determina por este processo o alcance da norma jurídica e assim realiza, de modo completo, a obra moderna do hermeneuta” (MAXIMILIANO, 2011, p. 8).

Percebe-se, pois, que no complexo processo de interpretação das normas jurídicas o intérprete não está limitado ao sentido literal do texto da norma, como alguns leigos poderiam supor, devendo buscar uma interpretação que, a um só tempo, revele harmonia do dispositivo específico com as demais normas do ordenamento jurídico e a devida observância do aspecto histórico, sem perder de vista o fim idealizado pela norma, isto é, o valor que o Direito almeja tutelar.

3. INTERPRETAÇÃO DO CAPUT DO ART. 304 DO CPC/15

O CPC/15, em seu Livro V (Da Tutela Provisória), Título II (Da Tutela de Urgência), capítulo II (Do Procedimento da Tutela Antecipada Requerida em Caráter Antecedente), introduz no ordenamento processual civil brasileiro o instituto da tutela antecipada requerida em caráter antecede.

O instituto é novo no sistema processual civil brasileiro, sendo dotado de peculiaridades inéditas, dentre elas, a estabilização da decisão concessiva de tutela antecipada requerida em caráter antecedente, nos termos do caput do art. 304 do CPC/15.

A tutela antecipada requerida em caráter antecedente, conforme o caput do art. 303 do CPC/15, tem lugar nos casos em que a urgência for contemporânea à propositura da ação, podendo a petição inicial limitar-se ao requerimento da tutela antecipada e a indicação do pedido de tutela final, com a exposição da lide, do direito que se busca realizar e do perigo de dano ou do risco ao resultado útil do processo.

Uma vez concedida a tutela requerida em caráter antecedente, conforme incisos do § 1o do art. 303 do CPC/15, o autor deverá aditar a petição inicial, com a complementação de sua argumentação, a juntada de novos documentos e a confirmação do pedido de tutela final, sendo o réu citado e intimado para a audiência de conciliação/mediação e, não havendo autocomposição, terá início o prazo para contestação.

Certamente um dos pontos mais polêmicos deste novo instituto processual diz da possibilidade de estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, caso seja deferida e não haja interposição de recurso, conforme prevê o caput do art. 304 do CPC/15, in verbis: “A tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso”. Prevê, ainda, o § 1º do art. 304 que se verificada a hipótese do caput o processo será extinto.

Contudo, resta saber se o termo “recurso”, empregado pelo legislador no caput do art. 304 do CPC/15, se refere a recurso em seu sentido comum ou se refere a qualquer ato do réu que demonstre inconformismo com a decisão concessiva da tutela antecipada requerida em caráter antecedente.

Visando dirimir esta questão, o presente estudo analisa o caput do art. 304 do CPC/15 à luz da classificação da interpretação das normas jurídicas, notadamente quanto ao efeito, fonte e natureza.

3.1. INTERPRETAÇÃO DO CAPUT DO ART. 304 DO CPC/15 QUANTO AO EFEITO

Em aula disponibilizada no site da Seccional da Ordem dos Advogados do Brasil de Minas Gerais – OAB/MG (2016), o professor Dhenis Cruz Madeira, doutor e mestre em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, defende que o caput do art. 304 do CPC/15 não deve sofrer “interpretação restritiva”, de modo que o termo recurso seja lido como se estivesse escrito qualquer forma de impugnação da decisão concessiva da tutela antecipada requerida em caráter antecedente.

Esta mesma constatação tem sido feita por outros tantos juristas. Contudo, com a máxima devida vênia, cabe pontuar que parece equivocado referir-se a uma vedação à “interpretação restritiva” quanto se quer afirmar que o legislador não teria empregue o termo recurso em seu sentido comum; na verdade, se estaria diante da interpretação declarativa, já que não haveria uma limitação daquilo que o legislador disse, mas sim o reconhecimento de que o texto da lei expressa com exatidão o espírito da norma, ou seja, que o termo recurso foi empregado em sua acepção comum.

Assim, se adotada a interpretação declarativa do caput do art. 304 do CPC/15, quando não houver recurso (v. g. agravo de instrumento) da decisão que conceder tutela antecipada requerida em caráter antecedente o processo será extinto e a decisão se tornará estável.

Contudo, muitos têm cogitado a interpretação extensiva do termo recurso, considerando a existência de uma falha do legislador no emprego do termo recurso, no sentido de admitir que outras decisões impugnativas impeçam a estabilização da decisão.

3.2. INTERPRETAÇÃO DO CAPUT DO ART. 304 DO CPC/15 QUANTO À FONTE

Ainda não há lei que confira interpretação autentica ao termo recurso empregado no caput do art. 304 do CPC/15, bem como não há julgados (ao menos com notoriedade nacional) sobre a questão, centrando-se, pois, o estudo da interpretação quanto à fonte na interpretação dada pelos estudiosos do Direito.

Em sua obra sobre o novo CPC, o professor Daniel Amorim Assumpção Neves, mestre e doutor pela Universidade de São Paulo, anota:

“A maior novidade certamente vem prevista no art. 304 do Novo CPC.  Segundo o caput do dispositivo, a tutela antecipada, concedida nos termos do art. 303, torna-se estável se da decisão que a conceder não for interposto o respectivo recurso. Só lamento que a única conduta do réu para impedir a estabilização da tutela antecipada seja a necessária interposição do agravo de instrumento. Poderia o dispositivo prever qualquer espécie de resistência, inclusive a meramente incidental oferecida perante o juízo que concedeu a tutela. De qualquer forma, não havendo a interposição do recurso, o processo será extinto (§ 1.º) e a tutela antecipada concedida será estabilizada, podendo qualquer das partes demandar a outra com o intuito de rever, reformar ou invalidar a tutela antecipada estabilizada (§ 2.º) no prazo de dois anos contado da ciência da decisão que extinguiu o processo (§ 5.º)” (NEVES, 2016, p. 189).

Percebe-se que Neves julga tratar-se de caso de interpretação declarativa com simples aplicação da interpretação literal, contudo, critica, apenas de passagem, a opção adotada pelo legislador, dando a entender preferir que houvesse sido adotado o impedimento à estabilização por meio de qualquer espécie de resistência apresentada pelo réu.

Nesse mesmo sentido, o professor Elpídio Donizetti, um dos integrantes da Comissão de Juristas encarregada da elaboração do Anteprojeto do novo CPC, também expressa a necessidade de adoção da interpretação declarativa:

“A mens legislatoris é no sentido de exigir o recurso como forma de evitar a estabilização. Trata-se de um ônus imposto ao demandado. Não basta contestar. (…) o CPC/15 poderia ter inserido disposição mais genérica, de modo a permitir a estabilização da medida apenas na hipótese de o réu não se insurgir contra a decisão, seja por meio de petição simples ou por meio de contestação. Ocorre que essa não foi a vontade do legislador” (DONIZETTI, 2016, p. 496).

Já o professor Cassio Scarpinella Bueno (2016, p. 282), mestre e doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, registra:

“Dúvida pertinente, prezado leitor, é saber se a estabilização só pode se dar na falta do recurso apropriado para seu reexame. São variadas as possibilidades: e se o réu não recorreu, mas compareceu à audiência de conciliação ou de mediação? E se ele se manifestou nos autos pugnando pela revogação da tutela provisória concedida? E se ele, dando-se por citado e independentemente da referida audiência, contestar? E se ele apresentou embargos de declaração da decisão concessiva indicando vício que tem a aptidão de conduzir o magistrado a retratar-se? Em suma: é possível interpretar ampliativamente o disposto no caput do art. 304 para afastar, diante desses acontecimentos, a estabilização da tutela provisória? A melhor resposta, penso, ao menos por ora, é a de aceitar a interpretação ampliativa do texto do caput do art. 304. Qualquer manifestação expressa do réu em sentido contrário à tutela provisória antecipada em seu desfavor deve ser compreendida no sentido de inviabilizar a incidência do art. 304. E, a propósito, o rol de questões do parágrafo anterior é mero exercício de adivinhação; ele não quer, evidentemente, suplantar as ocorrências da prática forense, que são muito mais amplas e bem mais diversificadas. Destarte, desde que o réu, de alguma forma, manifeste-se contra a decisão que concedeu a tutela provisória, o processo, que começou na perspectiva de se limitar à petição inicial facilitada pelo caput do art. 303 (que é a primeira acepção da palavra “benefício” do § 5º do art. 303 […]), prosseguirá para que o magistrado, em amplo contraditório, aprofunde sua cognição e profira oportunamente decisão sobre a “tutela final”, apta a transitar materialmente em julgado.  A corroborar o acerto desse entendimento, está o inciso I do § 1º do art. 303 a exigir do autor a emenda da petição inicial quando a tutela provisória for concedida, independentemente de saber se o réu recorrerá, deixará de fazê-lo ou assumirá qualquer outro comportamento após suas regulares citação e intimação”.

Nota-se que Bueno não tolera a interpretação declarativa com a qual Neves e Donizete se conformaram. Bueno defende uma interpretação extensiva a fim de que qualquer forma de contraposição à decisão concessiva da tutela antecipada requerida em caráter antecedente baste para impedir a estabilização da decisão.

 Nota-se, ainda, que esta interpretação de Bueno se apoia em interpretação lógico-sistemática, buscando harmonizar a previsão do caput do art. 304 com a do inciso I do § 1º do art. 303, na medida em que este último exige do demandante a emenda da petição inicial ainda que a tutela provisória tenha sido concedida, indicando uma tendência ao seguimento do processo.

Com uma fundamentação um pouco diversa da de Bueno, mas com uma conclusão semelhante, os professores Fredie Didier Júnior, mestre pela Universidade Federal da Bahia, doutor pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, livre-docente pela Universidade de São Paulo e pós-doutorado pela Universidade de Lisboa, e os mestres pela Universidade Federal da Bahia, Paula Sarno Braga e Rafael Oliveira (2015, p. 608), em seu Curso de Direito Processual Civil, afirmam:

“Embora o art. 304 do CPC fale apenas em não interposição de recurso, a inércia que se exige para a estabilização da tutela antecipada vai além disso: é necessário que o réu não se tenha valido de recurso nem de nenhum outro meio de impugnação da decisão (ex.: suspensão de segurança ou pedido de reconsideração, desde que apresentados no prazo de que dispõe a parte para recorrer). […] Há quem diga que, para que se configure a inércia do réu, além de não recorrer contra a decisão, é preciso que ele não apresente defesa, assumindo a condição de revel. Mas não nos parece que a revelia é um pressuposto necessário para a incidência do art. 304. […] o prazo de defesa, em regra, demora um pouco para ter início. O art. 304 não exige que se espere tanto para que se configure a inércia do réu apta a ensejar a estabilização da tutela antecipada. Se, no prazo de recurso, o réu não o interpõe, mas resolve antecipar o protocolo da sua defesa, fica afastada a sua inércia, o que impede a estabilização afinal, se contesta a tutela antecipada e a própria tutela definitiva, o juiz terá que dar seguimento ao processo para aprofundar sua cognição e decidir se mantém a decisão antecipatória ou não. Não se pode negar ao réu o direito a uma prestação jurisdicional de mérito definitiva, com aptidão para a coisa julgada.”

     Percebe-se, pois, que para estes autores qualquer forma de insurgência do réu contra a decisão concessiva da tutela antecipada requerida em caráter antecedente, desde que no prazo do recurso, deve afastar a estabilização considerando a existência de um direito do réu a uma decisão de mérito definitiva, aplicando, pois, interpretação lógico-sistemática.

3.3. INTERPRETAÇÃO DO CAPUT DO ART. 304 DO CPC/15 QUANTO À NATUREZA

Pela interpretação doutrinária do art. 304 do CPC/15, vista no item anterior, se percebe apenas o emprego da interpretação literal e lógico-sistemática, sendo que os autores não buscaram a interpretação histórica e a teleológica, o que é lamentável, porém compreensível por tratar-se de um instituto com pouco tempo de vigência.

Também se constata que aqueles autores que aplicaram a interpretação gramatical não consideraram a aplicação das demais formas de interpretação, contrariando as lições doutrinárias expostas no início deste estudo que afirmam que a interpretação gramatical deve realizar-se juntamente com os demais elementos de interpretação.

Outra constatação digna de nota é a de que nenhum dos autores consultados se valeu da interpretação histórica, o que certamente se justifica pelo caráter inédito, no Direito brasileiro, do institui da estabilização da tutela antecipada requerida em caráter antecedente. Entretanto, caberia aos autores perquirir o processo de tramitação da norma como forma de realizar uma espécie de interpretação histórica, muito embora seja necessário reconhecer certa dificuldade em se realizar esta análise, notadamente em função das diversas alterações sofridas no anteprojeto que deu origem ao CPC/15 e ao grande número de sessões de discussão a que esteve submetido.

Todavia, vale ponderar que o Anteprojeto do Novo Código de Processo Civil, tal qual elaborado pela comissão de juristas nomeada pelo Senado Federal, previa, em seus artigos 286 a 293, “medidas requeridas em caráter antecedente”, possibilitando que, nesses casos, a petição inicial se limitasse a indicar a lide, seu fundamento e a exposição sumária do direito ameaçado e do receio de lesão, caso em que haveria a citação do réu, no prazo de cinco dias, para “contestar” o pedido e indicar as provas que pretende produzir, constando do mandado a advertência de que, não “impugnada” a decisão ou medida liminar eventualmente concedida, esta continuaria a produzir efeitos independentemente da formulação de um pedido principal pelo autor. Percebe-se, portanto, que este instituto correspondente à tutela antecipada requerida em caráter antecedente do CPC/15 e que inicialmente se falava apenas em “impugnação” da decisão como medida apta a impedir a produção de efeitos da decisão concessiva, não exigindo interposição de recurso.

Mas talvez esta constatação seja de pouca valia prática para fins de interpretação, pois parece permite duas conclusões opostas, uma de que se deveria ser fiel à ideia original do instituto, e outra de que o que deve ser realmente levado em consideração é o texto do legislador, por ser o único dotado de competência para criar normas, ainda que se desvirtue o instituto “criado” pelos juristas responsáveis pela elaboração do Anteprojeto.

Por fim, resta pontuar e lamentar a forma rasa com que os autores consultados interpretaram o caput do art. 304 do CPC/15, sem uma densa interpretação lógico-sistemática e teleológica, que fosse embasada nos princípios do direito processual civil e nas finalidades do novo instituto.

4. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A interpretação das normas jurídicas é tarefa complexa, a exigir muito do interprete, que deve manter-se vigilante aos limites interpretativos, circunscrevendo-se a meramente buscar o real sentido e alcance da norma, policiando-se para não fazer as vezes do poder constitucionalmente competente para edição da norma, vindo, equivocadamente, a criar uma nova norma ao pretexto de apenas interpretar.

Com isso, é de se sugerir que o interprete, sempre que deparar-se com um texto de lei a ser aplicado em um determinado caso concreto, busque avaliar quais foram os elementos de interpretação empregados em seu processo de interpretação.

Sabe-se que as normas jurídicas possuem presunção de correção (parte-se do pressuposto de que as normas, em regra, apresentam correspondência entre texto e espírito) e devem, comumente, sofrer interpretação apenas declarativa, o que não quer dizer que as normas devem ser interpretadas somente de forma literal. Aliás, as formas declarativa, restritiva ou extensiva da interpretação se situam no âmbito do “efeito”, ao passo que a interpretação literal, ao lado da interpretação lógico-sistemática, histórica e teleológica se situam no âmbito da “natureza” da interpretação.

Entretanto, percebe-se que a natureza da interpretação é capaz de determinar a necessidade de aplicação da interpretação extensiva ou restritiva ao invés da declarativa, reconhecendo uma falha do legislador quanto à sistematicidade do ordenamento jurídico e às finalidades do Direito.

No que tange a interpretação das normas jurídicas quanto a natureza, um ponto importante de ser destacado é que a interpretação gramatical, embora seja obviamente indispensável, deve ser acompanhada das demais formas de interpretação, em especial a interpretação lógico-sistemática e teleológica. Assim, tem-se que é temerário interpretar o caput do art. 304 do CPC/15 tão somente sob o aspecto literal, determinando a incidência de uma interpretação apenas declarativa.

Enfim, cabe ao operador do Direito se manter atentos à evolução da posição doutrinária sobre a questão, bem como à posição a ser adotada pelos tribunais e até mesmo a uma eventual mudança legislativa, dada a incerteza instalada entre os doutrinadores quanto ao sentido e alcance do termo “recurso”.

 

Referências
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BRASIL. Lei n. 13.105,  de 16 de março de 2016. Código de Processo Civil. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 13 de novembro de 2016.
BRASIL. Lei n. 5.869,  de 11 de janeiro de 1973. Código de Processo Civil. Disponível em:<http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13105.htm>. Acesso em: 13 de julho de 2016.
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Informações Sobre o Autor

Ícaro Fellipe Alves Ferreira de Brito

Advogado e Pós-Graduado em Direto Público pela Faculdade Legale


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