Considerações iniciais
O presente estudo tem por finalidade examinar o tema da interpretação na teoria jurídica para verificar se existem e onde estão situados os limites e a possibilidade da “correta” interpretação no âmbito do direito.
Embora tenha havido leituras para a organização das ideias que fazem parte da reflexão, optou-se por alterar a prática vigente de dialogar e polemizar com uma imensa diversidade de autores, para escrever diretamente sobre as questões a serem enfrentadas e os problemas a resolver.
Acredita-se que, com isso, se ganha em clareza no exame da matéria, pois a prática de trazer ideias de diferentes pensadores, nem todas concordantes entre si, tornar a tarefa impossível de ser cumprida com um mínimo de coerência nas sendas das reflexões complexas que são as que dizem respeito à filosofia e, em especial, ao direito.
Expor, a partir da própria inteligência, de forma clara, problemas da magnitude dos que se tenta examinar neste trabalho é uma tarefa quase impossível de ser cumprida por quem queira dominar assuntos que dizem respeito à teoria do conhecimento; imagine-se, então, fazer isso por meio da inteligência do outro, especialmente quando se sabe que o estado atual das investigações ainda não permite saber onde o homem busca subsídios para dominar a própria inteligência!
O homem é sempre produto da sua época e, embora a reflexão faça uso dos ganhos científicos da atualidade, quem procurar não encontrará nenhuma demonstração de domínio de conhecimentos históricos, seja da filosofia ou de qualquer outra área do saber humano, por supor-se que essa prática não tem serventia para o avanço das investigações sobre a inteligência humana, objetivo que este estudo busca alcançar.
Muito embora o homem tenha obtido avanços extraordinários nos conhecimentos de suas relações com os fenômenos da natureza, no que diz respeito a si e sua inteligência não houve progresso algum. Antes o contrário. Pouco ainda resta do sistema fundado por Descartes e levando longe pelo gênio de Kant no que diz respeito aos conhecimentos da capacidade humana de pensar.
Essas são as principais razões para tratar diretamente com as questões a serem resolvidos. E, para isso, nada melhor do que examinar as dificuldades e discorrer sobre os problemas a serem enfrentadas para fazer, tal como faria o viajante antes de sair mundo afora, um minucioso e detalhado inventário das provisões disponíveis para saber com o que poderá contar durante a jornada.
A primeira dificuldade a ser reconhecida, então, é de que os estudos relativos à teoria do conhecimento sobrevivem, ainda hoje, do pouco que resta do iluminismo e a escola, instituição que deveria ser o principal instrumento para superação da crise, perdeu-se de tal forma que, ao invés de criar as condições para que o homem consiga dominar a própria inteligência, corrompe-o totalmente ao fazê-lo acreditar que avança quando acumula informações sobre coisas ou fenômenos do mundo.
A escola ainda não percebeu que ensinar é criar condições para que o homem domine o sistema de relacionamentos imposto pela objetividade natural[1], instrumento sem o qual não é possível um único passo em direção aos domínios da filosofia ou da ciência.
Poucas vezes retrocedeu-se tanto quanto nas conquistas obtidas, a duras penas, pelo filósofo moderno para ampliar o conhecimento sobre a inteligência humana e os ganhos promovidos nos domínios da razão, desde o século XVII, são tão mal compreendidos em nossos dias que, se o filósofo de hoje fosse chamado a falar sobre ciência, é bem provável que encontraria dificuldade para inventar a lâmpada.
Em razão disso, nada é mais importante a qualquer estudo, especialmente ao que tenha por objetivo investigar instituições humanas como o direito, do que pôr em ordem as ideias que orientam a inteligência do homem para separar aquilo que elas têm de objetividade, daquilo que é resultado da sua engenhosa capacidade de criar sistemas e instituições com a finalidade de dominar o outro.
Embora tendo clareza da dificuldade da empreitada, parte-se do pressuposto que o estudo somente conseguirá ser realizado se a investigação for iniciada desde o ponto de partida mais remoto, recusando-se toda e qualquer ideia que não seja possível de ser demonstrada de forma clara, em um sistema que não admita contrabando de crenças e tampouco que faça uso de discursos, por mais importante que possa ter sido em determinada época da história do pensamento humano, baseado unicamente na autoridade de outrem.
E, para que a tarefa possa ser executada dentro dos propósitos que ora são demonstrados, não é possível a escolha de outro caminho senão o de retomar o debate iniciado na filosofia a respeito de como é possível ao homem entender, pensar e falar sobre qualquer tema, pois ao filósofo que se preza e reconhece as dificuldades da sua missão não há como ter-se por desobrigado antes de tratar de qualquer assunto, de explicar como entende, pensa e fala sobre o mundo que organiza sua inteligência.
Já respondendo a acusação da falta de concordância entre as ideias utilizadas para a exposição dos problemas a serem resolvidos e os relatos de reflexões tidas como avanços ao longo da história da filosofia, fica mais uma vez o alerta de que o presente trabalho só foi levado a cabo por pressupor a completa ruína daquilo que pretensamente fora erigido[2], pois somente alguém fora da razão se aventuraria a fazer de novo uma construção se ela realmente já existisse.
As dificuldades da empreitada
Nenhuma outra tarefa tem se apresentado tão difícil quanto à que se propõe examinar a inteligência humana com o propósito de desvendá-la, especialmente quando ela precisa ser cumprida no ambiente em que participa o homem com ideias já formadas sobre si, sobre a natureza e sobre os outros.
Muitas são as dificuldades e objeções apresentadas àquele que sai em busca desse objetivo. A primeira é a de que se trata de algo impossível de ser realizado pelo fato de a inteligência humana ser resultante do que o homem tem por verdades e que essas verdades são produzidas por diferentes experiências, o que faz com que os problemas a serem considerados sejam tantos quantos forem os homens, cujas crenças e opiniões sobre o mundo serão de tal variedade que jamais poderão ser examinadas atendendo às rigorosas exigências do discurso científico.
Como se não bastassem as objeções da natureza histórica e espacial do homem, será preciso afastar ainda, desse ambiente, a alegação de que reflexões como essas somente podem ser realizadas no contexto da linguagem, cuja imprecisão e indeterminação constituirão mais um sério impedimento para o estabelecimento de uma pauta unificada no âmbito da ciência.
Sobram, portanto, argumentos aos céticos e nunca faltarão razões para justificar os motivos pelos quais todos os esforços feitos até hoje, para explicar como funciona e o que vem a ser a inteligência humana, tenham resultado em estrondosos fracassos, que só não foram maiores pelo fato de o homem, não mais orientado por um sistema construído no ambiente da filosofia, mas pela curiosidade que lhe é inata, ter dado as costas ao exército de céticos para erigir, mesmo sem conseguir explicar como isso ocorre, uma admirável obra para orientar suas ações no campo das ciências da natureza.
As razões dos céticos
Os sucessivos fracassos nas tentativas de edificar uma teoria que possa atender às mínimas exigências do conhecimento científico, no âmbito da filosofia, sempre estiveram estreitamente vinculados à incapacidade do filósofo explicar como funcionam os mecanismos por meio dos quais ele pode afirmar que conhece algo e, também, quais os precisos limites em que essa competência pode ser exercida.
Investigar e desvendar como essa competência pode ser exercida é a mais importante tarefa a ser cumprida pela teoria do conhecimento, especialmente quando se reconhece que o ambiente da inteligência é extremamente complexo, no qual questões aparentemente simples, que pareciam completamente resolvidas pela filosofia, quando melhor examinadas, não se conseguem se sustentar ao serem cobradas explicações a respeito de como é possível ao homem refletir a respeito dos fatos que afetam seus sentidos.
O exemplo mais evidente dessas questões pode ser representado pela possibilidade de se duvidar de tudo e, apenas para tomar emprestado para exame um conhecimento obtido da astronomia, fica evidente o quanto ainda é preciso tomar de crenças por verdades para se ter como certas ideias que não se sustentam a um exame sob o ponto de vista estritamente científico.
O fato mais ilustrativo dessa possibilidade pode ser representado pelo conhecimento acumulado de que a estrela Polar encontra-se a 430 anos-luz do nosso planeta. Considerando-se, segundo estudos da física, que a luz se propaga a 299.792.458 metros por segundo, qualquer estudo que se proponha a examinar esse tema terá que reconhecer que o astro, do qual se faz referência, é o que havia no firmamento no ano de 1580. Ou seja, a luz que sensibiliza a visão do habitante do nosso planeta é a que partiu de lá no século XVI e qualquer evento cósmico que possa ter ocorrido nesse período (que poderia ser o seu próprio desaparecimento) somente será percebido na terra, após o ano de 2440!
Então, diante de impedimentos dessa envergadura, que podem fazer cair por terra crenças que se apresentavam como verdades inabaláveis, é preciso dar razão aos céticos, por mais incômodo que possa ser esse reconhecimento, para ter sempre tudo sob suspeição quando se for verificar até que ponto é possível aceitar o que sempre foi tido por certezas do homem.
E isso é necessário porque, se for examinado o mais simples dos fenômenos naturais, haverá de ser considerado que por mais rápida que seja a impressão de um objeto, ela precisará de uma escala de tempo para percorrer a distância que a separa do homem, e de seus instrumentos de análise.
Esse exemplo é suficiente para demonstrar que o que é tido no tempo e sob o ponto de vista das competências analíticas como presente, no plano dos acontecimentos naturais, é sempre para o homem uma investigação do passado.
A inteligência relacional do homem[3]
Feitas essas considerações, sobre os limites das competências humanas no plano da realidade natural, a primeira pergunta a ser respondida é a seguinte: De que forma se conhece algo? Não é difícil perceber que o homem aprende a pensar a partir das experiências e a contar do momento em que aprende a relacionar fenômenos[4], ou seja, que percebe a ocorrência de diferentes eventos no plano da natureza, e que é possível relacioná-los entre si.
Foi com o desenvolvimento da competência de relacionar fenômenos que o homem conseguiu avançar no domínio da própria inteligência, permitindo-lhe acumular informações e construir instrumentos para ampliar sua capacidade de ação, conseguindo, com auxílio de máquinas, vencer obstáculos naturais e investigar fenômenos inimagináveis pelo homem da antiguidade.
E isso somente se tornou possível na medida em que o homem criou novos ordenamentos das impressões que recebe do mundo natural, pelos sentidos. A luz das estrelas, o som das cascatas, o gosto da fruta, o cheiro da terra molhada, ou seja, as impressões produzidas pelos fenômenos na natureza são percebidas pelo por meio dos sentidos, instrumentos por meio dos quais o homem relaciona análises e sínteses.
O fato de o homem ser impressionado pelos sentidos não é diferente do que ocorre com outros seres[5]. No entanto, talvez ele seja o único entre todos que consegue ir adiante no uso das impressões introduzidas em seu complexo biológico, que fica à disposição no acervo das experiências de vida, representadas pela memória dos juízos[6].
Essa constatação fornece, então, o primeiro elemento que precisa ser examinado, ou seja, como é possível ao homem relacionar-se com o mundo da natureza por intermédio de um extraordinário fenômeno que se processa vinculando análises e juízos.[7]
A análise se dá pelos sentidos e se desenvolve no plano dos acontecimentos naturais, vinculado a um sistema que tem a sensibilidade como instrumento e, a síntese, no plano dos juízos, que, embora também resulte de um fenômeno, estabelece-se apenas enquanto relações em um âmbito que, para ser entendido adequadamente, deve ser denominado metafísico (ou de ideias), diferenciando-se do fenômeno ligado historicamente à sensibilidade pelo fato de constituir-se em juízo[8] apenas.
Se essas constatações estiverem corretas, então é possível identificar, na inteligência humana, um sistema que introduz impressões do mundo natural e outro, de registro dessas impressões[9]. São esses os acontecimentos que permitem ao homem pensar. E como o homem só pensa quando relaciona e, sendo antes de qualquer outra coisa um fenômeno natural, as primeiras relações que estabelece são entre si e os fenômenos que lhe são externos[10].
Uma impressão (analítica) produz um juízo relacional (sintético) com idêntico sentido. Um é decorrente de um fenômeno que poderá ser encontrado novamente no plano da natureza e outro, produzido no plano da inteligência, perenemente à disposição do homem em seu acervo de relacionamentos[11].
As relações entre impressões e juízos são sempre as mesmas e não se submetem a exame de veracidade ou falsidade, pois não há nada verdadeiro ou falso nesse ambiente, apenas referências.
São essas sínteses que permitem ao homem pensar. E, quando ele pensa, não se volta para as impressões como sempre se acreditou, mas para os juízos que ficam armazenados em seu acervo de inteligência para, por meio de novas relações, orientarem sua ação no mundo natural.
Por fim, é importante compreender que não há uma relação objetiva entre o homem e os fenômenos da natureza. Ou seja, o homem não tem nenhuma competência que lhe permita atribuir qualidades aos objetos[12]. As qualidades são sempre atribuídas por identidade ou diversidade com outros fenômenos.
A questão da identidade ou diversidade das cores pode ser um bom exemplo para a compreensão desse problema. O homem percebe diferentes cores relacionando uma a outra, mas ele não tem nenhuma competência que possa ser utilizada para atribuir cores aos objetos na natureza[13]. Ou seja, as cores não estão na sua inteligência, mas no fenômeno que produz a reflexão luminosa e que sensibiliza sua visão.
Somente o contato a diferença é que permite a identificação da diversidade[14] e, como o homem não possui nenhum mecanismo natural para estabelecer níveis de intensidade entre cores, ele precisará, no mundo das experiências, de catálogos ou modelos para identificar as distinções entre elas.
Tudo isso ocorre da mesma forma em relação a outras qualidades dos abjetos como peso, medida ou qualquer grandeza identificada pelas ciências da natureza. Embora o homem atribua qualidades a objetos (como dimensão e peso), esse processo não decorre de nenhuma competência natural, mas de comparações feitas pelo critério de identidade ou diferença com modelos construídos ou buscados do mundo fenomênico.
Por fim, para concluir, em definitivo, com as ideias que precisam ser ordenadas para a compreensão do que está sendo exposto, deve-se ter como certo, para o desenvolvimento das próximas reflexões, que o homem não tem um catálogo de qualidades construído “a priori”, unicamente no âmbito da inteligência[15], e que possa ser utilizado em relação a objetos ou fenômenos.
A objetividade impõe-se ao homem de tal forma que nada lhe resta fazer além de sujeitar-se[16] e tentar pôr o resultado da sua competência analítica em ordem, por meio de relacionamentos efetuados com base no acervo das experiências acumuladas no curso de sua vida.
Sobre a metafísica
Se a filosofia deve ser considerada a ciência das ciências, a metafísica é a ciência da filosofia e nenhuma reflexão com propósito de seriedade pode ser iniciada sem que seja exposto, previa e claramente, o seu papel no âmbito do conhecimento científico.
Ela é o ponto de partida da teoria do conhecimento e tudo o mais que vier a ser feito sem a sua participação, estabelecendo os pontos de partida para a inteligência humana, será fruto da eterna vocação do homem de construir sistemas, guiado apenas por crenças.
Cabe a ela organizar a inteligência humana no manejo do complexo sistema de relacionamentos que se opera para que seja possível pensar, com seriedade e segurança, que os resultados a serem obtidos sobre qualquer assunto são orientados por modelos que conseguem separar o que tem origem em um sistema analítico, que identifica fenômenos no mundo da natureza, de outro que produz sínteses.
Esse tema tem especial relevância ao homem que é educado desde o nascimento a construir a inteligência relacionando coisas, para o qual reconhecer a existência das ideias constitutivas da metafísica, é uma tarefa quase impossível[17].
Não é por outra razão que a filosofia avançou tão pouco nos dois últimos séculos, pois o homem, ao perceber a dificuldade da tarefa de retomar a construção de sua inteligência desde o início, sem a orientação dos objetos, imediatamente desvanece e sai em busca do caminho fácil de fundamentar suas conclusões na inteligência alheia[18], como se isso o isentasse da responsabilidade de saber que não tem como prestar contas das bases em que alicerça suas majestosas construções que, sem o discurso fundado na autoridade do outro, não se sustentam a mais singela contestação, do mais ignorante dos céticos.
Essa é, portanto, a razão da necessidade da delimitação do que se deve ter por metafísica, pois se é correto concluir que o homem pensa porque estabelece relações, nada mais relevante para qualquer critica ou estudo da inteligência humana do que separar o que é efetivamente fenômeno natural do que deve ser considerado sistema de relacionamentos[19].
Os limites da fenomenologia
A inteligência racional do homem inicia e é construída pelos sentidos, que são constitutivos dos mecanismos por meio dos quais o homem se relaciona com a natureza e com todos os fenômenos que o afetam ao receber impressões do mundo natural.
Essas impressões, conforme já examinado em tópicos anteriores, são sempre parciais, temporalmente atrasadas, imprecisas e, em razão dos limites do sistema analítico do homem, sujeitas a permanentes retificações.
Em face disso, é de perguntar-se: Haveria algum âmbito, nesse ambiente caótico, que pudesse servir de referência segura à filosofia para construção de um sistema científico? Algo que não estivesse sujeito a retificações e que pudesse ser encontrado exatamente da mesma forma, que pudesse ser tido como perene, que jamais fosse afetado pelo permanente estado de mutação[20] que caracteriza a natureza?
Mais ainda: Sendo possível a existência de um ambiente de inteligência que não seja afetado pelos fenômenos naturais e que possa ser utilizado como ponto de partida para a demonstração de uma pauta que tenha por objetivo examinar o problema do “conhecimento”, como seria possível delimitar esse âmbito?
Embora o filósofo afirme que encontrar esse ambiente seja impossível, pois o homem pensa porque é ser vivo e, portanto, somente o fato de ser vivo já o vincula, de forma definitiva, ao mundo da natureza e que, sendo o homem um fenômeno, suas ideias serão sempre resultado de um processo natural, do qual não é possível apartar-se.
Essa foi a razão pela qual a filosofia abandonou essa discussão afirmando que a metafísica não tem utilidade ou serventia e quem a utiliza o faz por ilusão, e o seu desprezo é tanto que, para muitos, a qualificação de metafísico é uma espécie de ofensa.
Para os crentes de que a inteligência somente existe quando estiver orientada por coisas, a objeção é verdadeira e sempre serviu de argumento para dar por encerrado o debate[21]. No entanto essa crença é o resultado final de um processo de ilusão em que sempre esteve enredado o homem em razão da forma pela qual ele é educado.
A metafísica é o ambiente no qual, reconhecendo que pensar é estabelecer relações, o homem consegue apartar-se do mundo fenomênico para separar o que é efetivamente fenômeno natural, do que é síntese do fenômeno. E, nesse sistema o homem não deve ser examinado apenas como parte, mas como processo que lhe permite separar-se de parte do mundo natural pela ação e construir mecanismos que lhe permitem em um primeiro momento relacionar fenômenos e, a seguir, com auxílio um sistema de sínteses de segundo nível, relacionar relações.
Esse é, portanto, o primeiro problema a ser vencido para que o homem possa identificar quando algo refere-se a puras “ideias”[22], a “ideias” representativas de fenômenos e “ideia” de “ideia” de fenômeno, para separar esse terceiro nível do sistema organizativo da inteligência humana, que sempre se prestou para dominar, explorar, submeter e escravizar o homem[23].
Não obstante a essa razão, mais do que suficiente para justificar a necessidade da delimitação do que deve ter-se por metafísica, há que ser ressaltado o fato de que dessa resposta dependem outras, especialmente as que tentam explicar como até onde pode ao homem, com todos os problemas aqui relatados, levar seu “conhecimento”.
Como será examinado logo a seguir, sempre que se analisa qualquer objeto, percebe-se que, por mais que se apresentem respostas, sempre haverá incertezas quanto a certos caracteres e sobre questões a serem respondidas e, por mais que sejam refinadas as investigações, ainda assim restarão problemas que não serão elucidados como, por exemplo, o que tenta explicar a origem remota de qualquer objeto.
Como se observa, embora predomine a dúvida sempre que se examinam fenômenos naturais, há um âmbito de uso em que esses problemas desaparecem por completo, em que a certeza, a precisão e o rigor são os principais instrumentos do conhecimento, predominando a mais perfeita ordem, anunciando a existência de um sistema que elimina, para sempre, a incerteza quanto à possibilidade de uma ciência estruturada exclusivamente na inteligência do homem.
Embora por razões típicas de sua época o estudo não tenha sido completado, deve-se a Kant a descoberta da existência de um sistema sintético de relacionamentos que não sofre com as vicissitudes que atingem a teoria do conhecimento no âmbito da fenomenologia da natureza.
A matemática revela a existência de um conhecimento que pré-existe à própria descoberta, que não depende de nenhuma experiência para ser demonstrada e que se apresenta a toda inteligência da mesma forma, com o mesmo conteúdo e na mesma medida a quem venha refletir a respeito de sua existência, anunciando o quanto errou a filosofia ao negar a possibilidade da construção de um sistema independente da natureza que pudesse ser organizado sob o rigoroso signo do conhecimento científico e unicamente no âmbito da inteligência humana[24].
Mas, se os juízos matemáticos demonstram a existência de um ambiente de puros juízos, outro, também organizado inicialmente unicamente na inteligência, comprova que é possível ir adiante na empreitada de erigir um sistema de conhecimentos que possam servir de referência para os primeiros passos no âmbito dos fenômenos da natureza.
Deve-se a Euclides as primeiras descobertas da geometria. Elas organizam as ideias estruturantes dos juízos que são, a exemplo da matemática, referências que não estão sujeitas à objeção dos céticos e provam que também é possível estabelecer formas para organizar a inteligência no espaço[25].
Todavia, é relevante ressaltar que, nas tentativas de representação de qualquer grandeza geométrica no plano da natureza, imediatamente dúvidas assaltarão o espírito humano. O problema da geometria, que é o mesmo da matemática, é de que quando se for fazer uso de qualquer ideia para afirmar algo tal como “isto é um grão de areia” ou “aquilo é outro grão de areia” e que, portanto, há, em um determinado espaço, dois grãos de areia[26]. Até que ponto é possível fracionar ou aditar matéria constitutiva de algo sem que ele perca essa qualidade? Quando se chega na estrutura molecular de um objeto, ele ainda continua sendo o objeto nominado pela ciência?
Essas considerações são necessárias para demonstrar que, a todas as perguntas que tenham por objeto fenômenos[27] naturais, as respostas serão sempre parciais e arbitrárias, que variarão sempre de acordo com a referência fenomênica utilizada para o estabelecimento da resposta!
Em sendo a matemática um sistema de conhecimentos que se organiza no ambiente dos juízos e embora seja prática comum introduzir seu aprendizado orientado por coisas, os objetos jamais conseguirão o grau de certeza e precisão dos juízos que servem de referência para a organização dos conhecimentos matemáticos.
Essas considerações são importantes para que seja possível estabelecer uma pauta que possa isolar o objeto formal da metafísica, tendo presente o reconhecimento da impossibilidade de que o homem consiga se livrar dos objetos.
Mas, para que essa pauta possa ser cumprida, é necessário, em um primeiro momento, separar o mundo natural, fenomenológico, do ambiente dos juízos para, depois de feita essa separação, retomá-los mediante relacionamentos que permitam examinar a ambos em um elevado grau de organização, ou seja, a partir do acervo de dados analíticos sobre a natureza, ordenados por um sistema de juízos.
No primeiro momento, há o ambiente da natureza em que predomina o caos, a dúvida e a necessidade de permanente retificação e ajustes dos conhecimentos e, no segundo, a identificação da existência de um ambiente de ordem, em que a organização estará sempre à disposição, inclusive para denunciar a insuficiência, a falta de certeza e de exatidão quanto aos dados que produzem os juízos referidos ao mundo da natureza.
A metafísica pode ser pura ou impura. A primeira compreende um sistema de juízo que se organiza a partir de si mesmo, ou seja, de relacionamentos por identidade com outros juízos e, outro que se organiza a partir da representação de fenômenos, ou seja, a metafísica pode ser organizada unicamente a partir de um sistema de ideias (pura) ou a partir de um sistema de ideias que toma o mundo da natureza como modelo (empírica).
A metafísica pura é o ponto de partida de toda a inteligência humana e nela impera a mais pura ordem e vige o mais puro refinamento da inteligência no que diz respeito à capacidade humana de pensar. É ela que permite ao homem avançar, com segurança, para o ambiente fenomênico com o sistema de relacionamentos entre juízos, instrumento desenvolvido e dominado no curso do processo histórico que permitiu ao homem construir a racionalidade.
A competência que permite ao homem pensar deve ser examinada sob dois aspectos distintos entre si. Ela pode ser exercida mediante formulação de juízos referenciados unicamente por identidade em outros juízos (como na matemática e em parte dos juízos geométricos) e também pode ser exercida relacionando fenômenos naturais. Isso significa dizer que essa capacidade possibilita “pensar” o próprio “pensar” e também a de “pensar” orientado por coisas[28], que é exercida por meio do relacionamento das impressões recebidas pelos sentidos (e que permitem a construção de um sistema de ideias ordenadas no ambiente denominado de inteligência racional).
A questão dos juízos
Para ser possível compreender os problemas que precisam ser postos em ordem para resolver as complexas questões da teoria do conhecimento, nada é mais importante do que pôr em ordem as ideias de juízos[29] que são, em última instância, os intermediários entre o homem e a natureza e, também, os responsáveis pelas referências utilizadas pela razão para tornar possível a compreensão de um complexo acontecimento natural, que tem o mundo fenomênico como ambiente, instrumento e medida.
São os juízos os instrumentos intermediários entre o mundo da natureza e o mundo que o homem constrói no âmbito da razão quando processa as impressões que recebe pelos sentidos, fazendo uso de uma competência natural denominada inteligência.
Não resta dúvida alguma que a sensibilidade é o meio pelo qual o homem se relaciona com a natureza, sendo ela a responsável pela introdução de dados e informações necessárias à construção daquilo que ele denomina conhecimento.
Todavia, a sensibilidade não fornece juízo algum. Apenas impressões fenomênicas que são entendidas por mecanismos naturais, necessários ao cumprimento dos desígnios biológicos do homem. Mas os sentidos não fornecem juízos, apenas impressões, o que revela as razões de terem fracassado todas as tentativas de elaboração de uma ciência fundada nelas[30]. E não poderia ser diferente, pois os sentidos fornecem impressões parciais dos objetos, que nem de longe podem ser confundidas com eles, visto se tratar de coisas completamente diferentes.
E, em razão de o homem estar acostumado a pensar tomando a impressão pelo juízo e por estabelecer relações em locais onde essas relações não existem[31], não há tarefa mais difícil do que expor, de forma clara, o ambiente em que estão situados aquilo que se deve tomar por juízos.
E isso não é obra do acaso. O homem somente conseguiu evoluir na construção das ciências, na medida em que passou a fazer uso de fenômenos naturais como modelos constitutivos de sua inteligência. Foram os fenômenos os primeiros responsáveis pelo fornecimento ao homem dos dados que lhe permitiram estabelecer relações entre todo o material e o que a capacidade analítica fornecia.
A impressão[32]_[33] tem origem fenomenológica e o juízo[34], metafísica[35], e não podem ser trocados um pelo outro, sob pena do estabelecimento de uma confusão tal que tornará impossível estruturar um conhecimento minimamente organizado nos domínios da razão humana.
Embora situados em planos completamente distintos, a toda impressão há um correspondente juízo, mas todo e qualquer juízo é sempre sintético, não sendo possível, sem grave equívoco, falar-se em juízo analítico, por confundir consequência com causa.
A matéria da analítica é apenas impressão fenomênica, cuja finalidade é fornecer dados ao juízo, mas com ele não se confunde[36]. A capacidade analítica é distintiva dos seres vivos. Todo o ser vivo tem capacidade analítica e consequentemente de entender o meio e de relacionar-se com ele em cumprimento de suas necessidades vitais. Mas isso não autoriza ninguém a concluir que a capacidade analítica possa fornecer juízos, uma vez que estes, pela sua natureza, encontram-se em ambiente completamente distinto do fenomenológico, produtor de impressões sensíveis.
A toda impressão há uma correspondente síntese e todo e qualquer objeto sensível produz exatamente o mesmo juízo entre seres da mesma espécie, mas nem todo o juízo é derivado de impressão sensível. Como já demonstrado anteriormente, a matemática e parte da geometria provam a existência de um ambiente puramente sintético em que os juízos não estão referidos a nenhuma impressão, apenas a outro juízo.
Em face dessas considerações, já se pode afirmar, então, ser possível identificar, nesse ambiente, os juízos puros ou “a priori” como identificado por Kant; os juízos resultantes da capacidade analítica, sintéticos impuros ou “a posteriori” e os juízos de expectativas geradas da reunião dos juízos sintéticos impuros[37] na produção de novos juízos.
Certeza, verdade e crença
Certeza, verdade e crença tratam de temas completamente diferentes no âmbito das ciências e a falta de distinção entre elas é a maior responsável pelos equívocos cometidos nos estudos que buscam entender a inteligência racional do homem, especialmente quando o objetivo é investigar as instituições criadas para orientar e governar suas ações no âmbito da natureza.
Qualquer estudo que queira entender a inteligência humana deve partir da delimitação do que se pode ter na conta de juízos de certeza, de verdade e de crenças. Os primeiros dispensam os modelos da natureza e do mundo fenomênico e são construídos recursivamente a partir de si mesmos e têm, no próprio juízo, a base material de sua constituição[38]. Já os segundos têm a impressão fenomênica como intermediária entre o homem e os objetos e, por fim, os últimos que não são mais puros nem empíricos, mas resultado da expectativa fundada de que, em determinadas condições, novos juízos de verdade deverão ser produzidos nas relações entre o homem e a natureza.
A certeza se estabelece nos domínios de inteligência, as verdades, no âmbito da natureza, e as crenças, novamente na inteligência, mas agora por meio da expectativa de que o curso dos processos fenomênicos resultarão em novos acontecimentos no âmbito da natureza.
A verdade é sempre resultado das relações de inteligência que o homem estabelece[39]–[40] com o mundo fenomênico; as certezas das relações de inteligência unicamente no ambiente dos juízos e; as crenças, das expectativas que o homem constrói a partir da capacidade de estabelecer relações unicamente da memória.
Os juízos são, portanto, resultados de construções que utilizam a natureza como modelo, do domínio da inteligência apenas no ambiente dos juízos ou da capacidade humana de imaginar o mundo segundo modelos apreendidos da progressão, repetição ou permanência de fenômenos naturais no espaço e no tempo.
Como os juízos de verdade têm sempre o mundo fenomênico como correspondência, o homem precisa conformar-se de ter sempre de retificar verdades na mesma medida em que amplia ou altera os conhecimentos que possui nos domínios da natureza[41].
As crenças são construídas a partir dos juízos de verdade, ou seja, a natureza, em sua objetividade, constrói a inteligência humana na mesma medida em que constitui o ambiente que passa a fazer parte das experiências acumuladas no curso da existência. Esses juízos, construídos por aquilo que o homem passa a ter como verdades, ficam à disposição de sua inteligência para servirem de modelos na produção dos juízos de crenças, que estarão sempre condicionados à correspondência futura no plano dos acontecimentos naturais.
As experiências em relação aos acontecimentos naturais (ou provocados pela ação humana) e a regularidade fenomênica criam expectativas de que, nas mesmas condições, situações semelhantes ou idênticas haverão de repetir-se. Essa expectativa produz novos juízos que não são mais resultado de impressão fenomênica, mas apenas de juízos que se organizam do concurso dos juízos da experiência. Um juízo de segundo nível, não mais decorrente de fenômeno, mas do juízo do fenômeno[42].
É a partir dessa competência que o homem consegue antecipar-se aos acontecimentos naturais, pois aprende com a experiência que, em certas situações, nas mesmas condições, eles tendem a repetir-se.
Tomando os enfoques organizativos desses temas, é possível afirmar que os juízos de verdade são sempre os que resultam de construções por correspondência com dados analíticos; os juízos de certeza, por identidade com outros juízos, e os de crenças, das expectativas do homem em relação a acontecimento futuro.
A certeza somente é encontrada no ambiente dos juízos puros e todas as relações que se estabelecem nesse ambiente são por identidade. Ninguém duvida de um raciocínio matemático. Todos os seres humanos, ao formularem os mesmos raciocínios, chegam sempre às mesmas conclusões e a certeza dos resultados é a base sobre a qual toda a matemática está assentada.
Já o ambiente da verdade é resultado dos fenômenos da natureza e das experiências. A verdade é sempre resultante fenomênico com o qual ela busca correspondência. Sempre que se faz qualquer referência a algo tido como verdadeiro, o juízo tem como referência um acontecimento que se encontra no âmbito da natureza. O fenômeno produz, no ambiente dos juízos, uma representação que lhe corresponde. No ambiente da certeza, ao contrário, não há correspondência, mas identidade entre os juízos.
No entanto no ambiente da crença, não há certeza e tampouco verdade, mas expectativa de que, em determinadas condições ou situações, algo deverá se repetir. Na crença, a correspondência é apenas entre juízos e, embora desprezados por todos os que se dedicam ao estudo da razão humana, os juízos de crença são os que largamente gozam de maior prestigio entre os homens e é sobre eles que é preciso dedicar atenção, não apenas para dominá-los, mas para entender os motivos dessa importância, pois a capacidade de produzir juízos não mais por correspondência com fenômenos, mas unicamente a partir da memória faz do homem uma espécie rara e separada do restante da natureza por ser, entre todas as criaturas, o único animal que crê.
Considerando-se as ideias até aqui expostas, percebe-se claramente o quanto esses critérios servem para constatar que é objetivamente demonstrável a possibilidade de se exigir, no debate sobre certeza, verdade e crença, os elementos que servem para organizá-los pois, com já visto, os juízos das verdades, tidos como os mais importantes instrumentos de construção da inteligência humana, são os mais restritos entre todos[43].
Além de restritos, há que ser reconhecido também que nem toda a objetividade da natureza está sob controle da razão[44] e nem todos os fenômenos estão sob os domínios do sistema analítico do homem. Uma boa parte, se não a maior quantidade das relações objetivas da natureza, sequer passa por esse controle. Apenas como exemplo, pode-se citar o processo de reprodução que se estabelece em um extraordinário sistema natural que, da reunião pela cópula de informações genéticas entre dois seres, produz o homem sem jamais consultar, uma vez sequer, sua inteligência racional sobre isso[45].
A fala como instrumento dos juízos
Se os juízos são os meios que servem de intermediários entre o homem e a natureza, a fala é o meio pelo qual o homem age comunicativamente em face dos outros homens.
A fala, enquanto processo comunicativo, pode dar-se de diferentes modos, indo desde os meios mais primitivos, como os que ocorrem por representações gestuais, até os mais refinados sistemas de signos linguísticos. O certo é que, ao contrário do que comumente se imagina, quando esse assunto é tratado, a palavra não é o único recurso, senão apenas um dos instrumentos utilizados pela fala.
Também deve ser tomado em consideração a existência de diferentes níveis de desenvolvimento dessa competência entre os homens, na mesma proporção do refinamento no uso das habilidades utilizadas para esse fim.
A comunicação pode dar-se por falas primitivas, como ocorre entre os que fazem uso da força bruta, por meio de manifestações corporais, escritas ou a mais popular de todas: a que ocorre com o auxílio de representações fonéticas ou sígnicas e se apresenta com variações quase infinitas se tomada em consideração a natureza histórica e geográfica da humanidade.
Embora o tema da fala seja por si complexo e, a depender do estudo a ser feito, venha a merecer exames por diferentes ângulos[46], cuida-se aqui de analisar a fala que goza do maior prestígio entre os homens e que tem a palavra[47] como instrumento.
Esse exame ganha especial relevância na medida em que se analisa o direito no qual a fala não é mais a do homem singular, mas da sociedade, organizada enquanto ente dotado de instituições que comunicam por meio de órgãos, entre os quais um deles, investido por um sujeito que exerce uma missão quase divina: o juiz que é encarregado, entre outras atribuições, de revelar os sentidos da fala do Estado e, também, em meio a um emaranhado de crenças, as “verdades” decorrentes das relações entre os homens.
Mas como os exames feitos até aqui demonstram ser possível afirmar que, ao contrário do que se pode imaginar, a palavra não representa objetos, coisas ou fenômenos: A palavra sempre refere ideias ou juízos de coisas ou fenômenos[48].
Como os juízos de verdade ou de expectativas sempre resultam de fenômenos, somente depois de obtido o sentido dos objetos é que os juízos poderão ser representados pela palavra (que, em ultima análise, é também fenômeno).
Por isso, é preciso reconhecer que, quando o homem fala, ele fala da fala e não de coisas[49] e a fala, nesse contexto, sempre buscará sentido nos juízos e não em objetos, sendo mais uma ilusão do homem imaginar que a palavra possa representar a essência de fenômenos e de seres antes mesmo de qualquer experiência.
A palavra só consegue representar a si mesma e só comunica quando estiver ligada a um sistema de ideias[50]. As coisas dão sentido às ideias e estas dão conteúdo e sentido à palavra. Palavra sem sentido é palavra sem juízo.
Embora a palavra seja uma manifestação sonora de sentido que compõe, em um primeiro momento, ideia de si mesma, ela não se relaciona com o mundo fenomênico, ou seja, não representa objetos, mas ideias de objetos que deram sentido à ideia da fala, integrando um sistema de segundo nível na inteligência do homem e sempre resultante da experiência. Mas é fundamental entender que as experiências não dizem respeito a fatos, mas às ideias de fatos[51].
O fato, portanto, não dá sentido à palavra, mas ao juízo e será sempre verdade em relação ao sujeito ao fato e não ao sujeito à fala, sendo essa a razão pela qual os fatos da história são sempre construções e não revelação[52], pois os fatos que dão conteúdo às ideias estarão sempre distantes dos sentidos que dão sentido ao mundo do homem.
O homem e suas instituições
Desvendar os processos físicos e químicos que resultam no sistema que permite a existência da vida não é tarefa a ser cumprida em um estudo filosófico e, ao que tudo indica, é bem provável que seja a eterna tarefa da ciência. Mas, se por um lado tem-se por impossível desvendar os processos fenomênicos no âmbito de reflexões dessa natureza, entender a forma ou como ocorrem os relacionamentos entre o sistema de inteligência humana e a objetividade é dever de qualquer estudo que se proponha a avançar no terreno das competências que permitem ao homem pensar, instrumento que serve de guia para o seu agir no mundo.
As instituições humanas são diversas e variam de acordo com o estágio de desenvolvimento das sociedades e, embora não seja objetivo delimitar a todas elas, é necessário registrar, mesmo que sumariamente, as ideias sobre o que se deve ter a respeito das principais criações humanas, para poder compreender e levar adiante os propósitos do presente estudo.
O homem se serve de quatro grandes instituições para organizar os diferentes contextos de seu mundo: a moral (em que o homem se descobre pensando); a ética (no qual age em face dos outros e da natureza); o direito (no qual domina o outro) e, a política, (no qual o homem, fazendo uso de todos os meios à sua disposição, busca atender aos seus interesses).
A constituição do ambiente moral é sempre individual, subjetivo e embora se possa falar em uma moral coletiva, que decorre do convívio do homem em sociedade, isso não retira a principal característica dela ser o resultado das ideias que o homem constrói sobre o mundo (sobre as coisas, sobre si e sobre os outros).
Na ética, já não há apenas o homem pensando, mas o homem agindo em relação ao outro e à natureza a partir do sistema de ideias que construiu e, diferentemente da moral na qual o homem consegue construir sistemas baseados unicamente em juízos, na ética a construção se dá a partir do mundo e dos outros, o que condiciona o seu agir de determinada forma.
Por fim, é importante deixar claro que enquanto a moral se relaciona com o sistema de juízos[53], a ética se relaciona com os sentidos e, embora ambas ocupem praticamente os mesmos espaços e influenciem-se mutuamente na construção da inteligência do homem, a fim de levar adiante o presente estudo é possível separá-las nesses dois ambientes: o ambiente das idéias e o da ação[54].
O direito como instituição humana
O direito é o meio que substitui o uso da força bruta na regulação das relações de poder em sociedade e representa, enquanto instituição, um estágio avançado no desenvolvimento da cultura humana.
O direito é a expressão de maior relevância nas sociedades e para que possa ser estudado enquanto fenômeno cultural, ele precisa ser tomado enquanto instrumento, cuja finalidade é disciplinar relações de poder.
O direito inicia sempre por meio da força[55], mas evolui rapidamente para um sistema organizado pela palavra, que qualifica acontecimentos do mundo natural estabelecendo relações entre pessoas e entre pessoas e fatos.
Em se tratando de uma instituição com a finalidade de regular relações, nada é mais relevante para estudos que objetivem ordenar esse ambiente do que a clara e precisa delimitação das referências utilizadas para organizar o discurso do jurista.
Muitos são os obstáculos a superar até que seja possível o cumprimento dessa tarefa. A primeira dificuldade a ser vencida será a de encontrar critérios seguros que permitam separar as noções fundamentais que orientam a inteligência humana a refletir, com um mínimo de ordem, sobre o direito.
Além da afetação natural do debate pela ingerência dos interesses do homem, quase sempre dissimulados em alegações sobre verdade e justiça, o jurista encontrará uma dificuldade adicional para a resolução dessa questão.
O homem ainda não conseguiu, por conta da filosofia que se perdeu ao não explicitar o que se deve ter por certezas, verdades e crenças, ordenar aptidões que lhe permitiriam compreender o “mundo” no qual se encontra presente, com a finalidade de separar o que é produto da realidade objetiva do que é resultante de sua capacidade de imaginação.
Faltando o domínio das referências utilizadas para “pensar” o que se deve ter por direito, não é possível construir as referências que possibilitam dar um passo adiante na tarefa de representar, por meio de palavras, as correspondências existentes entre os acontecimentos da realidade natural e o “mundo” jurídico.
O direito se expressa por meio de um sistema de normas, mas normas e direito não se confundem, pois este é meio que substitui o poder e, aquelas, expressão do poder na forma de discurso.
Debater e investigar as origens do poder que dão validade e eficácia ao direito é tarefa da sociologia e da política. Organizar o discurso do direito é missão do jurista. Embora pareça uma tarefa simples, assim como ocorre com objetos na matemática, a tradição acadêmica tem induzido o estudante a imaginar que o direito é apenas derivado de relacionamentos entre normas[56] e isso corrompe de tal maneira a inteligência humana que muitos alunos jamais conseguem recuperar a capacidade de entender os sistemas jurídicos e, a depender do acúmulo de informações como essas, algumas inteligências tornam-se totalmente incapazes de compreender corretamente a mais elementar das instituições jurídicas.
Não obstante a importância da explicitação das relações entre normas para a distribuição hierárquica do poder entre instituições e homens, fracassaram por completo aqueles que imaginaram ser possível construir sistemas jurídicos orientados unicamente a partir de relações entre normas[57].
O mundo do direito é o mundo dos sujeitos e dos fatos e só é possível compreendê-los quando se adquirem aptidões que tornam possível entender as relações que o sistema normativo, por sua linguagem, estabelece entre eles.
A interpretação no direito
Se é correto afirmar que o direito, enquanto fala do Estado, se manifesta pela palavra, e que a palavra só tem sentido quando expressa ideias de fenômenos[58], a primeira questão que precisa ser posta em ordem para que seja possível tratar do tema interpretação diz respeito ao processo utilizado para esse fim.
Não resta dúvida alguma de que o direito tem por finalidade disciplinar relações entre pessoas e entre pessoas e fatos. Em razão disso, a primeira questão a ser resolvida para dar um passo adiante, é pôr em ordem os fatos naturais ou decorrentes da ação humana que constroem as ideias utilizadas pelo jurista, no processo de interpretação.
Essa identificação é necessária para demonstrar que o direito, enquanto instituição, relaciona pessoas e fatos e, como instrumento do Estado, comunica “sentidos” e ordena ações.
A principal tarefa do jurista é, então, a de pôr em ordem o ambiente no qual são construídas as relações entre impressões e juízos para ordenar as ações humanas. Essa tarefa é fundamental, pois somente assim será possível colocar sob controle da inteligência a interpretação no direito, delimitando de forma clara os espaços reservados ao exercício da discricionariedade nesse processo de conhecimento e decisão.
Somente após isso é que será possível separar, no discurso jurídico, o que se refere a acontecimentos naturais, tidos como verdades, buscados no ambiente da sua inteligência ou na do outro[59], daquilo que ele propõe que seja tomado enquanto entendimento sobre esses mesmos acontecimentos.
Sem essa separação não é possível identificar, no discurso jurídico, o que é resultante de dados analíticos, históricos, subjetivamente situados e tidos como verdades em relação a um determinado sujeito, do que o sistema busca comunicar enquanto “sentido” a respeito disso.
Em relação a esses acontecimentos naturais e fenomênicos, conforme já registrado no início deste estudo, os dados analíticos da natureza, produtores do sistema de juízos, são sempre parciais, temporalmente atrasados e sujeitos a permanente retificação e, em relação a eles, jamais será possível tê-los na conta das certezas ou tomar por verdade para todos os homens, razão pela qual a interpretação estará sempre sujeita ao grau de desenvolvimento das aptidões racionais do jurista[60].
Esse é um dos principais motivos pelo qual a hermenêutica contemporânea perdeu-se completamente, pois, ao abandonar o debate sobre o aprimoramento do ambiente natural utilizado para construção da inteligência do jurista, abriu mão da única referência segura que possuía para organizar a objetividade que institui o mundo do direito.
E, além disso, ao imaginar ser possível construir um ambiente no qual o homem conseguiria dominar e entender o mundo unicamente a partir de um sistema construído pela linguagem[61] produziu-se um modelo de inteligência que deixa de ser resultado da objetividade para ser construída unicamente pela palavra[62].
Com isso o homem perde o único instrumento que o liga à natureza e organiza sua inteligência e, o que pior, sacrificando os principais instrumentos que lhe permitem distinguir realidade e imaginação. A contar disso o homem somente consegue dar sentido ao mundo quando encontra, no acervo de conhecimentos históricos, modelos para orientar sua inteligência[63].
O ser humano não tem como construir sentidos ou ser educado apenas pela linguagem (que serve como fundamento dos conhecimentos históricos), mas pelo ordenamento dos juízos e só quando consegue estabelecer relações (que se fazem por meio do “mundo” das ideias) entre linguagem e sentidos é que os conhecimentos históricos ganham relevância.
Considerações finais
O estabelecimento de um critério seguro para pôr às claras idéias de verdade e de crença constituem na principal contribuição do estudo. Mas é preciso ainda desenvolver melhor esses dois assuntos para demonstrar que enquanto os juízos de verdade estão sempre voltados para o passado e para as experiências do homem, os juízos de crenças apontam para frente, servindo de farol a iluminar o futuro.
Contudo, sabendo-se que a inteligência do homem não é resultante somente de suas verdades, mas também das expectativas que tem sobre si, não há dúvida alguma que o futuro da civilização resultará da escolha que o homem fizer ao construir instituições éticas e morais assentadas sobre crenças ou sobre verdades.
Informações Sobre o Autor
Paulo J. B. Leal
Advogado e Professor