Resumo: O presente trabalho é resultado de pesquisa em doutrinas e jurisprudências que levaram ao estudo da interrupção terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos, que são fetos com má formação congênita onde a inexistência do cérebro impede o curso natural da vida extra uterina, o que causou discussões doutrinárias no meio médico e jurídico. Pretende demonstrar os danos que uma gestação de feto anencéfalo pode vir a causar a mãe, caso a mesma seja impedida de interromper a gravidez, levando a gestação até o momento de seu parto, tratando de seus aspectos médicos, jurídicos e psíquicos da mãe. Será, abordado, ainda, o posicionamento do Supremo Tribunal Federal nos casos comprovados em que o feto é anencéfalo.
Palavras chave Interrupção Terapêutica da Gravidez. Anencefalia.
Abstract: The present work is a result of research in doctrines and jurisprudence that led to the study of the therapeutic interruption of pregnancy of anencephalic fetuses, which are fetuses with congenital malformation where the absence of the brain prevents the natural course of extra uterine life, which caused doctrinal discussions in the medical and legal environment. It intends to demonstrate the damage that a pregnancy of an anencephalic fetus can cause the mother, if she is prevented from interrupting the pregnancy, leading to the gestation until the moment of her delivery, dealing with its medical, legal and psychic aspects of the mother. The position of the Federal Supreme Court in cases where the fetus is anencephalic will also be addressed.
Keywords Therapeutic Interruption of Pregnancy. Anencephaly.
Sumário: Introdução; 1. Conceito de Anencefalia; 1.1 A discussão acerca da interrupção terapêutica da gravidez; 2. Anencefalia e o Supremo Tribunal Federal; 2.1 Casos legais de aborto; 3. Dignidade da pessoa humana; 3.1 Os danos que uma gestação de feto anencéfalo podem trazer a gestante; 4. Considerações finais.
INTRODUÇÃO
O presente trabalho visa estabelecer o estudo da interrupção terapêutica da gravidez, quando detectado através de exames de ultrassonografias a presença de patologia congênita, que afeta a formação encefálica e dos ossos do crânio, levando ao diagnóstico irreversível de anencefalia.
Pretende demonstrar a posição atual do Supremo Tribunal Federal quanto à possibilidade de interrupção terapêutica da gravidez, quando diagnosticada a presença da anomalia no feto. Mostrando ainda as formas de aborto legais, tipificadas em nosso Código Penal Brasileiro.
O presente artigo irá tratar do princípio fundamental da dignidade da pessoa humana da gestante, e em seu último capítulo irá tratar dos danos que uma gestação de feto anencéfalo pode vir a ocasionar na gestante, caso esta não consiga interromper a gestação. Estando elencado entre os possíveis danos que a gestante pode sofrer a eclampsia, a embolia pulmonar, o aumento do volume do líquido amniótico, podendo até mesmo vir a gestante a óbito. Além do dano psicológico que a gestante pode vir a sofrer.
1 CONCEITO DE ANENCEFALIA
De acordo com o conceito dado pela medicina, quando o feto possui anencefalia, este possui uma má-formação congênita, onde não há o fechamento do tubo neural, e o feto não possui hemisférios cerebrais e o córtex, existindo somente resíduos do tronco encefálico. Pela má-formação, há a ausência de parte ou completa do cérebro e do crânio, faz com que esse feto não possa vir a ter um curso natural da vida extrauterina.
Quando a gestação completar 12 semanas, já é possível ser diagnosticado se o feto que está sendo gerado possui anencefalia, através de exame de ultrassonografia, sendo possível visualizar o segmento cefálico do feto. A anencefalia faz com que o feto não tenha todas as funções superiores do sistema nervoso central, o qual é responsável pela consciência, comunicação, cognição, emotividade, afetividade e vida relacional. Possuindo somente algumas funções inferiores às quais controlam as funções vasomotoras, a respiração e a medula espinhal.
Existem casos raros de fetos anencéfalos que sobreviveram poucos dias fora do útero, pois na maioria dos casos, quando o feto não vem a óbito em fase intrauterina, o feto anencéfalo sobrevive apenas alguns minutos ou horas após o parto.
Conforme Resolução do CFM nº 1949/2010, publicada no Diário Oficial da União em 6 de julho de 2010, considerou que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica. A referida Resolução revogou a Resolução do CFM nº 1.752/04, que tratava da autorização do uso de órgãos e tecidos de anencéfalos para transplante, mediante autorização prévia dos pais. A Resolução revogada considerava que os anencéfalos são natimortos cerebrais pelo fato de não possuírem hemisférios cerebrais, tendo o feto parada cardiorrespiratória durante as primeiras horas pós-parto.[1]
Nos casos em que há o diagnóstico de doença, não há nenhum tratamento possível para reverter o quadro. Conforme Organização Mundial de Saúde não é recomendado que se tente ressuscitar o bebê anencéfalo em casos de parada cardiorrespiratória.
Dentre as causas que causam a anencefalia no feto, está o fato de a mãe sofrer uma deficiência de ácido fólico durante a gestação, entretanto, fatores genéticos também podem predispor o aparecimento da doença.
Conforme relatos da Organização Mundial da Saúde, o Brasil foi enumerado como o quarto país em que há o maior número de diagnósticos de bebês anencéfalos no mundo. Havendo uma incidência de um caso para cada setecentos bebês que nascem por ano.
1.1 A DISCUSSÃO ACERCA DA INTERRUPÇÃO TERAPÊUTICA DA GRAVIDEZ
Existe discussão de moral quanto à legalidade da interrupção terapêutica da gravidez e durante muitos anos houve também essa discussão no campo jurídico, estando esta ultrapassada no momento, tendo em vista o julgamento da ADPF nº 54 no Supremo Tribunal Federal, a qual tornou legítima a interrupção terapêutica da gravidez quando detectado tratar-se de um feto anencéfalo.
Parte da sociedade, com ênfase em comunidades religiosas, se posicionam de forma radical contra a interrupção da gestação, essas comunidades afirmam que deve-se preservar a vida humana a todo custo e ante toda e qualquer condição.
Possuindo um posicionamento concepcionista, as entidades religiosas relatam que o surgimento da vida se dá na concepção, sendo reconhecido pela Constituição da República Brasileira de 1988, em seu artigo 5º, o direito à vida como um direito individual indisponível e irrenunciável, logo, aqueles que possuem esse posicionamento, não aceitam que seja retirada nem a própria vida, nem a de outrem, justificando o posicionamento contrário a permissão da interrupção terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos.
Àqueles que possuem o posicionamento contrário à legalização da interrupção, utilizam-se ainda do argumento de que, no Brasil é proibida de forma constitucional a pena de morte, havendo tipificação no Código Penal Brasileiro como crime, e ainda utilizam como argumento o fato de que, aquele que praticar o homicídio, deve responder pela prática do crime e ser punido pelo mesmo, conforme descrito no artigo 121. Assim como, aquele que cometer ou provocar aborto, com consentimento da gestante ou sem o mesmo, estará incidindo em crime tipificados nos artigos 125 e 126, ambos também do Código Penal Brasileiro. E ainda, pune o Código Penal Brasileiro, aquele que instiga ou auxilia alguém a suicidar-se, conforme descrito no artigo 122. Sendo todas estas, formas de preservar a vida.
Entretanto, àqueles que são favoráveis à legalização da interrupção terapêutica da gravidez, em casos em que haja o diagnóstico de doenças congênitas irreversíveis, como é o caso da anencefalia, sustentam que para que ocorra o aborto, é preciso que exista uma potencial expectativa de vida extrauterina para o feto que estava sendo gerado. Fato que não ocorre nos casos em comprovado caso de anencefalia, tendo em vista que neste caso não há potencialidade de vida extrauterina.
Relatam ainda, àqueles que estão de acordo com a legalização da antecipação terapêutica do parto nos casos de feto anencéfalo, que a Constituição Brasileira assegura, assim como o direito à vida, também o direito à dignidade da pessoa humana, conforme descrito em seu artigo 1º, inciso III, sendo aceitável que não se prolongue o sofrimento da mãe, de ter que gerar um feto que com certeza irá morrer após o parto, sendo esta uma verdadeira tortura psicológica para a mulher.
A Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 1752/2004 entendia que o feto anencéfalo é natimorto cerebral, tendo em vista que não possui cérebro, a referida Resolução foi posteriormente revogada pela Resolução do CFM nº 1949/2010, a qual considerou que para os anencéfalos, por sua inviabilidade vital em decorrência da ausência de cérebro, são inaplicáveis e desnecessários os critérios de morte encefálica. Entretanto, a discussão está no ponto em que, conforme nossa Lei, àquele que nasce e respira autonomamente está vivo, adquirindo com isso sua personalidade civil, a qual confere a este a possibilidade de exercer direitos e obrigações, como pessoa juridicamente capaz, sendo este o caso dos fetos anencéfalos, pois possuem o tronco cerebral, o qual permite que respirem, entretanto, os fetos que possuem esta patologia resistem pouco tempo após o nascimento.[2]
2 ANENCEFALIA E O SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL
Após anos de discussão acerca da legalização ou não da interrupção terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos, o Supremo Tribunal Federal, decidiu por 8 votos a 2, que quando diagnosticado a presença da anomalia no feto, caso a gestante opte por interromper a gravidez, essa não estará cometendo crime de aborto, assim como o médico que fizer a intervenção cirúrgica e interromper a gestação também não estará incidindo em crime.
A grande parte dos ministros entenderam que trata-se de caso de um feto natimorto, aquele que é diagnosticado com anencefalia, por esse motivo não deve ser tido como um caso de aborto, tipificado como crime pelo Código Penal Brasileiro, a interrupção terapêutica da gravidez de um feto anencéfalo, tendo em vista, que este feto não tem expectativa de vida extra uterina.
O Código Penal Brasileiro, o qual passou a viger ainda em 1940, faz previsão de dois casos em que o aborto é legal, sendo eles, quando a gestação põe em risco a saúde da gestante, e o outro, nos casos em que a gravidez resultou de estupro.
A maior parte do Tribunal argumentou que, quando diagnosticada a anencefalia no feto, o bebê morre instantes após o parto. Nos casos de anencefalia não há uma expectativa de vida, e por esse motivo não há que se defender o direito à vida garantida na Constituição Brasileira.
Os ministros que defendiam a legalização da interrupção terapêutica da gravidez nos casos de comprovado diagnóstico de anencefalia alegaram ser uma espécie de tortura impedir que a mulher grávida possuindo o diagnóstico de que seu feto possui a anomalia não possa interromper a gravidez.
O julgamento no Supremo Tribunal Federal durou dois dias. No primeiro dia votaram os Ministros, Marco Aurélio Mello, Rosa Weber, Joaquim Barbosa, Luiz Fux e Cármen Lúcia, os quais defenderam a legalização da interrupção terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos; e Lewandowski votou pela não legalização. No segundo dia de julgamento, votaram os Ministros Carlos Ayres Britto, Gilmar Mendes e Celso de Mello, também a favor da legalização da interrupção da gravidez, quando diagnosticada a anomalia; e o presidente da Corte, Cezar Peluzo, votou contra a legalização.
Em seu voto, o Ministro Marco Aurélio votou a favor, sendo um dos 8 Ministros que votaram sim , onde o STF julgou procedente a ADPF 54, declarando a inconstitucionalidade da interpretação segundo a qual a interrupção desse tipo de gravidez é conduta tipificada nos artigos 124, 126, 128, incisos I e II, todos do Código Penal.
A discussão acerca da interrupção da gestação de feto anencefálico iniciou em 2004, quando a Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde proporem ação, a qual levou oito anos para ir a plenário. Na ADPF, o pedido da entidade era para que o Supremo firmasse entendimento de que não é caso de aborto a antecipação terapêutica do parto, buscando permissão para que gestantes com esse quadro de feto anencéfalo pudessem sem autorização judicial realizar a interrupção da gestação.
Conforme o entendimento, o feto anencéfalo mesmo que esteja biológicamente vivo, é juridicamente morto, não gozando de proteção jurídica. Conforme o relator Ministro Marco Aurélio “a interrupção da gestação de feto anencéfalo não configura crime contra a vida, revela-se conduta atípica”.
Foram quatro dias de intenso debate nos quais falaram representantes do governo, especialistas em genética, entidades religiosas e da sociedade civil. De um lado, defensores do direito das mulheres de decidir sobre prosseguir ou não com a gravidez de bebês anencéfalos, e do outro lado, estavam as pessoas que acreditam ser a vida intocável, mesmo em se tratando de feto sem cérebro.
A matéria foi ao plenário da Corte em 11 de abril de 2012. Em seu voto, o ministro Marco Aurélio se referiu à questão como “uma das mais importantes analisadas pelo Tribunal” e ressaltou a importância de um pronunciamento do Supremo, respaldado por dados da Organização Mundial de Saúde.
O Ministro Marco Aurélio destacou, que o Brasil é o quarto país no mundo em casos de fetos anencéfalos, ficando atrás apenas do Chile, México e Paraguai. A incidência verificada durante o período foi de aproximadamente um a cada mil nascimentos.
“Na verdade, a questão posta sob julgamento é única: saber se a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo coaduna-se com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. Para mim, (…) a resposta é desenganadamente negativa.”
A separação entre Estado e Igreja, foi o primeiro ponto debatido pelo relator Marco Aurélio, onde segundo este, a Constituição Federal de 1988 consagrou não apenas a liberdade religiosa em seu artigo 5º, inciso VI, mas também o caráter laico do Estado, descrito no artigo 19, inciso I.
Marco Aurélio, explica ainda que anencefalia consiste na malformação do tubo neural, caracterizando-se pela ausência parcial do encéfalo e do crânio, resultante de defeito no fechamento do tubo neural durante a formação embrionária. Em outras palavras, o anencéfalo seria um morto cerebral, com batimento cardíaco e respiração. Sendo, portanto, necessário rechaçar a assertiva de que a interrupção da gestação do feto anencéfalo consubstancia aborto eugênico. “O anencéfalo é um natimorto. Não há vida em potencial. Logo não se pode cogitar de aborto eugênico, o qual pressupõe a vida extrauterina de seres que discrepem de padrões imoralmente eleitos.”
Diferentemente do que sustentado por alguns, o ministro afirmou não ser possível invocar, pela proteção dos fetos anencéfalos, a possibilidade de doação de seus órgãos. Marco Aurélio explica que, não se pode obrigar a manutenção de uma gravidez apenas para viabilizar a doação de órgãos, sob pena de “coisificar a mulher e ferir, a mais não poder, a sua dignidade“. O relator ainda destacou a impossibilidade de se aproveitar os órgãos de um feto anencéfalo.
“Ainda que os órgãos de anencéfalos fossem necessários para salvar vidas alheias (…), não se poderia compeli-la [gestante], com fundamento na solidariedade, a levar adiante a gestação, impondo-lhe sofrimentos de toda ordem. Caso contrário, ela estaria sendo vista como simples objeto, em violação à condição de humana.”
Conforme o Ministro, a matéria em discussão possui confronto entre, de um lado, os interesses legítimos da mulher em ver respeitada sua dignidade e, de outro, os interesses de parte da sociedade que deseja proteger todos os que a integram independentemente da condição física ou viabilidade de sobrevivência. O tema envolve a dignidade humana, o usufruto da vida, a liberdade, a autodeterminação, a saúde e o reconhecimento pleno de direitos individuais, especificamente, os direitos sexuais e reprodutivos de milhares de mulheres. No caso, não há colisão real entre direitos fundamentais, apenas conflito aparente.
De acordo com Marco Aurélio, a questão posta sob julgamento visa saber se a tipificação penal da interrupção da gravidez de feto anencéfalo coaduna-se com a Constituição, notadamente com os preceitos que garantem o Estado laico, a dignidade da pessoa humana, o direito à vida e a proteção da autonomia, da liberdade, da privacidade e da saúde. Para mim, Senhor Presidente, a resposta é desenganadamente negativa.
De acordo com o Ministro Marco Aurélio em seu voto, o direito à vida dos anencéfalos nãobdeve ser invocado. Anencefalia e vida são termos antitéticos. Conforme demonstrado pelo Conselho Federal de Medicina, o feto anencéfalo não tem potencialidade de vida, trata-se de um natimorto cerebral. O anencéfalo não é titular do direito à vida, eis que não possui qualquer expectativa de vida extrauterina. Entendendo o Ministro que a interrupção da gestação de feto anencefálico não configura crime contra a vida – revela-se conduta atípica.
A ministra Rosa Weber acompanhou o voto do relator da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, o ministro Marco Aurélio, a Ministra defendeu que a interrupção ou antecipação do parto de feto anencéfalo deveria ser excluído do rol dos crimes contra a vida, conforme previsto nos artigos 124 e 126 do Código Penal brasileiro. Julgando procedente a ação, ajuizada pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde (CNTS).
Em seu voto, a ministra Rosa Weber destacou que, para o direito, a discussão do caso, não é em prol do direito do feto anencefálico à vida, eis que conforme o conceito de vida do Conselho Federal de Medicina, o feto anencefálico jamais terá condições de desenvolver uma vida com a capacidade psíquica, física e afetiva inata ao ser humano, pois não terá atividade cerebral que o qualifique como tal. A Ministra destaca que a discussão travada é em relação ao direito da mãe de escolher se deseja levar adiante uma gestação cujo feto nascerá morto ou morrerá logo após o parto, sem desenvolver qualquer atividade cerebral, física, psíquica ou afetiva, própria do ser humano, ou se essa mãe deseja interromper essa gestação.
Embora, em seu voto, a ministra sustentasse a relatividade dos conceitos da ciência sobre o que é vida e sobre a aplicabilidade dos conceitos e paradigmas da ciência às demais áreas da vida humana, em virtude de sua mutabilidade, ela se reportou, em seu voto, à Resolução nº 1480/97 do Conselho Federal de Medicina, que estabeleceu como parâmetro para diagnosticar a morte de uma pessoa a ausência de atividade motora em virtude da morte cerebral, isto é, a certeza de que o indivíduo não apresentará mais capacidade cerebral. Este é, segundo a ministra, “um critério claro, seguro e garantido” que pode ser aplicado, por analogia, ao feto anencefálico. Conforme a Ministra “A gestante deve ficar livre para optar sobre o futuro de sua gestação do feto anencéfalo”.
A Ministra Rosa Weber concluiu o seu voto pela procedência da ADPF 54: “Diante do exposto, voto pela procedência da presente ação, para dar interpretação conforme aos artigos 124 e 126 do Código Penal, excluindo, por incompatível com a nossa Lei Maior, a interpretação que entende a interrupção ou antecipação do parto, em caso de anencefalia comprovada, como crime de aborto”, concluiu a ministra.
Após a Ministra Rosa Weber, votou o Ministro Joaquim Barbosa, tendo este votado no mesmo sentido, ao pedir a juntada, com algumas modificações, do voto elaborado por ele sobre essa matéria na análise do Habeas Corpus 84025.
O quarto a votar na sessão Plenária foi o ministro do STF Luiz Fux, tendo votado também a favor da possibilidade da interrupção da gravidez quando diagnosticada a anencefalia. No início de seu voto, que durou cerca de uma hora, o ministro Luiz Fux registrou a definição de anencefalia dada pelo National Institute of Neurological Disorders and Stroke (NINDS). Conforme o Ministro “Impedir a interrupção da gravidez sob ameaça penal efetivamente equivale a uma tortura, vedada pela Constituição Federal”.
A questão debatida na Corte no julgamento da ADPF 54, foi ajuizada em 2004 pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde. O objetivo da entidade era que fosse declarada inconstitucional qualquer intepretação do Código Penal no sentido de criminalizar a antecipação terapêutica do parto de fetos anencéfalos.
Com base em estudos e dados científicos, o ministro Luiz Fux afirmou ser possível chegar a “três conclusões lastimáveis” no que diz respeito a gestação de anencéfalos, pois a expectativa de vida deles extrauterina é absolutamente efêmera, que o diagnóstico de anencefalia pode ser feito com razoável índice de precisão e que as perspectivas de cura da deficiência na formação do tubo neural não existem atualmente.
O ministro destacou a importância de se proteger a saúde física e psíquica da mãe. Luiz Fux desafiou a possibilidade de qualquer pessoa comprovar, à luz do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade, que é justo relegar a gestante de um feto anencéfalo aos “bancos de um tribunal de júri” para responder penalmente por aborto. “Por que punir essa mulher que já padece de uma tragédia humana?”, questionou o Ministro.
O ministro entende que a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos é matéria de saúde pública que aflige, em sua maioria, mulheres de menor poder aquisitivo, sendo, portanto, uma questão a ser tratada como política de assistência social. Segundo Luiz Fux, é importante dar à gestante “todo apoio necessário em uma situação tão lastimável” e não punir com uma repressão penal destituída de qualquer fundamento razoável.
Luiz Fux destacou que não iria discutir em seu voto qual a vida mais importante: se a da mulher ou a do feto. “Não me sinto confortável para fazer essa ponderação”, disse. Ele explicou que o debate é alvo de “significativo dissenso moral” e que, por isso mesmo, impõe uma postura “minimalista do Judiciário”, adstrita à questão da criminalização ou não da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos.
A ministra Cármen Lúcia Antunes Rocha seguiu os votos dos ministros que a antecederam, votando também pela procedência do pedido feito na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54. Segundo a ministra, todos estão preocupados com o direito à vida e à dignidade da pessoa humana, “com a visão que cada um tem de mundo e da própria vida”.
Cármen Lúcia destacou que o STF não está decidindo nem permitindo a introdução do aborto no Brasil, não estando também garantindo nenhuma possibilidade de aborto em virtude de qualquer deformação, mas apenas quando diagnosticado a má formação fetal com anencefalia. Conforme Cármen Lúcia “Estamos deliberando sobre a possibilidade jurídica de uma pessoa ou de um médico ajudar uma mulher que esteja grávida de um feto anencéfalo, a fim de ter a liberdade de fazer a escolha sobre qual é o melhor caminho a ser seguido, quer continuando quer não continuando com essa gravidez”.
A Ministra Cármen Lúcia fundamentou o seu voto no direito à dignidade da vida e no direito à saúde. “Todas as opções, mesmo essa interrupção, são de dor. A escolha é qual a menor dor, não é de não doer porque a dor do viver já aconteceu, a dor do morrer também”, destacou a ministra, entendendo que a interrupção da gravidez de fetos anencéfalos não constitui crime.
A Ministra destacou ainda que o pai do feto anencefálico também sofre, havendo a necessidade de ser levado em consideração na sua dignidade, assim como toda a família, estando todos envolvidos quando se fala em dignidade.
Em seu voto Cármen Lúcia destacou ainda que “Não há bem jurídico a ser tutelado como sobrevalor pela norma penal que possa justificar a impossibilidade total de a mulher fazer a escolha sobre a interrupção da gravidez, até porque talvez a maior indicação de fragilidade humana seja o medo e a vergonha”, eis que conforme a Ministra nada fragiliza mais o ser humano do que o medo e a vergonha.
Conforme destacou em seu voto, Cármen Lúcia informou que em um das cartas enviadas aos ministros, uma gestante contou que, após ter descoberto a anencefalia do seu feto, estando gestante de cinco meses, passou a ficar trancada em casa por vergonha, pois em toda fila que a mesma parava, perguntavam quando o bebê iria nascer, qual seria o nome da criança e o que a mãe pensava para o filho, no entanto essa mulher não podia responder.
Cármen Lúcia concluiu o seu voto dizendo que “Considero que na democracia a vida impõe respeito. Neste caso, o feto não tem perspectiva de vida e, de toda sorte, há outras vidas que dependem, exatamente, da decisão que possa ser tomada livremente por esta família no sentido de garantir a continuidade livre de uma vida digna”.
O sexto a votar no julgamento da ADPF 54, foi o ministro Ricardo Lewandowski, o qual divergiu do relator, sendo o primeiro Ministro a votar nesse julgamento pela improcedência do pedido formulado pela Confederação Nacional dos Trabalhadores na Saúde de que o STF fixe entendimento para que a antecipação terapêutica de feto anencefálico não configure crime.
Seguindo duas linhas de raciocínio o Ministro Lewandowski destacou os limites objetivos do controle de constitucionalidade das leis e da chamada interpretação conforme a Constituição, com base na independência e harmonia entre os Poderes. “O STF, à semelhança das demais cortes constitucionais, só pode exercer o papel de legislador negativo, cabendo a função de extirpar do ordenamento jurídico as normas incompatíveis com a Constituição”, disse o Ministro. Mesmo este papel, deve ser exercido com “cerimoniosa parcimônia”, tendo em vista o risco de usurpação de poderes atribuídos constitucionalmente aos integrantes do Congresso Nacional. Conforme Lewandowski “Não é dado aos integrantes do Judiciário, que carecem da unção legitimadora do voto popular, promover inovações no ordenamento normativo como se fossem parlamentares eleitos”.
O ministro Lewandowski destacou ainda que a possibilidade de que uma decisão favorável ao aborto de fetos anencéfalos torne lícita a interrupção da gestação de embriões com diversas outras patologias que resultem em pouca ou nenhuma perspectiva de vida extrauterina. Citando dados da Organização Mundial de Saúde sobre malformações congênitas, deformidades e anomalias cromossômicas.
Para Lewandowski, a decisão judicial que permite o aborto de fetos portadores de anencefalia, “ao arrepio da legislação penal vigente”, além de “discutível do ponto de vista ético, jurídico e científico”, poderia fazer com que houvesse a possibilidade de interrupção da gestação de diversos outros casos. O Ministro destacou que “Sem lei devidamente aprovada pelo parlamento, que regule o tema com minúcias, precedida de amplo debate público, provavelmente retrocederíamos aos tempos dos antigos romanos, em que se lançavam para a morte, do alto de uma rocha, as crianças consideradas fracas ou debilitadas”.
Conforme Lewandowski, há a existência de diversos dispositivos legais que estão em vigor e que resguardam a vida intrauterina, como o Código Civil que em seu artigo 2º, estabelece que a lei ponha a salvo, “desde a concepção”, os direitos do nascituro. Lewandowski, esclarece em seu voto que essas normas vigentes então, também deveriam ser consideradas inconstitucionais ou merecer interpretação conforme a Constituição.
Conforme o ministro Ayres Britto, sexto ministro a votar pela autorização da interrupção da gravidez de fetos anencéfalos: “O que se pede é o reconhecimento desse direito que tem a mulher de se rebelar contra um tipo de gravidez tão anômala, correspondente a um desvario da natureza. Dar à luz é dar à vida e não à morte”. Para o Ministro, a interrupção da gestação em que o feto é anencéfalo não pode ser considerada como um aborto, isso porque o bebê não terá possibilidades de sobreviver de forma extrauterina, obrigar uma mulher a levar a gestação de um feto com anencefalia adiante, é submeter essa mulher a uma tortura. De acordo com o Ministro: “Levar às últimas consequências esse martírio contra a vontade da mulher corresponde à tortura, a tratamento cruel. Ninguém pode impor a outrem que se assuma enquanto mártir. O martírio é voluntário”.[3]
O Ministro Ayres Britto em seu voto diz ainda que no caso analisado de gestação anencefálica a gestante já tem o conhecimento desde que possua o laudo de anencefalia fetal de que o seu feto não sobreviverá de forma extrauterina, e que a decisão da mulher, “é mais que inviolável, é sagrada”, no que diz respeito ao amor materno, e a decisão da interrupção da gestação do feto anencefálico. No entanto, rechaça ainda que a mulher ainda que saiba que o seu feto possui a má formação objeto do julgamento, poderá essa mulher optar por levar a sua gestação até o fim.
Sendo o sétimo a votar, o Ministro Gilmar Mendes votou pela procedência da Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental 54, em análise pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal. Gilmar Mendes considerou a interrupção da gestação de feto anencefálico como aborto, no entanto, tratando-se de situação como causa de excludente de ilicitude, já tipificada no Código Penal, por ser comprovado que a gestação de feto anencefálico é perigosa à saúde da gestante.
Gilmar Mendes destacou ser necessário que as autoridades competentes regulamentem de forma adequada, com normas de organização e procedimento, o laudo da anencefalia a fim de “conferir segurança ao diagnóstico dessa espécie”. Enquanto pendente de regulamentação, o ministro destacou que, “a anencefalia deverá ser atestada por, no mínimo, dois laudos com diagnósticos produzidos por médicos distintos e segundo técnicas de exames atuais e suficientemente seguras”.
O Ministro Gilmar Mendes entendeu que o aborto de fetos anencéfalos está englobada entre as causas excludentes de ilicitude dispostas no Código Penal Brasileiro.
Gilmar Mendes retomou a discussão de que quando o Código Penal entrou em vigor, ainda em 1940, não se era possível devido as limitações com a tecnologia, prever que um feto seria anencéfalo ainda em período gestacional.
O Ministro votou pela procedência da Ação, entendendo que o médico que praticar aborto com o consentimento da gestante de feto anencefálico, não deverá ser punido, assim como a própria gestante.
O Ministro Celso de Mello foi o oitavo ministro a se pronunciar, o qual também votou a favor da interrupção da gravidez de feto anencéfalo, julgando procedente a ADPF 54, ajuizada na Corte pela Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, onde votou que nos casos de anencefalia, conforme a Constituição Federal e aos artigos 124, 126 e 128, incisos I e II do Código Penal, fosse declarada a inconstitucionalidade, com eficácia erga omnes e efeito vinculante, a realização voluntária a antecipação terapêutica do parto. Esclareceu que o tribunal não estaria legalizando o aborto, mas sim, decidindo que a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, após ser diagnosticado por profissional médico habilitado, seria um caso de antecipação terapêutica do parto, tendo em vista que não existe expectativa de vida para o bebê que possua a referida doença. Conforme o Ministro: “Nós não estamos autorizando práticas abortivas, legitimando a prática do aborto. Esta é uma questão que poderá ser submetida a essa Corte em outro momento”.[4]
O ministro Celso de Mello diz ainda que a mulher, após ter o diagnóstico de anencefalia fetal, poderá optar pela interrupção da gestação sem que haja a necessidade de autorização judicial, ou continuar com a gestação até um fim. Não há uma imposição que obrigue a mulher a interromper ou não a sua gestação, no caso, o que foi decidido, foi que a mulher pudesse ter a oportunidade de escolher se deseja levar a gestação de feto anencéfalo até o final da gestação, ou se decide por interromper a gestação de feto anencéfalo, conforme os princípios da dignidade da pessoa humana, da liberdade, da autodeterminação pessoal e da intimidade, sendo levado em consideração o grande índice de mortalidade das mulheres com a gravidez de anencéfalos, assim como os abalos psiquiátricos que possam vir a ter.
Em seu voto o Ministro Celso de Mello, mencionou ainda a palestra de um médico, onde segundo o qual o critério deve ser o mesmo previsto na Lei 9.434/97, que trata da remoção de órgão, partes e tecidos para fins de transplante e na Resolução 1.752/97 do Conselho Federal de Medicina, onde o ser humano é considerado morto no momento em que cessa completamente a atividade cerebral. Conforme esse entendimento, Celso de Mello destaca que o feto anencéfalo não é um ser humano vivo, eis que não tem cérebro e em momento algum irá desenvolver atividade cerebral, não havendo portanto, tipicidade de crime na conduta da interrupção da gestação de anencéfalo, eis que nesse caso não há vida a ser protegida.
No segundo dia de julgamento, apenas o presidente da Corte votou pela improcedência da ADPF 54. Segundo Cezar Peluzo, há grande diferença entre a discussão acerca do uso de células tronco em pesquisa onde não havia processo vital e dos fetos anencéfalos o qual pelo fato de morrer logo após o parto, é um indício de que existiu vida e, por esse motivo, estaria protegido pela Constituição. Cezar Peluzo relatou ainda acerca do risco de que, por conta de um diagnóstico incorreto, fetos com outras deformidades venham a ser abortados.
Segundo Peluzo, para que o aborto seja considerado crime basta a eliminação da vida, o que segundo o qual, ocorre nos casos de interrupção terapêutica do parto de anencéfalos, ainda que não possua viabilidade de vida extrauterina.
Encerrando o seu voto, o presidente Cezar Peluzo ressalta que não cabe ao STF atuar como legislador positivo, e que o Poder Legislativo não incluiu o caso em discussão dos anencéfalos nas hipóteses de abortos legais do artigo 124 do Código Penal. Concluindo que “É o Congresso Nacional que não quer assumir essa responsabilidade, e tem motivos para fazê-lo”.[5]
Entretanto, conforme estudo de médicos, da Sociedade Brasileira de Medicina Fetal, foi informado que existem na atualidade medidas para diagnosticar com 100% de segurança os casos de anencefalia, no primeiro trimestre de gestação, a partir da 8ª semana. A segurança técnica quanto ao diagnóstico da anencefalia ainda no período de gestação foi obtida nos anos de 1995-1996, com a ultrassonografia em três dimensões.
Nos casos em que sendo realizado o exame de ultrassonografia, persistir alguma dúvida quanto ao diagnóstico da doença, o médico pode utilizar outros meios para a obtenção precisa do diagnóstico de anencefalia, como o exame de ressonância magnética.
Quanto ao diagnóstico da doença durante o período de gestação, o médico Everton Pettersen relata que: “Podemos mostrar claramente o desenvolvimento do feto, o desenvolvimento de toda a calota craniana e do encéfalo deste feto, e podemos ver a total ausência da formação do encéfalo e da formação da calota craniana”.[6]
A decisão proferida pelo Supremo Tribunal Federal possui caráter vinculante e, portanto, obriga demais tribunais e órgãos públicos a obedecê-la.
A interrupção da gravidez de feto anencéfalo foi considerada como ato não abortivo, pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil. Após o Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, ter concedido à Confederação Nacional dos Trabalhadores da Saúde, liminar na qual foi reconhecido o direito constitucional da gestante em decidir se irá interromper ou não sua gestação no qual possui diagnóstico de feto anencefálico. A decisão na Ordem dos Advogados do Brasil se deu por maioria de votos, onde a maior parte dos conselheiros utilizou como base de seus votos, o voto do relator da matéria na OAB, o conselheiro Arx Tourinho, da Bahia, onde, conforme este, só é possível que haja aborto, quando houver possibilidade de vida do feto. [7]
Conforme Tourinho, em seu voto, relatou que o entendimento de Nélson Hungria, sobre a gravidez extrauterina assim como da gravidez molar, pode ser aplicado ao caso do feto anencéfalo: “O feto expulso (para que se caracterize aborto) deve ser produto fisiológico, e não patológico. Se a gravidez se apresenta como um processo verdadeiramente mórbido, de modo a não permitir sequer uma intervenção cirúrgica que pudesse salvar a vida do feto, não há falar-se em aborto, para cuja existência é necessária a presumida possibilidade de continuação da vida do feto”(Comentários ao código penal, Forense, 1958, vol. V, p. 207/208).[8]
Tourinho relatando em seu voto, que conforme entendimento médico, deve haver um tratamento da gestante de feto anencéfalo, tendo em vista que a ausência de cérebro do feto é considerada uma patologia, a qual deve ser tratada. Tourinho citou a professora Débora Diniz, pesquisadora do Núcleo de Estudos e Pesquisas em Bioética da Universidade de Brasília, “A ausência dos hemisférios cerebrais, ou no linguajar comum “a ausência de cérebro”, torna o feto anencéfalo a representação do subumano por excelência. Os subumanos são aqueles que, segundo o sentido dicionarizado do termo, se encontram aquém do nível humano. Ou, como prefere Jacquard, aqueles não aptos a compartilharem da “humanitude”, a cultura dos seres humanos.” (Aborto seletivo no Brasil e os alvarás judiciais).[9]
2.1 CASOS LEGAIS DE ABORTO
Dentre os casos legais de aborto em nosso ordenamento jurídico, está o aborto necessário, descrito no inciso I, do artigo 128 do Código Penal brasileiro, onde pelo qual não se pune o médico que realizar aborto quando não houver outra forma de salvar a vida da gestante, tendo em vista que o feto está pondo em risco a vida da mãe.
Outra forma de aborto permitido em lei é o aborto no caso de gravidez resultante de estupro, onde há um consentimento da gestante para que seja realizado o aborto, ou caso esta seja incapaz, que seu representante legal tenha consentido, conforme descrito no inciso II do mesmo dispositivo legal. Esse aborto também é tratado na doutrina como o aborto sentimental.
No julgamento da ADPF (Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental), nº 54, em 12/04/2012, foi julgada por maioria de votos, a ação para declarar a inconstitucionalidade da interpretação em que a interrupção terapêutica da gravidez de feto anencéfalo estaria tipificada no inciso I do artigo 128 do Código Penal brasileiro.
O Código Penal Brasileiro, o qual entrou em vigor ainda em 1940, faz previsão apenas desses dois casos em que o aborto é legal, sendo omisso quanto à permissão da interrupção da gravidez quando diagnosticada que trata-se de um feto anencéfalo. A razão para a referida omissão é que na década de 1940, quando passou a vigorar o Código Penal Brasileiro não era possível diagnosticar a doença enquanto o feto ainda estivesse o útero.
Foi aprovado, por votação simbólica da Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara, no dia 18 de maio de 2005, o Projeto de Lei (PL 4403/2004) o qual legaliza o aborto quando diagnosticado que trata-se de feto anencéfalo, alterando o Código Penal Brasileiro, sendo acrescentado no artigo 128 do Código Penal Brasileiro o inciso III, que trata do Aborto Terapêutico, tipificando a legalidade do aborto terapêutico, o qual será permitido nos casos em que seja diagnosticado que o feto possui grave e incurável anomalia, fato que não o possibilitará a vida extra uterina, como é o caso dos fetos anencéfalos, que não possuem uma potencial expectativa de vida.[10]
A maior parte dos Ministros que julgaram no Supremo Tribunal Federal a possibilidade da interrupção terapêutica da gravidez de fetos anencéfalos ponderou que os dois casos de abortos legais tipificados nos incisos I e II do Código Penal Brasileiro, visam a proteção da mulher, e que neste caso, a interrupção da gestação de um feto anencéfalo, também estaria protegendo a mulher, a qual poderia sofrer de dano psicológico.
Conforme o doutrinador Rogério Greco, o crime de aborto está elencado no Código Penal, dentro do capítulo que trata dos crimes contra a vida, motivo pelo qual o bem juridicamente protegido é a vida humana em desenvolvimento.[11]
Cabe ressaltar que no crime de aborto, o que se protege é a vida, entretanto, não há o que se falar em proteção à vida de um feto que por conta da anencefalia diagnosticada não possui uma potencial expectativa de vida, onde, nos casos em que não morrer em fase intrauterina, sua morte se dará nos primeiros instantes de vida extrauterina. Podendo, entretanto, vir a causar danos à saúde da gestante.
3 DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA
Permitir que a gestante interrompa uma gestação em que foi diagnosticado que o feto possui anencefalia não é uma questão de religião, pois em momento algum houve ofensa ao princípio fundamental do direito a religião e cultos. O Brasil é país democrático e laico, e o caso que trata da interrupção da gravidez de fetos portadores de anencefalia deve ser decidido pela ordem jurídica livre de dogmas e valores religiosos particulares, pois as leis não são subordinadas aos dogmas religiosos ou à fé.
A permissão da interrupção da gestação de feto com anencefalia tenta cessar a ofensa ao princípio da dignidade humana, o qual é ofendido quando se obriga a uma mãe carregar em seu útero durante meses um feto que possui a certeza de que não sobreviverá. Não é possível precisar o tamanho do sofrimento que uma mãe pode ter a cada exame de ultrassonografia, a cada mês que se passa e percebe a barriga crescendo, mas possuindo a certeza de que aquele feto gerado não sobreviverá muito tempo, havendo ainda a possibilidade de o feto vir a óbito ainda em fase intrauterina, o que acontece na grande maioria dos casos. Ao invés de fazer enxoval à espera do filho desejado, a gestante ou familiares, vão a funerária encomendar o pequeno caixão do feto portador da anencefalia, que por não haver um trâmite célere, em questões extremamente urgentes, como esses casos, a gestante acaba por dar à luz a um feto que sobrevive segundos, talvez minutos.
A nossa Constituição da República expressamente consagra o direito à dignidade, buscando pôr a salvo, a vida humana, de todo tipo de dor e injustiça, tendo em vista que é necessário que as pessoas vivam com dignidade. Com isso, há de ser protegido o direito à dignidade da gestante, a qual possui certeza devido a exames pré-natais que o feto que está gerando não possui uma potencial expectativa de vida extrauterina, devendo esta mãe ser poupada do sofrimento que a gestação lhe trará.
Conforme disposto na Constituição da Organização Mundial da Saúde (OMS/WHO) de 1946: “A saúde é um estado de completo bem-estar físico, mental e social, e não consiste apenas na ausência de doença ou de enfermidade. Gozar do melhor estado de saúde que é possível atingir constitui um dos direitos fundamentais de todo o ser humano, sem distinção de raça, de religião, de credo político, de condição econômica ou social. ”[12]
O que faz com que deva ser protegida a saúde e integridade física da gestante, no qual possui diagnosticado que o seu feto é portador da patologia anencefalia.
3.1 OS DANOS QUE UMA GESTAÇÃO DE FETO ANENCÉFALO PODE TRAZER A GESTANTE
A anencefalia como já mencionado, é diagnosticada através de exames de ultrassonografias ainda no período da gestação, nos exames chamados de pré-natais. Não existe atualmente na medicina, nenhum tipo de tratamento para a cura ou reversão da anencefalia, nesses casos o feto terá uma vida inviável.
Entretanto, o mesmo quadro não ocorre com a mulher, gestante de feto anencéfalo, tendo em vista que após o parto a mesma ainda terá uma vida viável, porém a permanência de um feto anencéfalo no útero materno podem ocasionar diversos problemas de saúde para a gestante, tendo e vista que a prolongação do período em que o feto anencéfalo tenha que ficar no útero materno é considerado pela medicina como perigoso para a mãe. Dentre os problemas de saúde que a gestante possa a vir a apresentar está o fato de a gestante poder sofrer um acúmulo de líquido amniótico dentro do útero, o que faz com que o mesmo não se contraia de forma correta, vindo a causar hemorragias durante o período pós-parto.
O fato da má-formação do feto gera a gravidez de feto anencéfalo um caráter de risco maior do que os constantes em uma gestação normal. Obrigar que a gestante prolongue a gravidez, o que pode vir a causar graves danos à saúde da mesma e até mesmo perigo de morte, tendo em vista o alto rol de óbitos intrauterinos de fetos anencéfalos.
Aos que ocupam a posição de defender a interrupção terapêutica da gravidez nesses casos, alegam que a antecipação do parto é o único tratamento possível e eficaz para o tratamento da gestante. Não havendo tratamento para o feto.
A Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia enumeraram diversas possíveis complicações que a gestante de um feto anencéfalo pode vir a ter, dentre elas estão: eclampsia, embolia pulmonar, aumento do volume do líquido amniótico, o prolongamento da gestação além de quarenta semanas, associação com polihidrâmnio, com desconforto respiratório, estase venosa, edema de membros inferiores, associação com vasculopatia periférica de estase, alterações comportamentais e psicológicos, dificuldades obstétricas e complicações no desfecho do parto de anencéfalos de termo, necessidade de apoio psicoterápico no pós-parto e no puerpério, necessidade de registro de nascimento e sepultamento do recém-nascido, necessidade de bloqueio da lactação, puerpério com maior incidência de hemorragias maternas por falta de contratilidade uterina, maior incidência de infecções pós-cirurgia devido a manobras obstétricas do parto de termo, e até a morte materna.[13]
Conforme a Federação Brasileira das Associações de Ginecologia e Obstetrícia, cerca de 15 a 33% dos fetos anencéfalos apresentam outras malformações congênitas graves como problemas cardíacos.
Conforme a Constituição Federal brasileira de 1988, em seu artigo 196: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.
Alguns Hospitais e clínicas médicas registraram casos em que a mulher sofreu enorme transtorno psicológico, pelo fato de estar na espera do momento de dar a luz a um ser sub-humano, que embora possua uma forma humana, não possui cérebro. Ao fazer com que a mãe aguarde pelo período de dar à luz, mantendo em seu ventre durante meses um feto que tem certeza de que não irá resistir, não está sendo protegido o direito a saúde da gestante.
A gestante possui um direito a uma vida digna, devendo para isso prevalecerem os princípios da razoabilidade e proporcionalidade, pelo qual a mesma poderá decidir em interromper ou não a gestação do feto portador de anencefalia, um natimorto cerebral.
Ao permitir que a gestante opte pela realização do aborto sentimental nos casos em que tenha sido diagnosticado a presença de anencefalia, está sendo garantida a dignidade da pessoa humana da gestante.
De acordo com o artigo 5º, inciso I, da Constituição Federal, a gestante não deve ser submetida a um tratamento de crueldade, desumano, que seja semelhante à tortura, sendo este tipo de tratamento cruel, vedado pela Constituição Federal. Entretanto, embora permitida a interrupção da gravidez de feto anencéfalo, o fato de a gestante precisar aguardar por alvará judicial permitindo a referida interrupção, o que em alguns casos demoram tanto tempo para ser decidido referido caso, que a mãe acaba por dar à luz ao feto anencéfalo antes mesmo de seu alvará permitindo a interrupção da gestação estar concluído e o caso arquivado.
Conforme disposto no artigo 196 da Constituição Federal Brasileira: “A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação”.[14]
De acordo com a medicina, a mulher em gestação de um feto anencefálico, pode correr risco de morrer, isso porque em grande parte dos casos esses fetos têm morte intrauterina, devendo ser prevalecido neste caso o direito à saúde da mulher. Alguns hospitais registraram o profundo transtorno psicológico que a mulher sofre, quando aguarda o parto de um ser sub-humano, sem cérebro, com forma de gente, mas, sem a essência do humano. É evidente que a gestante, nessas circunstâncias, tem o direito de velar por sua saúde.
4 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Conforme estipulado na Constituição Federal Brasileira, todos os indivíduos possuem direitos e deveres, e dentre esses direitos, há de ser assegurado o direito fundamental à vida, e a dignidade da pessoa humana.
Ao ser permitido que uma gestante interrompa uma gestação em que foi diagnosticado que seu feto possui anencefalia, está sendo assegurados os princípios fundamentais da gestante, destacados acima.
Entretanto, com a demora do judiciário para dirimir alguns casos, acaba que por vezes a gestante embora manifeste seu desejo em interromper a gestação em que possui diagnóstico comprovando a anencefalia fetal, não consegue, tendo em vista que o trâmite não é célere, e a gestação possui um período, não podendo a mesma esperar pela decisão judiciária.
Embora exista entendimento do Supremo Tribunal Federal permitindo o aborto sentimental nesse caso de gestação, a mesma ainda não está tipificada em nosso Código Penal Brasileiro, tendo em vista que quando o mesmo entrou em vigor não era possível o diagnóstico da anencefalia ainda em fase intrauterina, havendo, contudo, o Projeto de Lei nº 4430/2004 o qual ainda não foi decidido.
As discussões religiosas nesse caso não devem prosperar, tendo em vista que por ser o Brasil um país laico, àquelas que possuírem feto anencéfalo poderão manifestar sua vontade ou não na interrupção da gravidez. Não sendo esta imposta a todas as gestantes que se enquadrarem no caso, mas dando oportunidade àquelas que desejarem interromper a gestação de um feto anencéfalo o qual possuem a certeza de que o mesmo não conseguirá sobreviver por muito tempo em fase extrauterina, poderão realizar a intervenção médica, sem encontrar problemas, e sem passar pelo verdadeiro martírio de esperar por uma decisão judicial permitindo a interrupção da gestação.
A mulher, só pelo fato de encontra-se gestante, ainda que de um feto saudável, por muitas vezes já sofre abalos em seu psicológico, encontra-se frágil e sensibiliza-se mais facilmente. Não há possibilidades de simplesmente pedir para uma mulher, gestante de um feto anencéfalo, que provavelmente encontra-se com um grande abalo psicológico, espere por uma decisão judicial, em que lhe será emitido alvará permitindo a interrupção da gestação. Isso porque não há uma preocupação do que será feito com essa gestante durante esse período em que não se terá uma decisão para o caso da mesma, no qual deverá aguardar o judiciário para enfim proceder a ser aborto sentimental. Não há um amparo, um cuidado e tratamento dessas gestantes, fato que por muitas vezes leva-as a proceder em técnicas arriscadas em clínicas clandestinas, aonde em muitos casos a mulher vêm a óbito antes de receber um atendimento médico.
Além de um judiciário com decisões mais céleres, em casos que exigem uma solução mais rápida, como no caso do presente trabalho, também é preciso que haja um atendimento médico mais eficaz.
Advogada; Graduada em Bacharel em Direito pela Universidade do Grande Rio; Pós-graduada em Direito Civil e Empresarial pelo Complexo Educacional Damásio de Jesus; Mestranda em Direito na Universidade Estácio de Sá na linha de pesquisa Direitos Fundamentais e Novos Direitos
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