Izaura Fabíola Lins de Barros Lôbo Cavalcanti – Advogada na área de Direito de Família – Sucessão – Notarial e Registral, pós-graduada em Direito Processual, Direito Notarial e Registral (fabiolacavalcanti.adv@gmail.com). Autora de artigos jurídicos publicados em livros e em sites jurídicos.
Resumo: A presente pesquisa foi desenvolvida na área do Direito das Sucessões, que tem o papel de regulamentar o destino do patrimônio de quem faleceu. O evento morte dá ensejo à abertura da sucessão, em que acontece a transmissão automática das relações patrimoniais deixadas pelo autor da herança a seus herdeiros legítimos e testamentários, que recebem a massa patrimonial como um todo indivisível. Essa transmissão ocorre por determinação legal de forma imediata, justamente para evitar a descontinuidade do possuidor, diferentemente da abertura do inventário, em que será feito um levantamento de todos os ativos e passivos do falecido e, posteriormente à liquidação, é feita a partilha entre os seus sucessores. O inventário é um instrumento indispensável para formalizar a transmissão da herança, passando para cada herdeiro sua cota de forma individualizada. Este trabalho tem como ponto central estudar o inventário extrajudicial com testamento público e/ou herdeiro incapaz, em face da possibilidade de relativizar os requisitos exigidos no artigo 610, caput, do Código de Processo Civil. A interpretação literal da letra de lei do artigo mencionado vai de encontro ao escopo da Lei nº 11.441/2007 e do próprio espírito do Novo Código Processual Civil, que é a desjudicialização. É necessário alterar o texto do artigo 610, caput, do Código de Processo Civil para que o inventário extrajudicial com testamento público e/ou herdeiro incapaz possa ser realizado em todo o Brasil Aplicou-se o método hipotético-dedutivo, pesquisa bibliográfica e documental, abordagem qualitativa e objetivo descritivo, com o intuito de alcançar o objetivo almejado.
Palavras-chave: Desjudicialização. Inventário Extrajudicial. Herdeiro Incapaz. Testamento Público. Artigo 610, caput, do CPC.
Abstract: This research was developed in the area of inheritances law, which has the task of regulating the destiny of the deceased’s heritage. It is the death event that gives rise to the succession opening, where the automatic transmission of the patrimonial relations, left by the author of that inheritance to their legitimate and testamentary heirs, takes place. They receive the patrimonial mass as an indivisible whole. This transmission, taking place by legal determination in an immediate manner, is precisely to avoid the owner from being withdrawn. Unlike the opening of the inventory where, before performing the inheritance division, there will be a survey of all assets and liabilities of the deceased; and after the liquidation the division among his successors is made, ensuring that there is no rejection, neither termination of hereditary rights nor cases of exclusion of heirs or of collation. The inventory is an indispensable instrument to formalize the inheritance transmission, having to pass on, personally to each beneficiary, their share. Among the various types of inventory, this work focuses on studying the extrajudicial inventory with a public will and/or an incapable heir, given the possibility of devaluing all requirements of article 610, caput, of the Civil Procedure Cod. Also it takes into account that the literal interpretation of the letter of the law in the mentioned article goes against the scope of Law n. 11.441/2007 and the Civil Procedure Code, which is a extrajudicial procedure besides causing harmful effects not only to the heirs. It is necessary to change the text of article 610, caput, of the Code of Civil Procedure so that the extrajudicial inventory, with a public will and/or incapable heir, can be carried out throughout Brazil. We worked with the hypothetical deductive method, using the technique of bibliographic and documental research, qualitative approach and descritive objective, in order to reach the desired objective.
Keywords: Extrajudicial Procedure. Extrajudicial Inventory. Incapable Heir. Public Testament. Article 610 of the CPC.
Sumário: Introdução. 1 Inventário Extrajudicial com Testamento Público e/ou Herdeiro Incapaz. 2. Quais as Repercussões do Inventário Extrajudicial com Testamento Público?. 3. É Possível Proceder ao Inventário Extrajudicial com Herdeiro Incapaz?. 4. Desjudicialização e a Lei nº 11.441/2007. Conclusão. Referências.
Introdução
Os anseios da sociedade por uma justiça mais célere, eficiente e sem burocracia vêm sendo tema de debates e discussões há anos, pelos operadores do direito. A busca por um Poder Judiciário que atenda de forma satisfatória às necessidades da sociedade contemporânea passa pela mudança do sistema que deixa a exclusividade e apresenta uma via alternativa como forma de amenizar o colapso na esfera judicial. Diante de inúmeras ações que são propostas judicialmente pela sociedade que vem de uma cultura do litígio, disponibilizar uma maneira de se resolver as demandas de forma consensual reduz o congestionamento no Judiciário, diminui a morosidade, afasta as desavenças e aumenta a eficiência do sistema.
Esse cenário deu ensejo à desjudicialização, com o advento da Lei nº 11.441/2007, que autorizou a realização do inventário e partilha, a separação e o divórcio nas serventias extrajudiciais. O legislador, no entanto, perdeu a oportunidade de ampliar as possibilidades do inventário extrajudicial, mantendo algumas exigências desnecessárias que criam obstáculos e impedimentos para quem busca essa via. Nesse contexto, o trabalho elaborado tem como ponto nevrálgico o inventário extrajudicial com testamento público ou herdeiro incapaz.
Para o desenvolvimento desta pesquisa foi percorrido todo um caminho, até se chegar ao cerne da pesquisa: a relativização dos requisitos previstos no artigo 610, caput, do Código de Processo Civil, cuja finalidade é permitir aos Cartórios de Notas produzirem Escrituras Públicas de Inventário e Partilha com testamento público e/ou herdeiro incapaz, proporcionando aos interessados a opção de escolher entre essa modalidade, célere, consensual, eficiente e econômica, ou a via judicial que, na maioria das vezes, se apresenta morosa, litigiosa e de alto custo.
O trabalho se propôs a responder às seguintes questões: 1. Quais são as repercussões da realização do inventário extrajudicial com a presença de testamento público? 2. É possível proceder ao inventário extrajudicial com herdeiro incapaz? Essas questões serão respondidas com base em todo o arcabouço pesquisado para a produção deste trabalho.
A metodologia utilizada para o desenvolvimento da pesquisa foi o método hipotético-dedutivo, uma vez que partiu de um problema e apresentou-se uma solução provisória; de forma qualitativa, pois se propôs a investigar as repercussões do inventário extrajudicial com testamento público e/ou herdeiro incapaz, interpretando as informações dos textos estudados, tendo em vista o critério valorativo e subjetivo; objetivo descritivo, descrevendo o máximo possível sobre o tema estudado, apresentando suas espécies, conceitos e repercussões.
Ademais, se fez uso dos procedimentos bibliográfico e documental. Visto que este trabalho foi feito com base em pesquisa bibliográfica, que consiste no levantamento de material já elaborado e publicado em documentos, tendo as seguintes fontes: livros, artigos jurídicos, artigos científicos, periódicos e monografias que abordam o Direito Sucessório e o inventário extrajudicial. Como também em enunciados, leis, portarias, provimentos e, sobremodo, o Recurso Especial 1808767 RJ 2019/0114609-4, do Relator: Ministro Luis Felipe Salomão, julgado em 15/10/2019 pela Quarta Turma, isto é, analisou-se dados já existentes.
Prezou-se, primordialmente, por estudar os doutrinadores renomados e de notório saber jurídico, a exemplo de: Euclides de Oliveira e Sebastião Amorim, Carlos Roberto Gonçalves, Conrado Paulino Rosa e Marco Antonio Rodrigues, Maria Berenice Dias, Mario Roberto Carvalho de Faria, Christiano Cassetari, Cristiano Chaves de Faria, Felipe Braga Netto e Nelson Rosenvald, Flávio Tartuce, entre outros. A pesquisa foi realizada com o estudo de livros específicos e manuais que se demonstraram indispensáveis para o embasamento teórico deste trabalho, porquanto abordam o assunto de forma aprofundada, sendo fonte importante de conhecimento para o desenvolvimento desta pesquisa.
Também foram coletadas informações em sites jurídicos hospedados na rede mundial de computadores, devido à atualização e à quantidade de conteúdos disponíveis. Os principais artigos que contribuíram com este estudo foram: Inventário Extrajudicial com Testamento (de Flávio Tartuce); Proposta para Desburocratização do Direito de Família e das Sucessões Brasileiro (de Flávio Tartuce); Um passo adiante (autores: José Luiz Germano[1], José Renato Nalini[2] e Thomas Nosch Gonçalves[3]); e Inventário Extrajudicial na Sucessão Testamentária: possibilidade, legalidade, alcance e eficácia (de Ivanildo Figueiredo).
Por fim, o ponto nevrálgico deste estudo: o inventário extrajudicial com testamento público e/ou herdeiro incapaz, analisando-se o tema e pontuando seus aspectos, normativas e o embasamento para a sua permissão diante da limitação imposta pelo artigo 610, caput, do Código de Processo Civil. Responder-se-á às questões-problemas apresentadas neste trabalho com base em todo o arcabouço pesquisado e estudado para o desenvolvimento desta pesquisa, que traz um tema relevante para os operadores do direito, mas principalmente para os herdeiros e para a sociedade brasileira. Finaliza-se a pesquisa tratando da desjudicialização e da Lei nº 11.441/2007, sua importância e contribuição para o Poder Judiciário, que se acha abarrotado de demandas e vê na desjudicialização um meio alternativo para desafogar o sistema e contribuir para a sua eficiência.
Pelo exposto, este trabalho de modalidade bibliográfica se propôs a analisar as leis, artigos, enunciados, projeto de lei, provimentos e doutrinas sobre o inventário extrajudicial com testamento e/ou herdeiro incapaz. Diante de tudo o que foi analisado, fez-se possível constatar que o inventário extrajudicial com herdeiro incapaz é um tema recente, com um vasto campo de discussão e debate pelos operadores do Direito. E que existe o Projeto de Lei do Senado nº 217, de 2018, em andamento, para normatizar o tema e suprir a omissão deixada pela Lei nº 11.441/07.
A temática envolvendo herdeiro incapaz, recentemente levantada devido à decisão inovadora do magistrado da comarca de Leme em São Paulo, não é praticada nas serventias extrajudiciais justamente porque faltam normativas estaduais para regulamentar a permissão. Quanto à necessidade de inexistir testamento no inventário administrativo, diversas Corregedorias Estaduais têm normatizado a respeito e relativizado tal exigência, resultando num grande avanço para a desjudicialização e incentivando a jurisdição voluntária.
Nesse diapasão, o estudo deste trabalho tem como objetivo demonstrar que a realização do inventário extrajudicial, com testamento público e/ou herdeiro incapaz, oferece diversas vantagens: celeridade, segurança jurídica, eficiência e acesso à justiça para todos os envolvidos, além de contribuir com o descongestionamento do Judiciário.
1 Inventário Extrajudicial com Testamento Público e/ou Herdeiro Incapaz
Atualmente alguns doutrinadores têm questionado a possibilidade de o inventário extrajudicial ser realizado diante da existência do testamento público, ou nos casos em que há herdeiro incapaz. A relativização dessas exigências, que estão previstas no artigo 610, caput, do Código de Processo Civil, é o cerne do estudo adotado no presente trabalho.
Observa-se que o artigo 610 do Código de Processo Civil de 2015 apresentou uma nova redação para o instrumento do inventário extrajudicial. No entanto, a alteração realizada não atendeu aos anseios da sociedade contemporânea, pois manteve as exigências da inexistência de testamento ou interessado incapaz, para a realização do inventário extrajudicial.
O escopo da Lei nº 11.44/2007 é possibilitar a realização de inventário, partilha, separação consensual e divórcio consensual por via administrativa, ou seja, é desjudicializar, permitindo que essas demandas sejam direcionadas às Serventias Extrajudiciais e, em consequência, contribuindo com o desafogamento do Judiciário.
Para que o inventário seja realizado por escritura pública em tabelionato de notas, é imprescindível que não exista testamento, interessado incapaz, que todos os herdeiros sejam concordes e haja a assistência de advogado ou defensor público. A Resolução nº 35 do CJN, em seu artigo 8º, diz que: “É necessária a presença do advogado, dispensada a procuração, ou do defensor público, na lavratura das escrituras aqui referidas, nelas constando seu nome e registro na OAB” (BRASIL, 2007). Essas são as exigências para que o inventário seja realizado de forma administrativa.
Contudo, quanto ao requisito de não haver testamento, tal exigência não foi recepcionada de forma pacífica pela doutrina nem pela jurisprudência. É o que se depreende do Enunciado nº 600 da VII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Depois de registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”.
De forma inovadora e seguindo esse enunciado, diversas Corregedorias das Justiças dos Estados editaram normas que tornaram a mencionada exigência exceção, e a desjudicialização a regra. Entre os Estados brasileiros que editaram provimentos nesse sentido temos: Bahia, Ceará, Goiás, Mato Grosso do Sul, Minas Gerais, Pará, Paraíba, Paraná, Rio de Janeiro, entre outros.
Segundo Kümpel e Viana (2019, n.p.):
Também nessa linha se posicionaram as Corregedorias das Justiças dos diversos estados, editando normas que igualmente excepcionam a referida exigência. É o caso das normas extrajudiciais paulistas, que, com a edição do Provimento 37/2016, passaram a permitir o processamento do inventário, pela via administrativa, quando houver expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento do testamento, com todos os interessados capazes e concordes. Regra idêntica foi incorporada à Consolidação Normativa do Rio de Janeiro, a partir do Provimento 24/2017. As normas paulistas também admitiram o inventário extrajudicial nas hipóteses de testamento revogado ou caduco ou, ainda, quando houver decisão judicial, com trânsito em julgado, declarando a invalidade do testamento, observadas a capacidade e a concordância dos herdeiros. Porém, nesse caso, cabe ao notário, de forma prévia, solicitar a certidão do testamento, a fim de constatar a existência de disposição reconhecendo filho ou qualquer outra declaração de caráter irrevogável, caso em que a lavratura de escritura pública de inventário e partilha ficará vedada, processando-se o inventário exclusivamente pela via judicial. De forma semelhante determinou o Código de Normas da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado de Santa Catarina, tanto ao permitir o inventário por escritura pública na hipótese de testamento revogado, caduco ou invalidado por decisão judicial transitada em julgado, quanto ao admiti-lo se já ocorrida a abertura do testamento em juízo e o cumprimento de todas as disposições testamentárias.
Ademais, a 4ª Turma do Superior Tribunal de Justiça no REsp 1.808.767-RJ, em outubro de 2019, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, decidiu pela possibilidade do inventário extrajudicial mesmo existindo testamento, desde que atendidos os demais requisitos do artigo 610 do Código de Processo Civil e o testamento seja previamente homologado ou autorizado pelo juízo competente, ou seja, que antes de se proceder ao inventário os herdeiros promovam a ação de abertura, registro e cumprimento do testamento. Espera-se que diante do posicionamento do Superior Tribunal de Justiça sobre o assunto, o Conselho Nacional de Justiça enfrente a temática, uniformizando a permissão do inventário extrajudicial com testamento em todo Brasil.
O propósito deste estudo é promover uma reflexão sobre os benefícios da relativização dos requisitos previstos no artigo 610, caput, do Código de Processo Civil, o que não exclui a sugestão da alteração de seu texto para que se alinhe aos anseios da sociedade contemporânea. Como já demonstrado, essa norma impõe que o inventário extrajudicial não tenha testamento nem interessado incapaz. O objetivo é analisar, primordialmente, os requisitos da presença do testamento público e/ou do herdeiro incapaz no inventário extrajudicial, pontuando as vantagens dessa permissão e demonstrando o quanto é nefasta a limitação imposta, de forma ampla, pelo artigo 610, caput, do CPC.
Pelo exposto, o presente trabalho visa analisar e responder aos seguintes questionamentos:
Nesse passo, os questionamentos desta pesquisa serão dispostos e trabalhados nas subseções que seguem.
2 Quais são as Repercussões da Realização do Inventário Extrajudicial com a Presença de Testamento Público?
Esse é um questionamento que deve ser feito diante dos anseios da sociedade contemporânea, que não vê prejuízo em seguir de forma administrativa o inventário com a disposição de última vontade do autor da herança, se o testamento observou as determinações legais, principalmente quando se trata de testamento público.
As repercussões produzidas pelo impedimento do inventário extrajudicial que tem testamento público são nefastas para os interessados: prejudica os herdeiros legítimos, os herdeiros testamenteiros, os legatários (se houver), os credores (se houver) e até mesmo o cônjuge supérstite meeiro. Todos são obrigados a se submeter à via judicial para a feitura do inventário, seguindo o procedimento de custo bem mais elevado e moroso e que termina por oferecer um ambiente para o surgimento de conflitos entre os interessados.
Esses motivos, por vezes, levam os herdeiros a não providenciar o inventário judicial, pois acreditam que é melhor deixar o bem na titularidade do falecido e depois fazer um contrato de gaveta para repassar o bem de forma irregular, do que enfrentar um inventário duradouro, oneroso e que em sua maioria termina por se tornar litigioso. A morosidade é tão grande que em muitos inventários alguns herdeiros falecem durante o processo e não chegam a desfrutar da sua cota na herança. É um cenário em que toda sociedade perde, uma vez que o bem se torna irregular, deixa de circular no mercado e os impostos deixam de ser arrecadados. As serventias extrajudiciais deixam de arrecadar os emolumentos, o que contribui para a existência de cartórios deficitários.
Salienta-se que sendo o testamento público motivo para impedir a realização do inventário extrajudicial, termina por desestimular a confecção da cédula testamentária. Pois no lugar de facilitar a vida dos herdeiros, finda por impor a via judicial, causando enormes transtornos, além de ser bem mais onerosa. Se por um lado desmotiva o testador a providenciar seu testamento, por outro, afronta a essência desse instrumento que visa evitar o litígio entre os herdeiros.
Ora, se o objetivo é a desjudicialização no sentido de acesso à justiça, qual a repercussão negativa em admitir a lavratura da escritura pública de inventário com testamento público? Realmente não há sentido em tal exigência. Os sucessores buscam celeridade, economia, segurança jurídica e inexistência de conflitos, elementos que estão presentes no inventário administrativo.
É notório que o testamento público é lavrado em Cartório de Notas por profissional qualificado, em estrita observância dos requisitos formais e ao cumprimento de todas as solenidades exigidas pelo artigo 1.864 do Código Civil.
Art. 1.864. São requisitos essenciais do testamento público:
I – ser escrito por tabelião ou por seu substituto legal em seu livro de notas, de acordo com as declarações do testador, podendo este servir-se de minuta, notas ou apontamentos;
II – lavrado o instrumento, ser lido em voz alta pelo tabelião ao testador e a duas testemunhas, a um só tempo; ou pelo testador, se o quiser, na presença destas e do oficial;
III – ser o instrumento, em seguida à leitura, assinado pelo testador, pelas testemunhas e pelo tabelião.
Parágrafo único. O testamento público pode ser escrito manualmente ou mecanicamente, bem como ser feito pela inserção da declaração de vontade em partes impressas de livro de notas, desde que rubricadas todas as páginas pelo testador, se mais de uma.
Atualmente, algumas Corregedorias Estaduais admitem a escritura pública de inventário com testamento após sua homologação judicial. Outro ponto questionado por parte da doutrina é se realmente há tal necessidade, haja vista o tabelião, responsável pela lavratura, também deveria ser pela abertura, registro e cumprimento. Evita-se a via judicial e, consequentemente, impactos deletérios para os interessados. Ademais, o tabelião de notas é um profissional dotado de fé pública, que ao lavrar o testamento deve seguir rigorosamente os requisitos formais impostos pela norma. É a pessoa mais indicada para realizar um inventário com testamento público, já que quem lavra o testamento público é ele, e não o juiz.
No mesmo sentido, comenta Figueiredo (2015, p. 7-8):
O tabelião, ao colher a declaração de vontade e lavrar o testamento, representa o principal agente formalizador do ato, como titular da fé pública. Não serão as testemunhas instrumentárias que poderão, futuramente, comprovar ou afirmar a existência real do ato de testamento lavrado no cartório de notas, perante o tabelião. Tampouco o Juiz ou o representante do Ministério Público poderão expressar a vontade do testador em vida, visto que sequer conheceram a pessoa do testador. A responsabilidade pela certeza e perfeição jurídica do testamento é do tabelião, cujo instrumento lavrado vai assegurar a perpetuação da vontade do testador após a sua morte. Todavia, o tabelião, conheceu e teve contato direto com o testador, quando este expressou sua vontade testamentária para dispor dos seus bens e interesses, instituindo condições especiais e particulares para o processamento da sua sucessão. Coube ao tabelião, nesse contato personalíssimo com o testador, conversar, discutir e esclarecer os requisitos estabelecidos em lei para o ato de testar, explicando sobre a limitação do poder de disposição, esclarecendo a respeito da intangibilidade da legítima dos herdeiros necessários. Assim, ainda que o inventário extrajudicial venha a ser processado, no futuro, por outro tabelião que não tenha lavrado o testamento, os critérios de elaboração e formalização do testamento adotados foram os mesmos, o grau de segurança jurídica esteve garantido pelo cumprimento de todas as solenidades definidas e exigidas no art. 1.864 do Código Civil.
E continua Figueiredo (2015, p. 8) a discorrer sobre a especialização do tabelião quanto ao tema: “O tabelião é um profissional especializado em matéria sucessória, lida com essas questões no seu cotidiano profissional, talvez mais até que a maioria dos magistrados generalistas e inexperientes nessas questões”.
Nessa linha de entendimento, o tabelião não só tem conhecimento para realizar o inventário extrajudicial com testamento, como também para fazer a abertura, registro e cumprimento desse documento. Como foi feito por escritura pública, a abertura deveria seguir o mesmo caminho. O resultado seria a concentração dos atos, a celeridade, a economia, o acesso à justiça efetiva e adequada, além da redução das demandas do Judiciário em questões que podem ser resolvidas diretamente nas serventias extrajudiciais.
Ademais, os testamentos públicos e cerrados constam no banco de dados da central de testamento. O CNJ criou a CENSEC é uma Central Notarial de Serviços Eletrônicos Compartilhados e o Registro Central de Testamento ON-Line (RCTO). A alimentação deste banco de dados deve ser realizada pelos responsáveis das serventias de notas. O Provimento n. 56 do CNJ impõe a necessidade de consultar a central, antes de processarem o inventário, a fim de verificar a existência de testamento público ou a aprovação do testamento cerrado. (DIAS, 2021, p. 720).
Por essas e outras razões, existindo testamento público, não deveria a ação de abertura, registro e cumprimento ocorrer na via judicial, cujo único objetivo é a verificação das formalidades legais extrínsecas da cédula testamentária. Essa ação geralmente perdura por meses no Judiciário, justamente porque o sistema é congestionado.
Não se trata de usurpar atribuição, mas de contribuir com um sistema abarrotado, sobrecarregado e por vezes desacreditado. O Judiciário, diante de numerosas demandas, não consegue atender aos anseios da sociedade em tempo hábil, o que resulta na desqualificação do sistema aos olhos da sociedade.
Refosco, Junior e Agapito (2020, p. 158) comentam a extinção da ação de abertura, registro e cumprimento de testamento na esfera judicial. Defendem que tal ato deveria ser atribuído ao tabelião, o que seria um avanço para a desjudicialização.
Em todos os casos em que existe testamento, permanece necessária a prévia propositura da ação de abertura, registro e cumprimento de testamento. Mesmo em se tratando de testamento público, o art. 736 do CPC exige o processamento da ação de cumprimento de testamento. Portanto, de lege lata, é imprescindível ingressar com a ação de abertura e registro de testamento para a realização de inventário e partilha, independentemente de estes últimos serem concretizados na esfera judicial ou extrajudicial. Na ação, o magistrado deve observar, ainda que perfunctoriamente, a existência dos requisitos de validade do testamento e ao final, se presentes, deve, de preferência, autorizar expressamente o tabelião a lavrar o inventário e a partilha extrajudicial. Infelizmente, o novo CPC não mudou este panorama e deixou de trazer avanço para o tema. Jurisprudência e doutrina atribuem à ação de registro e cumprimento de testamento, prevista nos arts. 735 e seguintes do CPC, uma função meramente formal: análise, pelo juízo, dos requisitos extrínsecos do testamento.
No mesmo sentido, comenta Fischer (2016, n.p.) que o legislador perdeu uma excelente oportunidade de contribuir com um dos objetivos do Novo Código de Processo Civil, que é o incentivo à desjudicialização por meio da ampliação dos atos extrajudiciais. E que a norma poderia ter incluído expressamente a realização do inventário administrativo com testamento, desde que todos os interessados sejam maiores e concordes. Quanto à abertura, registro e cumprimento do testamento, feitos exclusivamente pelo juiz, escreve Fischer: “Se o notário possui capacidade técnica para a lavratura de testamentos públicos, tanto mais a possui para a compreensão das disposições testamentárias e seu fiel cumprimento, dentro dos parâmetros legais”. Finaliza o autor:
Todos sabemos que o Judiciário, há muito, está abarrotado de processos e, por isso, a resposta às partes é lenta e dispendiosa. Desta forma, insistir que um inventário seja processado pela via judicial só porque existe um testamento, mesmo não havendo interesses de menores e fundações e havendo consenso entre as partes, parece ir contra o objetivo precípuo do novo Código de Processo Civil: a desjudicialização como forma de oferecer às partes uma solução mais rápida e eficiente para suas demandas jurídicas.
Nesse diapasão, esclarece Dias (2021, p. 776):
A forma extrajudicial é facultativa, pois a lei utiliza a expressão “poderá”. Como falta interesse jurídico para o uso do processo judicial, a via extrajudicial deveria ser obrigatória. Afinal, não cabe ao juiz exercer mera função homologatória da vontade das partes, atuação afeita à atividade notarial. Aliás, sequer se justifica que a abertura, registro e o cumprimento do testamento sejam levados a efeito em juízo, com a participação do Ministério Público (CPC 735 e 736). Com certeza esta seria uma atividade muito mais adequada, pois quem redige o testamento público registra o testamento particular e lacra o cerrado. Ninguém melhor do que o tabelião para verificar se o documento apresenta ou não indícios de ter sido violado. Delegar a atividade ao juiz de nada serve, pois a validade do testamento pode ser questionada judicialmente, independente de ter o juiz certificado a presença dos requisitos legais e determinado o seu cumprimento.
Vale reforçar que o testamento público não foi constituído com o propósito de dificultar a vida dos sucessores do autor da herança, mas sim com o objetivo de deixar definido para quem o testador vai deixar seus bens e evitar que entre os herdeiros haja disputa de quem ficará com o quê, pois a divisão já foi feita em testamento. Este segue toda uma orientação normativa para ter validade e produzir efeitos. Normalmente não apresenta divergência em seu texto, até porque em muitos casos é realizado com a assistência de advogado especializado, além de ser feito por tabelião. Diferentemente do que ocorre com o testamento particular ou o cerrado, em que ambos os textos são feitos pelo testador. A incidência de nulidades nessas modalidades são maiores, pois falta orientação jurídica.
Nesse viés, expõe Dias (2021, p. 778) sua discordância com tal exigência:
De forma para lá de injustificada, a existência de testamento impede o uso da via extrajudicial. Ora, no mais das vezes os testamentos trazem disposições de fácil compreensão, não deixando qualquer dúvida sobre a vontade do testador. Deste modo, nada, absolutamente nada, devia impedir que o inventário fosse levado a efeito perante o tabelião.
Tartuce (2019, p. 6) apresenta o mesmo entendimento quanto à obrigação de o testamento ser levado à via judicial para a ação de abertura, registro e cumprimento. Para o autor, essa exigência representa um entrave burocrático que deve ser analisado. Entende que a melhor solução é a reforma do artigo 610 do CPC, pois assim evitaria o surgimento de argumentos contrários às posições doutrinarias e jurisprudências que concordam com o inventário extrajudicial com testamento.
Discorre Lopes (2021, n.p.) sobre a possibilidade de inventário extrajudicial com a existência de testamento, destacando os enunciados doutrinários que tratam do tema:
O Colégio Notarial Brasileiro, em seu XIX Congresso, desenvolveu enunciado onde informa a possibilidade da realização de inventário extrajudicial mesmo com a existência de testamento. Neste sentido também há o Enunciado 600 da VII Jornada de Direito Civil de 2015: “Depois de registrado judicialmente o testamento e sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”, o Enunciado 16 da IBDFAM: “Mesmo quando houver testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes com os seus termos, não havendo conflito de interesses, é possível que se faça o inventário extrajudicial”, o Enunciado 51 da I Jornada de Direito Processual Civil do Conselho de Justiça Federal: “Havendo registro judicial ou autorização expressa do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura, registro e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública” e o Enunciado 77 da I Jornada sobre Solução Extrajudicial de Conflitos organizada pelo Conselho de Justiça Federal: “Havendo registro ou expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, o inventário e partilha poderão ser feitos por escritura pública, mediante acordo dos interessados, como forma de pôr fim ao procedimento judicial”. O TJSP emitiu o Provimento 37/16 da Corregedoria-Geral em que segue a linha dos enunciados indicados: “Diante da expressa autorização do juízo sucessório competente, nos autos do procedimento de abertura e cumprimento de testamento, sendo todos os interessados capazes e concordes, poderão ser feitos o inventário e a partilha por escritura pública, que constituirá título hábil para o registro imobiliário”.
Percebe-se que os enunciados citados apontam para o entendimento da possibilidade do inventário extrajudicial mesmo que haja testamento. O que se espera é que o Conselho Nacional de Justiça uniformize tal entendimento em todos os Estados, o que representará um avanço para a sociedade, para as serventias extrajudiciais e para o Poder Judiciário.
Atribuir ao testamento público a impossibilidade do inventário se proceder de forma administrativa não o torna menos válido, mas penaliza, profundamente, os sucessores daquele que faleceu e se preocupou em fazer seu planejamento sucessório. A desjudicialização deve ser vista como sinônimo de acesso à justiça, e ter acesso à justiça significa ter a solução do caso em tempo hábil. Justiça extemporânea não é Justiça.
Nesse sentido, escreve Tartuce (2019, p. 3) sobre a exigência de não haver testamento para que o inventário seja realizado perante o tabelionato de notas:
O requisito da inexistência de testamento já vinha sendo contestado por muitos doutrinadores, existindo decisões de primeira instância que afastavam tal elemento essencial, quando todos os herdeiros forem maiores, capazes e concordantes com a via extrajudicial.
Segundo Figueiredo (2015, p. 8-9), o Projeto de Lei de nº PLS 155, de 2004, deu origem à Lei nº 11.441/2007, que inicialmente tratava apenas de acordo extrajudicial de partilha de bens. Contudo, durante a tramitação o Projeto de Lei na Câmara dos Deputados, recebeu o nº 6.416, de 2005, e foram inseridas algumas modificações, o que ensejou a redação final da Lei nº 11.441/2007. A justificativa do relator para a restrição do inventário extrajudicial com testamento foi a de que a interpretação do testamento geralmente suscita divergências entre os herdeiros, e isso aumenta as chances de a partilha transformar-se em litigiosa, inutilizando o procedimento extrajudicial.
Acrescenta Figueiredo (2015, p. 9):
O eminente relator partiu de uma falsa premissa, a de que a interpretação dos testamentos geralmente acarreta litígios entre os herdeiros. Mas essa falsa premissa não possui a menor aderência na realidade forense. O testamento, instrumento lavrado sob o estrito procedimento determinado pelo Código Civil, ao contrário do afirmado, não torna o processo sucessório litigioso. Ao revés, o testamento, expressão da vontade do testador mesmo após o seu falecimento, é instrumento de pacificação, porque a sua finalidade precípua é planejar e organizar o processo sucessório, como assim ocorre normalmente, na maioria dos casos.
A justificativa foi rechaçada com veemência por doutrinadores e pela própria jurisprudência, tanto que diversas Corregedorias Estaduais dos Tribunais de Justiça têm normatizado sobre a relativização da presença do testamento no inventário administrativo.
Prossegue Figueiredo (2015, p. 10):
O fato de, esporadicamente, existirem divergências ou conflitos de interpretação na aplicação das disposições testamentárias não justifica a restrição imposta no texto final da norma. Os testamentos, especialmente os públicos, são efetivamente cumpridos na sua ampla e esmagadora maioria, simplesmente porque é o ato mais solene do tabelião público, e de maior responsabilidade. São os testamentos lavrados segundo rigoroso procedimento definido no Código Civil, com absoluto cuidado e elevado grau de segurança na qualificação do testador, na aferição da sua capacidade e discernimento, na limitação do seu poder de disposição, com respeito, inclusive, à legítima dos herdeiros necessários (CC, art. 1.857, § 1º).
Figueiredo (2015, p. 15) ainda destaca que o legislador fez da exceção a regra, impedindo que o inventário extrajudicial e consensual tenha testamento, isto é, se tem sucessão testamentária, a via deve ser a judicial.
Ante o testamento caduco, inválido ou com apenas disposições extrapatrimoniais, o inventário administrativo não deve ser afastado, haja vista que testamento caduco ou inválido é como se não houvesse testamento. Já quanto às disposições extrapatrimoniais, não há razão para manter o impedimento se não há patrimônio a ser partilhado.
A Consolidação Normativa da Corregedoria-Geral da Justiça do Estado do Rio de Janeiro, Parte Extrajudicial, atualizada em 5/5/2016, prevê em seu artigo 297, §§ 1º e 2º:
Explana Tartuce (2019, p. 6) sobre a norma acima mencionada que os Estados da Paraíba e do Paraná editaram normas nesse mesmo sentido. E aduz:
Espera-se que outras unidades da Federação sigam esse sadio caminho da desjudicialização, ou que a questão seja definitivamente regulamentada pelo Conselho Nacional de Justiça, valendo para todo o País. Essa possibilidade de regulamentação pelo CNJ ganhou força pelo fato de que, em 2019, a Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça acabou por admitir a realização de inventário extrajudicial, mesmo havendo testamento público, desde que a sua abertura seja feita anteriormente, no âmbito judicial. (TARTUCE, 2019, p. 6).
Opinam Refosco, Junior e Agapito (2020, p. 148) sobre o entendimento de diversos Estados da Federação em relação à existência de testamento no inventário extrajudicial:
Em primeiro lugar, é importante destacar que, embora o art. 610 do CPC, tal como o art. 982 do Código anterior (com a redação dada pela Lei 11.441/2007), pareça tornar obrigatória a realização de inventário judicial sempre que houver testamento, trata-se de entendimento já superado em muitos Estados da Federação: na hipótese de todos os herdeiros e legatários serem capazes, houve considerável evolução, por meio de interpretação teleológica emanada das Corregedorias-Gerais de Justiça –CGJs dos Tribunais de Justiça dos Estados, que autorizam o inventário extrajudicial nesses casos. Nesse sentido, citem-se, exemplificativamente: RJ, NCGJ, art. 297, § 1º; PB, NCGJ, art. 310; MS, Prov.165/17 CGJ, art. 1º; GO, Prov. 24/2017 CGJ, art. 1º; BA, NCGJ, art.186; CE, Prov. 18/2017 da CGJ; SC, Prov. 18/2017 CGJ; PR, Ofício Circular 155/2108.
O presente artigo tem o escopo de demonstrar que a permissão para que se realize o inventário por escritura pública com testamento público não gera impactos negativos para os interessados, nem para o Judiciário. É que a produção do testamento público acontece no Cartório de Notas perante o tabelião, pessoa mais habilitada para apurar a real intenção do testador e garantir que o inventário notarial ocorra da melhor forma.
Diante da concordância das partes e da assistência de advogado, o testamento público não deve ser obstáculo para a realização desse inventário. Por outro viés, os impactos positivos gerados pelo inventário extrajudiciais com testamento público são muitos; o principal deles é o estímulo ao consenso, que além de promover a natureza colaborativa, garante uma justiça adequada, isto é, em tempo razoável.
Refosco, Junior e Agapito (2020, p. 152) destacam que o tabelião é
[…] perfeitamente preparado para realizar inventários extrajudiciais quando houver testamento, ainda que, dentre herdeiros e legatários concordes, figurem incapazes ou fundações, tudo sem prejudicar interesses tutelados pelo Estado. Se o tabelião é habilitado a escriturar o próprio testamento, deve ser considerado habilitado a realizar o inventário e a partilha com observância das disposições de última vontade.
De toda sorte, alguns Estados têm permitido que inventário com testamento se dê de forma administrativa, justamente porque reconhecem que a proibição mais prejudica do que protege. O Enunciado nº 600 da VII Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal é responsável por esse notável avanço.
Como bem destaca Rosa (2019, p. 3):
O relator do recurso especial, ministro Luis Felipe Salomão, afirmou que a partilha extrajudicial é instituto crescente e tendência mundial. Segundo ele, no Brasil, a Lei 11.441/2007, seguindo a linha de desjudicialização, autorizou a realização de alguns atos de jurisdição voluntária pela via administrativa. A Resolução 35/2007 do Conselho Nacional de Justiça disciplinou especificamente o inventário e a partilha de bens pela via administrativa, sem afastar a possibilidade da via judicial. Salomão destacou ainda que o CPC/2015, em seu artigo 610, estabeleceu a regra de que, havendo testamento ou interessado incapaz, o inventário deverá ser pela via judicial. Porém, ressalvou o ministro, o parágrafo 1º prevê que o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública sempre que os herdeiros forem capazes e concordes – o que pode englobar a situação em que existe testamento.
No mesmo entender, o site jurídico Dizer o Direito (2020) publicou a informação, destacando também a combinação dos artigos 2.015 e 2.016 do Código Civil, que reforça tal entendimento:
STJ. 4ª Turma. REsp 1.808.767-RJ, Rel. Min. Luis Felipe Salomão, julgado em 15/10/2019 (Info 663). O Min. Luis Felipe Salomão, relator do recurso especial, propôs uma nova forma de interpretar o art. 610 do CPC, de modo que, mesmo havendo testamento, seria possível o inventário extrajudicial.
Para ele, a partir de uma leitura sistemática do caput e do § 1º do art. 610 do CPC/2015 c/c os arts. 2.015 e 2.016 do CC/2002, mostra-se possível o inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a expressa autorização do juízo competente. A mens legis que autorizou o inventário extrajudicial foi justamente a de desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes. O processo deve ser um meio, e não um entrave, para a realização do direito. Se a via judicial é prescindível, não há razoabilidade em proibir, na ausência de conflito de interesses, que herdeiros, maiores e capazes, socorram-se da via administrativa para dar efetividade a um testamento já tido como válido pela Justiça.
Segue a ementa:
RECURSO ESPECIAL. CIVIL E PROCESSO CIVIL. SUCESSÕES. EXISTÊNCIA DE TESTAMENTO. INVENTÁRIO EXTRAJUDICIAL. POSSIBILIDADE, DESDE QUE OS INTERESSADOS SEJAM MAIORES, CAPAZES E CONCORDES, DEVIDAMENTE ACOMPANHADOS DE SEUS ADVOGADOS. ENTENDIMENTO DOS ENUNCIADOS 600 DA VII JORNADA DE DIREITO CIVIL DO CJF; 77 DA I JORNADA SOBRE PREVENÇÃO E SOLUÇÃO EXTRAJUDICIAL DE LITÍGIOS; 51 DA I JORNADA DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL DO CJF; E 16 DO IBDFAM. 1. Segundo o art. 610 do CPC/2015 (art. 982 do CPC/73), em havendo testamento ou interessado incapaz, proceder-se-á ao inventário judicial. Em exceção ao caput, o § 1º estabelece, sem restrição, que, se todos os interessados forem capazes e concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. 2. O Código Civil, por sua vez, autoriza expressamente, independentemente da existência de testamento, que, “se os herdeiros forem capazes, poderão fazer partilha amigável, por escritura pública, termo nos autos do inventário, ou escrito particular, homologado pelo juiz” (art. 2.015). Por outro lado, determina que “será sempre judicial a partilha, se os herdeiros divergirem, assim como se algum deles for incapaz” (art. 2.016) – bastará, nesses casos, a homologação judicial posterior do acordado, nos termos do art. 659 do CPC. 3. Assim, de uma leitura sistemática do caput e do § 1º do art. 610 do CPC/2015, c/c os arts. 2.015 e 2.016 do CC/2002, mostra-se possível o inventário extrajudicial, ainda que exista testamento, se os interessados forem capazes e concordes e estiverem assistidos por advogado, desde que o testamento tenha sido previamente registrado judicialmente ou haja a expressa autorização do juízo competente. 4. A mens legis que autorizou o inventário extrajudicial foi justamente a de desafogar o Judiciário, afastando a via judicial de processos nos quais não se necessita da chancela judicial, assegurando solução mais célere e efetiva em relação ao interesse das partes. Deveras, o processo deve ser um meio, e não um entrave, para a realização do direito. Se a via judicial é prescindível, não há razoabilidade em proibir, na ausência de conflito de interesses, que herdeiros, maiores e capazes, socorram-se da via administrativa para dar efetividade a um testamento já tido como válido pela Justiça. 5. Na hipótese, quanto à parte disponível da herança, verifica-se que todos os herdeiros são maiores, com interesses harmoniosos e concordes, devidamente representados por advogado. Ademais, não há maiores complexidades decorrentes do testamento. Tanto a Fazenda estadual como o Ministério Público atuante junto ao Tribunal local concordaram com a medida. Somado a isso, o testamento público, outorgado em 2/3/2010 e lavrado no 18º Ofício de Notas da Comarca da Capital, foi devidamente aberto, processado e concluído perante a 2ª Vara de Órfãos e Sucessões. 6. Recurso especial provido.
(STJ ‒ REsp: 1808767 RJ 2019/0114609-4, Relator: Ministro LUIS FELIPE SALOMÃO, Data de Julgamento: 15/10/2019, T4 ‒ QUARTA TURMA, Data de Publicação: DJe 3/12/2019)
Em discordância da doutrina majoritária, Veloso (2008, p. 15) adota o entendimento de que a existência de testamento é fator impeditivo para que o inventário seja realizado de forma extrajudicial. Independentemente da modalidade de testamento, a via para se proceder ao inventário é a judicial.
De acordo com Veloso (2009, p. 27):
Nos termos da Lei n° 11.441, o inventário e partilha por escritura pública só podem ser feitos se todos os interessados forem capazes e concordes, devendo estar assistidos por advogado. Mas a utilização deste expediente, extrajudicial, não pode ocorrer se o falecido deixou testamento. Não importa a forma do testamento – ordinário ou especial – ou da natureza das disposições testamentárias, ou de o testamento já ter sido registrado ou confirmado em juízo e com o “cumpra-se” do juiz (CPC, arts. 1.125 a 1.134). Dada a expressa vedação legal, não há como fugir à conclusão de que a existência do testamento impede a utilização da partilha extrajudicial.
Em síntese, impedir que o inventário seja feito extrajudicialmente porque o autor da herança foi cauteloso e deixou estabelecido quem seriam seus herdeiros testamentários, parece não fazer sentido. O testamento, principalmente quando público, visa facilitar a partilha de bens conforme a vontade do testador; o intuito é prevenir litígio, uma vez que a vontade que irá ser respeitada é a contida no testamento, restando aos herdeiros legítimos e testamentários receber ou renunciar ao bem que lhe foi destinado.
Ninguém é obrigado a aceitar a herança, e para isso deve fazer uso do instrumento da renúncia. Parece ser incoerente tal imposição, diante de um testamento público, válido, eficaz, que foi confeccionado com o intuito de evitar disputa na partilha e produzido por tabelião que tem fé pública.
3 É Possível Proceder ao Inventário Extrajudicial com Herdeiro Incapaz?
Recentemente essa problemática foi apresentada ao tabelião Thomas Nosch Gonçalves, do Cartório de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, no Município de Pirassununga (SP). O tabelião foi pioneiro em realizar inventário extrajudicial com herdeiro incapaz, trabalho que rendeu frutos positivos para todos os envolvidos, principalmente para o menor, parte mais vulnerável nesse processo, que foi beneficiado pela atitude inovadora e conjunta do tabelião, advogado, magistrado e representante do Ministério Público. Esse trabalho, desenvolvido com responsabilidade e em sintonia com a realidade social, foi o provedor de uma nova visão e interpretação do artigo 610, caput, do CPC.
É notório que a Lei nº 11.441/2007 tem como principal finalidade a desjudicialização, promovendo o inventário extrajudicial como instrumento colaborativo para o desafogamento do sistema judicial, que é abarrotado de inúmeras demandas. Visa à garantia do princípio da razoável duração do processo, conforme determina o artigo 5º, inciso LXXVIII, da Constituição Federal: “Art. 5º LXXVIII ‒ a todos, no âmbito judicial e administrativo, são assegurados a razoável duração do processo e os meios que garantam a celeridade de sua tramitação”.
Alguns doutrinadores já manifestaram críticas plausíveis sobre a postura do legislador diante de um fato revolucionário e inovador, haja vista ele ter deixado de abordar, com maior profundidade, um assunto tão importante e com grande potencial de promover a jurisdição voluntária em larga escala, com segurança jurídica, economia e celeridade. Por mais que se tente comparar o inventário notarial ao arrolamento sumário ou sumaríssimo, nenhum desses dois oferece a mesma celeridade e eficiência que apresenta o inventario extrajudicial.
Acrescem Refosco, Junior e Agapito (2020, p. 156) que, segundo o princípio da unidade notarial, não existe processo no inventário administrativo, pois é ato único em que se lavra, lê e assina a escritura pública numa só circunstância, observado o princípio instrumental do art. 215 do CC.
O caput do artigo 610 do Código de Processo Civil traz duas restrições à feitura do inventário administrativo: não ter testamento e não ter interessado incapaz. A primeira delas foi abordada na seção anterior, sendo comprovado que sua exigência não faz muito sentido, tanto que diversos Estados autorizam a produção do inventário extrajudicial com testamento. Parece algo já superado por grande parte da doutrina e jurisprudência.
No que tange ao interessado incapaz, e aqui se inclui o herdeiro incapaz, o objetivo foi proteger o mais vulnerável. Contudo, é necessário que a análise dessa restrição se dê de forma mais intensa, pois proteger o incapaz não significa literalmente impor a via judicial como único meio de se proceder ao inventário. Até porque essa é a via mais danosa para quem se acha em situação de vulnerabilidade e precisa receber sua fração da herança para prover seus gastos. Impor o inventário judicial para o herdeiro incapaz é castigar quem já está em desvantagem; essa não é a decisão mais adequada. O papel de proteção dos incapazes cabe ao Ministério Público, que deve acompanhar todo o procedimento do inventário, seja ele judicial ou extrajudicial, e diante da observação de que o incapaz está sendo prejudicado, deve levar o caso ao Judiciário.
Nessa linha de entendimento, se a partilha é de fração ideal (partes iguais) e não há prejuízo para nenhuma das partes, por que impor a via judicial para o inventário se nessa via a divisão da fração será a mesma? Percebe-se que diante da ausência de prejuízo e da partilha por fração ideal, a exigência da inexistência de interessado incapaz perde o sentido. A proteção ao incapaz permanece, só que agora, numa modalidade de inventário mais célere, esse vulnerável vai receber e desfrutar do patrimônio que lhe cabe por direito, sem ter de aguardar anos para receber sua parte na herança.
Esse novo entendimento, que nasceu da decisão inovadora da 3ª vara cível da Comarca do Leme, deve ser visto como uma grande conquista a ser repetida em outros Estados. A exemplo do Acre, conforme expõe seu Tribunal de Justiça:
O Diário da Justiça Eletrônico trouxe na edição desta quinta-feira, 9, a Portaria 5914-12, que dispõe sobre a realização de inventário extrajudicial, em tabelionato de notas, quando houver herdeiros interessados incapazes. O documento é assinado pelo titular da Vara de Registros Públicos, Órfãos e Sucessões e de Cartas Precatórias Cíveis da Comarca de Rio Branco, juiz de Direito Edinaldo Muniz.
O inventário extrajudicial, previstos desde 2007, pela Lei 11.441, é uma possibilidade legal de transmissão dos bens para os herdeiros, quando há um consenso, de forma célere e com menos custos para o cidadão. Esse tipo de procedimento segue e aprofunda um precedente da Justiça do Estado de São Paulo. A novidade é a possibilidade para herdeiros interessados incapazes terem acesso mais fácil ao inventário diretamente no cartório. Contudo, a minuta final da escritura e acompanhada da documentação pertinente, precisa ser previamente submetida à aprovação da vara responsável, antecedida, evidentemente, de manifestação do Ministério Público, tudo isso visando à devida proteção dos interesses dos herdeiros incapazes. Portanto, não haverá nenhum prejuízo aos menores e incapazes, pois a aprovação desses inventários continuará dependendo da manifestação favorável do Ministério Público e da prévia aprovação da Justiça. O procedimento é simples e desburocratizado, em forma de pedido de providência, sem a incidência de custas processuais para que não aconteça, por evidente, uma duplicidade na cobrança. Contudo, sem nenhum prejuízo do devido pagamento dos emolumentos cartorários.
Dessa forma, com a autorização judicial e o acompanhamento do Ministério Público, foi possível realizar o inventário administrativo com herdeiro incapaz no Cartório de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, no Município de Pirassununga (SP).
Segundo Germano, Nalini e Gonçalves (2021, n.p.):
Se a transmissão da herança se dá imediata e automaticamente com o óbito da pessoa, pelo chamado direito de saisine (CC art. 1.829), não há porque recorrer ao Judiciário, quando a partilha se fizer de forma ideal ou igualitária, havendo ou não menores interessados. A situação é claríssima. Imagine-se inventário com três herdeiros, com divisão do patrimônio igualmente entre eles, na proporção de 1/3 (um terço) para cada um. Ainda que um deles fosse incapaz, não haveria qualquer prejuízo. É o que acontece na imensa maioria das partilhas, com atribuição de parte ideal. Raramente os bens são atribuídos de forma exclusiva ou individual aos herdeiros. Caso ocorra a hipótese, aí se justificará participação do Ministério Público e do Poder Judiciário. Exatamente por não haver prejuízo aos incapazes na partilha ideal, um sensível magistrado da Comarca de Leme, proferiu recentemente uma decisão paradigmática: concedeu alvará para que uma escritura de partilha fosse feita em tabelionato de notas, mesmo com um dos herdeiros menor de idade, exatamente porque a partilha se faria de forma ideal (processo 1002882-02.2021.8.26.0318). Essa decisão criativa e inovadora merece aplauso, pois ajudou a desafogar o Judiciário sem deixar desprotegido o menor. Com isso, o inventário será feito no cartório escolhido pelos interessados (Cartório de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, no Município de Pirassununga – SP).
Trata-se de uma decisão a servir de inspiração para outros profissionais do direito, quais advogados, tabeliães, registradores, promotores de justiça e magistrados, além dos próprios legisladores do Congresso Nacional […]. O inventário feito nos cartórios de notas, além de atenderem à normatividade, são muito rápidos e todos sabem que a lentidão é uma das principais máculas do sistema Judicial. Aguarda-se que o tirocínio dos parlamentares acolha a sugestão de lege ferenda e amplie o rol de atribuições dos notários, para que o interesse de menores e incapazes não impeça o inventário em cartório extrajudicial, desde que a partilha seja ideal e igualitária.
Como bem destacam Refosco, Junior e Agapito (2020, p. 153):
Dúvida maior poderia haver nos casos em que se verifica a existência de interesse público relacionado à proteção do patrimônio de herdeiros ou legatários com natureza fundacional e incapazes. No entanto, estando devidamente representados, e não havendo conflito nem oposição do Ministério Público, deve ser-lhes facultada a via extrajudicial […]. Assim, poderiam os membros do Parquet atuar também em inventários e partilhas extrajudiciais que envolvessem incapazes e fundações. Evidentemente, a concordância do membro do Ministério Público com o teor do ato seria parte integrante e indissociável dele, e sua discordância conduziria os interessados à via judicial. Assim, estando todos concordes e adequadamente informados, inclusive o órgão do Ministério Público, deve-se permitir que as demandas sucessórias sejam resolvidas de forma definitiva nos serviços extrajudiciais. Nesse sentido, ressalte-se que o juiz não deve ser figura indispensável para a solução amigável em que estejam envolvidos incapazes ou fundações. A atuação do Ministério Público mostra-se suficiente para garantia do zelo para com os interesses de incapazes e de fundações. Nesse sentido, a ressalva da lei quanto aos incapazes deve ser interpretada como reforço para especial proteção de seus interesses, na linha do que o Supremo Tribunal Federal na ADI 4.277/DF (BRASIL, 2011, n.p.).
Tartuce (2019, p. 6) esclarece sobre o Projeto de Lei de Desburocratização:
Na verdade, para que não surjam argumentos contrários a todas essas posições doutrinárias e jurisprudenciais de avanço, parece-me que a melhor solução é a reforma do art. 610 do CPC/2015, admitindo-se o inventário extrajudicial mesmo com a existência de testamento – desde que todos os herdeiros concordem –, até mesmo havendo filhos incapazes do de cujus. Tais alterações são almejadas pelo grande Projeto de Lei de Desburocratização, originário de comissão mista formada no Senado Federal. Pelo PL 217/2018, que é específico sobre o preceito em comento, passaria ele a ter a seguinte dicção: “Havendo testamento, proceder-se-á ao inventário judicial. § 1º Se todos forem concordes, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras. § 2º O tabelião somente lavrará a escritura pública se todas as partes interessadas estiverem assistidas por advogado ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constarão do ato notarial. § 3º Havendo interessado incapaz, o Ministério Público deverá se manifestar no procedimento, para fiscalizar a conformidade com a ordem jurídica do inventário e da partilha feitos por escritura pública. § 4º Na hipótese do § 3º, caso o tabelião se recuse a lavrar a escritura nos termos propostos pelas partes, ou caso o Ministério Público ou terceiro a impugnem, o procedimento deverá ser submetido à apreciação do juiz”. Faz o mesmo o projeto de lei de reforma do Direito das Sucessões elaborado pelo IBDFAM, que originou o PL 3.799/2019, proposto pela senadora Soraya Thronicke, que tem conteúdo no mesmo sentido.
Esse Projeto apresenta a seguinte ementa: “Altera o art. 610 da Lei nº 13.105, de 16 de março de 2015, para permitir a realização de inventário extrajudicial quando houver possíveis implicações no interesse de incapazes”. E mais:
Altera o Código de Processo Civil, para estabelecer que, havendo interessado incapaz, o inventário e a partilha poderão ser feitos por escritura pública, caso em que o Ministério Público deverá fiscalizar a conformidade com a ordem jurídica. O procedimento deverá ser submetido à apreciação do juiz caso o tabelião, o Ministério Público ou terceiro se manifestem contrariamente aos termos propostos.
É de se destacar que até o momento da produção deste trabalho, a última tramitação do referido Projeto de Lei deu-se em 5 de agosto de 2018, com a ação de encaminhamento à publicação, à Comissão de Conciliação e Justiça, em decisão terminativa.
Essa tendência da desjudicialização buscando soluções fora do Judiciário vem sendo frequentemente debatida por doutrinadores. Entre eles, Flávio Tartuce, que vem trabalhando para a sua aplicação em todo o país.
No Direito Sucessório tem se buscado cada vez mais a extrajudicialização, o que contribuiu para Projeto de Lei de Desburocratização. Almeja-se alterar o texto do artigo 610 do atual Código de Processo Civil, cuja finalidade é reduzir a burocracia que envolve o inventário. Diversas normas de Corregedorias-Gerais de Tribunais de Justiça têm relativizado essa regra, a exemplo dos Estados de São Paulo e Rio de Janeiro.
Segue-se o teor do Enunciado nº 600 da VII Jornada de Direito Civil, repetido na I Jornada sobre Prevenção e Solução Extrajudicial de Litígios (Enunciado n. 77) e na I Jornada de Direito Processual Civil (Enunciado n. 51). Dessa forma, havendo registro judicial ou autorização expressa do juízo sucessório competente, o inventário com testamento pode ser feito por escritura pública no Cartório de Notas, desde que todos os interessados sejam capazes e concordes (TARTUCE, 2018, p. 6).
A despeito de esse entendimento estar sendo praticado em alguns Estados da Federação, o Projeto de Lei de desburocratização vai além, pois sua inovação abarca também a questão do herdeiro incapaz no inventário administrativo. Parece que esse Projeto de Lei veio também com o papel de suprir a omissão da Lei nº 11.441/07 no que se refere ao inventário extrajudicial com testamento e herdeiro incapaz. A proposta é que seja alterado o texto do artigo 610, caput, do Novo Código de Processo Civil, a fim de promover a desjudicialização em todo o país e suprir o que o legislador da Lei nº 11.441/07 deixou de abordar.
Expõe Tartuce (2018, p. 6):
A proposta do projeto em estudo é bem mais audaciosa, pois o art. 610, caput, do Novo Código de Processo Civil passaria a prever, pura e simplesmente que, inexistindo acordo entre os herdeiros e os legatários do falecido, proceder-se-á ao inventário judicial. Se houver acordo, sem qualquer outra ressalva, a via extrajudicial, por escritura pública a ser lavrada no Tabelionato de Notas, passa a ser plenamente possível. Conforme o seu § 1º, também com tom bem abrangente, a incluir até o pedido de adjudicação de bens, “se todos os herdeiros e os legatários forem concordes ou se só houver um herdeiro, o inventário e a partilha ou, se for o caso, a adjudicação poderão ser feitos por escritura pública, a qual constituirá documento hábil para qualquer ato de registro, bem como para levantamento de importância depositada em instituições financeiras”. Insere-se, ainda, previsão de que, mesmo havendo herdeiro incapaz, a via extrajudicial é possível, desde que haja a atuação do Ministério Público perante o Tabelionato de Notas, sendo necessária a homologação do inventário por esse órgão em um procedimento administrativo perante o Cartório (proposta de § 3º para o art. 610 do CPC/2015). Eventualmente, se o Ministério Público desaprovar a escritura, o Tabelião de Notas, por requerimento do interessado, submeterá a escritura ao juiz, que poderá suprir a homologação do MP por meio de sentença, em sede de demanda que segue o procedimento de jurisdição voluntária (eventual § 4º do art. 610 do CPC/2015).
Por todo o exposto, a exigência da ausência de interessado incapaz é algo que precisa ser repensado quando a finalidade é promover a desjudicialização de um sistema que por vezes é abarrotado, que não consegue dar conta das inúmeras demandas e que fere os princípios da razoável duração do processo e do acesso à justiça. Ademais, a incapacidade não se confunde com a maioridade, podendo o herdeiro ser emancipado para se tornar habilitado a participar do inventário extrajudicial.
Por sorte, algumas Corregedorias Estaduais têm providenciado normativas sobre o tema, incentivando seus colaboradores a atuarem a favor da desjudicialização, no sentido de relativizar os requisitos do artigo 610, caput, do Código de Processo Civil. Enquanto não é feita a alteração desse artigo, as Corregedorias-Gerais de Tribunais de Justiça dos Estados de São Paulo e do Acre vêm trabalhando na direção da desburocratização do inventário administrativo com herdeiro incapaz. Esse entendimento inovador tem servido de inspiração para que os demais Estados possam aderir a essa corrente, produzindo normativas nesse sentido.
O caminho é longo, mas o primeiro passo já foi dado no Cartório de Notas do Distrito de Cachoeira de Emas, no Município de Pirassununga (SP), resultado de um trabalho conjunto entre tabelião, magistrado, Ministério Público e advogado, em que todos se empenharam com o objetivo de garantir à parte vulnerável o acesso à justiça e a razoável duração do processo.
4 Desjudicialização e a Lei nº 11.441/2007
O instituto da desjudicialização permitiu a ampliação do inventário, que passou a ser feito também no campo extrajudicial, pois até então o Judiciário era a única via de execução desse mecanismo, o que contribuiu para a redução das demandas judiciais. A desjudicialização é fruto da Lei nº 11.441/2007.
Conforme Silva e Tartuce (2016, n.p.), essa lei permitiu a execução de inventário e partilha com agilidade e segurança jurídica pelos Cartórios de Notas de todo o Brasil, reduzindo os procedimentos judiciais. Deveria a lei, também, ter ampliado esses atos para os casos em que houvesse testamento ou herdeiro incapaz, desde que existisse consenso entre os sucessores.
Nos dizeres de Diniz (2020, p. 101):
A desjudicialização consiste, justamente, no deslocamento de algumas atividades atribuídas exclusivamente ao judiciário, para o âmbito das serventias extrajudiciais, admitindo que esses órgãos possam realizá-las por meio de procedimentos administrativos. É o que ocorreu com o inventário, que por meio da Lei 11.441, de 4 de janeiro de 2007, passou a ser possível sua realização extrajudicialmente.
Prossegue Diniz (2020, p. 102):
A desjudicialização possui como objetivo trazer celeridade e simplicidade às demandas que não envolvam litígio, bem como contribuir para a redução de ações no Poder Judiciário […]. O Judiciário brasileiro encontra-se sobrecarregado de processos, o que dificulta com que as decisões sejam prolatadas com presteza. Dessa forma, surgiu na sociedade a necessidade de encontrar soluções eficazes, o que fez com que a desjudicialização se tornasse uma realidade no Brasil, com a edição de leis que favorecem a composição amigável de situações sociais por meio dos serviços notariais.
O fenômeno da desjudicialização contribui e muito com o Judiciário, conduzindo as demandas para a via extrajudicial. Essa prática resulta num grande impacto para o Judiciário, que deixa de ser acionado nos casos que podem ser resolvidos pela via administrativa, restando para a sua apreciação apenas os casos mais complexos ou litigiosos. A consequência é a redução do número de processos que abarrotam o sistema e são responsáveis pela lentidão processual. Dessa forma, o Judiciário assume o papel residual, cabendo a ele as questões essencialmente litigiosas.
Esclarece Garcia (2020, p. 66):
Observa-se que as atividades extrajudiciais notariais além de contribuir para o desenvolvimento social, bem como garantir os direitos basilares e a segurança jurídica, refletem diretamente no Poder Judiciário, quanto a sua desjudicialização, diminuindo a demanda processual e desafogando o Judiciário.
Continua a autora: “Desta forma, o Poder Judiciário deve ser acionado tão somente quando houver conflito e violação de direito, tendo em vista que as atividades extrajudiciais notariais trazem em seus atos celeridade e segurança jurídica”.
A desjudicialização beneficia principalmente a sociedade, que tem a opção de escolher um caminho mais célere sem comprometer a qualidade e segurança no serviço que foi prestado. É notório que o tabelião tem competência, qualificação e preparo para realizar as atividades extrajudiciais. Tanto é que o formal de partilha expedido pelo tabelião tem o mesmo efeito do formal de partilha homologado pelo juiz.
Segundo Santos e Reis (2019, p. 15-16), o termo desjudicialização ainda não é dicionarizado, isto é, não tem um conceito definido. Contudo, na área jurídica apresenta a ideia de incentivo à solução de conflitos através de meios alternativos, extrajudiciais, que contribuem para a redução de novas ações judiciais.
Prosseguem os autores:
Desse modo, em apertada síntese, a desjudicialização tem como escopo o deslocamento de certas atividades até então exclusivamente de competência Poder Judiciário e resolúvel apenas pela vertente judicial, para o âmbito das serventias extrajudiciais, permitindo assim, a realização de procedimento burocráticos através de artifícios administrativos, visando sempre possibilitar a celeridade às ações que não envolvem litígio, contribuindo significativamente na busca pela redução da crescente onda de pressão sobre os tribunais, que já se encontram mergulhados numa crise frente o seu abarrotamento.
Discorrem Kümpel e Viana (2019, n.p.) sobre o tema:
No que diz respeito ao aspecto procedimental, antes da lei 11.441/2007, os inventários processavam-se exclusivamente no âmbito judicial. Porém, com a entrada em vigor da referida Lei ‒ que, dentre outras providências, modificou o art. 982 do antigo Código de Processo Civil de 1973 ‒ conferiu-se um inédito protagonismo aos notários na operacionalização da transmissão causa mortis, tanto na etapa do inventário quanto da partilha. Assim, admitiu-se o processamento dos inventários e partilhas também pela via extrajudicial, possibilidade preservada pelo atual Código de Processo Civil (art. 610, §§ 1º e 2º). Desde 2007, portanto, o procedimento de apuração do patrimônio líquido deixado pelo falecido, culminando na partilha aos herdeiros, pode ser realizado não apenas em juízo, mas também por escritura pública, perante o tabelião de notas de livre escolha dos interessados.
Sobre a Lei nº 11.441/07, explana Tartuce (2019, p. 1):
Com a aprovação pelo Congresso Nacional do Projeto de Lei 4.725/2004, convertido na Lei 11.441/2007, o sistema jurídico brasileiro passou a admitir o inventário extrajudicial, feito por escritura pública, perante o Tabelionato de Notas. Trata-se de inovação festejada, que veio a reduzir consideravelmente a burocracia para a partilha dos bens do falecido. Nesse sentido, a redação anterior do art. 982 do CPC de 1973, já alterada pela Lei 11.965/2009, pela menção ao defensor público, estabelecia que, havendo testamento ou interessado incapaz, somente seria possível o inventário judicial. Por seu turno, se todos os herdeiros fossem capazes e concordes, haveria a viabilidade jurídica de processamento do inventário e da partilha por escritura pública, a qual constituiria título hábil para o registro imobiliário. A norma também enunciava que o tabelião somente lavraria a escritura pública se todas as partes interessadas estivessem assistidas por advogado comum ou advogados de cada uma delas ou por defensor público, cuja qualificação e assinatura constariam do ato notarial. Por fim, estava previsto na lei anterior que a escritura e demais atos notariais seriam gratuitos àqueles que se declarassem pobres, sob as penas da lei.
O artigo 982 do Código de Processo Civil de 1973, que já havia sido alterado, estabelecia em seu texto que o inventário fosse realizado de forma administrativa e que todos os herdeiros deveriam ser capazes e concordes. Também não poderia existir testamento e precisava-se da assistência de advogado. Atendendo a tais requisitos o inventário poderia ser feito por escritura pública, reduzindo a burocracia, garantindo a celeridade e estimulando a solução de conflitos consensuais.
Nas palavras de Figueiredo (2015, p. 89), foi com a Lei nº 11.441, de 2007, que:
A escritura pública de inventário passou assim a representar, desde essa lei, o título hábil para o registro da transferência de bens, móveis e imóveis, e de direitos, em virtude de sucessão, sem a intervenção do magistrado, em processo judicial, no âmbito da jurisdição das varas cíveis ou especializadas em matéria sucessória. Vale observar que tal alteração representou uma efetiva revolução, das mais relevantes, no direito processual brasileiro, no que tange à desjudicialização dos assim denominados atos de jurisdição voluntária. Com efeito, a partir da Lei 11.441/2007, alguns atos de jurisdição voluntária, como os inventários, divórcios e partilhas consensuais, receberam a permissão legal para sua formalização pela via extrajudicial, por escritura pública, sem qualquer interferência, intervenção ou necessidade de homologação judicial.
Os atos de jurisdição voluntária são aqueles em que não há litígio, as partes realizam um acordo de vontades e possuem natureza colaborativa. As partes pactuam uma autocomposição e estabelecem direitos e obrigações recíprocos. Como são todos maiores e capazes, não há necessidade de movimentar o Poder Judiciário para homologar algo que já foi acordado entre as partes. A desjudicialização é um instrumento que veio para atuar no processo de descongestionar a Justiça. Diante da ausência de conflitos, os atos de jurisdição voluntária visam contribuir com a redução das estáticas das demandas judiciais (FIGUEIREDO, 2015, p. 90-91).
Todavia, parte da doutrina apresenta relevantes críticas à Lei º 11.441/2007, uma vez que o legislador perdeu a oportunidade de ampliar as formas de realização do inventário administrativo ao não mencionar o testamento e o herdeiro incapaz, já que alterou apenas quatro artigos do Código de Processo Civil de 1973, no que se refere ao inventário. Segundo Dias (2021, p. 778), “perdeu o legislador uma excelente oportunidade de dar mais um passo para atingir o escopo do novo Código de Processo Civil, qual seja: o incentivo à desjudicialização através da ampliação dos procedimentos extrajudiciais”.
Manter essas limitações em nada contribuiu com o maior propósito da lei e do atual Código de Processo Civil, que é a desjudicialização. Evidencia-se que a norma deixou de aprofundar de forma detalhada os temas trazidos em seu bojo, motivo do surgimento da Resolução nº 35 do CNJ, que nasceu com o encargo de pacificar e uniformizar o entendimento da Lei nº 11.441/2007.
De acordo com a lei citada, se todos os herdeiros e interessados forem capazes, concordes, não existir testamento e estiverem representados por advogado, não há imposição para que o inventário seja realizado pela via judicial. Cabe às partes escolher entre o inventário judicial e o inventário notarial.
Comenta Figueiredo (2015, p. 101):
Assim, dado o evento morte de uma pessoa, estando todos os seus herdeiros e interessados, maiores e capazes, de pleno e comum acordo quanto à destinação e partilha dos bens e direitos do espólio do falecido, não existiria justificativa alguma para a judicialização do processo de inventário. Essa foi a tardia conclusão do legislador ao sancionar a Lei 11.441/2007. Por essa razão, o inventário com partilha consensual, entre herdeiros maiores, capazes e concordes, deve ser decidido e formalizado conforme a livre vontade das partes, sem necessidade de qualquer intervenção judicial.
A promulgação da Lei nº 11.441/2007 tornou viável a realização do inventário administrativo, que sem dúvida é bem mais célere e econômico. No entanto, o legislador alterou apenas quatro artigos do Código de Processo Civil de 1973, relacionados ao inventário extrajudicial, quando poderia ter ampliado as hipóteses do inventário notarial, abordado de forma mais profunda a questão da desjudicialização e atendido ao escopo da norma, caso tivesse excluído os requisitos da ausência de testamento e da capacidade do herdeiro.
Preservando apenas os requisitos da concordância e da assistência do advogado, visto que é plausível a obrigatoriedade da concordância das partes diante da via administrativa, uma vez que não cabe ao tabelião o papel de julgar qual das partes têm ou não direito. Logo, havendo litígio, o caminho para a realização do inventário é único: o Judiciário. Ademais, o advogado tem função de grande importância na orientação de seu constituinte e no esclarecimento dos termos jurídicos que fazem parte do procedimento, devendo, também, trabalhar para que o resultado seja o mais adequado possível para seu cliente.
Depois das pequenas alterações feitas pela Lei nº 11.441/2007, o atual Código de Processo Civil, Lei nº 13.105/2015, apenas ratificou o conteúdo daquela. É sabido que observando os requisitos impostos pela norma, será possível escolher a via extrajudicial para a execução do inventário, o que serve de incentivo às partes a fim de restaurarem o diálogo e realizarem o acordo de vontades. No entanto, essas limitações impossibilitam que diversos inventários e partilhas sejam produzidos nos Cartórios de Notas.
Conclusão
A presente pesquisa foi desenvolvida a partir da análise dos requisitos previstos no artigo 610, caput, do CPC, para que o inventário pudesse ser realizado de forma extrajudicial. O objetivo foi demonstrar que exigir a inexistência de testamento público ou de herdeiro incapaz vai de encontro ao escopo da Lei nº 11.441/2007 e do Código Processual Civil, a saber, a desjudicialização, além de causar efeitos deletérios a todos os envolvidos. Ademais, são inúmeras as vantagens que se têm ao relativizar os requisitos do artigo 610, caput, do CPC, para que se possa proceder ao inventário por escritura pública, já que o texto deste artigo ainda não passou por alteração, nem o CNJ regulamentou a matéria de forma a ser aplicada em todo o país.
Com o objetivo de demonstrar que a relativização dos requisitos previstos no artigo 610, caput, do CPC é relevante para o sistema judiciário e para a sociedade, este trabalho analisou: a Lei nº 11.441/07; a Resolução nº 35 do Conselho Nacional de Justiça, que disciplina a aplicação da referida lei pelos serviços notariais e de registro; o artigo 610 do Código de Processo Civil; o Enunciado nº 600 da VII Jornada de Direito Civil; ementas; provimentos; projetos de lei; resoluções e, principalmente, a decisão da Quarta Turma do Superior Tribunal de Justiça (no REsp 1.808.767-RJ, em outubro de 2019, Relator Ministro Luis Felipe Salomão).
Foi sugerido que enquanto o texto do artigo 610, caput, do CPC não for alterado, ampliando o leque de permissão para a realização do inventário extrajudicial, ao CNJ cabe uniformizar essa relativização em todo o Brasil, para que todos, nos limites apresentados, tenham acesso ao inventário administrativo com a existência de testamento público e/ou herdeiro incapaz, a exemplo do que foi realizado recentemente em São Paulo.
Nessa esteira, é evidente que a existência de testamento ou de herdeiro incapaz não deve impedir que o inventário seja realizado por escritura pública nos Cartórios de Notas. Até porque as disposições testamentárias nem sempre têm natureza patrimonial, além de poder o testamento ser declarado revogado, caduco ou inválido. Logo, é como se testamento não houvesse.
Cabe repisar que o objetivo do testamento não é afastar o inventário extrajudicial, mas buscar garantir que a vontade do testador seja respeitada desde que a confecção do testamento tenha atendido às normativas do Direito Sucessório. Atualmente, em alguns Estados, é possível realizar o inventário extrajudicial com testamento, depois de levar ao Judiciário a ação de abertura, registro e cumprimento.
Outro ponto que foi debatido nesta pesquisa, uma vez que essa ação poderia ser feita diretamente no Cartório de Notas pelo tabelião, profissional mais habilitado para verificar as formalidades legais extrínsecas da cédula testamentária. Esse entendimento tem ganhado cada vez mais espaço na doutrina que defende a desjudicialização.
Foi constatado que o inventário com herdeiro incapaz é um tema muito recente e poucos doutrinadores expõem sua opinião sobre essa temática, a exemplo de Flávio Tartuce, Fernanda Tartuce e Maria Berenice Dias. Ressalta-se que o Estado de São Paulo foi pioneiro nesse assunto, permitindo a produção do inventário extrajudicial com herdeiro incapaz, desde que a fração seja ideal e o Ministério Público participe do procedimento.
Posteriormente, o Tribunal de Justiça Estado do Acre, por meio da Portaria nº 5.914-12, dispôs sobre a realização de inventário extrajudicial em tabelionato de notas com herdeiros incapazes. Todavia, exige que a minuta da escritura pública e a documentação pertinente sejam previamente levadas à aprovação da vara responsável, com a manifestação do Ministério Público.
Pontua-se que a relativização do artigo 610, caput, do CPC deve alcançar também os casos em que o incapaz seja o cônjuge meeiro, isto é, se o regime de casamento adotado foi o de comunhão universal de bens, esse cônjuge não será herdeiro na existência de descendentes. Dessa forma, não se trata de herança a ser inventariada, pois o cônjuge supérstite incapaz apenas meeiro não irá concorrer à partilha da herança, entendimento extraído da análise do artigo 2.016 do Código Civil/2002. Logo, sua incapacidade não influenciará na realização do inventário, pois sua parte é a meação, que deve ser separada e não está sujeita à partilha nem à transmissão, já que lhe pertence por direito.
Do que ordinariamente se observa no exercício da advocacia, é o óbice em realizar o inventário extrajudicial com a existência de cônjuge sobrevivente incapaz, sendo este apenas meeiro e não herdeiro, mesmo quando todos os herdeiros são concordes e capazes, devido à ausência de normativa a respeito desse assunto tão relevante. Registra-se o intuito de fomentar o debate e promover a pesquisa de um tema instigante e atual, para que gerações futuras vejam a satisfação de seu direito de forma mais célere e estável, cumprindo assim o mandamento constitucional de uma sociedade justa e igualitária.
Essa sociedade exige mudanças legislativas e, infelizmente, a omissão da Lei nº 11.441/07 impediu um avanço positivo que fosse capaz de garantir celeridade e eficiência ao sistema judicial, que geralmente é congestionado, lento, de custo elevado e desacreditado por boa parte da coletividade. Enquanto essa esperada evolução legislativa não chega, faz-se necessário que o Judiciário esteja mais atento à realidade social. Interpretar a norma de forma literal, sem espaço para flexibilização e sem observar a evolução da sociedade, é o mesmo que torná-la imóvel e ineficaz. É preciso que os avanços que foram incorporados pelas normativas estaduais sejam uniformizados em todo o Brasil pelo CNJ.
Espera-se que o inventário administrativo com herdeiro incapaz seja realizado de forma unificada em todo o país. Conforme foi demonstrado nesta pesquisa, a restrição prevista no artigo 610, caput, do CPC cria entraves e prejudica quem mais precisa de proteção, o incapaz. Ademais, a relativização do citado artigo confere impactos positivos para todos os envolvidos que buscam na via extrajudicial uma alternativa quando o assunto é o inventário. A sociedade almeja por celeridade, eficiência, segurança jurídica, acesso à justiça e economia.
Ante tudo o que foi exposto, é evidente que as repercussões do inventário administrativo com testamento são bastante positivas e almejadas pelo corpo social. É possível proceder ao inventário extrajudicial com herdeiro incapaz, desde que o Parquet acompanhe o procedimento e garanta que não haverá prejuízo ao vulnerável. Sendo a partilha em fração ideal, não há razão para impedir que o procedimento seja feito por escritura pública. Tudo isso seria o resultado de uma interpretação evolutiva do artigo 610, caput, do CPC.
Acredita-se que o sistema processual deve aderir aos anseios da sociedade como forma de garantir o acesso a uma justiça eficiente, econômica, segura e célere. Desburocratizar é tornar o procedimento simples, é servir à sociedade. Na inexistência de litígio, a desjudicialização deve ser a regra, e a judicialização a exceção.
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[1] José Luiz Germano é especialista em direito notarial e registral pela EPM, desembargador aposentado (TJ/SP); atualmente é oficial de Registro de Imóveis do 2º Ofício de Cianorte – Paraná.
[2] José Renato Nalini é doutor e mestre em Direito pela USP, desembargador aposentado, ex-corregedor-geral da Justiça, ex-presidente do TJ/SP e reitor da Uniregistral.
[3] Thomas Nosch Gonçalves é mestrando em Direito pela USP, especialista em direito civil pela USP e em Direito Notarial e Registral pela EPM, ex-advogado e atualmente registrador civil e tabelião de notas do Distrito de Cachoeira de Emas, município de Pirassununga, em São Paulo.
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