A atividade investigatória não é exclusiva da Polícia Judiciária. Existem outras formas de investigação atreladas a órgãos diversos.[1][1]
Interessa à ordem social e ao adequado funcionamento do Estado democrático que os ilícitos penais sejam apurados, e esta afirmação é clara no ordenamento jurídico vigente, daí não ser adequado limitar ou impedir que determinados órgãos deixem de apurar aquilo de que têm conhecimento em razão de suas atividades.
Nesta linha de argumentação, não tem sentido lógico excluir do Ministério Público a possibilidade de proceder à investigação de delitos.[2][2]
Mas a questão não é apenas de lógica ou principiológica, na exata medida em que não há embasamento jurídico que se preste a fundamentar com acerto qualquer pretensão que tenha por escopo impedir que o Ministério Público promova investigações de natureza criminal.
O poder investigatório do Ministério Público conta com autorização no texto constitucional e também no Código de Processo Penal,[3][3]que nada obstante sua matriz autoritária, não estabeleceu qualquer óbice a esse respeito.
De interesse para a matéria, é oportuno lembrar que constitui função institucional do Ministério Público (CF, art. 129), promover, privativamente, a ação penal pública (inc. I); zelar pelo efetivo respeito dos Podres Públicos e dos serviços de relevância pública aos direitos assegurados na Constituição, promovendo as medidas necessárias a sua garantia (inc. II); expedir notificações nos procedimentos administrativos de sua competência, requisitando informações e documentos para instruí-los, na forma da lei complementar respectiva (inc. VI); exercer o controle externo da atividade policial (inc. VII); requisitar diligências investigatórias e a instauração de inquérito policial (inc. VIII), e exercer outras funções que lhe forem conferidas, desde que compatíveis com sua finalidade (inc. IX).
Dentre outras atribuições nesta mesma linha, o art. 26 da Lei n. 8.625/93, Lei Orgânica Nacional do Ministério Público que dispõe sobre normas gerais para a organização do Ministério Público dos Estados, autoriza o Ministério Público a instaurar procedimentos administrativos; expedir notificações para colher depoimento ou esclarecimentos; requisitar de autoridades e órgãos: informações, exames periciais e documentos; promover inspeções e diligências investigatórias junto às autoridades, órgãos e entidades; requisitar informações e documentos a entidades privadas, para instruir procedimentos, e requisitar diligências investigatórias.
Neste mesmo caminho segue o art. 8º da Lei Complementar n. 75/93 (Dispõe sobre a organização, as atribuições e o estatuto do Ministério Público da União).
Portanto, “A legitimidade do Ministério Público para a colheita de elementos probatórios essenciais à formação de sua opinio delicti decorre de expressa previsão constitucional, oportunamente regulamentada pela Lei Complementar n.º 75/1993 (art. 129, incisos VI e VIII, da Constituição da República, e art. 8.º, incisos V e VII, da LC n.º 75/1993). A Polícia Judiciária não possui o monopólio da investigação criminal. É consectário lógico da própria função do órgão ministerial – titular exclusivo da ação penal pública – proceder à realização de diligências investigatórias pertinentes ao respectivo âmbito de atuação, a fim de elucidar a materialidade do crime e os indícios de autoria”.[4][4]
Dentro das regras analisadas, é absolutamente compatível com as finalidades do Ministério Público o exercício da atividade investigatória.[5][5]
É caso de adoção da teoria dos poderes implícitos, visto que “A interpretação sistêmica da Constituição e a aplicação dos poderes implícitos do Ministério Público conduzem à preservação dos poderes investigatórios deste Órgão, independentemente da investigação policial”.[6][6]
Se o Ministério Público pode requisitar instauração de inquérito; se pode instaurar procedimento administrativo, requisitar diligências e ajuizar denúncia sem precedente inquérito policial, é evidente que também pode investigar. Quem pode o mais pode o menos.
Ainda que assim não fosse, como afirmado, a legitimação para investigar não decorre apenas de lógica, de princípio jurídico ou de raciocínio indutivo, mas de regra expressa, e é a própria Constituição Federal que admite a adoção das medidas indicadas.
Também não é por razão diversa que o art. 28 do CPP faz referência ao arquivamento de peças de informação, e o art. 40 a autos e papéis suficientes para o ajuizamento de processo penal.
O inquérito policial não é imprescindível.
Se o Ministério tiver em mãos documentos que o habilitem à propositura de ação penal poderá oferecer denúncia sem que tenha ocorrido precedente atividade investigatória da polícia, conforme autorização contida nos arts. 12, 39, § 5º, e 46, § 1º, do CPP.
Ora, por que razão charadística não poderia então promover investigação de natureza criminal?
Argumenta-se que o art. 144, § 1º, IV, da CF, diz competir à polícia federal, exercer com exclusividade, as funções de polícia judiciária da União, daí a impossibilidade de investigação de natureza criminal promovida pelo Ministério Público.
Ledo engano. A tese é juridicamente caquética.
Para que se possa chegar à correta interpretação, o termo “exclusividade” grafado no inc. IV do § 1º deve ser analisado em confronto com a expressão “ressalvada a competência da União” contida no § 4º do mesmo art. 144 da CF,[7][7]quando então será possível entender que o legislador constitucional teve por objetivo apenas delimitar as atribuições das polícias referidas.
A regra invocada visa apenas distinguir as atribuições da polícia federal daquelas outorgadas às polícias civis dos Estados, sem excluir qualquer iniciativa investigatória do Ministério Público.
Neste sentido, basta conferir o entendimento exposto no julgado do STF, de que foi relator o E. Min. Celso de Mello, ementado conforme segue:
“A cláusula de exclusividade inscrita no art. 144, § 1º, inciso IV, da Constituição da República – que não inibe a atividade de investigação criminal do Ministério Público – tem por única finalidade conferir à Polícia Federal, dentre os diversos organismos policiais que compõem o aparato repressivo da União Federal (polícia federal, polícia rodoviária federal e polícia ferroviária federal), primazia investigatória na apuração dos crimes previstos no próprio texto da Lei Fundamental ou, ainda, em tratados ou convenções internacionais. – Incumbe, à Polícia Civil dos Estados-membros e do Distrito Federal, ressalvada a competência da União Federal e excetuada a apuração dos crimes militares, a função de proceder à investigação dos ilícitos penais (crimes e contravenções), sem prejuízo do poder investigatório de que dispõe, como atividade subsidiária, o Ministério Público. Função de polícia judiciária e função de investigação penal: uma distinção conceitual relevante, que também justifica o reconhecimento, ao Ministério Público, do poder investigatório em matéria penal” (STF, HC 94.173/BA, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 27-10-2009, DJe 223, de 27-11-2009).
Em verdade, o problema reside no fato de que o Ministério Público incomoda, e muito, marginais engravatados que se utilizam do voto popular para espoliar o erário; para ampliar as atividades ilícitas das organizações criminosas que sem qualquer pudor integram e patrocinam, daí os insistentes ataques diretos e pessoais a Promotores de Justiça e Procuradores da República; daí as reiteradas investidas contra a Instituição defensora do Estado Democrático de Direito, como dão mostras os inúmeros projetos de lei que tramitam no Congresso Nacional com vistas a cercear as atividades Ministeriais, a despeito da desaprovação popular de tais iniciativas.
É preciso dizer que este debate sempre foi acalorado na doutrina e na jurisprudência, como é necessário consignar que o fato de integrarmos a carreira do Ministério Público não constitui pano de fundo para nossas argumentações, até porque, jamais nos distanciamos de nossa absoluta e intocável liberdade de convicção.
O representante do Ministério Público está legitimado a investigar, como também pode acompanhar investigação presidida pela autoridade policial e requisitar dela outras diligências. O que não pode é presidir inquérito policial.[8][8]
Sintetizando o afirmado, segue ementa de julgado do STF, relatado pela Mina Ellen Gracie:
“É perfeitamente possível que o órgão do Ministério Público promova a colheita de determinados elementos de prova que demonstrem a existência da autoria e da materialidade de determinado delito. Tal conclusão não significa retirar da Polícia Judiciária as atribuições previstas constitucionalmente, mas apenas harmonizar as normas constitucionais (arts. 129 e 144) de modo a compatibilizá-las para permitir não apenas a correta e regular apuração dos fatos supostamente delituosos, mas também a formação da opinio delicti. O art. 129, inciso I, da Constituição Federal, atribui ao parquet a privatividade na promoção da ação penal pública. Do seu turno, o Código de Processo Penal estabelece que o inquérito policial é dispensável, já que o Ministério Público pode embasar seu pedido em peças de informação que concretizem justa causa para a denúncia. Ora, é princípio basilar da hermenêutica constitucional o dos ‘poderes implícitos’, segundo o qual, quando a Constituição Federal concede os fins, dá os meios. Se a atividade fim – promoção da ação penal pública – foi outorgada ao parquet em foro de privatividade, não se concebe como não lhe oportunizar a colheita de prova para tanto, já que o CPP autoriza que ‘peças de informação’ embasem a denúncia” (STF, HC 91.661/PE, 2ª T., rela. Mina. Ellen Gracie, j. 10-3-2009, DJe 64, de 3-4-2009).
No mesmo sentido:
“O poder de investigar compõe, em sede penal, o complexo de funções institucionais do Ministério Público, que dispõe, na condição de ‘dominus litis’ e, também, como expressão de sua competência para exercer o controle externo da atividade policial, da atribuição de fazer instaurar, ainda que em caráter subsidiário, mas por autoridade própria e sob sua direção, procedimentos de investigação penal destinados a viabilizar a obtenção de dados informativos, de subsídios probatórios e de elementos de convicção que lhe permitam formar a ‘opinio delicti’, em ordem a propiciar eventual ajuizamento da ação penal de iniciativa pública. Precedentes: RE 535.478/SC, rel. Min. Ellen Gracie; HC 91.661/PE, rel. Min. Ellen Gracie; HC 85.419/RJ, rel. Min. Celso de Mello; HC 89.837/DF, rel. Min. Celso de Mello” (STF, HC 94.173/BA, 2ª T., rel. Min. Celso de Mello, j. 27-10-2009, DJe 223, de 27-11-2009).
Como bem observou o Min. Hamilton Carvalhido, “O exercício desse poder investigatório do Ministério Público não é, por óbvio, estranho ao Direito, subordinando-se, à falta de norma legal particular, no que couber, analogicamente, ao Código de Processo Penal, sobretudo na perspectiva da proteção dos direitos fundamentais e da satisfação do interesse social, que determina o ajuizamento tempestivo dos feitos inquisitoriais e faz obrigatória oitiva do indiciado autor do crime e a observância das normas legais relativas ao impedimento, à suspeição, e à prova e sua produção”.[9][9]
O procedimento investigatório instaurado pelo Ministério Público não pode ser sigiloso para o investigado e seu Defensor.
“O regime de sigilo, sempre excepcional, eventualmente prevalecente no contexto de investigação penal promovida pelo Ministério Público, não se revelará oponível ao investigado e ao Advogado por este constituído, que terão direito de acesso – considerado o princípio da comunhão das provas – a todos os elementos de informação que já tenham sido formalmente incorporados aos autos do respectivo procedimento investigatório”.[10][10]
O representante do Ministério Público que acompanhar investigação presidida por autoridade policial não está impedido de oferecer denúncia lastreada no inquérito que dela resultar, a teor do disposto na Súmula 234 do STJ, verbis: “A participação de membro do Ministério Público na fase investigatória criminal não acarreta o seu impedimento ou suspeição para o oferecimento da denúncia”.
Também não se encontra impedido de oferecer denúncia o representante do Ministério Público que promover, em procedimento próprio, a apuração dos fatos.
Nem teria sentido pensar diferente, considerando ser ele o dominus litis e sua atuação estar voltada exatamente à formação de sua convicção.
Informações Sobre o Autor
Renato Flávio Marcão
Membro do Ministério Público do Estado de São Paulo. Mestre em Direito. Professor convidado no curso de pós-graduação em Ciências Criminais da Rede Luiz Flávio Gomes e em cursos de pós-graduação em diversas Escolas Superiores do Ministério Público e da Magistratura. Membro do Conselho Nacional de Política Criminal e Penitenciária – CNPCP. Membro da Association Internationale de Droit Pénal (AIDP). Membro Associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCrim), do Instituto de Ciências Penais (ICP) e do Instituto Brasileiro de Execução Penal (IBEP).