É notável que nos últimos anos o STF tenha desempenhado papel tão ativo e decisivo na vida institucional brasileira. A decisão de importantes questões políticas tem gerado tanto aplausos como críticas e, não é somente uma peculiaridade brasileira.
Também outras cortes judiciais pelo mundo se destacaram historicamente assumindo o protagonismo nas decisões e na final e efetiva materialização de valores constitucionalmente protegidos e de políticas públicas e, provendo escolhas morais sobre temas bastante controvertidos.
Desde o final da Segunda Grande Guerra Mundial verificou-se o sensível avanço da justiça constitucional[1] em todo Ocidente sobre o espaço da política seja no âmbito do Legislativo, seja no âmbito do Executivo.
No Canadá sua Suprema Corte fora chamada a se manifestar sobre a constitucionalidade de os EUA fazerem testes com mísseis em território canadense.
Em 2000, o derradeiro capítulo da eleição presidencial norte-americana fora decidido pela Suprema Corte, no julgamento de Bush versus Gore[2].
Em Israel, a Suprema Corte decidira sobre a compatibilidade com a Constituição e com os atos internacionais, da construção de um mero na fronteira com o território palestino.
Na Turquia no papel de preservar o Estado laico a Suprema Corte protegeu-o do avanço voraz do fundamentalismo islâmico. Também na Hungria e na Alemanha os planos econômicos tiveram sua validade decidida pelas mais altas cortes. Na Coréia, a Corte Constitucional restituiu mandato presidencial que fora cassado por impeachment.
É extremamente fluída a real divisão e definição entre a política e a justiça[3]no mundo contemporâneo. E, se destaca o caso brasileiro pela notável extensão e volume.
Somado a isso há ainda a transmissão direta dos julgamentos pela TV Justiça transformou os julgamentos numa espécie de reality show com direito a bizarrices verbais e jurídicas[4].
Barroso aponta que é mais positivo tal espetacularização do STF principalmente num país com histórico de pouca transparência como o nosso, onde assistir onze pessoas de notório saber jurídico decidindo as questões nacionais, sem dúvida, é uma boa imagem.
A visibilidade pública propicia maior controle social e melhor funcionamento da democracia. A judicialização envolve a transferência de poder para juízes e tribunais com alterações de linguagem, argumentação e modo de participação social.
A primeira judicialização ocorrera em função da redemocratização brasileira[5] que culminou com a promulgação da Constituição de 1988 alcunhada de “Constituição cidadã”. A recuperação de garantias da magistratura transformou o Judiciário em poder político capaz de concretizar a Constituição e as leis, inclusive no confronto de outras leis.
O ambiente democrático reavivou a cidadania antes adormecida ocasionando maior consciência de direitos e a maior busca de proteção de seus interesses perante juízes e tribunais.
Dentro do mesmo contexto ocorreu a expansão institucional do MP com aumento de sua importante atuação fora da área exclusivamente penal, bem como a maior presença e atuação da Defensoria Pública.
Resumindo: a redemocratização fortaleceu e expandiu o Poder Judiciário e aumentou a demanda por justiça na sociedade brasileira. A outra causa foi a constitucionalização, abrangente que centralizou a Constituição no ordenamento jurídico influindo diretamente inúmeras matérias.
De fato, a constitucionalização foi uma tendência mundial observada nas Constituições de Portugal de 1976 e da Espanha de 1978 que foi potencializada no cenário brasileiro na Constituição de 1988.
Constitucionalizar significa transformar a política em Direito[6]. Assim se é assegurado constitucionalmente o direito à educação e ao meio ambiente equilibrado é possível portanto, judicializar a exigência desses dois direitos, levando ao judiciário o debate sobre ações concretas ou políticas praticadas.
A outra causa da judicialização é a existência de sistema brasileiro de controle de constitucionalidade[7] sendo considerado um dos mais abrangentes do mundo conforme menciona Gilmar Mendes. É um controle qualificado como híbrido ou eclético que combina dois diferentes sistemas: o americano e o europeu.
Desta forma, usamos o controle incidental e difuso que qualquer juiz ou tribunal pode deixar de aplicar uma lei ao caso concreto, caso considere inconstitucional. E, também usamos o modelo europeu que institui o controle por ação direta e que permite que em tese a matéria seja levada diretamente ao STF.
Somado o direito de propositura amplo que é previsto atualmente no art. 103 CF/1988 pelo qual vários órgãos sejam entidades privadas ou públicas, sejam sociedades de classe ou confederações sindicais possam ajuizar ações diretas.
Concluímos que nesse cenário quase toda e qualquer questão política ou moralmente relevante pode ser alcançada pelo STF. Mas a tendência não é inédita e vem crescendo nos últimos anos.
Deve-se ainda mencionar a virada da jurisprudência no tocante ao mandado de injunção, em caso que se determinou a aplicação do regime das greves[8] do setor privado àquelas que ocorram no serviço público.
Nos últimos tempos, o STF fora instado a se pronunciar sobre políticas governamentais tais como a Reforma da Previdência (contribuição de inativos) e da Reforma do Judiciário (com a criação do Conselho Nacional de Justiça), sobre a determinação dos limites legítimos de atuação das Comissões Parlamentares de Inquérito (CPIs) com a quebra de sigilos e decretação de prisão e sobre o papel do MP na investigação criminal, sobre os direitos fundamentais, incluindo a liberdade de expressão no caso de racismo (Caso Ellwanger[9]) e a possibilidade de progressão de regime penitenciário para os condenados pela prática de crimes hediondos.
Cumpre lembrar que sobre todas as decisões acima mencionadas o STF fora provocado a se manifestar e, o fez dentro dos limites dos pedidos formulados e ainda de sua competência.
E não caberia uma vez preenchidos todos os requisitos exigidos em lei, deixar de conhecer tais ações, ou deixar de se pronunciar sobre o mérito destas.
Não se pode imputar aos ministros que compõem o STF a alternativa ou ambição de em face dos precedentes referidos gestar um modelo juriscêntrico, ou instaurar a juristocracia, marcando a hegemonia judicial sobre os demais poderes instituídos.
A judicialização ocorrida também não fora resultado de opções ideológica, filosófica ou metodológica da Corte. Limitou-se estritamente a cumprir seu papel constitucional em conformidade com a constituição vigente.
Há quem confunda a judicialização da política com o ativismo judicial. Mas, na verdade, como salientou Barroso são primos[10] e, portanto, pertencentes à mesma família embora não tenham as mesmas origens.
A judicialização decorre do modelo constitucional brasileiro que se adotou e, não um exercício deliberado de vontade política. O Judiciário decidiu tais casos porque era exatamente o que lhe cabia fazer, sem restar outra alternativa (princípio da inafastabilidade da jurisdição).
Já o ativismo judicial é atitude um agir específico e proativo de interpretar a Constituição expandindo o seu sentido e alcance. E, normalmente se dá o ativismo judicial onde há retração do Legislativo, de certo descolamento entre a classe política e a sociedade civil, impedindo o atendimento de demandas sociais bem como a efetividade de garantia e direitos constitucionalmente protegidos.
O ativismo judicial significa uma participação mais ampla e intensa no âmbito de atuação dos outros poderes. O ativismo se revela exemplificadamente pela aplicação direta da Constituição em situações não expressamente contempladas e inerentemente de manifestação do legislador ordinário; a declaração inconstitucionalidade de atos normativos emanados do legislador, com base em critério menos rígidos quando ocorre a patente e ostensiva violação da Constituição; na imposição de condutas ou de abstenções ao Poder Público, notadamente em matéria de políticas públicas.
É verdade que a origem do ativismo judicial remonta à jurisprudência norte-americana que numa primeira fase fora conservadora. A atuação mais produtiva da Suprema Corte foi para reforçar a conduta e os direitos dos grupos reacionários para justificar a segregação racial (Dred Scott versus Sanford, 1857) e para a invalidação de leis em geral (Era Lochner[11], 1905-1937) culminando no confronto do Presidente Roosevelt e a Corte Judicial com a orientação contrária ao intervencionismo estatal na economia.
Tal situação se inverteu completamente a partir da década de cinquenta quando a Suprema Corte sob a presidência de Warren (1953-1969) e nos primeiros anos da Corte Burger (até 1973) produzira uma jurisprudência progressista em matéria de direitos fundamentais, sobretudo envolvendo negros, os acusados em processo criminal (Miranda versus Arizona[12], 1966) e mulheres (Richardson versus Fontiero[13], 1973), bem como referente o direito de privacidade (Griswold versus Connecticut[14], 1965) de interrupção de gestação (Roe versus Wade, 1973).
O oposto do ativismo judicial está na autocontenção judicial, onde o Judiciário procura mitigar sua interferência nas ações dos outros poderes, e evita aplicar diretamente a Constituição que não seja o âmbito de incidência expressa, aguardando o pronunciamento do legislador ordinário; e utiliza critérios rígidos e conservadores para a declaração de inconstitucionalidade de leis e atos normativos e também se abstém de interferir na definição de políticas públicas.
Até a CF/1988 esta era linha efetiva de atuação do Poder Judiciário brasileiro. O ativismo judicial procura extrair o máximo das potencialidades do texto constitucional, sem invadir o campo da criação livre do Direito.
A autocontenção institucional do Judiciário restringe o espaço de incidência da Constituição em favor das instâncias tipicamente políticas.
Veja na matéria de fidelidade partidária, o STF em nome do princípio democrático, declarou que a vaga no Congresso Nacional pertence ao partido político. Criando assim, nova espécie de perda de mandato parlamentar, além das previstas expressamente no texto constitucional.
No mesmo sentido, propôs o STF a vedação ao nepotismo dos Poderes Legislativo e Executivo com a expedição de súmula vinculante[15] que assumiu nítida conotação normativa.
E assim o fez com base nos princípios da moralidade e da impessoalidade. Recentemente, o STF declarou a inconstitucionalidade da aplicação de novas regras sobre as coligações eleitorais em face da eleição que se realizaria em menos de um ano de sua aprovação.
Desta forma precisou o STF exercer incomum competência, declarando a inconstitucionalidade de uma emenda constitucional, conferindo a regra de anterioridade anual da lei eleitoral o status de cláusula pétrea. O mesmo se pode dizer da decretada inconstitucionalidade da cláusula de barreira, ou seja, que impõe limitações ao funcionamento parlamentar de partidos políticos que não preenchessem requisitos mínimos de desempenho eleitoral.
É outro exemplo de ativismo judicial o caso de distribuição de medicamentos e determinadas terapias mediante decisão judicial. E se multiplicam decisões na esfera federal e estadual que condenam a União, o Estado ou Município e, por vezes, os três solidariamente a custear medicamentos e terapias que não constam das listas e protocolos do Ministério da Saúde ou das Secretarias Estaduais e Municipais. Em alguns casos, se referem aos tratamentos experimentais ou que devem ser realizados no exterior.
O binômio "ativismo-autocontenção judicial" presente na maior parte dos países que adotam o modelo de supremas cortes ou tribunais constitucionais para a competência de controle de constitucionalidade, perfazendo um movimento pendular que varia conforme o prestígio dos outros dois poderes.
Mas, no Brasil, o Executivo é de inegável popularidade, apesar de algumas medidas provisórias desagradarem, portanto, é limitada a superposição existente entre o Executivo e o Judiciário.
O mesmo não se pode cogitar do Congresso Nacional que atravessa séria crise de legitimidade[16] e funcionalidade, o que tem alimentado a expansão do Judiciário, em nome da Constituição com a prolatação de decisões que supram omissões e, por vezes, inovam a ordem jurídica, com caráter normativo geral.
Há um lado positivo que é o atendimento de demandas sociais que não foram satisfeitas pelo Legislativo, assim em temas como a greve no serviço público, vedação ao nepotismo ou regras eleitorais. Já o lado negativo é que expõe ainda mais as dificuldades enfrentadas pelo Legislativo, o que força uma reaproximação entre a classe política e a sociedade civil.
Alguns doutrinadores defendem que os ativistas devem ser eventuais, e só ocorrer em certos momentos históricos. Porém, não há democracia saudável sem haver igualmente uma atividade política intensa e saudável, nem tampouco sem Congresso atuante e investido de credibilidade.
Até na agenda, o Judiciário tem se destacado mais que o Legislativo haja vista as audiências públicas e o julgamento sobre a pesquisa com células-tronco embrionárias que obteve a grande visibilidade pública e fomentou o debate para o processo legislativo.
Há, contudo, três objeções colocadas contra o ativismo judicial brasileiro. E, se concentram no risco para a legitimidade democrática, na indevida politização da justiça e nos limites da capacidade institucional do Judiciário.
A primeira objeção é que os juízes, desembargadores e ministros não são agentes públicos eleitos, não sofreram o batismo da vontade popular. E a ideia do órgão como STF sobrepor-se a uma decisão do Presidente da República sufragado por expressiva quantidade de votos ou do Congresso é identificada como a dificuldade contramajoritária.
Porém, existem duas justificativas: uma de natureza normativa e outra filosófica. A primeira justificativa decorrente da expressa disposição prevista na CF/1988 que atribuiu ao Judiciário e notadamente ao STF a parcela de poder político para ser exercida por agentes públicos não recrutados pela via eleitoral, e cuja atuação é de natureza predominantemente técnica e imparcial.
Portanto, os magistrados não possuem vontade política própria. E, ao aplicarem a Constituição e as leis apenas concretizam a vontade do constituinte ou do legislador, ou seja, dos representantes do povo.
Tal afirmação, contudo deve ser tomada com temperamento pois a atuação jurisdicional não seja meramente mecânica. Principalmente porque lhe cabem precisar o sentido mesmo ante as expressões vagas, fluídas ou indeterminadas, como a dignidade da pessoa humana, direito de privacidade ou boa-fé objetiva, tornando-se, por vezes, coparticipantes da criação do Direito.
Já a razão filosófica é mais sofisticada pois a definição do Estado Constitucional democrático é produto de duas ideias que se complementam, o constitucionalismo[17] e a democracia.
Apesar de que entre a democracia e o constitucionalismo[18], entre a vontade e a razão, entre os direitos fundamentais e governo da maioria podem surgir situações de tensão e conflitos aparentes.
Desta forma, a Constituição deve estipular as regras do jogo democrático permitindo ampla participação política, com o governo da maioria e alternância de poder.
Porém, a democracia não se resume ao princípio majoritário (não significa a ditadura da maioria)[19]. Havendo também outro papel da Constituição que é proteger os valores e direitos fundamentais mesmo contra a vontade circunstancial da maioria de votos.
Sua missão de velar pelas regras do jogo democrático e pelos direitos fundamentais, funcionando como um fórum de princípios não de política e de razão pública, não de doutrinas prevalentes, sejam estas ideológicas, políticas ou religiosas.
A jurisdição constitucional bem exercida configura assim uma garantia para a democracia e, não, um risco. Evidentemente apesar de o Judiciário ser o maior intérprete da Constituição, não pode suprimir a política, o governo de maioria e nem o papel do Legislativo. Impossível ser a Constituição ser ubíqua[20] (onipresente).
Observados os valores e fins constitucionais, caberá à lei, votada pelo parlamento e sancionada pelo Presidente, fazer escolhas entre as diferentes visões alternativas que caracterizam as sociedades pluralistas.
Portanto, só atual legitimamente, quando sejam capazes de fundamentar racionalmente suas decisões com base na Constituição.
A teoria crítica do Direito já proclamava que Direito é política, denunciando a superestrutura jurídica como uma instância de poder e dominação. Apesar do recuo das concepções marxistas no momento atual, é fora de dúvida que já não subsiste a crença na ideia liberal-positivista de objetividade plena do ordenamento e da neutralidade absoluta do intérprete.
Mas o Direito não é política, não é possível tal equiparação, principalmente por submeter à noção do que é correto e justo à vontade daquele que detém o poder[21].
É verdade que no contexto pós-positivista, o Direito muito se aproxima da Ética, servindo de instrumento da legitimidade e da realização da dignidade da pessoa humana. Infelizmente a crítica mais desqualificante da decisão é a acusação seja política e, não propriamente jurídica.
Não se pode ignorar, contudo, a clara divisão existente entre Direito e Política, mas que nem sempre é tão nítida, e nem sendo fixa.
É verdade que a Constituição labora a interface entre o universo político e o jurídico, em um esforço para submeter o poder às categorias que mobilizam o Direito, como a justiça, a segurança e o bem-estar social.
Sua interpretação, portanto, sempre terá uma dimensão política, ainda que balizada pelas possibilidades e limites oferecidos pelo ordenamento vigente. Afirmamos que Direito não é política no sentido de admitir escolhas livres, tendenciosas ou partidarizadas.
A liberdade[22] de expressão de quem pensa de acordo com a maioria não pode ser protegida de modo mais intenso do que a de quem esteja em minoria. O ministro do tribunal superior, nomeado por certo Presidente da República, não pode ter a atitude a priori de nada decidir contra o interesse de quem o investiu no cargo.
A rigor, uma decisão judicial jamais será política no sentido de livre escolha, de discricionariedade plena[23]. Mesmo nas situações que, em tese, comportam mais de uma solução plausível, o juiz deverá buscar a que seja mais correta e mais justa, à luz dos elementos do caso concreto.
O dever de argumentação e motivação racional é traço distintivo e relevante da função jurisdicional e dá a esta uma peculiar legitimação.
Na época da criação do primeiro tribunal constitucional, Hans Kelsen e Carl Schmitt travaram célere debate sobre quem deveria ser o guardião da Constituição.
Schmitt era contrário à existência da jurisdição constitucional e afirmou que a judicialização da política iria se perverter em politização da justiça.
Mas sua profecia não se cumpriu e o controle judicial da constitucionalidade se espalhou e evoluiu em todo mundo. Mas deve-se prevenir para que não se construa um jurisconcentrismo.
Cabe relembrar ao juiz que: só deve agir em nome da Constituição e das leis, não por vontade política própria; deve ser diferente para com as decisões razoáveis tomadas pelo legislador, respeitando a presunção de validade das leis.
Não deve o juiz perder de vista que embora não seja eleito para judicar, o poder que exercer é representativo[24], posto que emane do povo e em seu nome deve ser exercido, razão pela qual sua atuação deve estar em sintonia com o sentimento social, na medida do possível.
Porém, os juízes não podem ser populistas[25] e, em certos casos, terão de atuar de maneira contramajoritária. Devem promover a conservação e promoção dos direitos fundamentais, mesmo contra a vontade e das maiorias políticas, é uma condição de funcionamento do constitucionalismo democrático.
Logo, a intervenção do Judiciário nesses casos, sanando uma omissão legislativa ou invalidando uma lei inconstitucional dá-se a favor e não contra a democracia.
Na maioria dos Estados democráticos do mundo se organizaram em um modelo de separação de poderes[26]. E, as funções do Estado de legislar (positivando o direito), administrar (concretizar o Direito) e prestar serviços públicos como, por exemplo, julgar (aplicar o Direito nos conflitos). Não obstante, os poderes diferentes, estes exercem o controle recíproco sobre as atividades de cada um, de modo a impedir o surgimento de instâncias hegemônicas, capazes de ameaçar a democracia e os direitos fundamentais.
Frise-se que esses poderes interpretam a Constituição, devendo sua atuação respeitar os valores e promover os fins nesta previstos. Em caso de divergência na interpretação das normas constitucionais e legais a palavra final é mesmo do Judiciário. Mas tal primazia não significa que toda matéria deva necessariamente ser decidida em tribunais, nem legitima a arrogância judicial.
A doutrina contemporânea registra observações sobre as capacidades institucionais e a de efeitos sistêmicos. Por capacidade institucional entende-se a determinação de qual poder está mais habilitado ou apto a produzir a mais adequada decisão em determinada matéria.
É verdade que temas que envolvam aspectos técnicos e científicos muito específicos podem apresentar grande complexidade e podem não ter o juiz de direito como árbitro mais qualificado.
Apesar de que formalmente, os julgadores oficiais do Judiciário sempre conservarão a sua competência para o definitivo pronunciamento sobre os conflitos. Mas, podem existir situações normalmente precípuas que devem prestigiar as manifestações tanto do Legislativo como do Executivo.
Quanto aos riscos para a legitimidade democrática estes se atenuam na medida em que o Judiciário apesar de não ser eleito se atenha à aplicação da Constituição e das leis, e não atue por vontade própria.
Também é certo que diante do arsenal de cláusulas constitucionais abertas e fluídas, tais como a dignidade da pessoa humana, eficiência ou impacto ambiental o poder criativo do intérprete judicial se expande a um nível quase normativo.
Apesar dos riscos da politização da justiça, sobretudo da justiça constitucional, que não podem ser totalmente eliminados. A Constituição é, precisamente, o documento que transforma o poder constituinte em poder constituído, ou seja, Política em Direito.
Mas, a interpretação constitucional é missão sujeita aos cânones de racionalidade, objetividade e motivação das decisões judiciais, devendo reverência à dogmática jurídica, aos princípios de interpretação e aos precedentes.
A verdade é que a corte constitucional não deve ser cega ou mesmo indiferente às consequências políticas que de suas decisões surgem, inclusive no sentido de impedir resultados injustos ou prejudiciais ao bem comum ou aos direitos fundamentais.
Confirma-se que o Judiciário deve agir somente dentro das possibilidades e dos limites já traçados e delineados pelo ordenamento jurídico vigente.
O Judiciário na qualidade de guardião da Constituição deve zelar que tenha eficácia, em nome dos direitos fundamentais e dos valores e procedimentos democráticos, inclusive em face de outros poderes. O que confirma que a eventual atuação contramajoritária sempre se dará em prol da democracia.
Para a definição da teoria da democracia há a confluência de três grandes tradições do pensamento político, a saber:
a) a teoria aristotélica que prevê três formas básicas de governo, e definiu a democracia como governo do povo, de todos os cidadãos e que se distingue da monarquia, com o governo de um só, e que se distingue do governo da aristocracia ou de poucos, igualmente chamada de oligarquia;
b) a teoria medieval de origem romana e apoiada na soberania popular conforme o poder derivasse do povo e se torna representativo ou deriva do príncipe e se transmite por delegação do superior para o inferior;
c) a teoria moderna inspirada em Maquiavel e, nascida com o Estado Moderno na forma das grandes monarquias: cujas formas históricas de governo são essencialmente duas: monarquia e república.
O problema da democracia é bastante antigo tanto quanto qualquer reflexão sobre a política e tem sofrido reformulações em todas as épocas.
Os juristas medievais elaboraram a teoria da soberania popular, partindo de conhecidas passagens do Digesto particularmente de Ulpiano que fez a célebre afirmação quod principi placuit, legis hat vigorem, se diz que "o príncipe tem autoridade porque o povo lha deu" (ut pote cum lege regia quae de imereio eius lata est, populus ei et eum omne suum imperium et potestatem conferat), o de Juliano,onde se diz que "o povo cria o direito não apenas do voto, dando vida às leis e dando vida aos costumes".
Se por outro lado, enquanto a causa prima do Estado é o legislador, sendo executiva e instrumental pois no sentido de quem governa age pela autoridade que lhe foi outorgada para tal fim pelo legislador e segundo a forma que este lhe indicar.
Porém há uma diferença crucial do legislativo concebido por Locke, pois defendeu que deve ser exercido por representantes enquanto que Rousseau afirmou que deva ser assumido diretamente pelos cidadãos.
Importante é não confundir a doutrina da soberania popular com a doutrina contratualista até porque esta nem sempre teve êxitos democráticos (basta pensar em Hobbes e em Kant que foi contratualista sem ser democrático). Desta forma, é de se concluir que nem todo contratualismo é democrático assim como nem todo democratismo é contratualista.
Malgrado o pensamento grego ter preferido a teoria das três formas distintas de governo, sabe-se que este não desconhece as Leis de Platão, que propõe a contraposição entre as duas formas opostas da Democracia e da monarquia. Certamente foi a meditação da história da república romana, unida às considerações sobre as coisas do próprio tempo, que fez escrever a Maquiavel, que dedicou a obra ao principado.
A democracia moderna cada vez mais frequentemente definida como regime policrático oposto ao monocrático. Em geral, a linha de desenvolvimento da democracia aponta para os regimes representativos que pode figurar-se basicamente em duas direções:
a) no alargamento gradual do direito do voto, que inicialmente era restrito a uma exígua parte dos cidadãos com base em critérios fundados sobre o censo, a cultura e o sexo e que depois se foi estendendo, dentro de uma evolução constante, gradual e geral, para todos os cidadãos de ambos os sexos que atingiram certo limite de idade (sufrágio universal);
b) na multiplicação dos órgãos representativos (isto é, dos órgãos compostos de representantes eleitos), que num primeiro tempo se limitaram a uma das duas assembleias legislativas, e depois se estenderam, aos poucos, à outra assembleia, aos órgãos do poder local ou, na passagem da monarquia para a república, do chefe de Estado.
Em uma e em outra direção, o processo de democratização que consiste no cumprimento cada vez mais pleno do princípio-limite da soberania popular, se insere na estrutura do Estado Liberal (entendido primeiramente como estado de garantias).
Na teoria contemporânea a democracia tende a esgotar-se num elenco mais ou menos amplo expondo as seguintes definições:
a) o órgão político máximo, a quem é assinalada a função legislativa, deve ser composto de membros direta ou indiretamente eleitos pelo povo, em eleições de primeiro ou segundo grau;
b) junto do supremo órgão do legislativo deve haver outras instituições com dirigentes eleitos tal como acontece nas repúblicas;
c) todos os cidadãos que tenham atingido a maioridade, sem distinção de raça, de religião, de censo e possivelmente de sexo, devem ser eleitores;
d) todos os eleitores devem ter direito a voto igual;
e) todos os eleitores devem ser livres e votarem de acordo com sua opinião formada o mais possível, isto é, numa disputa libre de partidos políticos que lutam pela formação de uma representação nacional;
f) devem ser livres também no sentido em que devem ser postos em condição de ter reais alternativas;
g) vale-se do princípio da maioria numérica;
h) nenhuma decisão tomada por maioria deve limitar os direitos da minoria, de um modo especial o direito de tornar-se maioria, em paridade de condições;
i) o órgão do Governo deve gozar de confiança do Parlamento ou do chefe do Poder Executivo, por sua vez, eleito pelo povo.
Há a democracia[27] formal e a democracia substancial. A primeira indica certo número de meios que são precisamente as regras de comportamento acima descritas independentemente da consideração dos fins. A segunda indica certo conjunto de fins, entre os quais se sobressai o objetivo de galgar a igualdade[28] jurídica, social e econômica, independentemente dos meios adotados para os alcançar.
Na teoria de Rousseau segundo a qual o ideal igualitário que tanto inspira a democracia como valor e se realiza somente mediante a vontade geral e na efetiva justiça. Evidencia-se que a democracia para ser efetiva e verdadeira precisa da afirmação da justiça principalmente para garantir e manter as conquistas históricas contra o totalitarismo.
A substituição da legitimidade do sistema político pelo sistema de justiça nos apresenta um impactante paradoxo, onde questionamos se prescindir da democracia numa época em que se alcança uma liberdade segmentada, seja como cidadão, consumidor ou mesmo como eleitor.
A judicialização da política[29] atingiu incríveis patamares no Brasil e o argumento de que estamos numa “democracia de direitos” e que o sistema de justiça passou a tutelar todas as áreas, interferindo em políticas públicas e imiscuindo-se no mérito do ato administrativo.
Cogita-se então de invasão ou transbordamento de competências por envolver-se com assuntos que violariam assim a autonomia dos poderes políticos, tudo submetendo a visão jurídica. Numa colonização do mundo pelo viés jurídico que se concretiza mediante alargamento do espectro argumentativo, desligando-se de qualquer vinculação à lei.
Enfim, a legitimidade da democracia ocidental decorre enfaticamente dos tribunais constitucionais. E, nesse modelo dá-se não apenas a judicialização da política, mas sua consequente conclusão de que a democracia emana do direito[30]. Porém, tal quadro contraria todo o afã libertário contido na modernidade e na pós-modernidade.
A legitimidade do sistema judicial decorre de sua atuação técnica e de seu respeito a uma ordem jurídica na qual as obrigações jurídicas e sentenças são democraticamente formuladas. Justifica-se o cumprimento dessas pelo referido cumprimento da expectativa de que estas se realizem conforme uma correção procedimental não sujeita aos humores, arbitrariedades ou imprevisibilidades.
Há uma assertiva por vezes muitas vezes repetida tal como um mantra dos juristas brasileiros: – “Cabe ao STF errar por derradeiro”. Esse poder de errar por último, blindaria suas decisões da crítica, tornando-as indisponíveis e inquestionáveis.
Daí, outro dogma decorre é que “as decisões judicias não se discutem, cumprem-se”. Tais propostas indicam claramente a supremacia judicial, construindo um protagonismo da justiça sobre os demais poderes políticos. (In: MOREIRA, Luiz. Judicialização política no Brasil. Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=1364 Acesso em 02/02/2014).
O tema da judicialização foi também trabalhado por dois autores institucionalistas, Tate[31] e Vallinder[32], que utilizaram estudos de caso para então apresentarem uma definição do termo.
Embora esta não se enquadre em qualquer realidade – como no caso brasileiro, por exemplo, ela será utilizada pela maioria dos autores que os sucedeu.
De acordo com tais autores, a judicialização da política caracteriza-se pela difusão de procedimentos judiciais em arenas de deliberação política.
Dessa forma, o conceito propõe que o ajuizamento de ações que envolvam questões políticas constitui, por si só, um processo de judicialização da política. No entanto, os estudos sobre esta temática têm demonstrado que o aumento da litigância na arena política pode ser ocasionado por mecanismos institucionais, os mais diversos, ou por uma alteração no modo de interpretar dos juízes (ativismo judicial).
Portanto, é bem provável que as causas da emergência da judicialização obedeçam a uma lógica bem particular, variando de país para país. (OLIVEIRA, Vanessa; CARVALHO, Ernani. A judicialização da política: um tema em aberto, 2002).
Concluímos que a judicialização da política apresenta novo arcabouço jurídico e institucional[33] mais preocupado com a efetivação dos direitos fundamentais, especialmente os direitos sociais.
Assim surgem diferentes atores envolvidos – Poder Judiciário, Ministério Público e a Defensoria Pública de um lado; e os Poderes Legislativo e Executivo como atores legitimados e para efetivação dos direitos fundamentais e formulação das políticas públicas. Ocorre assim a cidadanização em que medida que a judicialização da política contribui para o adensamento democrático.
Informações Sobre o Autor
Gisele Leite
Professora universitária, Mestre em Direito, Mestre em Filosofia, pedagoga, advogada, conselheira do Instituto Nacional de Pesquisas Jurídicas.