Justiça Restaurativa no Brasil: Conceito, críticas e vantagens de um modelo alternativo de resolução de conflitos

Resumo: Este artigo analisa o conceito e as características da Justiça Restaurativa, apontando as suas vantagens em relação ao sistema de Justiça Criminal vigente e as dificuldades de sua implementação no ordenamento jurídico pátrio.


Palavras-chave: Justiça, Justiça Restaurativa, Justiça Retributiva, Sistema de Justiça Criminal, Modelo Alternativo, Reparação do Dano.


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Abstract: This article examines the concept and characteristics of Restorative Justice, pointing to its advantages over the existing Criminal Justice System and the difficulties of its implementation in national law.


Keywords: Justice, Restorative Justice, Retributive Justice, Criminal Justice System, Alternative Model, Reparation from the damage.


Sumário: 1 Introdução; 2 Justiça Restaurativa-conceito e críticas; 3 Justiça Restaurativa x Justiça Retributiva; 4 Justiça Restaurativa e aplicação no Direito positivo brasileiro; 5 Conclusão; 6 Referências.


1 Introdução


Ante o cometimento de um ilícito penal, surge para o Estado o poder-dever de punir aquele que viola o ordenamento jurídico e a paz social, retribuindo o mal causado com a comissão do delito com a aplicação de medidas extremas. Assim, a pena privativa de liberdade tornou-se prática constante em nosso atual sistema de justiça penal e é imposta como meio de resposta à infração penal e como medida apta a prevenir futuras condutas e ressocializar o infrator, o que, infelizmente, não acontece.


É cediço que esse ideal ressocializador não se vislumbra e testemunhamos o fracasso do sistema de justiça penal vigente, uma vez que o sujeito ativo do crime, ao ser submetido a uma pena cerceadora de sua liberdade, é fruto de um processo de dessocialização que o torna propenso ao cometimento de outros delitos.


O direito penal é, acima de tudo, uma garantia e a justiça penal organiza-se a partir de uma exigência: garantir uma coexistência pacífica entre os membros da sociedade. Entretanto, é dentro desse sistema de justiça que observamos as maiores atrocidades e insurgências contra os princípios fundamentais constitucionais, notadamente a liberdade e a dignidade da pessoa humana, atuando a pena de prisão como fator criminógeno.  O castigo e a violência punitiva como respostas à criminalidade apenas intensificam a própria violência que vitima os cidadãos. Ademais, é curial ressaltar que o modelo tradicional de justiça penal é eticamente inaceitável, uma vez que se pune o mal com outro mal. Assim, o Estado veda que seus cidadãos façam justiça com as próprias mãos, freando a vingança privada, mas aplica uma punição irracional e violenta em desprol dos violadores do Estatuto Repressivo.


Face ao exposto, por que não pensarmos em um modelo alternativo de resolução do conflito surgido com o cometimento do ilícito penal? Se constatamos a inoperância do atual sistema de justiça penal, onde direitos constitucionais básicos são desrespeitados, eticamente inaceitável, inviabilizador da ressocialização do apenado, devemos procurar medidas alternativas ao atual modelo de justiça penal.


O surgimento de um novo paradigma de justiça penal se faz imprescindível no sentido de buscarmos amenizar a fragilidade do atual e retificar as suas falhas, o que não é tarefa fácil. É nesse ideário que surge a Justiça Restaurativa como um novo modelo de solução de conflitos e cuja implantação não implica na supressão do modelo atual.


2 Justiça Restaurativa-conceito e críticas


A Justiça Restaurativa baseia-se num procedimento de consenso, em que a vítima e o infrator, e, quando apropriado, outras pessoas ou membros da comunidade afetados pelo crime, como sujeitos centrais, participam coletiva e ativamente na construção de soluções dos traumas e perdas causados pelo crime.


A denominação justiça restaurativa é atribuída a Albert Eglash, que, em 1977, escreveu um artigo intitulado Beyond Restitution: Creative Restitution, publicado numa obra por Joe Hudson e Burt Gallaway, denominada “Restitution in Criminal Justice”. Eglash sustentou, no artigo, que havia três respostas ao crime – a retributiva, baseada na punição; a distributiva, focada na reeducação; e a restaurativa, cujo fundamento seria a reparação.


A prática restaurativa tem como premissa maior reparar o mal causado pela prática do ilícito, que não é visto, a priori, como um fato jurídico contrário á norma positiva imposta pelo Estado, mas sim como um fato ofensivo à pessoa da vítima e que quebra o pacto de cidadania reinante na comunidade. Portanto, o crime, para a justiça restaurativa, não é apenas uma conduta típica e antijurídica que atenta contra bens e interesses penalmente tutelados, mas, antes disso, é uma violação nas relações entre infrator, a vítima e a comunidade, cumprindo, por isso, à Justiça Restaurativa identificar as necessidades e obrigações oriundas dessa relação e do trauma causado e que deve ser restaurado.


Imbuída desse mister de reparar o dano causado com a prática da infração, a Justiça Restaurativa se vale do diálogo entre as pessoas envolvidas no pacto de cidadania afetado com o surgimento do conflito, quais sejam, autor, vítima e em alguns casos a comunidade. Logo, é avaliada segundo sua capacidade de fazer com que as responsabilidades pelo cometimento do delito sejam assumidas, as necessidades oriundas da ofensa sejam satisfatoriamente atendidas e a cura, ou seja, um resultado individual socialmente terapêutico seja alcançado.


Por centrar suas forças no diálogo, no envolvimento emocional das partes, na reaproximação das mesmas, é fundamental esclarecer que não há ênfase para a reparação material na Justiça Restaurativa. Dessa feita, a reparação do dano causado pelo ilícito pode ocorrer de diversas formas, seja moral, material ou simbólica. Como dito alhures, o ideal reparador é o fim almejado por esse meio alternativo de justiça e o consenso fruto desse processo dialético pode resultar em diferentes formas de reparação.


Trata-se de um processo estritamente voluntário, relativamente informal e caracterizado pelo encontro e inclusão. A voluntariedade é absoluta, uma vez que os componentes da comunidade protagonistas desse modelo alternativo de justiça (autor e vítima) livremente optam por esse modelo democrático de resolução de conflito. A informalidade também é sua característica, malgrado relativa, distanciando-se do formalismo característico do vigente processo penal. O encontro é requisito indispensável para o desenvolvimento da técnica restaurativa, pois o escopo relacional, intrínsico a esse modelo alternativo, é a energia para se alcançar democraticamente uma solução para o caso concreto. Por tudo isso, é fácil entender porque a inclusão também é regra da prática restaurativa, uma vez que os cidadãos contribuem diretamente para o processo de pacificação social. Na justiça tradicional, ao revés, o Estado impõe a vontade da lei e o distanciamento dos envolvidos na relação litigiosa é latente, cabendo-lhes, apenas, um papel de meros coadjuvantes.  


Dentre as diversas modalidades de Justiça Restaurativa podemos destacar a mediação (mediation), reuniões coletivas abertas à participação de pessoas da família e da comunidade (conferencing) e círculos decisórios (sentencing circles).


Na mediação um terceiro, neutro, conduz as partes envolvidas no conflito para um diálogo sobre as origens e conseqüências do mesmo, de maneira que estas alcancem a solução ideal consistente num acordo restaurativo, onde ambas saiam satisfeitas e o pacto de cidadania, abalado com o cometimento da infração, seja restabelecido. Vê-se que o mediador é apenas um facilitador desse plano restaurativo e as partes envolvidas tomam as rédeas de todo o processo de restauração, através do diálogo livre e mediado apto a transformar o comportamento dos conflitantes e da sociedade em geral.


Nas reuniões coletivas e círculos decisórios ocorre uma mediação ampliada, ou seja, o diálogo sobre as origens e conseqüências do delito com a conseqüente realização de um acordo restaurativo não ocorre em nível individual, mas de forma coletiva e integrada com a comunidade.


O que observamos nas diferentes técnicas restaurativas é a aproximação dos envolvidos na relação conflituosa, resultando numa confidencialidade, uma vez que as emoções afloram e colaboram para o desfecho de um propósito restaurador mais eficaz e duradouro.


Como prática comunitária, a Justiça Restaurativa é primitiva, remotando aos códigos de Hamurabi, Ur-Nammu e Lipit-Ishtar há cerca de dois mil anos antes de Cristo. Alguns países já vêm adotando experiências com a prática restaurativa, tais como a Nova Zelândia e o Canadá.


Importante destacar que a implantação da prática restaurativa como método de solução de conflitos está ganhando força, havendo, inclusive, determinação expressa em documentos da ONU e União Européia no sentido de que a mesma seja aplicada em todos os países, não se esquecendo da Resolução do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas, de 2002, que traz os princípios básicos sobre Justiça Restaurativa.


Seguindo essa recomendação das Nações Unidas, alguns países já a introduziram em sua legislação (Colômbia e Nova Zelândia) e a tendência é que esse quadro aumente.


Já apontamos que o atual sistema de justiça penal, exclusivamente punitivo-retributivo, não contribui para a ressocialização do infrator; ao revés, dessocializa o agente ativo do fato típico, haja vista que direitos e garantias fundamentais do apenado não são respeitados durante a execução da pena restritiva de liberdade, tornando-se imperioso, a aplicação de práticas alternativas de pacificação social.


Entrementes, a aplicação de medidas alternativas, notadamente a Justiça Restaurativa, encontra relutância para a sua aceitação, tanto em âmbito cultural como entre os estudiosos e operadores do direito.


Na seara cultural, para que o desiderato da Justiça Restaurativa seja efetivamente implantado, faz-se necessário reavivar as idéias do favor libertatis, sacrificado com a aplicação contumaz e irracional da medida constritiva de liberdade. Ademais, é imperioso acolher a noção de subsidiariedade do direito penal, abrindo-se espaço para outros ramos do direito e outras formas de solução dos conflitos. Infelizmente, o direito penal não é visto como ultima ratio, sendo aplicado irrestritamente como o único instrumento de resolução de conflitos.


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Contudo, esse empecilho cultural é clarividente e mais intenso dentro do nosso Poder Judiciário. Como a justiça penal tradicional corresponde a uma imposição unilateral e verticalizada da norma positiva, impregnada de um formalismo inútil protagonizado pelos juízes togados em nossos pretórios, cuja pena de prisão é vista como manifestação de autoridade, há um rígido bloqueio por parte do Estado-Juiz em aplicar medidas alternativas.


Afora a barreira cultural sobredita, podemos destacar críticas doutrinárias, notadamente aquelas que enfatizam o estímulo à vingança privada que pode resultar da aplicação desse modelo alternativo de solução de conflitos. Parte da doutrina contrária à sua incidência defende que a mesma implica num retrocesso, pois estar-se-ia abrindo mão da justiça imposta pelo Estado, cogente, imperativa, em favor de um sistema privatizado e vazio de garantias favorável à autotutela.


3 Justiça Restaurativa x Justiça Retributiva


O presente trabalho não estaria completo se não fossem elencadas diferenças entre a Justiça Restaurativa e a Justiça Retributiva tradicional. Assim, podemos destacar que na Justiça Retributiva temos um conceito estritamente jurídico de crime, ou seja, é conceituado como violação da Lei Penal e monopólio estatal da Justiça Criminal; na Justiça Restaurativa, por sua vez, temos um conceito amplo de crime, sendo o mesmo o ato que afeta a vítima, o próprio autor e a comunidade causando-lhe uma variedade de danos, bem como uma Justiça Criminal participativa.  Em termos de procedimentos, destacamos o ritual solene e público da Justiça Retributiva, com indisponibilidade da ação penal, contencioso, contraditório, linguagem e procedimentos formais, autoridades e profissionais do Direito como atores principais, processo decisório a cargo de autoridades (policial, promotor, juiz e profissionais do Direito) contrapondo-se ao ritual informal e comunitário, com pessoas envolvidas, com oportunidade, voluntário e colaborativo, procedimento informal com confidencialidade, vítimas, infratores, pessoas da comunidade como atores principais, processo decisório compartilhado com as pessoas envolvidas (multidimensionalidade) típico da Justiça Restaurativa. No que diz respeito aos efeitos para a vítima, frise-se que na Justiça Retributiva há pouquíssima ou nenhuma consideração, ocupando lugar periférico e alienado no processo; na Justiça Restaurativa, ao revés, a vítima ocupa lugar de destaque, com voz ativa e controle sobre o que passa. Com relação ao infrator, na Justiça Retributiva este é considerado em suas faltas e sua má-formação e raramente tem participação; na Justiça Restaurativa, é visto no seu potencial de responsabilizar-se pelos danos e conseqüências do delito, interage com a vítima e com a comunidade, vê-se envolvido no processo, contribuindo para a decisão.


4 Justiça Restaurativa e aplicação no Direito Brasileiro


A Justiça restaurativa primeiramente aflorou nos países que adotam o commom Law, isso porque em tais países o princípio da oportunidade inerente ao sistema de justiça é compatível com o ideal restaurativo. No caso do Brasil, porém, onde vigora o princípio da indisponibilidade da ação penal pública, não há essa abertura para a adoção de medidas alternativas.


Contudo, malgrado haja esse entrave para a aplicação de métodos alternativos no âmbito processual penal, a nossa Carta Magna e a Lei 9099/95 avançaram no sentido de permitir a aplicação da justiça restaurativa, mesmo que não explicitamente, nas situações onde vigora o princípio da oportunidade. Assim é que nos crimes de ação penal de iniciativa privada, sendo disponível e inteiramente a critério do ofendido a provocação da prestação jurisdicional, é possível para as partes optarem pelo procedimento restaurativo e construírem outro caminho, que não o judicial, para lidar com o conflito.


A lei 9099/95 prevê a composição civil (art.74 e parágrafo único), a transação penal (art.76) e a suspensão condicional do processo (art.89). Nos termos da citada lei, tanto na fase preliminar quanto durante o procedimento contencioso é possível a derivação para o processo restaurativo, sendo que, nos crimes de ação penal privada e pública condicionada, há a possibilidade de despenalização por extinção da punibilidade através da composição civil e, nos casos de ação penal pública, utilizando-se o encontro para, além de outros aspectos da solução do conflito, se discutir uma sugestão de pena alternativa adequada, no contexto do diálogo restaurativo. Disso resulta que a experiência restaurativa pode ser aplicada na conciliação e na transação penal, a partir do espaço de consenso por ela introduzido, que permite o diálogo restaurativo, inclusive ampliado para contemplar outros conteúdos – emocionais , por exemplo – trazidos pelas partes e que podem ser colocados.


Em remate, é salutar esclarecer que também é possível, por força do art. 94, da Lei 10.741/03 (Estatuto do Idoso), o procedimento restaurativo nos crimes contra idosos, haja vista que o referido artigo prevê o procedimento da Lei 9099/95 para os crimes contra idosos cuja pena privativa de liberdade não ultrapasse 4 anos.


5 Conclusão   


O debate acerca da introdução e aceitação da justiça restaurativa em nosso sistema de justiça criminal é ainda muito inexpressivo, tímido. Como já exposto, não são poucas as críticas, desconfianças, resistências para a sua implantação e consolidação definitiva, ainda mais em um país alçado à categoria de Estado Democrático de Direito, mas que, na prática, rasga a nossa Carta Magna.


Não há legislação nacional expressa determinando a sua aplicação, malgrado possamos fazer uso da Lei 9099/95 para respaldar procedimentos restaurativos, numa tentativa comedida de abrir espaço para esse democrático e legítimo método alternativo de pacificação de litígios.


Ademais, vale salientar que não advogamos a supressão total do atual sistema de justiça criminal. A prática restaurativa e o modelo retributivo podem coexistir, desde que o direito penal tradicional seja visto como ultima ratio, subsidiário aos métodos alternativos.


Continuando, como a implementação da Justiça Restaurativa envolve gestão concernente à administração da Justiça, é também fundamental que as partes tenham o direito a um serviço eficiente (princípio constitucional da eficiência – art.37), com facilitadores realmente capacitados e responsáveis, com sensibilidade para conduzir seu trabalho, respeitando os princípios, valores e procedimentos do processo restaurativo, pois é uma garantia implícita dos participantes a um, digamos, devido processo legal restaurativo.


Não podemos esquecer que todos os princípios e garantias fundamentais das partes envolvidas devem ser rigorosamente observados, tais como: a dignidade da pessoa humana, razoabilidade, proporcionalidade, adequação e interesse público.


O certo é que apesar das vantagens que podem oferecer as práticas restaurativas, no sistema de justiça criminal elas devem ser implementadas com cautela e devem estar sempre sendo fiscalizadas e avaliadas. Logo, espera-se que a Justiça Restaurativa se desenvolva como produto de debates em fóruns apropriados, com ampla participação da sociedade para que seja concebida definitivamente no Brasil, onde é manifesta a falência do sistema de justiça criminal tradicional e o crescimento contumaz da violência e criminalidade.


Concluímos que talvez seja possível a Justiça Restaurativa no Brasil, como oportunidade de adoção de uma justiça criminal informal, democrática, participativa e capaz de operar uma real transformação na vergonhosa realidade de nosso sistema, promovendo os direitos humanos, a cidadania, a dignidade e paz social esquecidos no atual sistema de justiça retributiva.


 


Referências

PINTO, Renato Sócrates Gomes. A construção da Justiça Restaurativa no Brasil. O impacto no sistema de Justiça criminal. Jus Navigandi, Teresina, ano 11, n.1432, 3 jun. 2007.

SICA, Leonardo. Justiça Restaurativa e Mediação Penal. O Novo Modelo de Justiça Criminal e de Gestão do Crime. Rio de Janeiro. Editora Lumen Juris, 2007.


Informações Sobre o Autor

Delano Câncio Brandão

Defensor Público do Estado do Ceará, pós-graduando em Direito e Processo de Família e Sucessões pela Universidade de Fortaleza


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