Direito Penal

Lacuna Normativa No Acordo De Não Persecução Penal E O Embate Jurídico Entre O Ministério Público E O Judiciário Acerca Da Abertura De Fase Não Prevista Em Lei

Renato Araújo Cavalcanti[1]

Resumo: O presente artigo objetiva explicitar e conhecer o juízo construtivo e lógico-formal presente nas posições dissonoras perfilhadas por membros da Magistratura e do Ministério Público adotados em jurisprudência quando decide conflito entre o reconhecimento de lacuna normativa no Acordo de Não Persecução Penal (ANPP) disposto na redação do art. 28-A, do CPP, inserido pela lei nº 13.964/2019, e a adoção de atos e fórmulas processuais não previstos em lei. A reflexão se originou da necessidade de uniformização de decisão judicial, quaestio facti do estudo, proferida de maneira incidental por Magistrados, em âmbito federal e estadual, que faz brotar situação processual não prevista em lei a exigir manifestação expressa do Ministério Público sobre formalização ou não do ANPP às ações penais já em trâmite quando da vigência da nova lei, aplicando efeito suspensivo ao curso da ação penal até que haja manifestação do Parquet. Destarte, a opção pela análise de jurisprudência decorre da constatação de que os pressupostos teóricos subjacentes não uniformes culminam decisões desiguais em situações idênticas a deflagrar insegurança jurídica aos jurisdicionados. Em vista desta situação perquiriu-se saber se existe um padrão nos decisórios dos magistrados e manifestações do Parquet e se há tendência de uniformização cingida à efetividade e ao télos intrínseco do ANPP. Concluiu-se que o embate possui sendas epistemológicas nos baldrames de cada entendimento proferido, contudo, nativas do juízo conceptivo de ser o ANPP direito subjetivo ou não do réu. Destarte, uma vez identificado o modo pelo qual o interprete defini a natureza jurídica do novo instituto estabelece o alcance do princípio da lex mitior, e, de pronto, se constrói o sentido dos termos com os quais opera o discurso em qualquer dos vieses apresentados.

Palavras-chave: Acordo de não persecução penal. Lacuna normativa. Intervenção. Judiciário.

 

Abstract: This article aims to explain and understand the constructive and logical-formal judgment present in the dissonant positions profiled by members of the Judiciary and the Public Prosecution Service adopted in jurisprudence when deciding conflict between the recognition of normative gap in the Non-Criminal Persecution Agreement (ANPP) provided for in writing of art. 28-A, of the CPP, inserted by law No. 13.964 / 2019, and the adoption of procedural acts and formulas not provided for by law. The reflection originated from the need to standardize the judicial decision, quaestio facti of the study, given incidentally by magistrates, at the federal and state level, which gives rise to a procedural situation not foreseen by law requiring an express manifestation by the Public Prosecutor regarding formalization or not from the ANPP to the criminal proceedings already pending when the new law is in force, applying suspensive effect to the course of the criminal action until there is a manifestation of the Parquet. Thus, the option for the analysis of jurisprudence stems from the finding that the underlying theoretical assumptions that are not uniform culminate in unequal decisions in identical situations, triggering legal uncertainty for the jurisdicted. In view of this situation, it was investigated whether there is a pattern in the decisions of the magistrates and manifestations of the Parquet and if there is a tendency towards uniformity restricted to the effectiveness and the intrinsic ANPP models. It was concluded that the dispute has epistemological paths in the buckets of each understanding rendered, however, native to the conceptual judgment of whether the ANPP is the defendant’s subjective right or not. Thus, once the way in which the interpreter has defined the legal nature of the new institute has been identified, it establishes the scope of the lex mitior principle, and the meaning of the terms with which the discourse operates in any of the bias presented is immediately constructed.

Keywords: Non-criminal prosecution agreement. Normative gap. Intervention. Judiciary.

 

Sumário: Introdução. 1. Lacuna identificada no ANPP e o nascimento da quaestio juris. 2. Análise do juízo construtivo e lógico-formal de cada polo dissonante. 2.1. Os juízos lógicos argumentativos dos Magistrados. 2.2. Os pressupostos teóricos subjacentes do Ministério Público. Conclusão. Referências.

 

Introdução

O Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), disposto na redação do art. 28-A, do CPP, inserido pela lei nº 13.964/2019, ecoou transformações paradigmáticas no sistema jurídico nacional propalando embate jurídico entre posicionamentos do Ministério Público e Judiciário.

Este dissenso, circunspeção da problemática do artigo, nativo de decisão judicial, fez brotar situação não prevista em lei restrita à abertura de fase processual em ações penais que já estavam em curso quando da vigência do instituto exigindo manifestação fundamentada pelo Ministério Público sobre a formalização ou não do acordo.

Os juízos construtivos e lógico-formais dissonantes presentes nas manifestações de cada polo antagônico estão despontando uma postergação litigiosa de demandas de natureza criminal contraproducente ao instituto e com decisões colegiadas dos Tribunais a exarar tratamento distinto a situações jurídicas idênticas.

A quaestio facti nasce nesse momento e reside no inteiro teor desses dois comandos processuais indigitados no decisório judicial.

De um lado há os que asseveram que o Magistrado atua dentro de seu mister constitucional por meio de hermenêutica jurídica (TRF-4 – Correição Parcial: 5009342-97.2020.4.04.0000/RS, Rel. Luiz Carlos Canalli, 8ª Turma, DJ 05/05/2020). Do outro lado, noticiam ser a decisão manifestamente tumultuária ao inovar comando de atos e fórmulas processuais não previstos em lei. (TRF-4 – Correição Parcial: 5009342-97.2020.4.04.0000/RS, Rel. Salise Monteiro Sanchotene, 8ª Turma, DJ 05/05/2020).

Destarte, a opção pela análise de jurisprudência decorre da constatação de que os pressupostos teóricos subjacentes não uniformes culminam decisões desiguais em situações idênticas a deflagrar insegurança jurídica aos jurisdicionados.

Em vista desta situação evidencia-se a importância do estudo de decisões judiciais sobre a temática objetivando examinar se existe um padrão nos decisórios dos magistrados e manifestações do Parquet e se há tendência de uniformização cingida à efetividade e ao télos intrínseco do Acordo de Não Persecução Penal.

Eis a quaestio juris e o busílis deste artigo.

Para evitar desvios de perspectiva e equívocos daí decorrentes, imperioso, já de início, deixar claro que não é objetivo deste estudo discutir se as lacunas identificadas pelos Magistrados podem realmente ser caracterizadas como lacunas normativas, ou, se há legitimidade da integração de lacunas axiológicas pelo Poder Judiciário.

A circunspeção da problemática é mais módica, incisiva, e voltada num primeiro momento se explicitar o problema do embate jurídico emergente, e, em segundo momento, conhecer o juízo construtivo e lógico-formal que subsidiam as posições dissonantes, perfilhadas por Magistrados e membros do Ministério Público.

Nesse sentido, a metodologia empreendida foi a de análise de jurisprudência, e o recorte metodológico institucional incidiu em pluralidade interna de decisões de mais de um órgão colegiado, com idêntica hierarquia funcional e em mesmo sistema normativo, de onde se extraiu o decisum, elegido quaestio facti do estudo, para assim imbricar na quaestio juris dos juízos lógicos por meio do estudo de jurisprudência do órgão judiciário eleito.

Nesta conjuntura, sobressaiu a Justiça Federal, e naquele âmbito, o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4), cujas decisões proferidas pelos Órgãos Julgadores da Sétima e Oitava Turma, aqui analisadas são tratados como o leading cases.

Espera-se com o estudo contribuir para a identificação de critérios jurídicos presentes nos decisórios antagônicos, sem ter a audácia de pontuar qual delas se desponta como o mais acertado a integrar ao ordenamento jurídico como ferramenta legítima, antes, contudo, almeja-se contribuir a um viés de uniformização cingida a finalidade intrínseca do ANPP.

 

  1. Lacuna identificada no ANPP e o nascimento da quaestio juris

O conceito de Direito, numa análise epistemológica envereda múltiplas acepções, correntes e teorias. De maneira basilar, como bem ensinou Hans Kelsen, baseado na teoria dinâmica do direito, assevera-se que “o Direito está inserido num processo jurídico dinâmico em que o Direito é produzido e aplicado, o Direito no seu movimento”. (KELSEN, 1998).

Esse dinamismo próprio traz a dificílima tarefa de uma norma jurídica concebida ser aplicável a todas as situações, e nestas situações onde o ordenamento jurídico não atende ao episódio concreto o operador está diante das chamadas lacunas da lei.

A nova Lei nº 13.964/2019, Lei Anticrime, como qualquer norma não foge a esta máxima, uma vez que, ao menos, apresenta duas lacunas já discutidas no judiciário, ambas afetas à aplicabilidade da retroatividade benéfica às ações penais em curso, uma advinda da nova regra do § 5º ao art. 171 do Código Penal, outra achada no Acordo de Não Persecução Penal (ANPP), previsto no art. 28-A do Código de Processo Penal (CPP). (BRASIL, 2019).

Este estudo está restrito a segunda lacuna que nasce no sistema jurídico nacional estribado em ideais do plea bargain, instituto alienígena de origem na common law, como forma imperativa em solução de conflitos a mitigar a cultura da judicialização de lides penais.

Impende ressaltar, anos antes de ser promulgada a lei, o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) já havia regulamentado sua essência por meio da Resolução n° 181/2017 (art. 18), com alterações da Resolução nº 183/2018. (BRASIL, 2018)

No direito estrangeiro, Gomes e Maynard citado por Souza (1998, p. 245-293) registram notícia de países que adotaram reformas no mesmo sentido como na Espanha, em 1988, Portugal e Panamá, em 1987, Colômbia, em 1991, Argentina e Peru, em 1994, assim como os Estados Unidos da América, tido como referência singular em composição penal, mesmo antes da Guerra Civil naquele país (1861) tornando-se o meio predominante de administração da justiça pouco depois dela.

Em solo pátrio, cenário espacial do estudo, de forma abreviada o ANPP, nos termos da lei, consiste em um negócio jurídico pré-processual entre o Ministério Público e o investigado, acompanhado por seu advogado ou Defensor Público, onde por meio de várias concessões recíprocas transigem evitando a deflagração da ação penal.

Uma vez ajustado o acordo, passa-se a intervenção do judiciário, para homologação, ou mesmo rejeição, e, no caso de homologação, depois de cumprida todas as condições, o juiz declarará extinta a punibilidade e tanto a celebração quanto os cumprimentos do ANPP não constarão de certidão de antecedentes criminais, exceto para os fins previstos no inciso III do § 2º do artigo c/c inciso IV, §§ 12º e 13º, todos do artigo 28-A, do CPP. (BRASIL, 2019)

A benesse, portanto, é explícita, amplamente louvável, pois cultivam ideais de justiça compositiva a criar mais um subsídio permissivo de atuação negocial ao Parquet resolvendo questões que lhes são postas pela sociedade no processo de construção de um Ministério Público Resolutivo mais presente em detrimento do Parquet demandista (GOULART, 1998).

Contudo não é tão fácil de ser caracterizado, exatamente por encontrar-se em processo de construção, ou mais precisamente de expansão, a romper paradigmas na práxis judicial e ministerial, inclusive. (SADEK, 2009, p. 8).

Na prática forense, desde a entrada em vigor da lei percebe-se que ainda é tímida a oferta da aplicação do ANPP pelos Promotores oficiantes às ações penais já em curso. Diante do silêncio ministerial, Magistrados passaram a exigir manifestação expressa do Ministério Público aplicando efeito suspensivo ao curso da ação penal até que haja manifestação.

A quaestio juris nasce nesse momento e reside no teor desta quaestio facti não prevista em lei, indigitada nos dois principais comandos contidos no decisório judicial.

 

  1. Análise do juízo construtivo e lógico-formal de cada polo dissonante

Fluída à análise preambular da questão fática adentra-se ao estudo da questão problema, que é a análise de jurisprudência, extraídas dos leading cases para se conhecer o juízo construtivo e lógico-formal que auxiliam as posições desarmônicas.

O primeiro leading case, trata-se de Correição Parcial nº 5009342-97.2020.4.04.0000, originária dos autos nº 5051748-13.2019.4.04.7100/RS, julgado pela Sétima Turma do TRF-4, onde o Ministério Público Federal (MPF), em agosto de 2019, ofereceu denúncia contra um homem pela prática do crime de contrabando (art. 334-A, do Código Penal). (RIO GRANDE DO SUL, 2020) JURISPRUDÊNCIA.

A denúncia foi aceita pelo juízo da 11ª Vara Federal de Porto Alegre, o réu foi citado, apresentou resposta à acusação e os autos encontravam-se conclusos para decisão de seguir a marcha processual, quando então o Magistrado inova e proferi a decisão emblemática da questão problema criando fase não prevista em lei.

Irresignado, o MPF postulou Correição Parcial, e, após ter sido recebida e processada no Órgão Superior, na Sétima Turma do TRF-4, por maioria de votos, foi julgado favorável ao MPF entendendo o colegiado que a decisão do juiz estava destituída de base legal.

Os votos vencedores foram exarados pelas Desembargadoras Salise Monteiro Sanchotene e Cláudia Cristina Cristofani, embora com fundamentos diferentes. O voto divergente da lavra do Desembargador Luiz Carlos Canalli anotou que a medida decidida pelo juízo corrigido não desdobrou dos poderes do Magistrado na condução do processo, sobretudo porque o próprio MPF não firmou posição definitiva sobre a retroação do ANPP.

Na segunda apreciação, o leading case foi a Apelação Criminal NPU 5005673-56.2018.4.04.7000, na Oitava Turma do TRF-4, que tem ação originária NPU 5005673-56.2018.4.04.7000/PR, onde o MPF ofereceu denúncia em 2018, contra um homem pela suposta prática do crime Contrabando (art. 334-A, do Código Penal). (RIO GRANDE DO SUL, 2020) JURISPRUDÊNCIA.

A denúncia foi aceita pelo juízo da 14ª Vara Federal de Curitiba. Após instrução processual sobreveio sentença condenatória em pena privativa de liberdade de três anos e seis meses de reclusão, em regime inicial aberto, substituída por duas penas restritivas de direitos.

A defesa recorreu da sentença, interpondo apelação perante o TRF-4. No recurso, a defesa requereu a anulação da sentença por não ter sido oferecido ao réu o ANPP conforme, a época da denúncia, previa a Resolução nº 181/2017 do CMNP, pelo MPF. (BRASIL, 2017).

A Oitava Turma, também por maioria, decidiu que antes de julgar o recurso interposto, era preciso que primeiro houvesse manifestação expressa do MPF sobre a possibilidade de oferecimento do ANPP, por se tratar de questão de ordem. Assim, suspendeu o curso do julgamento e da prescrição do crime imputado, e por decisão os autos foram remetidos ao juízo de origem para que as partes se manifestassem.

No entender dos votos vencedores, iniciado pelo voto do Desembargador Relator João Pedro Gebran Neto, a decisão dos desembargadores nada mais fez do que integrar o novo instituto no ordenamento jurídico pela via da hermenêutica jurídica. Vencido o Desembargador Federal Leandro Paulsen ao entender que a retroatividade benéfica da lei se restringe a processos sem denúncia recebida.

Suplantada as exegeses dos leading cases verifica-se de modo indelével que houve administração de fase processual não prevista na nova lei pelos Magistrados (em primeiro e segundo grau), que este comando processual foi refutado pelo Ministério Público, e por fim que há decisões judiciais dissonantes sobre a embrionária quaestio juris.

Assim, perpassado o primeiro momento de conhecimento do embate jurídico, adentra-se no segundo momento a discorrer sobre o juízo construtivo e lógico-formal presente nos entendimentos de cada polo sobre três facetas fundamentais elegidas.

A primeira, afeta a questão do alcance do instituto por meio da retroatividade benéfica, a segunda e a terceira, sobre a validade jurídica do comando presente no decisório judicial em se exigir manifestação do Parquet e suspender o feito até cumprimento do decisum sem qualquer amparo legal.

 

2.1. Os juízos lógicos argumentativos dos Magistrados

Iniciam-se as ponderações destes três enfoques partindo dos argumentos exarados pelos Magistrados, mormente serem os deflagradores da questão jurídica controvertida.

Neste desiderato, em exegese doutrinária conceitual Távora e Alencar (2013), e igualmente Oliveira (2011), afirmam que se uma norma processual contiver conteúdo material penal o reconhecimento à retroatividade benéfica será cogente.

Noutro ponto, sobre a natureza jurídica, se direito subjetivo do réu seria, Aury Lopes Júnior entende que preenchidos os requisitos legais se trata de direito público subjetivo do imputado, um direito processual que não lhe pode ser negado. (BEZERRA; JÚNIOR, 2020).

Os Magistrados perfilhados nestas correntes doutrinárias sedimentam o juízo, em sua maioria, de ser o ANPP norma híbrida e direito público subjetivo do réu, e por tal desiderato é cogente tanto a retroatividade benéfica a alcançar as ações penais que já estavam em trâmite, quanto o direito de o réu obter do Ministério Público manifestação motivada sobre a propositura ou não do ANPP, diante a faculdade disposta no § 14 do art. 28-A, do CPP, com a suspensão da marcha processual, inclusive.

O alcance da retroatividade benéfica está imbricado à concepção de natureza jurídica da norma que regula o acordo de não persecução penal. E neste cenário há quatros posições já adotadas no judiciário; (a) retroação até o recebimento da denúncia; (b) retroação, desde que o réu não tenha sido sentenciado; (c) retroação, mesmo em grau recursal e (d) aos casos já transitados em julgado. (MARTINELLI; SCHMITT, 2020)

Deste modo, os decisores evidenciam a existência de lacuna normativa que necessita ser solvida, e como não existe na nova lei qualquer comando expresso regulamentando a situação fática fazem a integração da norma através da hermenêutica jurídica não desbordando, em seus juízos, dos poderes de atuação do Magistrado.

Reverberam, por fim, que entender em sentido contrário, ou seja, permitir a ausência de manifestação do Parquet com a fluência da ação penal implicaria em nulidade processual aos réus que preenchessem os requisitos para tanto, e, assim, a suspensão da ação até uma manifestação vem equacionar justiça. (RIO GRANDE DO SUL, 2020) JURISPRUDÊNCIA.

Entretanto, há magistrados que abrangem não ser o ANPP direito subjetivo do réu, de modo que seria vedado o juiz agir de ofício e exarar decisão com comandos não previstos na lei, nessa acepção Xisto Albarelli Rangel Neto, (SP, TJ. HC nº 2064200-84.2020.8.26.0000. Rel. Juiz XISTO RANGEL, 2020). JURISPRUDÊNCIA.

Na mesma linha Higyna Josita Simões de Almeida Bezerra abarca não ser direito subjetivo do réu o acordo, mas faculdade do Ministério Público (BEZERRA; JÚNIOR, 2020).

Por fim, há os que entendem, como Salise Monteiro Sanchotene, que quando o Ministério Público não oferece o acordo o andamento da demanda deve prosseguir, porquanto torna a vigorar o princípio do impulso oficial. (RIO GRANDE DO SUL, 2020) JURISPRUDÊNCIA.

Em que pese o dissenso nos leading case estudados não houve nos argumentos expostos pelos magistrados, menção a retroatividade benéfica da lex mitior ser possível até mesmo aos processos já sentenciados e com trânsito em julgado nos termos do paragrafo único do art. 2º, do Código Penal, cuja competência de aplicação seria do juiz de execução penal segundo o art. art. 66, I da LEP e a Súmula 611 do STF. (ESTEFAN; GONÇALVES, 2012, p. 187)

Tão pouco, houve argumento comparativo com lacuna normativa advinda da nova regra do § 5º ao art. 171 do Código Penal, quando da retroatividade benéfica, por se tratar de natureza jurídica distinta, pois nesta situação a retroatividade objetiva uma representação da vitima, quando antes não havia e, assim, passaria de condição de procedibilidade em condição de prosseguibilidade sendo impresumível aos fins para qual foi concebido. (CUNHA, 2020).

Em linhas gerais, o juízo construtivo e lógico-formal prevalente feito pelos Magistrados pressupõe ser o ANPP direito subjetivo do réu, portanto, base de fundamentação de onde derivam os comandos processuais indigitados nas decisões emblemáticas.

 

2.2. Os pressupostos teóricos subjacentes do Ministério Público

Ultrapassados os contextos expansivos exarados pelos membros da Magistratura, voltamos neste ultimo momento a circunspecção do entendimento exarado pelo outro polo antagônico, os membros do Ministério Público.

No tocante a primeira faceta jurídica, embora não haja unanimidade entre os membros do Ministério Público, há uma diminuta parcela a entender ser alcançável a retroatividade até antes de oferecida a denúncia como disposto na Lei 11.964/2019 (BRASIL, 2019), outros aos processos anteriores à sentença prolatada (CABRAL, 2020), e, por fim, aos processos sentenciados sem trânsito em julgado (QUEIROZ, 2020).

O Grupo Nacional de Coordenadores de Centro de Apoio Criminal (GNCCRIM), órgão do Conselho Nacional de Procuradores-Gerais dos Ministérios Públicos dos Estados e da União, proferiu no Enunciado 20, interpretativo sobre a Lei 11.964/2019, o entendimento de que “Cabe acordo de não persecução penal para fatos ocorridos antes da vigência da lei nº 13.964/2019, desde que não recebida à denúncia.” (BRAIL, 2020).

Em sede doutrinária, Cunha e Pinto verbalizam que: “Caso já haja processo em curso, com denúncia recebida antes do início da eficácia da Lei 13.964/2019, poderá ser proposto o acordo […]” (PINTO; CUNHA, 2020, p.191).

Quanto a segunda e terceira faceta, tem-se que membros do Ministério Público de maneira uníssona reverberam não existir previsão legal para suspender a ação penal a fim de provocar as partes para se manifestarem quanto ao acordo de não persecução penal, ou de aguardar que o órgão de revisão do Ministério Público examine o incidente do ANPP.

Noutro viés, o Ministério Público traz antigo conceito arraigado na doutrina que assevera que a transação penal e a suspensão condicional do processo são reconhecidas como direito público subjetivo do acusado, não podendo o juiz negar-lhe o benefício sem qualquer fundamentação. (ESTEFAN; GONÇALVES, 2012, p. 470).

E, então, correlacionam com o instituto do ANPP, e, mutatis mutandi, afirmam que deve ser dada idêntica solução jurisprudencial conferida à suspensão condicional do processo quanto à transação penal pelo STJ (Jurisprudência em Teses, Edição 96, 2018) e STF (RE 468.161/GO), e, assim, concebem a natureza jurídica como não sendo direito subjetivo do investigado, facultando-se ao membro do MP propor conforme as peculiaridades do caso concreto quando considerado necessário e suficiente para a reprovação e a prevenção da infração penal, não podendo o judiciário exigir que o Ministério Público ofereça o benefício. (ARAS, 2020).

Nesta toada, Souza e Dover, citado por Cunha assentaram que “entender o ANPP como obrigatoriedade seria o mesmo que estabelecer-se um autêntico princípio da obrigatoriedade às avessas”. (CUNHA. 2017, p.123).

Entretanto, há alguns deles, discorrendo que a obrigatoriedade poderá existir tão somente para exigir uma manifestação concreta sobre a propositura ou não do acordo, e, assim, conferir ao réu a faculdade de se insurgir contra o entendimento deste membro oficiante a órgão superior recursal do Ministério Público (§ 14. Art. 28-A, do CPP), não havendo previsão legal de insurgência em órgão do judiciário. (BARROS, 2019).

No âmbito do MPF, recentemente foi publicada uma Orientação Conjunta nº 03/2018 das 2ª, 4ª e 5ª Câmaras de Revisão Criminal da PGR onde se estabeleceu não ser o ANPP direito público subjetivo do investigado (item 1.2), ser faculdade do membro do Parquet sua formalização dentro de sua discricionariedade regrada (item 1.2), e, se houver recusa fundamentada deverá no mesmo ato em que se comunicar o indeferimento da proposta informar ao investigado sobre o direito de revisão (item 1.3), e, ainda, que é admissível à retroatividade benéfica no curso da ação penal (item 8). (BRASIL. 2020).

No tocante a suspensão da ação penal, de modo geral, os membros dos Ministérios Públicos, frisam que a suspensão do curso do processo incidirá nas hipóteses de homologação do acordo, e somente neste momento poderá haver à apreciação judicial, onde se o juiz avaliar inadequadas, insuficientes ou abusivas as condições do ANPP, deverá se valer dos comandos dispostos em lei, o qual não existe previsão para suspensão em caso de não oferecimento do ANPP.

Sendo assim, no juízo verbalizado pelo Ministério Público, o magistrado ao agir determinando que o Parquet se manifeste sobre o ANPP, com suspensão da ação penal para tal desiderato, está criando um procedimento não estabelecido em lei.

Eis, então, as três facetas basilares encontradas no juízo construtivo e lógico-formal de cada polo divergente encontradas neste estudo, que, repise-se, ainda se encontram em sede embrionária, não havendo manifestação de forma definitiva, pelos Tribunais Superiores, em razão do curto lapso temporal de vigência da nova lei.

 

Conclusão

Dimanado o objetivo deste artigo, se pode comprovar que não existe um padrão uníssono nos comandos decisórios dos magistrados e manifestações do Parquet sobre a problemática estudada. Os juízos construtivos e lógico-formais que subsidiam as posições dissonantes, ainda que de modo superficial, transcendem a discussão jurídica processual.

Conceitos imbricados no campo de direito material e formal, hermenêutica, jurídica, filosófica e constitucional, princípios (acusatório, isonomia, bilateralidade, etc.) e mesmo ativismo judicial, diante a atuação expansiva e proativa do Judiciário ao intervir em atribuições do Ministério Público, são alguns postos a apreciação.

O embate jurídico analisado no recorte jurisprudencial procedido atesta que sobressaem sendas epistemológicas em cada entendimento proferido a merecer estudo mais aprofundado no campo fenomenológico-hermenêutico.

Entrementes, não obstante a controvérsia apresentada perpassar conceitos de ordem jurídico-processual penal, o método aplicado no estudo nos trouxe em decorrência uma confirmação irreprochável de que o cerne do embate é, em sua essência, prevalente jurídico.

A pedra angular, da quaestio juris é nativa da circunspecção, atingida por cada interprete, em dois pontos jurídicos. O primeiro sobre a natureza jurídica que se atribui ao instituto do ANPP, se sê-lo direito subjetivo do réu, o segundo afeto a retroatividade benéfica.

Destarte, uma vez identificado o modo pelo qual o interprete, membro do Ministério Público e Magistrados, defini a natureza jurídica do novo instituto e o alcance do princípio da lex mitior, de pronto, se constrói o sentido dos termos com os quais opera o discurso, a desdobrar em uma série de possibilidades explicativas para qualquer dos vieses apresentados.

Todavia, diante a prevalência dos entendimentos exarados é possível se enveredar por uma ponderação dos argumentos cingida há uma uniformização jurisprudencial, embora passível de ferrenhos embates jurídicos mais aprofundados.

Nesse sentido, abranjo que a uniformização implica em processo de aceitação dos pressupostos teóricos subjacentes de ambas as partes estribados nas seguintes premissas: a) o ANPP não é direito subjetivo do réu; b) O Ministério Público não é obrigado a formular o acordo; c) o réu tem direito subjetivo a uma manifestação fundamentada, negativa ou positiva, do Ministério Público para dela se insurgir ao Procurador Geral, caso entenda a defesa; d) diante o silêncio do Ministério Público em se manifestar aos processos que já haviam denúncias recebidas ou mesmo sentenciado, o comando do magistrado, ainda que de ofício, em abrir vista ao Parquet com suspensão do curso da ação penal e da prescrição para tal manifestação, não evidencia ato tumultuário, pois sana lacuna normativa flagrante sem prejudicar quaisquer das partes; e) ante a recusa do Ministério Público em oferecer proposta transacional lato sensu, é vedado ao juiz agir ex officio, nesse caso, cabe-lhe remeter os autos ao Procurador-Geral ou ao órgão superior de revisão, mediante aplicação analógica do art. 28 do CPP.

Ressalto, o estudo também deflagrou que a irresolução deste embate está despontando uma postergação de litigiosidade de demandas de natureza criminal contraproducente ao instituto, com a questão jurídica sendo levada a apreciação do Superior Tribunal de Justiça, ainda sem posição exarada, mesmo monocrática.

Urge, portanto, uma necessidade premente de aprofundar a exegese da quaestio facti e do quaestio juris dos leading cases, tendentes à uniformização para equacionar uma solução justa e jurídica afastando exegeses contraproducentes ao instituto do ANPP sem malferir direitos de quaisquer das partes, incluindo as prerrogativas constitucionais do Ministério Público e do Judiciário.

Noutras palavras, se não equacionado e uniformizado os entendimentos manter-se-á no mínimo questão jurídica díssona contraproducente ao télos do ANPP, e, deste modo, irreprochável ultimar que os jurisdicionados dependerão de “sorte” e não do direito.

 

REFERÊNCIAS

ARAS, Vladimir. Comentários ao Pacote Anticrime (6): a natureza jurídica do ANPP e a recusa a sua celebração. Disponível em: <https://vladimiraras.blog/2020/05/18/comentarios-ao-pacote-anticrime-6-a-natureza-juridica-do-anpp-e-a-recusa-a-sua-celebracao/>. Aceso em 14 mai. 2020.

 

BARROS, Francisco Dirceu. Acordo de Não Continuidade da Persecução Penal: a possibilidade jurídica do uso da Resolução 181 do CNMP no curso da ação penal. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/74385/acordo-de-nao-continuidade-da-persecucao-penal>. Aceso em 05 jun. 2020.

 

BEZERRA; Higyna Josita Simões de Almeida.; JÚNIOR, Aury Lopes. Questões polêmicas do acordo de não persecução penal. Disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-06/limite-penal-questoes-polemicas-acordo-nao-persecucao-penal#author>. Acesso em: 01 jun. 2020.

 

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[1] Graduado em Direito pela Faculdade Maurício de Nassau – Pós-graduado em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade Candido Mendes – Servidor Público – Assessor de Magistrado. E-mail: renatoaraujo.cj@gmail.com.

 

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