Resumo: O artigo se propõe a elucidar o conceito de laicidade, dentro do atual Estado Democrático de Direito Brasileiro, pontuando acontecimentos que demonstram contradições preocupantes na postura dos três poderes estatais, especialmente o legislativo, ao tempo que corrobora a importância da efetiva divisão entre Estado e religiões para a preservação da democracia. [1]
Palavras-chave: Laicidade, Estado Democrático, Religião, Isonomia.
Abstract: The article aims to clarify the concept of secularism, within the current Brazilian Democratic State Law, punctuating events that reveal troubling contradictions in the attitude of the three state powers, especially the legislative, the time it corroborates the importance of effective division between state and religion for the preservation of democracy.
Keywords: Secularism, Democratic State, Religion, Equality.
1 OS FUNDAMENTOS DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITO
Fundado em 1988 com a promulgação da república, o estado Brasileiro é consideravelmente novo, em relação a outras estruturas sociais jurídicas ao redor do globo. Jovialidade esta especialmente considerada, quando observado fatores relacionados à efetivação das garantias e direitos esculpidos no corpo da Carta Maior que funda este Estado.
O Estado democrático de Direito Brasileiro, consagra como alicerces no artigo 1º de sua lei fundamental os conceitos de soberania, cidadania, dignidade da pessoa humana, valores sociais do trabalho, da livre iniciativa e por fim, o pluralismo político. Solidificando ainda, no parágrafo único do artigo inaugural, a máxima de que todo o poder que rege este Estado deve emanar do povo, que o manifesta por meio da representação.
É certo que muito do que se vê no texto Constitucional ainda resta distante das realidades percebidas ao longo do vasto território por onde se estende esta aludida soberania, e igualmente, estamos distantes de termos materializada, amplamente, a dignidade esculpida naquele texto para todos os indivíduos de forma homogênea. Todavia, mesmo distante da realidade, ainda sim, um imensurável avanço e monumental conquista, de toda a sociedade que, de per si, reflete a luta dos indivíduos, em todo o mundo, pela defesa dos direitos fundamentais.
Sabe-se que os grupos sociais, nem sempre estiveram preocupados com a proteção dos indivíduos, menos ainda em assegurar-lhe mínimos possíveis à instauração da dignidade. Pelo contrário, noutras épocas, comumente se exploravam os indivíduos à exaustão, levando-os indiscriminadamente à morte, pelo labor excessivo, visando o ganho, o lucro de uns a despeito da degradação e muitos[2].
Mais recentemente na história ocidental, presenciamos a falência do sistema feudal em face a instauração dos regimes absolutistas, onde reis, substituíram o império da igreja, impondo, assim como esta, seus interesses, massacrando de igual modo os súditos e em nada melhorando as condições dos povos a eles subordinados.
Governavam os monarcas ilimitadamente, reunindo em suas mãos os poderes executivo, legislativo e judiciário, além claro, do controle, direito ou indireto dos ideais religiosos.
Dados incontáveis abusos registrados historicamente neste período, o absolutismo monárquico, então formato vigente de governo, veio a ruir, dando lugar à um novo sistema, onde a burguesia, desprovida de realeza ou designação divina, passava a gerir a sociedade, promovendo a transição intelectual, política e econômica, criando assim as bases daquilo que evoluiria e forjaria os alicerces do mundo ocidental contemporâneo.
Instigados, filosófica e economicamente pelos ideais burgueses, um extenso rol de pensadores passa a estruturar este novo pensamento europeu, que certamente haveriam de contaminar tantos outros grupos sociais ao redor do mundo.
Rousseaou, ao fim do século XVIII, por exemplo, defendia serem os homens livres, nascidos assim, sendo esta liberdade parte inerente da natureza humana, devendo ser protegida e valorizada por toda a sociedade em conjunto e, para tanto deveria haver este ente, o Estado, forjado por meio do ajuste de vontades, do acordo coletivo maior, do contrato social, por meio do qual promover-se-ia o alcance dos objetivos coletivos e individuais, assegurando o equilíbrio necessário ao progresso dos povos.
Em John Locke, encontramos as teorias liberalistas de defesa dos direitos naturais essenciais, listados por ele como imprescindíveis à sociedade ideal: a liberdade, a propriedade e a vida. Indo, este pensador, bem além do esperado para sua época, ao apregoar que deveria o povo, quando preciso, tomar as rédeas do governo, chegando a destituir quem quer que estivesse no poder, quando tais garantias não lhes fossem asseguradas.
Na esteira do pensamento moderno, temos incontáveis pensadores que, com suas teorias, contribuíram para a eclosão de revoltas, levantes e movimentos que alterariam o curso politico das estruturas de governo, redefinindo o modo como os grupos sociais se percebiam e se organizavam, como por exemplo a declaração de independência dos Estados Unidos da América em 1776, que, ao romperem com sua metrópole, firmam em sua Carta de Independência, dirigida à Inglaterra, valores como a igualdade entre os homens e o reconhecimento da existência de direitos inalienáveis, como a vida, a liberdade e a busca pela felicidade, num evidente reflexo daquele efervescente pensamento europeu. Pouco depois, tem-se, em 1789, a Revolução Francesa que sem sombra de dúvidas é um dos marcos mais relevantes na edificação dos direitos humanos, e consequentemente dos estados democráticos de direito, quando materializa a Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, um dos principais documentos históricos que marca o inicio dos Estados Modernos.
No curso desta marcha temos então o surgimento das constituições, que foram concebidas como códigos superiores, subjugando a vontade daqueles soberanos absolutistas, à vontade da lei, que em tese, deveria refletir a vontade de todos, por meio da representação. Erguendo-se como verdadeira garantia das liberdades individuais, consagradas nas revoluções europeias e americana.
Surge assim a ideia de Constituição como lei máxima de um Estado, que sendo democrático, deveria consagrar em seu texto os interesses difusos, de todos, com fulcro numa tratativa isonômica dos indivíduos.
Não obstante grandioso passo, percebeu-se que a mera existência desta lei maior não seria suficiente para garantir a efetivação dos direitos e garantias fundamentais, pois, o surgimento de leis que lhe afrontavam diretamente, atingindo e mitigando direitos mais elementares, revelou a fragilidade deste conceito utópico Constitucional, impulsionando a necessidade de criação de mecanismos que viessem a proteger a base do Estado Democrático de Direito.
Entre 1787 e 1788, pouquíssimo antes da Revolução Francesa, a imprensa de Nova York publicou oitenta e cinco artigos escritos por Alexander Hamilton, James Madison e John Jay, todos assinados sob o pseudônimo “Publius”, adotado pelos autores. A reunião destas produções viria a compor a obra “O federalista” e tratava da proposta de união federal dos estados americanos, com vistas à formação do novo Estado, mais forte, buscando a efetiva conquista dos interesses autônomos dos Estados. Deve-se ressaltar a este ponto que já no conteúdo dos textos de Hamilton, prévios à própria constituição americana, anunciava-se que poderia ela, estar suscetível à ameaças externas, por leis que lhe poderiam ameaçar, aviltadas por interesses estranhos as vontades mais legitimas de toda a coletividade, favorecendo, mesmo que pelas vias legais, determinados grupos em detrimento de toda a sociedade. Para o autor, tal situação deveria ser combatida e, para tanto, sugere Hamilton a criação de mecanismos de controle de constitucionalidade, com vistas ao fortalecimento do estado democrático.
O Brasil, mesmo tardiamente, instituiu o atual Estado de direito por meio da promulgação da Constituição de 1988 que, como já mencionado, consagra um rol de direitos, garantias individuais e princípios tendo dentre eles o princípio das liberdades individuais que dá sustentação ao ideal laico.
2 A LAICIDADE COMO PRINCÍPIO CONSTITUCIONAL
A liberdade de pensamento prevê o direito de exprimir, através de qualquer meio, o intelecto humano, isto é, trata-se aqui, da possibilidade, do direito máximo de exteriorização ou não, de dadas impressões e percepções pessoais, como nos ensina Ferreira Filho (2007). Neste mesmo sentindo, defendendo esta esfera íntima de existência individual, assevera Karam (2009): “o indivíduo não pode ser forçado a se comportar de uma ou outra forma, nem pode ser forçado a mudar seu comportamento ou suas opiniões sobre o que quer que seja”.
Sem dúvida, a proteção à esta liberdade incontestável é um dos pilares das constituições contemporâneas, nas américas e em todo o mundo ocidental. No entanto, nem sempre fora desta forma.
A possibilidade do individuo expressar aquilo que pensa, especialmente no tocante à sua crença, é fenômeno relativamente novo nas sociedades ocidentais. Sabe-se que até pouco tempo, à época medieval ou início da era moderna, restringia-se amplamente qualquer pensamento que destoasse daqueles eleitos pelas lideranças.
Quando das muitas revoluções que sacudiram o mundo, reorientando os pilares sociais, culturais e jurídicos de todo o ocidente, preocupou-se, precipuamente, com a proteção às liberdades individuais, sendo esta preservação um equivalente necessário a este novo formato de estruturação social que se almejava erigir.
Essa preocupação com a exteriorização do pensamento foi tratada na Declaração de Direitos do Homem de 1789, a qual prevê que “ninguém pode ser perturbado por suas opiniões, mesmo religiosas, desde que a sua manifestação não inquiete a ordem pública estabelecida pela lei”.
No Brasil, foi dado um tímido passo, no período colonial, na direção da defesa destes ideais defendidos na Revolução Francesa e Americana, ao ser determinada a separação entre Estado e Igreja, na Constituição Brasileira de 1824. Entretanto, uma religião fora fixada como oficial, como percebe-se claramente pela leitura do artigo 5º daquela lei, que determinava ser “A Religião Catholica Apostolica Romana […] a Religião do Imperio. Todas as outras Religiões serão permitidas com seu culto domestico, ou particular em casas para isso destinadas, sem fórma alguma exterior do Templo”(sic).
Note-se que ao tempo em que determina que o governo não deveria ter qualquer dependência religiosa, estabelecia também a religião católica como oficial, preferida pelo Estado, tolerando-se outras manifestações de pensamento religioso, mesmo que tolhidas em sua exteriorização. Já a Constituição ora vigente, não corrobora tal disposição, deixando de instituir qualquer religião Estatal, ademais, estabelece em seu artigo 19, I, a seguinte disposição:
“É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios: I – estabelecer cultos religiosos ou igrejas, subvencioná-los, embaraçar-lhes o funcionamento ou manter com eles ou seus representantes relações de dependência ou aliança, ressalvada, na forma da lei, a colaboração de interesse público”.
Esta nova postura legiferante reflete verdadeira intenção em instituir as liberdades como real núcleo dos direitos humanos fundamentais, como preleciona Kildare[3].
A própria ideia de benefício de determinada religião a despeito de outras, vai de encontro ao ideal de igualdade e fraternidade, como comenta Karam:
“A separação entre Igreja e Estado é uma conquista ligada à democracia. A adoção de uma religião oficial, a produção de leis ditadas por regras instituídas por representantes de uma ou outra religião, ou o favorecimento a instituições de determinada orientação religiosa em detrimento de outras instituições sem tal orientação ou com a necessária neutralidade (laicidade) do Estado nesse campo e acabam não só por violar a liberdade de crença, como também o próprio princípio da isonomia, ao privilegiar adeptos de uma religião e assim tratar desigualmente adeptos de outras religião ou não-crentes”. (KARAM, 2009. p. 6)
Esta necessária imparcialidade Estatal deve refletir o interesse mais legítimo na preservação do direito de liberdade de pensamento, como defende Miranda:
“A liberdade religiosa não consiste apenas em o Estado a ninguém impor qualquer religião ou a ninguém impedir de professar determinar crença. Consiste ainda, por um lado, em o Estado permitir ou propiciar a quem seguir determinada religião o cumprimento dos deveres que dela decorrem (em matéria de culto, de família ou de ensino, por exemplo) em termos razoáveis. E consiste, por outro lado (e sem que haja qualquer contradição), em o Estado não impor ou não garantir com as leis o cumprimento desses deveres. (…) Se o Estado, apesar de conceder aos cidadãos, o direito de terem uma religião, os puser em condições que os impeçam de a praticar, aí não haverá liberdade religiosa. E também não haverá liberdade religiosa se o Estado se transformar em polícia das consciências, emprestando o seu braço – o braço secular – às confissões religiosas para assegurar o cumprimento pelos fiéis dos deveres como membros dessas confissões”. (MIRANDA, 2000. p. 409)
Destas colocações percebe-se um imprescindível equilíbrio esperado da conduta estatal, ao permitir as manifestações religiosas, propiciar-lhes a proteção, sem contudo nelas interferir diretamente. O que por certo, dever-se-ia manifestar como a laicidade estatal.
Ao tratar sobre laicidade, Gustavo Biscaia de Lacerda, aborda a importância de sua presença no Estado democrático:
“A laicidade pública é a base da liberdade de pensamento e de expressão e do pluralismo social e político nas sociedades ocidentais. Assim, ao contrário de parecer que o afastamento das crenças da esfera pública diminui a importância da religião na sociedade, na verdade ela é a própria garantia de que as religiões continuarão existindo”. (LACERDA, p. 2)
A própria ideia de laicidade, assevera de per si, que este Estado enquanto ente político que deve gerenciar o contrato social firmado pelos indivíduos que o constituem, assume papel fundamental na garantia de que todo e qualquer espaço público deva permanecer neutro, a saber, isento de marcas que individualizem determinado grupo social ou religioso, devendo manter-se equidistante de todos os elementos que sejam intrinsicamente ligados à quaisquer religiões, sob pena de ver-se ameaçado o próprio ideal de liberdade de pensamento e crença.
Ainda nesta direção, tendo a laicidade do Estado como um princípio constitucional derivado das liberdades individuais asseguradas, pondera Canotilho:
“A quebra de unidade religiosa da cristandade deu origem à aparição de minorias religiosas que defendiam o direito de cada um à verdadeira fé. Esta defesa da liberdade religiosa postulava, pelo menos, a ideia de tolerância religiosa e a proibição do Estado em impor ao foro íntimo do crente uma religião oficial. Por este facto (sic), alguns autores, como G. JELLINEK, vão mesmo ao ponto de ver na luta pela liberdade de religião a verdadeira origem dos direitos fundamentais. Parece, porém, que se tratava mais da ideia de tolerância religiosa para credos diferentes do que propriamente da concepção da liberdade de religião e crença, como direito inalienável do homem, tal como veio a ser proclamado nos modernos documentos constitucionais”. (CANOTILHO, 1993. p. 503)
Portanto, por ora, deve-se agrupar as ideias de que a laicidade do Estado democrático, reflete a própria ideia de proteção às liberdades, sendo imposto a este Estado, um necessário distanciamento das manifestações individuais de crença, protegendo-as, sem conduto com elas desenvolver qualquer espécie de envolvimento.
3 UMA PERIGOSA MARCHA
De acordo com dados apresentados pelo censo 2010 sobre religião, identificou-se em nosso país, algo que as mídias já relatavam há certo tempo, um acelerado crescimento da religião evangélica, acompanhada da redução de outros credos.
Tal informação poderia, se estivesse desacompanhada de outros dados igualmente fornecidos pela pesquisa[4], apontar para um quadro de regular manifestação religiosa, exatamente como previsto no texto constitucional, dentro das garantias individuais. Porém, o quadro que se desvela é um tanto quanto mais preocupante.
Gamaliel da Silva Carreiro, sociólogo, em sua tese de doutorado pela Universidade de Brasília[5], traça uma interessante análise do progresso destas instituições, revelando indiretamente, tanto o perfil das organizações quanto daqueles que as compõe, como percebe-se no fragmento abaixo:
“Em função do mercado religioso concorrencial, as instituições passaram a sacralizar o crescimento da igreja. Neste ponto, gostaríamos de inverter a principal tese de Weber em relação ao asceticismo e o espírito do capitalismo. Se Weber tenta compreender a ligação entre as ideias religiosas fundamentais do protestantismo ascético e suas máximas sobre a conduta econômica, faz-se necessário entendermos que a lógica do mercado é incorporada pelas instituições, obrigando-as a trabalhar incessantemente em prol do crescimento do rebanho.
As instituições religiosas assumiram posição de perseguir o crescimento numérico dos grupos como uma finalidade em si. Chama-nos atenção a ênfase colocada nos discursos dos líderes religiosos sobre a necessidade de fazer prosperar cada firma religiosa. Nessa lógica religiosa, parafraseando Max Weber, o fiel sobre a terra, para ter certeza deve trabalhar naquilo que lhe foi destinado, ao longo de toda sua jornada. Não é o ócio e o prazer, mas a atividade (proselitista) que serve para aumentar a glória de Deus. […]
No momento em que a economia religiosa se torna competitiva, as firmas tenderão a rever tais posições. Sobretudo aquelas ainda não estabelecidas, ou seja, as outsiders, na tentativa de se consolidar, crescer e ganhar espaço tenderão a desenvolver e buscar dentro da sociedade, através de processos de erros e acertos, estratégias organizacionais que melhor funcionem junto à clientela. Foi esse o caso de muitas firmas que surgiram no Brasil após 1970, entre elas a IURD, mas também a Sara Nossa Terra, a Renascer, a Internacional da Graça de Deus.” (CARREIRO, 2007. p. 307 – 308)
No curso de sua tese, Carreiro classifica as instituições religiosas como firmas, tal qual verdadeiras empresas, dada a flagrante similaridade conceitual, que o autor quando da instrumentalização de sua pesquisa, identificou. Apontando como uma das metas destas organizações lucrativas, o crescimento, exatamente com vistas a perpetuação do lucro e de sua permanência no mercado.
Para o autor, os fieis poderiam ser considerados como clientes, sendo estes, o mantenedores efetivos destas firmas.
Na esteira desta percepção dos grupos religiosos como verdadeiras instituições mercantis com objetivos nítidos de crescimento, não seria difícil de se estimar um alinhamento destes com as lideranças politicas, haja vista o necessário fortalecimento de suas próprias estruturas.
Christina Vidal e Paulo Victor Leite Lopes, em sua obra “Religião e Política”[6], anunciam vislumbres do perigo originário do flerte entre religião e poder legislativo:
“Não é um fenômeno novo a participação do campo religioso na política, mas certamente a visibilidade e influencia junto aos governos tornaram esses atores relevantes para uma análise da politica brasileira hoje. O destaque são as lideranças evangélicas que organizam suas redes de relações para atuar ativamente nas eleições, não só indicando candidaturas, mas participando do jogo de alianças e das campanhas eleitorais de modo explicito. O pertencimento a uma das igrejas e/ou o apoio de lideranças evangélicas, muitas vezes, contribui decisivamente para o êxito de um candidato.
[…] as lideranças evangélicas possuem duas condições fundamentais para serem atores relevantes nesse jogo: têm grande poder de convencimento frente a seus milhões de fieis e podem sustentar companhas eleitorais com grande visibilidade na sociedade. A conta para os governos chega depois”. (VITAL; LOPES. 2013, prefácio)
Diante o cenário exposto, válido se faz lembrar que, não raramente, vemos registrados nos mais diversos meios de comunicação, as mais distintas e bizarras formas de agressões, de grupos predominantemente cristãos, contra indivíduos que professam outros credos.
Como relatado pela Ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, Luiza Barros, em entrevista concedida ao portal de notícias EBC[7] em 21 de janeiro de 2013, quando tratou dos ataques às religiões de matriz africana, que segundo ela, beiravam níveis socialmente insuportáveis:
“O pior não é apenas o grande número, mas a gravidade dos casos que têm acontecido. São agressões físicas, ameaças de depredação de casas e comunidades. Nós consideramos que isso chegou em um ponto insuportável e que não se trata apenas de uma disputa religiosa, mas, evidentemente, uma disputa por valores civilizatórios”. (BARROS, 2013)
Ainda segundo a Ministra Luiza Barros, tais ataques estariam sendo organizados predominantemente por determinados grupos evangélicos, de acordo com os dados coletados pelo serviço de denuncias, Disque 100, da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência. E ainda em conformidade com as palavras da ministra, nesta entrevista concedida, alguns setores, especialmente evangélicos pentecostais, teriam interesse direito na extirpação das manifestações africanas de credo da sociedade brasileira. Posicionamento que deve, certamente, ser encarado com a devida preocupação.
4 OS RISCOS ORIUNDOS DO FLERTE ENTRE ESTADO E RELIGIÃO
Este interesse de extirpar a cultura africana, como fora mencionado pela Ministra Luiza Barros, é reflexo da pretensão de um determinado segmento do cristianismo em manifestar, da pior forma possível, seu próprio credo, contra toda e qualquer manifestação cultural e/ou religiosa que destoe de seu próprio discurso.
Neste diapasão é preciso levantar o questionamento sobre qual seria a maneira pela qual deveria se posicionar o Estado, através de suas instituições, quando destas manifestas agressões entre distintos grupos e suas manifestações religiosas, definindo qual seria a melhor forma, ou menos conflituosa, para dirimir tais conflitos, preservando a diversidade cultural que a laicidade se propõe a promover.
O avanço dos grupos religiosos em direção ao poder legislativo, é certamente preocupante para sociólogos como Christina Vidal e Paulo Victor Leite Lopes. Segundo estes, as manobras politicas de membros do legislativo que representam os interesses de evangélicos, em nada se coadunam com a busca de preservação ou ampliação de direitos dos seus eleitores, pelo contrario, é pauta cativa de suas agendas, a militância direta e irrestrita contra tudo e todos que se posicionem ideologicamente contra suas convicções, e neste contexto, deve-se listar, religiões e grupos de matrizes africanas, a luta das mulheres pela equiparação de direitos sociais, incluindo-se nestes à questões pertinentes ao aborto, além dos direitos civis dos homossexuais. E para atingirem estes fins, valem-se dos mais vis mecanismos de persuasão e controle de massa, numa tentativa de legitimar suas ideias por meio de leis. Nesta direção, comentam os aludidos autores:
“Há grupos de trabalho compostos por parlamentares, pastores e outros colaboradores. Um desses grupos é o da família, cujos parlamentares ficam responsáveis por atuarem fortemente, senão exclusivamente, nessa agenda no Congresso nacional. Assim acontece com toda e qualquer questão que afete ao tema do grupo de trabalho ao qual o parlamentar da FPE[8] esta vinculado. […] Na questão dos direitos das mulheres, os argumentos orientados pelo pânico moral enfatizam que a igualdade de direitos entre homens e mulheres pode formar gerações de mulheres que vão optar por não terem filhos, afetando, assim, a capacidade de reprodução da espécie”. (VITAL; LOPES. p. 154 – 155)
A articulação de determinados grupos evangélicos no poder legislativo se mostra estruturada e determinada a vetar qualquer progresso no campo de conquistas de direitos de grupos que lhes sejam estranhos, como asseveram Vital e Lopes:
“Há muita organicidade no comportamento dos políticos da FPE que contam com um staff qualificado que lhes acompanha nos trabalhos cotidianos no Congresso Nacional fornecendo informações, conectando-os com suas bases, conduzindo reuniões e dialogando com magistrados, ministros e secretários de governo”. (VITAL; LOPES. p. 156)
A partir do momento em que, indiscriminadamente, certos grupos religiosos usurpam o poder da representatividade popular para legitimar ataques á outros grupos, desprovidos de igual poder, não estaria se deflagrando um processo de implosão dos fundamentos laicos do Estado Democrático, com vistas à um ataque direito à liberdade de pensamento e crença? Aparentemente, não. Segundo alguns membros do Ministério Público.
De acordo com Victor Mauricio Fiorito Pereira, Membro do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro, a opção do Estado pelo uso das perspectivas e pensamentos de dado grupo religioso, não configuraria afronta alguma ao caráter laico:
“[…] embora o Estado deva dispensar tratamento igualitário a todas as religiões, bem como deixar que funcionem livremente, com base no princípio da maioria pode optar, quando necessário for, por determinada crença, como por exemplo na ocasião de instituir um feriado, de construir um monumento em logradouro público, de utilizar a expressão “Deus seja louvado” que consta no papel moeda em curso, bem como elaborar sua legislação tomando como base as orientações doutrinárias de um determinado credo, nisto incluindo questões polêmicas como aborto, uso de células de embriões humanos e união homoafetivas”[9]. (grifo meu)
Percebe-se que para o Ilustre Membro do Parquet, o flerte entre Estado e religião não apresenta ameaça para a estabilidade das instituições democráticas, de modo que, segundo ele, possível seria até mesmo proceder a elaboração legislativa tendo por base os ideias de determinado credo.
Mesmo sendo o Ministério Público imbuído na defesa da ordem jurídica e fiscalização do cumprimento da lei no Brasil, em especial da Constituição, cujos dispositivos devem nortear todo o ordenamento jurídico, percebe-se um inquietante silêncio por parte de alguns de seus membros, quando não apenas da insurgência de declarações como estas, como também, por exemplo, quando da propositura de dispositivos normativos[10] que afrontam diretamente as liberdades individuais consagradas na constituição.
Em contrapartida, segundo juristas, como Roger Raupp Rios e Maria Berenice Dias, presidente da Comissão Especial da Diversidade Sexual do Conselho Federal da OAB[11], o posicionamento estatal deve ser claro e incisivo, rejeitando toda investida de aproximação ou usurpação religiosa dos poderes estatais em benefício próprio em detrimento de outras manifestações de credo.
5 LAICIDADE FICTA E DEMOCRACIA URGENTE
A luz dos fatos e posicionamentos aqui levantados, resta evidente, uma contundente problemática envolvendo a busca pelo exercício de direitos, especialmente aqueles relacionados às manifestações de credo e o abuso deles, exemplificados, facilmente, pela postura dos representantes evangélicos na esfera legislativa, que valendo-se do poder a eles investido, traçam articulações voltadas à vedações das conquistas de direitos de grupos ideologicamente distintos, bem como o fomento de práticas nocivas a própria existência destes.
O que deveria ser um Estado apartado de dogmas religiosos, com vistas à propiciação de todas as formas de credo, revela-se, desafortunadamente parcial, como muito bem colocam Vital e Lopes(2012), quando destacam que “do ponto de vista estritamente legal, o Brasil é um Estado laico desde a primeira Constituição republicana (1981) […] Contudo, no cotidiano, nos deparamos com fatos que colidem com esse princípio”.
6 CONSIDERAÇÕES FINAIS
Finalmente, deve-se salientar que a aludida tolerância que deveria ser a materialização deste principio de laicidade no Estado Brasileiro, é na verdade tão somente um mito, corriqueiramente citado, nos discursos que pretendem apenas respaldar o seu oposto, num insurgente e manifesto abuso de direito, de determinados grupos que eivados do poderio estatal, demandam a eliminação de tudo aquilo que anunciam como nocivos à coletividade, quando em verdade são apenas contrários a seus próprios interesses. Mesmo que isto implique em direto cerceamento da liberdade de crença de indivíduos que assim como eles, deveriam gozar dos direitos de manifestação esculpidos no artigo 5º, inciso VI da Constituição da República.
Deste modo, presenciamos um Estado onde um movimento de tolhimento e vedações cresce diariamente, ameaçando os próprios fundamentos da Democracia, acobertado por esta laicidade, ficta, que lhes é convenientemente útil ao passo em que permanecem silentes, os três poderes, Ministério Público e o povo em sua soberania, enquanto é selecionado, por este dito movimento, aquilo que se pode ou não professar como crença.
Informações Sobre o Autor
Phablo Freire
Advogado, Professor universitário, Bacharel em Direito. Especializando em Gestão de Cidades pela Faculdade de Ciências Aplicadas e Sociais de Petrolina (FACAPE), Especialista em Direito Constitucional Aplicado pela Damásio Educacional, Mestrando em Psicologia Social pelo Programa de Pós-Graduação em Psicologia da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF).