Lar conjugal: o abandono e o direito a usucapião especial

Resumo: Este artigo objetiva uma reflexão sobre a possibilidade de aplicação da lei 12.424 de 16 de junho de 2011 que veio a inserir a letra A no artigo 1.240 do código civil que vem através desta a autorizar uma nova possibilidade de usucapião, denominada na doutrina como uma usucapião especial.

Palavras-chaves: usucapião, abandono, culpa.

Abstract: This article aims to reflect on the possibility of applying the law of 12 424 June 16, 2011 he came to enter the letter A in Article 1240 of the Civil Code that comes through this the possibility to authorize a new prescription of real property, called the doctrine as one particular prescription.

Keywords: adverse possession, abandonment, guilt.

Sumário: 1. A lei e seus requisitos; 2. O que seria o abandono; 3. Culpa: A extinta presunção; 4. Qual o abandono que autoriza a aplicação da nova lei. Referências.

1. A lei e seus requisitos:

A lei 12.424 de 16 de junho de 2011 inseriu no sistema jurídico uma nova modalidade de aplicação da usucapião, hoje denominada pelos juristas de Usucapião Familiar ou Usucapião Especial Urbana por Abandono do Lar Conjugal. Essa nova inserção no sistema jurídico é uma resposta clara do legislador à sociedade no que diz respeito a proteção da família. Assim, destacamos o supra citado dispositivo legal:

Art. 1.240-A – Aquele que exercer por 02 (dois) anos ininterruptamente e sem oposição, posse direta, com exclusividade, sobre imóvel urbano de até 250 m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados) cuja propriedade divida com ex-cônjuge ou ex-companheiro que abandonou o lar, utilizando-o para sua moradia ou de sua família, adquirir-lhe-á o domínio integral, desde que não seja proprietário de outro imóvel urbano ou rural.

§ 1º – O direito previsto no caput não será reconhecido ao mesmo possuidor mais de uma vez.”

Da redação dada pela Lei 12.424/2011, importa destacar o que se trata de fato de requisitos da usucapião pró-moradia: a) possuir como sua, para sua moradia ou de sua família, área urbana de até 250m2 (duzentos e cinquenta metros quadrados), pelo prazo ininterrupto e sem oposição de cinco anos; b) não ser proprietário de outro imóvel urbano ou rural; c) – Esse direito não será reconhecido ao mesmo possuidor por mais de uma vez.

No que diz ao primeiro requisito, o legislador limita a possibilidade do conceito de enriquecimento sem causa e a limitação da aquisição de propriedades de alto valor imobiliário, mas o mesmo esquece que em um país de dimensões continentais e de extravagante desigualdade social, em cidades pequenas o valor imobiliário de um imóvel de 250 m² é muito menor do que outro imóvel de iguais dimensões em cidades como São Paulo, Rio de Janeiro, ou outras capitais, onde um imóvel com essas dimensões pode facilmente atingir valores acima de um milhão em moeda corrente nacional e em cidades interioranas e até mesmo em outras capitais o valor é bem menor.

Não obstante, destaca-se a previsão da usucapião no Estatuto das Cidade (Lei no. 10.257/2001), precisamente em seu artigo 9ª, que limita o mesmo a uma área não superior aos ditos 250m², uma usucapião especial urbana que está prevista no artigo 1.240 do CC/2002, tendo como finalidade precípua a efetivação do princípio da função social da propriedade, expresso no artigo 5º, inciso XXIII, da CRFB/1988.

No segundo requisito, o legislador deixa claro que o companheiro que pretende arguir tal dispositivo não pode ter outras propriedades, seja urbana ou rural, limitando dessa forma a possibilidade de enriquecimento sem causa e objetivando a aquisição do imóvel com finalidade clara de moradia e estabilidade da família.

O terceiro requisito é uma resposta clara de que uma vez reconhecido o direito a usucapião da parte que caberia ao companheiro que abandona o lar, o mesmo passa a ser de propriedade, por inteiro, do companheiro ou cônjuge que permanece no lar, sem a interferência externa do outro. Trata-se dessa forma, como institui a própria lição usucapienda, de uma aquisição de propriedade originária, passando a constar no respectivo livro de registro imobiliário.

2. O que seria o abandono?

A vivência do jurista leva-o a ter de estudar, interpretar, e aplicar a lei ao caso concreto, a fim de que se extraia da norma a “ratio legis” que fora elaborado pelo legislador, a essa atividade denominamos como hermenêutica jurídica. Assim, passa o hermeneuta a se debruçar no estudo de cada caso em concreto.

Pois bem, vejamos que a lei 12.424, de 16 de junho de 2011 trás um ponto muito importante a ser discutido e a ser definido: O que é de fato o abandono do lar pelo companheiro ou o cônjuge?.

Desta, vamos até o dicionário para que possamos, primeiramente, definir o que é de fato abandono. Para do dicionário Priberam da Língua Portuguesa, abandono significa: derivação regressiva de abandonar, s. m.1. Ato ou efeito de abandonar. 2. Desprezo em que jazem as pessoas ou as coisas. 3. Renúncia, cessão, desistência. Logo, o que seria de fato o abandono do lar conjugal? Quando esse de fato se caracterizaria?.

Como é cediço, as relações humanas podem não ser “ad eternum”, ou seja, podem não durar para sempre. Assim, diz o Soneta da Fidelidade, de Vinicius de Moraes (1960, p. 96):

“Soneto de Fidelidade

De tudo ao meu amor serei atento antes, e com tal zelo, e sempre, e tanto que mesmo em face do maior encanto dele se encante mais meu pensamento.

Quero vivê-lo em cada vão momento e em seu louvor hei de espalhar meu canto e rir meu riso e derramar meu pranto ao seu pesar ou seu contentamento e assim, quando mais tarde me procure quem sabe a morte, angústia de quem vive quem sabe a solidão, fim de quem ama eu possa me dizer do amor (que tive): Que não seja imortal, posto que é chama mas que seja infinito enquanto dure.”

Aceitando a ideia de que nada é infinito, podemos explanar que uma relação pode ter seu inicio, meio e fim, de forma sóbria ou de forma sombria.

Muito interessante é observar que nossos queridos entes mais velhos facilmente chegam as suas bodas de ouro, mas ao contrário acontece com o relacionamento de muitos jovens de hoje em dia, que facilmente chega ao término de suas relações, tendo em justifica a incessante busca pela felicidade, diferente do que acontecia nos tempos de nossos avós, quando o acesso às coisas era difícil e como dificilmente podiam trocar as coisas, procuravam com elas continuar e tentar conserta-las. Assim, evitavam o chamado desquite e tentavam se harmonizar em prol da família.

Desta forma, temos em mente que para que um lar seja abandonado, o cônjuge ou o companheiro que deixou o lar deve se furtar e ignorar a existência do outro e de sua prole, caso haja, deixando-os a míngua caracterizando assim um verdadeiro abandono material e moral. 

3. Culpa: A extinta presunção.

Hoje no direito brasileiro, no que diz respeito ao direito de família, não mais importa identificar quem foi o culpado pelo fim da relação afetiva e dissolução do lar conjugal para a aplicação da lei e consequentemente à perda da propriedade pelo suposto culpado.

Com a evolução da questão afetiva e da entidade familiar, é até comum alguém ter conhecimento de amigos ou familiares que acabam por encontrarem o caminho do divórcio ou até vivem um verdadeiro rebuliço em suas relações conjugais, quando há a questão dos interesses feridos dos companheiros na relação conjugal, passando a viver um verdadeiro intento à sua saúde emocional. São casais que vivem uma verdadeira guerra em seus lares, com agressões psicológicas e morais indo até às agressões físicas que por vezes levam ao fim deste relacionamento. Neste contexto, podemos afirmar que o lar conjugal virou um verdadeiro campo instável e que há a necessidade de um afastamento voluntário e fortuito de uma dos companheiros, o que por si só já preveniria ao companheiro que sai de casa a não ser turbado em sua propriedade. Mas, muito se tem banalizado o conceito de abandono de lar para inserir a norma ao caso concreto.

Assim, pergunta-se: O companheiro que sai de casa para não mais viver uma verdadeira rotina de pressão e agressão psicológica e moral, a fim de evitar um resultado de agressões físicas ou até temendo por sua integridade física e de vida pode sofre com o risco de perda de sua propriedade?.

Aquele que saiu de casa por não mais querer viver com o seu companheiro, pois encontrou um novo amor deve ser penalizado com a perda da propriedade?.

Aquele que saiu de casa por não querer mais viver com seu ex-companheiro deve ser penalizado com a perda da propriedade?.

Essas são perguntas que acabam por levar o operador do direito a buscar formas de compreender a “ratio legis” da nova norma, com a seguinte pergunta: Quando pode um abandono de lar autorizar a sua usucapião?

Na vivência do operador jurídico que se depara com diversas situações é comum observar que para aquele que fica na posse do lar conjugal tem sido muito eficiente ir a uma delegacia de policia e registrar um boletim de ocorrência policial e relatar o dito abandono de lar do companheiro ou cônjuge, para assim galgar futuramente a completa propriedade do bem imóvel, como forma de penalizar o outro.

De outra forma, muitos advogados orientam seus clientes que “abandonaram” o lar a procurar uma delegacia de policia para que procedam com o registro de Boletim de Ocorrência que justifique o dito “abandono” de lar, como forma de se prevenir contra as implicações da nova norma.

Nesse contexto, vale fazer uma breve reflexão sobre as possibilidades de aplicação da norma ao caso concreto. Deixemos a ideia de que o simples fato de o companheiro sair de casa é ratificador da aplicação da lei.

Para que possamos aplicar a nova usucapienda, temos que ter em mente que abandono significa total renúncia, cessão, desistência, desprezo pela família ora núcleo de sustento do lar conjugal. Logo, o ex-companheiro ou ex-cônjuge deve simplesmente se furtar de vez, não deixando possibilidades de contato ou de retorno para o lar, seria, nas palavras mais conhecidas, o ir comprar a cerveja ou o cigarro e nunca mais voltar.

É cediço que a perquirição da culpa pelo rompimento conjugal para a aplicação da culpa nos rompimentos conjugais e nas uniões afetivas é inócua, devendo a jurisprudência parar de aplicá-la, porque é incoerente com o sistema jurídico em vigor e com os anseios da sociedade, devendo ser extinta dos julgados de hoje.

4. Qual o abandono que autoriza a aplicação da nova lei:

Já que temos a ideia de que o abandono seria de fato deixar de “existir” para o outro e para a sua família conjugal: a) o que seria necessário para que a norma fosse de fato aplicada?. b) O que não permitiria com que o “novo e único possuidor do lar” pudesse alegar a usucapião especial familiar em juízo?.

Bem, vejamos: Para responder o primeiro questionamento, podemos listar algumas situações que podem ilustrar a possibilidade de aplicação do artigo 1.240-A, inserido pela Lei 12.424, de 16 de junho de 2011: O ex-companheiro ou ex-cônjuge que de forma injustificada deixa o lar conjugal e respectivamente sua a família à própria sorte, não provendo qualquer assistência o material ou moral, ou o que abandona a família e literalmente some sem deixar notícias. Lembrando sempre que para que se possa evidenciar tal abandono será sempre necessário que se apresente provas que vão além de um simples registro de um boletim de ocorrência policial de abandono de lar.

Visto o que autorizaria a aplicação da nova usucapienda, podemos listar alguns dos motivos que não autorizam a aplicação da norma: O companheiro que viaja para assuntos de negócios ou estudos, mesmo que por tempo superior aos 02 (dois) anos que por si autorizariam a possibilidade do companheiro que exerce a mesma posse por esse período de forma ininterrupta. O companheiro que mesmo saindo do lar, ainda ajuda na assistência material e moral do lar conjugal, caso esse observados quando a saída do lar é um preparo para a ação de divórcio. Infelizmente, alguns operadores do direito, tentando fazer prevalecer os interesses do seu cliente, aquele que continua no lar, tenta induzir o Magistrado ao erro, quando leva aos fatos do pedido da usucapião especial o tempo de afastamento do lar, suprimindo por muitas vezes os fatos de assistência material e moral do cônjuge que se afastou do lar.

Não menos importante, devemos destacar que essa lei se aplica às todas as formas de família, seja ela a heterossexual ou a homossexual, podendo tanto um casal formado pelo homem e pela a mulher bem como ao casal formado pelos companheiros de mesmo sexo evocar o a aplicação do artigo 1.240-A.

Com base nisso, podemos concluir que a lei 12.424, de 16 de junho de 2011 ao acrescentar a alínea “a” no artigo 1.240 do Código Civil de 2002 dá uma resposta para uma situação que antes se perpetuava e que por muitas das vezes prejudicava a família abandonada, pois além de suportar a “fuga” do ex-companheiro ou do ex-cônjuge aquele que ficava no lar tinha de sozinho sustentar a prole que com ele era abandonada e se ver amarrado a casa sem possiblidade de usufruir de sua totalidade, já que sequer poderia vender o imóvel conjugal, haja vista os impedimentos legais.

 

Referências:
BRASIL. Código Civil de 2002. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2002/L10406.htm.  Acesso em 10 de outubro de 2012
BRASIL. Constituição Federal do Brasil de 1988. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicaocompilado.htm. Acesso em 10 de outubro de 2012
BRASIL. Lei n°. 10.257, de 10 de julho de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10257.htm. Acesso em 10 de outubro de 2012
BRASIL. Lei n°. 12.424, de 16 de julho de 2011. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2011/Lei/L12424.htm. Acesso em 10.10.2012
MORAES, Vinicius de.  "Antologia Poética". Rio de Janeiro: Editora do autor, pág. 96.

Informações Sobre o Autor

Anderson Maia Almeida

Bacharel em Direito pela Faculdade Belém – FABEL.


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