Laxismo Penal é a tendência a propor
solução absolutória, mesmo quando as evidências do processo apontem na direção
oposta, ou a aplicação de punição benevolente, desproporcionada à gravidade do
delito, às circunstâncias do fato e à periculosidade do infrator, tudo sob o
pretexto de que, vítima do esgarçamento do tecido
social ou de relações familiares deterioradas, o delinqüente se sujeita, quando
muito, à reprimenda simbólica, desconsiderando, absolutamente, o livre-arbítrio
na etiologia do fenômeno transgressivo.
A nova Lei de Drogas (Lei
11.343/2006), que entrou em vigor no dia 08.10.2006, trouxe profundas
modificações em relação às que a antecederam no trato do mesmo assunto.
Ressaltem-se duas. A primeira é a eliminação da pena de prisão para ao usuário/dependente,
ou seja, quem tem posse de droga para consumo pessoal (artigo 28, caput), bem como para aquele que, com o
mesmo propósito, semeia, cultiva ou colhe plantas destinadas à preparação de
pequena quantidade de substância ou produto capaz de causar dependência física
ou psíquica (artigo 28, § 1º). A segunda trata da distinção entre o chamado
traficante “profissional” e o eventual, tendo, este último, com a nova
legislação, direito subjetivo a uma sensível redução de pena (artigo 33, § 4º).
No contexto do artigo 28 do diploma
legal ora em comento, mister se faz distinguir, prontamente, o usuário do
dependente de drogas, com intuito de se descobrir qual medida alternativa será
mais adequada em cada caso concreto (advertência sobre os efeitos das drogas,
prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a
programa ou curso educativo).
É cediço que nem sempre o usuário
torna-se dependente. Aliás, em regra, o usuário de droga não se converte em um
dependente, da mesma maneira que não se confunde com o traficante ou com o
financiador do tráfico. Assim como nem todos que tomam um copo de uísque são
alcoólatras, também há quem use drogas sem ser dependente. A nova lei, contudo,
trata usuário e dependente praticamente da mesma forma, diferenciando-os,
somente, como mencionado, quanto à medida alternativa a ser adotada.
Ocorre, entretanto, que há uma
diferença abissal entre o usuário e o dependente. Enquanto os dependentes
apresentam necessidade física ou psíquica muito forte, quase invencível, de
consumir a droga, chegando a manifestar sintomas dolorosos decorrentes da
interrupção da ingestão da substância, os usuários, imensa maioria, a consomem
por opção, normalmente em momentos de lazer. Grosso modo, pode-se dizer que o
usuário mantém seu livre-arbítrio intacto com relação ao consumo da droga
enquanto o dependente não mais possui essa liberdade de escolha. Irrefutável o
fato de que quem alimenta o tráfico são dependentes e usuários pois, conforme vetusta lei de mercado, havendo procura haverá
oferta. Conseqüentemente, para diminuir o tráfico há que se diminuir o número
de dependentes e usuários de drogas. Daí a pergunta: será que o abrandamento da
pena de porte de droga para uso terá o condão de reduzir ou incrementar o
tráfico e todas as demais formas de criminalidade que o permeiam?
Como brilhantemente destacou o
Delegado Hebert Reis Mesquita, Chefe do Serviço de
Projetos Especiais da Divisão de Entorpecentes/CGPRE, em artigo veiculado na
edição de número VIII da revista Phoenix magazine, “se a preocupação do legislador era impedir
que o usuário vá para a cadeia, desnecessárias as
mudanças. Não há um só usuário preso pelo crime de porte para uso. Todos se
valem de benefícios legais como proposta de aplicação imediata da pena (Lei
9.099/95), suspensão condicional do processo (Lei 9.099/95), sursis (art. 77 do
Código Penal) e substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de
direito e/ou multa”.
A novel legislação pretende que o
porte de drogas para uso sequer passe pela polícia (sempre que possível) procurando
tratar usuários e dependentes como vítimas, não criminosos. Já efetuada a
diferenciação entre esses dois tipos de consumidores de drogas, surge novo
questionamento: serão os usuários – maioria esmagadora, vale sempre ressaltar –
vítimas? Ou será a Lei 11.343/06, nesse e em outros aspectos laxista?
O Laxismo
Penal é orientação doutrinária visceralmente em desacordo com os textos
clássicos e modernos sobre direitos fundamentais do ser humano. A Declaração
dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 1789, inserta na Constituição Francesa,
de 1795, proclamava, já no artigo primeiro, que “os direitos do homem em sociedade são a
liberdade, a igualdade, a segurança,
a propriedade”, acrescentando que “a segurança resulta do concurso de todos,
para assegurar os direitos de cada qual” (art. 4º). Já a Constituição
Francesa de 1791, nas Disposições Fundamentais, contidas em seu Título
Primeiro, consignava que “a
liberdade nada mais é do que o poder de fazer tudo o que não prejudica os
direitos alheios ou a segurança pública”. A Constituição da República
Federativa do Brasil garante “aos
brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade” (artigo 5º, caput).
Uma vez que o crime de tráfico de
drogas e todos os demais que estão a ele intimamente atrelados geram uma
notável insegurança para toda a sociedade e, sendo a segurança um dos direitos fundamentais preconizados em diferentes textos
legais desde o Iluminismo, suscitam-se novas questões: tendo o usuário
livre-arbítrio com relação ao consumo de drogas e, sabendo que o tráfico gera
imensos malefícios sociais, dentre os quais a insegurança, não estaria o
usuário, com seu comportamento comissivo, violando aberta e espontaneamente a
lei e colocando-se em estado de guerra contra a sociedade? São justas e
suficientes as medidas alternativas previstas pelo artigo 28 da Lei 11.343/06
no sentido de prevenir e intimidar a sociedade e o próprio agente, cujo
comportamento egoísta contribui para comprometer a segurança pública? Quem é a
vítima? O usuário de drogas, que tem condições de optar entre fazer ou não uso
da substância, ou a sociedade, cuja segurança fica a mercê da opção feita pelo
usuário?
Outro ponto onde o Laxismo Penal se faz presente na Lei 11.343/06 é no § 4º do
artigo 33, que garante ao traficante o direito subjetivo a uma redução de pena
de um sexto a dois terços, nos casos em que for primário, tenha bons
antecedentes e não se dedique às atividades criminosas nem integre organização
criminosa. O citado dispositivo parece ter sido idealizado pelo legislador com
o único intuito de encorajar os primários, de bons antecedentes, a ingressarem
na lucrativa atividade do tráfico de drogas – principalmente aqueles conhecidos
no jargão policial como “mulas”, elementos, normalmente sem passagens policiais
anteriores, que se aventuram realizando o transporte da droga –
assegurando-lhes uma considerável redução de pena, no caso, pouco provável –
pois é sabido que o número dos que conseguem escapar
é, infelizmente, muito superior – de serem flagrados cometendo o delito.
Diante disso, não resta outra alternativa
senão vaticinar, com consternação, o incremento do crime de tráfico de drogas
no Brasil, pois é impossível conter a vazão fechando-se algumas torneiras
enquanto outras são abertas.
Informações Sobre o Autor
Sérgio Luiz Queiroz Sampaio da Silveira
Delegado de Polícia Federal; Chefe da DRE/DRCOR/SR/DPF/AP