Legitimidade do Ibama para ajuizamento de ação civil pública em caso desmatamento na Amazônia Legal

Resumo: O presente artigo visa a demonstrar a viabilidade do ajuizamento de ação civil pública em busca da responsabilização civil em caso de desmatamento da Amazônia Legal, sobretudo em razão da exploração pecuária predatória. A questão é de elevada importância para a integridade do patrimônio ambiental amazônico. Neste trabalho, buscou-se demonstrar que, a par da atribuição legal, detém a autarquia federal legitimidade de agir no caso específico. Para tanto, analisa-se algumas questões jurídicas mais controvertidas. A metodologia de trabalho baseou-se em pesquisa jurisprudencial e legal, além de bibliografia jurídica.

Palavras-chave: Amazônia. Legitimidade. IBAMA. Ação civil pública. Responsabilidade civil. Desmatamento.

Abstract: This article pretends to demonstrate the feasibility of filing a public civil action to responsibility someone in case of deforestation on “Amazonia Legal”, especially because of predatory exploitation husbandry. This issue is of high importance for the integrity of Amazonian heritage. In this study, we attempted to demonstrate that, in addition to the legal general possibility, the federal agency also has legitimacy to act in the particular case. To doing it, we analyze some controversial law issues. The methodology was based on case law, legal research and legal literature.

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Keywords: Amazônia. Legitimacy. IBAMA. Public civil action. Civil resposibility. Deforestation.

Sumário: Introdução; 1. A legitimidade genérica do IBAMA para propositura de ação civil pública ambiental; 2. Desmatamento da Amazônia: a questão da configuração do interesse federal; a) Amazônia Legal: breve conceito; b) Competência licenciatória x fiscalizatória na Amazônia Legal; c) Inexistência de ofensa a bem da união; 3. Flexibilização da legitimidade na ação coletiva; 4. Conclusão; Referências bibliográficas.

INTRODUÇÃO

Nos últimos anos, tem-se assistido a um grande avanço do desmatamento na Amazônia Legal, sobretudo em razão da pecuária não sustentável.

Dados do Tribunal de Contas da União demonstram que a criação extensiva de gado, especialmente em grandes propriedades, é fator responsável por cerca de 80% do desmatamento da Floresta Amazônica[1]. Esse processo de exploração pecuária, fomentado pela intensa comercialização e exportação de carne bovina[2], gerou uma rede de explorações industriais e de frigoríficos que retroalimentam a exploração pecuária não sustentável.

Por outro lado, as inúmeras dificuldades estruturais, de aparelhamento e de pessoal resultam na inviabilidade de monitoramento e controle dessa exploração por parte dos órgãos e entidades públicas responsáveis, tornando desmensurada e por vezes impune a degradação ambiental provocada pelo negócio agropecuário. 

Nesse contexto é que se insere a premência de uma incisiva fiscalização ambiental, seguida da persecução de responsabilidade nas três esferas punitivas (administrativa, penal e civil), nos moldes apregoados pelo Art. 225, parágrafo 3º da Constituição da República, no fito de coibir o avanço dessa exploração não sustentável, punindo os infratores e, sobretudo, obrigando-os a recompor as áreas degradadas.

Sabendo-se que o IBAMA e autarquia ambiental cuja precípua finalidade reside no exercício do poder de policia ambiental[3], e certo ainda que a Lei nº 11.448/07 incluiu as entidades da Administração indireta no rol de legitimados à propositura da Ação Civil Pública, instrumento de singular relevância na proteção ao meio ambiente, tem-se por relevante o estudo da legitimidade do IBAMA para o ajuizamento de ACP em caso de desmatamento na Amazônia Legal, em busca da integridade do patrimônio ambiental amazônico.

1. A LEGITIMIDADE GENÉRICA DO IBAMA PARA PROPOSITURA DE AÇAO CIVIL PÚBLICA AMBIENTAL

Como se sabe, a Ação Civil Pública constitui primoroso instrumento de persecução de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados ao meio-ambiente, sendo certo que o art. 5°, IV da Lei 7.347, de 28 de agosto de 2007 prevê a legitimidade da União e das autarquias para propositura dessa modalidade de demanda judicial, verbis:

“Art. 1º Regem-se pelas disposições desta Lei, sem prejuízo da ação popular, as ações de responsabilidade por danos morais e patrimoniais causados: (Redação dada pela Lei nº 8.884, de 11.6.1994)    (Vide Lei nº 12.529, de 2011)

 l – ao meio-ambiente”; (…)

rt. 5o  Têm legitimidade para propor a ação principal e a ação cautelar: (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).

I – o Ministério Público; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).

II – a Defensoria Pública; (Redação dada pela Lei nº 11.448, de 2007).

III – a União, os Estados, o Distrito Federal e os Municípios; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).

IV – a autarquia, empresa pública, fundação ou sociedade de economia mista; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).

V – a associação que, concomitantemente: (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).

a) esteja constituída há pelo menos 1 (um) ano nos termos da lei civil; (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007).

b) inclua, entre suas finalidades institucionais, a proteção ao meio ambiente, ao consumidor, à ordem econômica, à livre concorrência ou ao patrimônio artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico”. (Incluído pela Lei nº 11.448, de 2007). (destaque do expositor)

Ao contrário do que se passava em um tempo já um tanto quanto remoto, o interesse do IBAMA atualmente não se cinge à persecução da responsabilidade administrativa, que encontra assento no Art. 70 da lei 9.605/98 c/c as disposições do Decreto 6.514/08, os quais instituem regras para o processo administrativo, capitulam infrações a serem apuradas e penalidades a serem infligidas ao infrator ambiental.

O Poder Público não é mais mero perseguidor de interesses patrimoniais secundários, mas também – e sobretudo – do interesse público primário. Essa leitura vetusta do seu papel constitui, na atual fase do direito administrativo, notório retrocesso.

Sem embargo da notável relevância da esfera administrativa, é de ver-se que o Art. 225, §3° da Constituição Federal impõe ao Poder Público e à coletividade o dever de defender e preservar o meio ambiente para as presentes e futuras gerações, consignando, ainda, que “as condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente sujeitarão os infratores, pessoas físicas ou jurídicas, a sanções penais e administrativas, independentemente da obrigação de reparar os danos causados”.

Por sua vez, o Art. 14 da Lei 6.938/89, que dispõe sobre a Política Nacional do Meio Ambiente, regulamenta o dispositivo constitucional reforçando a cumulatividade de instancias punitivas em relação ao infrator ambiental, verbis:

“Art 14 – Sem prejuízo das penalidades definidas pela legislação federal, estadual e municipal, o não cumprimento das medidas necessárias à preservação ou correção dos inconvenientes e danos causados pela degradação da qualidade ambiental sujeitará os transgressores:

  I – à multa simples ou diária, nos valores correspondentes, no mínimo, a 10 (dez) e, no máximo, a 1.000 (mil) Obrigações Reajustáveis do Tesouro Nacional – ORTNs, agravada em casos de reincidência específica, conforme dispuser o regulamento, vedada a sua cobrança pela União se já tiver sido aplicada pelo Estado, Distrito Federal, Territórios ou pelos Municípios.

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II – à perda ou restrição de incentivos e benefícios fiscais concedidos pelo Poder Público;

III – à perda ou suspensão de participação em linhas de financiamento em estabelecimentos oficiais de crédito;

IV – à suspensão de sua atividade.

§ 1º – Sem obstar a aplicação das penalidades previstas neste artigo, é o poluidor obrigado, independentemente da existência de culpa, a indenizar ou reparar os danos causados ao meio ambiente e a terceiros, afetados por sua atividade. O Ministério Público da União e dos Estados terá legitimidade para propor ação de responsabilidade civil e criminal, por danos causados ao meio ambiente.”

Dessa forma, verifica-se que ao perpetrar um dano ambiental o infrator deverá ser responsabilizado, simultaneamente, nas esferas civil, penal e administrativa, com a viabilidade de incidência cumulativa desses sistemas de responsabilidade em relação a um mesmo fato danoso.

Registre-se que, de fato, uma análise atenta da responsabilidade ambiental leva à conclusão de que a reparação civil pelo dano tem caráter diverso da responsabilidade administrativa e penal. Com efeito, enquanto administrativamente e criminalmente o foco é a sanção pelo cometimento do ilícito, no âmbito civil, muito além disso, o foco é a reparação do dano ambiental. Nesse sentido, Paulo Bessa Antunes afirma que “as sanções penais e administrativas, parece-me, tem as características de um castigo que é imposto ao poluidor. Já a reparação do dano reveste-se de um caráter diverso, pois através dela busca-se uma recomposição daquilo que foi destruído, quando possível[4]”.

2. DESMATAMENTO DA AMAZÔNIA: A QUESTÃO DA CONFIGURAÇÃO DO INTERESSE FEDERAL.

A – Amazônia Legal: breve conceito.

A Floresta Amazônica é uma das maiores florestas tropicais do mundo. Está localizada na região norte

 da América do Sul e ocupa mais de 61% do território brasileiro. Rica em biodiversidade, possui uma fauna que corresponde a 80% das espécies no Brasil e uma flora que contem de 10 a 20% das espécies vegetais do planeta terra. Ainda, sem contar com o fato de que os rios da Amazônia representam a maior reserva de água doce no mundo[5]. Pode-se afirmar que a Amazônia consiste no maior patrimônio ambiental do nosso país.

Em 1953, através da Lei 1.806, de 06.01.1953,(criação da SPVEA), foram incorporados à Amazônia Brasileira, o Estado do Maranhão (oeste do meridiano 44º), o Estado de Goiás (norte do paralelo 13º de latitude sul atualmente Estado de Tocantins) e Mato Grosso ( norte do paralelo 16º latitude Sul). Com esse dispositivo legal (Lei 1.806 de 06.01.1953) a Amazônia Brasileira passou a ser chamada de Amazônia Legal, em virtude da necessidade do governo de planejar e promover o desenvolvimento da região.

Em 1966, pela Lei 5.173 de 27.10.1966 (extinção da SPVEA e criação da SUDAM) o conceito de Amazônia Legal é reinventado novamente para fins de planejamento. Posteriormente, o artigo 45 da Lei complementar nº 31, de 11.10.1977, estendeu os seus limites, fazendo incluir o estado do Mato Grosso[6]. Já segundo o Art. 3º, I do Novo Código Florestal (Lei 12.651, de 25 de maio de 2012), “para os efeitos desta Lei, entende-se por: I – Amazônia Legal: os Estados do Acre, Pará, Amazonas, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e as regiões situadas ao norte do paralelo 13° S, dos Estados de Tocantins e Goiás, e ao oeste do meridiano de 44° W, do Estado do Maranhão”.

Com a Constituição de 1988, a Amazônia foi erigida ao status de patrimônio nacional, nos moldes do Art. 225, §4° da Carta – o que torna absolutamente claro a relevância desse ecossistema e a prioridade de sua proteção.

b. Competência licenciatória x fiscalizatoria na Amazônia Legal.

Uma primeira questão que se põe em foco na discussão quanto à legitimidade ativa do IBAMA para o ajuizamento de ações civis públicas ambientais por desmatamento na Amazônia diz respeito ao paralelismo entre o poder licenciatório e o fiscalizatório.

Antes do surgimento da novel Lei Complementar n. 140, de 08 de dezembro de 2011, as regras que definiam o exercício da competência licenciatória em âmbito federal eram definidas predominantemente pelo critério da preponderância do interesse, conforme interpretação conjugada do Art. 10, parágrafo 4º da Lei 6.938/81 c/c Art. 4º da Resolução o n. 237/97, verbis:

“Lei 6.938/81

“Art. 10 – A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis.   (Redação dada pela Lei nº 7.804, de 1989) 

§ 4º Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA o licenciamento previsto no caput deste artigo, no caso de atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional. (destaque do expositor)

Resoluçao CONAMA n. 237/97

Art. 4º – Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, órgão executor do SISNAMA, o licenciamento ambiental, a que se refere o artigo 10 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, de empreendimentos e atividades com significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, a saber:

I – localizadas ou desenvolvidas conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; no mar territorial; na plataforma continental; na zona econômica exclusiva; em terras indígenas ou em unidades de conservação do domínio da União.

II – localizadas ou desenvolvidas em dois ou mais Estados;

III – cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais do País ou de um ou mais Estados;

IV – destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN;

V- bases ou empreendimentos militares, quando couber, observada a legislação específica.

§ 1º – O IBAMA fará o licenciamento de que trata este artigo após considerar o exame técnico procedido pelos órgãos ambientais dos Estados e Municípios em que se localizar a atividade ou empreendimento, bem como, quando couber, o parecer dos demais órgãos competentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, envolvidos no procedimento de licenciamento.

§ 2º – O IBAMA, ressalvada sua competência supletiva, poderá delegar aos Estados o licenciamento de atividade com significativo impacto ambiental de âmbito regional, uniformizando, quando possível, as exigências. (destaque do expositor)”

Como se observa, no que tange à competência do IBAMA para o licenciamento ambiental, a par do critério da localização do empreendimento a ser licenciado, havia também os critérios da atividade a ser licenciada, supletivo e da dimensão do impacto ambiental, estando este ultimo, como se pode intuir, sujeito a uma avaliação casuística.

Entretanto, com o advento da LC n. 140/2011, que finalmente veio atender ao reclamo constitucional do Art. 23 parágrafo único da Carta da Republica pela organização das competências ambientais concorrentes entre os entes federados, restaram expressa e taxativamente definidas as atribuições da União Federal, verbis:

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“Art. 7o  São ações administrativas da União: (…)

XIV – promover o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades: 

a) localizados ou desenvolvidos conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; 

b) localizados ou desenvolvidos no mar territorial, na plataforma continental ou na zona econômica exclusiva; 

c) localizados ou desenvolvidos em terras indígenas; 

d) localizados ou desenvolvidos em unidades de conservação instituídas pela União, exceto em Áreas de Proteção Ambiental (APAs); 

e) localizados ou desenvolvidos em 2 (dois) ou mais Estados; 

f) de caráter militar, excetuando-se do licenciamento ambiental, nos termos de ato do Poder Executivo, aqueles previstos no preparo e emprego das Forças Armadas, conforme disposto na Lei Complementar no 97, de 9 de junho de 1999; 

g) destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnen); ou 

h) que atendam tipologia estabelecida por ato do Poder Executivo, a partir de proposição da Comissão Tripartite Nacional, assegurada a participação de um membro do Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), e considerados os critérios de porte, potencial poluidor e natureza da atividade ou empreendimento;” 

Afora essa legitimação ordinária, manteve a Lei Complementar a possibilidade de atuação supletiva, conforme prevista no seu Art. 14, e ainda uma inovadora ação administrativa cooperativa subsidiária a ser solicitada pelo ente competente, vejamos:

“Art. 14.  Os órgãos licenciadores devem observar os prazos estabelecidos para tramitação dos processos de licenciamento. (…)

§ 3o  O decurso dos prazos de licenciamento, sem a emissão da licença ambiental, não implica emissão tácita nem autoriza a prática de ato que dela dependa ou decorra, mas instaura a competência supletiva referida no art. 15.

Art. 15.  Os entes federativos devem atuar em caráter supletivo nas ações administrativas de licenciamento e na autorização ambiental, nas seguintes hipóteses: 

I – inexistindo órgão ambiental capacitado ou conselho de meio ambiente no Estado ou no Distrito Federal, a União deve desempenhar as ações administrativas estaduais ou distritais até a sua criação; 

Art. 16.  A ação administrativa subsidiária dos entes federativos dar-se-á por meio de apoio técnico, científico, administrativo ou financeiro, sem prejuízo de outras formas de cooperação. 

Parágrafo único.  A ação subsidiária deve ser solicitada pelo ente originariamente detentor da atribuição nos termos desta Lei Complementar”. 

Como se observa, a nova lei alterou o rol de competências licenciatórias da União Federal (leia-se IBAMA), suprimindo a atuação da autarquia nos empreendimentos cujo impacto ultrapasse as fronteiras dos estados e incluindo a possibilidade de uma cooperação subsidiária.

Diante disso, surge a duvida a respeito da própria legitimidade do IBAMA para autuação ambiental no caso presente, mormente considerando que, em princípio, não será mais a autarquia detentora da competência licenciatoria, por ausência de enquadramento em alguma das cerradas hipóteses legais. Sobreleva lembrar que não mais existe competência em caso de impacto ambiental de elevada magnitude – tal qual a pecuária não sustentável, que aflige o bioma amazônico como um todo. Porém, a duvida parte de um equivoco um tanto quanto comum: a confusão que e feita entre as competências licenciatoria e fiscalizatória.

No entanto, embora ambas tenham fundamento de validade no Art. 225 da Constituição Federal duas modalidades de poder de policia definitivamente não se confundem. Com efeito, enquanto o licenciamento ambiental tem um caráter de policiamento prévio, associado aos princípios da precaução/prevenção, e consistente em “procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso[7]”, a fiscalização representa policiamento de caráter ostensivo e repressivo, albergado pelo princípio da reparação integral estampado no Art. 225, §3° da Constituição Federal.

No mesmo sentido, adverte Curt TRENNEPOHL:

“O fato de um empreendimento ou atividade estar em processo de licenciamento num determinado órgão ambiental não afasta o poder de polícia dos demais. Assim, caso se configure que um órgão licenciador é inepto ou permanece inerte ou omisso, a qualquer tempo, outro pode exercer a fiscalização sobre a atividade ou obra (não sobre o órgão em questão), autuando e promovendo a apuração da infração através do processo administrativo próprio”[8].

Esse também sempre foi o entendimento majoritário na jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, como se extrai do seguinte ementário ilustrativo:

“(…) 3. O pacto federativo atribuiu competência aos quatro entes da federação para proteger o meio ambiente através da fiscalização. 4. A competência constitucional para fiscalizar é comum aos órgãos do meio ambiente das diversas esferas da federação, inclusive o art. 76 da Lei Federal n. 9.605/98 prevê a possibilidade de atuação concomitante dos integrantes do SISNAMA. 5. Atividade desenvolvida com risco de dano ambiental a bem da União pode ser fiscalizada pelo IBAMA, ainda que a competência para licenciar seja de outro ente federado”[9].

De modo semelhante, ja se posicionou o próprio Supremo Tribunal Federal:

“Em primeiro lugar, ressalto que a questão do licenciamento ambiental no Brasil está a merecer maior atenção de todos os entes federativos e de seus respectivos poderes, no sentido de uma melhor definição do quadro de suas atribuições na realização de um efetivo federalismo cooperativo e para que se produzam ganhos objetivos na concretização do direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado. (…)

É preciso destacar que não há dúvida de que existe uma fiscalização inerente ao exercício de licenciamento ambiental por parte do órgão competente para tanto. O que se espera, nesse sentido, é que o órgão competente para licenciar exerça amplo controle e fiscalização nos limites do processo administrativo de licenciamento ambiental, sem interferências de outros órgãos integrantes do SISNAMA, ressalvadas eventuais exceções previstas em lei. Entretanto, o artigo 23 da Constituição e a legislação federal como um todo apontam como dever de todos os entes integrantes do SISNAMA a fiscalização de descumprimento das normas ambientais e o impedimento de degradações ambientais indevidas, fornecendo-lhes instrumentos adequados para a prevenção e a repressão de eventuais infrações contra a ordem ambiental”[10].

Analisando a solução da questão alvitrada pela citada LC n° 140/2011, observa-se que, embora numa primeira leitura pareça tenha o Art. 17 insinuado que a competência fiscalizatória dos entes federados dependeriam da licenciatória, vem à lume o §3° do mesmo dispositivo desfazer o mal entendido, valendo conferir o seu teor: 

“Art. 17.  Compete ao órgão responsável pelo licenciamento ou autorização, conforme o caso, de um empreendimento ou atividade, lavrar auto de infração ambiental e instaurar processo administrativo para a apuração de infrações à legislação ambiental cometidas pelo empreendimento ou atividade licenciada ou autorizada. 

§ 1o  Qualquer pessoa legalmente identificada, ao constatar infração ambiental decorrente de empreendimento ou atividade utilizadores de recursos ambientais, efetiva ou potencialmente poluidores, pode dirigir representação ao órgão a que se refere ocaput, para efeito do exercício de seu poder de polícia. 

§ 2o  Nos casos de iminência ou ocorrência de degradação da qualidade ambiental, o ente federativo que tiver conhecimento do fato deverá determinar medidas para evitá-la, fazer cessá-la ou mitigá-la, comunicando imediatamente ao órgão competente para as providências cabíveis. 

§ 3o  O disposto no caput deste artigo não impede o exercício pelos entes federativos da atribuição comum de fiscalização da conformidade de empreendimentos e atividades efetiva ou potencialmente poluidores ou utilizadores de recursos naturais com a legislação ambiental em vigor, prevalecendo o auto de infração ambiental lavrado por órgão que detenha a atribuição de licenciamento ou autorização a que se refere o caput”. (destaques do expositor)

Como se observa, malgrado tenha o caput pretendido cerrar a atribuição dos entes aos federados à fiscalização dos empreendimentos por ele próprios licenciados, vem o seu parágrafo terceiro temperar a rigidez da cláusula autorizando a atribuição comum de fiscalização.

E nem poderia ser diferente visto que o Art. 70, § 3º da lei 9.605/98 é claro ao estipular que “a autoridade ambiental que tiver conhecimento de infração ambiental é obrigada a promover a sua apuração imediata, mediante processo administrativo próprio, sob pena de co-responsabilidade”, instituindo aí um dever genérico destinado a todos os órgãos ambientais, independente de qualquer questão licenciatória.

Sendo assim, parece possível se concluir que o IBAMA é detentor do poder de policia fiscalizatório na Amazônia Legal, independente de ter ou não a autarquia licenciado o empreendimento poluidor. Uma vez detentor do poder fiscalizatório, constitui seu poder-dever agir não apenas na esfera administrativa, mas também na civil, por intermédio da ação civil pública, no fito de coibir o desmatamento danoso na Amazônia – máxime em caso de efetiva autuação pela autarquia ambiental.

c – Inexistência de ofensa a bem da União.

Outra questão que gera alguma polemica consiste na (aparente) inexistência de ofensa aos bens da União, o que (supostamente) afastaria a legitimação da autarquia federal, nos moldes do Art. 109, I da Constituição Federal. 

A conclusão parece lastrear-se no disposto no Art. 109, IV da Carta, ao prescrever que “aos juízes federais compete processar e julgar os crimes políticos e as infrações penais praticadas em detrimento de bens, serviços ou interesse da União ou de suas entidades autárquicas ou empresas públicas, excluídas as contravenções e ressalvada a competência da Justiça Militar e da Justiça Eleitoral”.

No entanto, duas observações já se apresentam de plano: 1) não trata o dispositivo constitucional de matéria civil, mas penal; 2) também não trata o preceptivo de legitimidade processual, mas de competência, que com aquela não se confunde.

Quanto ao primeiro ponto, insta ponderar que o dispositivo constitucional que alberga a competência da Justiça federal, no caso, é o artigo 109, I, pois aqui, sim, a Carta tratou de competência civil, ao preceituar que “aos juízes federais compete processar e julgar as causas em que a União, entidade autárquica ou empresa pública federal forem interessadas na condição de autoras, rés, assistentes ou oponentes, exceto as de falência, as de acidentes de trabalho e as sujeitas à Justiça Eleitoral e à Justiça do Trabalho”. Ao que parece, há um erro de capitulação normativa.

Por outro lado, como se extrai do dispositivo colacionado, não é a competência que orienta a legitimidade processual, mas, ao reverso, a legitimidade que orienta a competência, pois uma vez provado o interesse jurídico da União ou das entidades federais, haverá competência federal. E, no caso ora tratado, como analisado no tópico anterior, a legitimação se extrai de uma competência administrativa, qual seja a fiscalizatória, concorrentemente deferida a ambos os entes federados, incluindo a União.

Mas não é só. Aprofundando um pouco a questão, ainda que não seja o foco desta exposição o estudo da seara criminal, tem-se que, muito embora a exploração pecuária devastadora dos recursos ambientais na Amazônia deveras ocorra comumente no interior das grandes propriedades privadas, chama a atenção o fato de que a Floresta Amazônica, bioma onde localizados os latifúndios, é considerada pela Constituição Federal como patrimônio nacional, na conformidade do Art. 225, §4° da Constituição da República, verbis

“Art. 225. Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao Poder Público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá- lo para as presentes e futuras gerações.(…)

§ 4º – A Floresta Amazônica brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira são patrimônio nacional, e sua utilização far-se-á, na forma da lei, dentro de condições que assegurem a preservação do meio ambiente, inclusive quanto ao uso dos recursos naturais.” (destaque do expositor)

Como se sabe, objetivando assegurar a efetividade do princípio-matriz de proteção ao meio ambiente, consagrado no art. 225 da Constituição Federal, o legislador prevê a instituição de espaços territoriais especialmente protegidos, denominados unidades de conservação ou áreas de preservação ambiental (APAs), nos moldes do art. 225, §1º, III da CF[11] e da Lei nº 9.985/2000, que criou o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza, a cargo do Poder Executivo da União, dos Estados e dos Municípios, mediante lei ou decreto.

Contudo nessa passagem do seu texto a própria Lei Fundamental assinala um regime jurídico especial de proteção ambiental a determinadas áreas dotadas de expressiva diversidade biológica, dentre eles a Floresta Amazônica, caracterizando-as como “patrimônio nacional”, evidenciando a prevalência dos interesses nacionais frente aos regionais/locais.

Mesmo diante dessa colocação, a jurisprudência do colendo STJ se divide, havendo registro de julgamento no sentido de que não haveria que se confundir patrimônio nacional com bem da União, dado que a locução indicaria apenas a proclamação da defesa dos interesses nacionais diante de eventuais ingerências estrangerias[12], como também no sentido diverso, segundo o qual o fato de o crime ter sido perpetrado no interior de área considerada patrimônio nacional atrairia a competência da Justiça Federal[13]. Já no âmbito da Suprema Corte, o julgado mais recente sobre o tema que se identificou em pesquisa jurisprudencial data de 2001, afirmando-se que o Art. 225, §4° da Constituição não torna a Mata Atlântica um bem da União, sendo que o interesse da União para que ocorra a competência da Justiça Federal prevista no artigo 109, IV, da Carta Magna tem de ser direto e específico[14].

Por sua vez, no âmbito das cortes regionais federais, tem prevalecido a segunda corrente, como se observa dos seguintes julgados ilustrativos:

 “PROCESSUAL CIVIL. AMBIENTAL. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. LEGITIMIDADE ATIVA DO MINISTÉRIO PÚBLICO FEDERAL PARA A DEFESA DO MEIO AMBIENTE. FLORESTA AMAZÔNICA. PATRIMÔNIO NACIONAL. INTERESSE DA UNIÃO. 1. O art. 225 da Constituição de 1988 erigiu o meio ambiente ecologicamente equilibrado a "bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida" – expressão que abrange a saúde, o bem estar e a segurança da população -, reconhecendo, desse modo, a sua natureza de bem difuso, de direito público subjetivo e, pois, exigível e exercitável em face do próprio Estado, a quem incumbe, assim como à coletividade, o dever de protegê-lo. 2. Dispôs o art. 23 da Constituição Federal de 1988 que "é competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios" a proteção das paisagens naturais notáveis, do meio ambiente e a preservação das florestas, da fauna e da flora. 3. A competência material comum disposta no art. 23 da Constituição Federal de 1988 permanece passível de ser exercida por todos os entes da federação, sem que isso signifique, no caso dos autos, a "usurpação da atribuição residual do Ministério Público Estadual". 4. Segundo o disposto no inciso III do art. 129 da Constituição Federal de 1988, são funções institucionais do Ministério Público, entre outras, a promoção da ação civil pública para a proteção do meio ambiente. 5. Considerando, então, que a Constituição Federal, no § 4º do art. 225 elevou a Floresta Amazônica ao status de patrimônio nacional, fica claro o interesse especial da União na sua proteção, o que implica dizer que o Ministério Público Federal, assim como os demais, possui interesse e legitimidade para o ajuizamento de ação civil pública que vise a defender o meio ambiente. 6. Apelação provida”. (TRF 1- AC 129820094013600. Relator: JUIZ FEDERAL ALEXANDRE JORGE FONTES LARANJEIRA (CONV.), SEXTA TURMA, e-DJF1 DATA:18/04/2011 PAGINA:54)

“AGRAVO DE INSTRUMENTO. PROCESSUAL CIVIL E ADMINISTRATIVO. AÇÃO CIVIL PÚBLICA. REPARAÇÃO DE DANO AMBIENTAL. ZONA COSTEIRA. MAR TERRITORIAL. INTERESSE JURÍDICO DO IBAMA. COMPETÊNCIA DA JUSTIÇA FEDERAL. 1. A discussão travada na Ação Civil Pública epigrafada refere-se à reparação de dano ambiental ocasionado pelo Demandado em virtude de construção de muro de contenção e edificação sobre costão rochoso situado no litoral sul fluminense, no Município de Angra dos Reis (Zona Costeira), e aterro sobre espelho d'água, sem os correspondentes licenciamentos ambientais, em local integrante da Área de Proteção Ambiental de Tamoios – unidade de conservação instituída pelo Estado do Rio de Janeiro. 2. O art. 225, §4,º da Constituição Federal assinala um regime jurídico especial de proteção ambiental a determinadas áreas dotadas de expressiva diversidade biológica, a saber: a Floresta Amazônica Brasileira, a Mata Atlântica, a Serra do Mar, o Pantanal Mato-Grossense e a Zona Costeira, caracterizando-as como "patrimônio nacional". A exegese desse preceito constitucional indica que os regionalismos não devem se sobrepor aos interesses ambientais nacionais. 3. Os incisos VI e VII do art. 23 da CF estabelecem a competência comum da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios para articularem políticas públicas ambientais e exercerem suas competências administrativas objetivando a proteção do meio ambiente, o combate à poluição e a preservação das florestas, da fauna e da flora. A respeito, vale mencionar a recepção pela nova ordem constitucional da Lei nº 6.938/81, que criou o Sistema Nacional do Meio Ambiente, marcado pela articulação e cooperação entre os órgãos ambientais atuantes em todas as esferas da Administração Pública, denotando a competência comum de todos os órgãos ambientais para o exercício do poder de polícia. 4. Na qualidade de órgão responsável pelo controle e fiscalização de atividades lesivas ao meio ambiente, detém o IBAMA competência para fiscalizar, restringir e condicionar atividades de particulares, visando à prevenção de danos ambientais e conservação dos recursos naturais, bem como impor sanções administrativas (art.2º da Lei nº 7.735/89). 5. A Lei nº 7.661/88, que instituiu o Plano Nacional de Gerenciamento Costeiro, com a finalidade de orientar a utilização racional dos recursos naturais da Zona Costeira do Brasil e a proteção do seu patrimônio natural, histórico, étnico e cultural, define a competência do poder federal (através do CONAMA) para intervir em assuntos ligados a Zona Costeira (art.5º). Esse diploma legal foi regulamentado pelo Decreto nº 5.300/2004, cujo art. 12 atribui ao IBAMA a competência para: (i) executar e acompanhar os programas de monitoramento, controle e ordenamento; (ii) conceder o licenciamento ambiental dos empreendimentos ou atividades de impacto ambiental de âmbito regional ou nacional incidentes na Zona Costeira, em observância às normas vigentes. 6. Afigura-se pertinente e legítimo o interesse do IBAMA em acompanhar o deslinde da ação coletiva atinente à recuperação ambiental da área em referência e, consequentemente, em integrar o feito, na qualidade de assistente litisconsorcial do Demandante Ministério Público Federal, a teor da legislação supracitada e das disposições contidas no art. 5º, IV, § 2º, da Lei nº 7.347/85. 7. Ademais, além da referida construção, houve a realização de aterro sobre espelho d'água adentrando sobre o mar territorial, ou seja, em área que integra o patrimônio da União por força do comando do art.20, inciso VI, da CF. 8. Sobressai o interesse jurídico da Autarquia Federal na presente demanda, atraindo a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito, a teor do art. 109, I da Constituição Federal. 9. Agravo de Instrumento provido”. (TRF2 – AG – AGRAVO DE INSTRUMENTO – 212148, QUINTA TURMA ESPECIALIZADA, E-DJF2R – Data:: 10/06/2013)

“CRIMES CONTRA A FLORA. MATA ATLÂNTICA. ÁREA DE PRESERVAÇÃO PERMANENTE. INTERESSE. UNIÃO. IBAMA. COMPETÊNCIA. JUSTIÇA FEDERAL. – Atribuída à Mata Atlântica, por norma constitucional, a condição de patrimônio nacional, torna-se prevalente o interesse nacional ou da União, que ultrapassa os limites estaduais e as dimensões regionais. (Art. 225 e § 4º , CRFB). – Decorrente da falta de permissão e/ou licença do IBAMA, a possível ofensa aos interesses dessa autarquia, na forma de delito contra área de preservação permanente, atrai a competência da Justiça Federal para processar e julgar o feito.” (Art. 39 e 51, Lei 9.605/98). (TRF 4 – RSE 200204010212306. Relator: AMIR JOSÉ FINOCCHIARO SARTI, TURMA ESPECIAL, DJ 06/11/2002 PÁGINA: 725)

Pode-se concluir que o entendimento jurisprudencial majoritário é no sentido da caracterização do interesse federal, em virtude da cláusula constitucional inserta no Art. 225, §4° da Constituição da República.

Ainda sobre a expressão, é curioso observar que segundo o disposto no inciso III do art. 129 da Constituição Federal, são funções institucionais do Ministério Público, entre outras, a promoção da ação civil pública para a proteção do meio ambiente sendo que o Art. 5°, III, “a” bem como Art. 37, II da LC n° 75/2003, que dispõem sobre o Ministério Público da União, aduzem ser função institucional do MPU a defesa do patrimônio nacional. Seria mera coincidência a utilização da mesma expressão? É possível (leia-se provável) que não; e se há interesse do Ministério Público da União, um órgão federal, não haveria razão para não se reconhecer o mesmo interesse ao IBAMA, autarquia federal.  

Sob outra perspectiva, ao que parece, a dominialidade não é decisiva na apuração da legitimidade processual. Com efeito, a questão deveria ser analisada pelo ângulo da competência fiscalizatória administrativa, independente da aferição do domínio. A esse respeito, inclusive, já se pronunciou o Superior Tribunal de Justiça no sentido de que “em matéria de Ação Civil Pública Ambiental, a dominialidade da área em que o dano ou o risco de dano se manifesta (mar, terreno da marinha ou unidade de conservação de propriedade da União, por ex.) é apenas um dos critérios definidores da legitimidade para agir do “Parquet federal”. Não é porque a degradação ambiental se deu em imóvel privado ou afeta ‘res communis omnium’ que se afasta, ‘ipso facto’, o interesse do MPF.[15]” 

De fato, mesmo no Art. 109, IV da Carta da República – que, como dito, não se aplica à persecução de responsabilidade civil por tratar de matéria criminal – associa-se o interesse não apenas caso reste afetado bens da União, mas também os seus serviços e interesses.

Por fim, impende ainda pontuar que a proteção da Amazônia legal contra os efeitos adversos causados pelo desmatamento é decorrência lógica dos compromissos assumidos pelo Brasil em vários tratados internacionais assinados pela República federativa brasileira, tais como a Conferência de Estocolmo, a Conferência das Nações Unidas Sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento – CNUMAD (Rio/1992 ou Eco/1992), a Convenção das Nações Unidas Sobre Mudança do Clima, dentre outros, o que torna evidente o interesse federal, a chamar inclusive a competência da Justiça Federal, nos moldes do Art. 109, II da Carta da República. 

3.FLEXIBILIZACAO DA LEGITIMIDADE NA AÇÃO COLETIVA

Como dito linhas acima, a Ação Civil Pública, constitui importante instrumento de tutela do meio ambiente, conforme prevê o Art. 129, III da Constituição Federal, assim como o Art. 1° da Lei 7.347/85, que a regulamenta.

Ao analisar o dispositivo legal suprareferido, que institui o rol de legitimados para propositura da ACP, incluindo as entidades da Administração Indireta, Paulo Bessa Antunes afirma que “o art. 5° é, provavelmente, aquele que representa a mais importante inovação contida na lei da ação civil pública. É aquele que rompe mais fortemente com a tradição individualista que informa o sistema processual brasileiro.[16]”  

De fato, é acertado a conclusão a que chegou ao autor. Porém, o vanguardismo da ação civil pública vai além: concebe-se a ACP hoje como instrumento inserido no microssistema processual coletivo, no qual também se inclui o Código de Defesa do Consumidor, a Lei de Ação Popular, dentre outros diplomas que se integram a apresentam principiologia comum, da qual se pode extrair, dentre outros, os princípios do “interesse no conhecimento do mérito do processo coletivo”, da “presunção de legitimidade ‘ad causam’ ativa pela afirmação do direito coletivo”.

Segundo esclarece Fredie Didier[17];

“O princípio do interesse no conhecimento do mérito do processo coletivo orienta a que se assegure que questões meramente formais não embacem a finalidade do processo, flexibilizando os requisitos de admissibilidade processual, para enfrentar o mérito do processo coletivo e legitimar sua função social.”

Ou seja, o microssistema do processo coletivo não comporta formalismos ou questiúnculas que obstem o desenvolvimento da demanda coletiva, alcançando-se o mérito e, assim, pacificando com justiça e transmitindo efetividade aos direitos fundamentais na perspectiva coletiva. Aliás, a atual fase instrumentalista do direito processual com um todo demanda que se tenha o processo como um meio a se alcançar a efetividade do direito material, não se admitindo que se o utilize como estorvo à concretização dos direitos constitucionais.   

Por outro lado, conforme adverte Hermes Zaneti, em razão do princípio da presunção de legitimidade “ad causam” ativa nas demandas coletivas, basta a afirmação do direito coletivo para que se presuma a legitimidade:

“Basta a afirmação do direito coletivo para que se presuma a legitimidade ad ‘causam’”. O poder Judiciário, ao aferir a legitimidade ativa do legitimado coletivo, não deve analisar a titularidade do direito ou interesse coletivo. (…) o interesse processual que importa conferir para assegurar as condições da ação não é a do co-legitimado (substituto processual), mas a do grupo de substituídos (pessoas indeterminadas, grupo, categoria ou classe de pessoas ligadas entre si ou com a parte contrária por uma relação jurídica-base, titulares de direitos individuais abstrata e genericamente considerados)”[18].

No caso de ACP visando a expungir a exploração agropecuária não sustentável na Amazônia Legal, urge priorizar a função social da demanda coletiva, em busca da efetividade do direito fundamental a um ambiente equilibrado e sadio para a presente e as futuras gerações, flexibilizando-se questões de admissibilidade processual de somenos relevância com a finalidade de máxima proteção do direito em comento. Outrossim, há que se entender que o relevante nas demandas coletivas não é o interesse processual do substituto processual, mas sim o da coletividade substituída.

Relevante constatar que mesmo que se adote a teoria da “representatividade adequada”, a partir da qual a questão da legitimidade deve ser filtrada pelo Judiciário, também se concluirá pela potencialidade do IBAMA, sobretudo no que toca à expertise, em garantir a adequada tutela do direito em exame. Sobre o tema, adverte Fredie Didier que “a exigência de representatividade adequada não pode tornar-se uma alternativa para sentenças processuais, vedando enfretamento da matéria de fundo.[19]” 

4. CONCLUSÃO.

Em face da exposição supra, pode-se concluir que o IBAMA é detentor de legitimidade processual para buscar a reparação de danos ao meio ambiente por intermédio do relevantíssimo instrumento da ação civil pública. 

Sem embargo de, na grande maioria dos casos, não apresentar a autarquia competência para o licenciamento ambiental de empreendimentos localizados no bioma amazônico, mormente em face das inovações da LC n° 140/2011, tem-se que o poder licenciatório não se confunde com o fiscalizatório, sendo que esse último continua amplamente deferido à autarquia ambiental federal.

Outrossim, o fato de o ilícito ambiental ter sido perpetrado em propriedade particular não afasta, de “per se”, o interesse federal na sua reparação civil, pois a persecução da responsabilidade civil encontra espeque no Art. 109, I da Constituição da República, segundo o qual basta a caracterização do interesse do ente federal em ocupar o pólo ativo da ação para que a competência seja da alçada da Justiça Federal. Por outro lado, malgrado não se deva tomar como fundamento em virtude de estar afeto à competência em matéria criminal, o próprio Art. 109, IV da Carta institui outras formas de caracterização do interesse federal, para além da questão do ilícito perpetrado contra bem de propriedade da União. 

Por ultimo, tem-se que a legitimidade ativa nas ações coletivas apresenta peculiaridades, orientando a moderna doutrina no sentido se evitar ao máximo as chamadas sentenças processuais, adentrando-se à matéria de fundo versada na ação coletiva.

Conclusivamente, a efetividade da clausula constitucional disposta no Art. 225 e §4° da Constituição da República, que orienta incisivamente para proteção da Floresta Amazônica, depende muito da soma de esforços de toda a Administração Pública, no que se inclui o poder judiciário e os aplicadores do direito em geral, no desiderato de coibir e reprimir a exploração devastadora dos recursos ambientais desse bioma. Nesse sentido, urge que, munidos de uma interpretação abrangente e constitucionalmente adequada do ordenamento átrio, se amplie ao máximo o leque de legitimados à propositura da ação civil publica ambiental.

 

Referências
ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental, 8ª Edição. Rio de Janeiro: 2005;
DIDIER JR., Fredie. Curso de Direito Processual Civil – processo coletivo , vol. 4 – Salvador: jus podvm, 2007;
TRENNEPOHL, Curt e TRENNEPOHL, Terence. Licenciamento Ambiental. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2008;
ZANETI JR, Hermes, GARCIA, Leonardo Medeiros. Direitos Difusos e Coletivos. 3ª Edição. Salvador: Jus Podvm, 2012, pp. 21-22
 
Notas:
[1] Dados obtidos junto ao TCU na TC – 019.720/2007-3.
[2] Estudos colhidos pelo Ministério Público Federal apontam que entre dezembro de 2003 e dezembro de 2006, 96% de todo o crescimento do rebanho bovino nacional se deu na Amazônia, o que equivale a 10 milhões de cabeças, totalizando 74 milhões, tornando o Brasil, desde 2004, o segundo produtor mundial de carne bovina. Nesse sentido, conferir a inicial de ação civil pública ambiental ajuizada pelo MPF no Pará, disponível em http://www.greenpeace.org.br/gado/acao_mpf.pdf, acesso em 29.12.2013.

[3] Conforme dispõe a Lei 7.735/89: “Art. 2o  É criado o Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, autarquia federal dotada de personalidade jurídica de direito público, autonomia administrativa e financeira, vinculada ao Ministério do Meio Ambiente, com a finalidade de: (Redação dada pela Lei nº 11.516, 2007) I – exercer o poder de polícia ambiental; (Incluído pela Lei nº 11.516, 2007)

[4] ANTUNES, Paulo de Bessa. Direito Ambiental, 8ª Edição. Rio de Janeiro: 2005, p. 207    

[5] Informações extraídas do site: http://floresta-amazonica.info/. Acesso em 29.11.2013

[6]Informações  disponíveis em http://www.sudam.gov.br/amazonia-legal. Acesso em 29.11.2013

[7] Art. 1°, I da Resolução CONAMA nº 237, de 19 de dezembro de 1997.

[8] TRENNEPOHL, Curt e TRENNEPOHL, Terence. Licenciamento Ambiental. 2. ed. rev. e atual. Rio de Janeiro: Impetus, 2008, p. 21.

[9] AgRg no REsp 711.405/PR, Rel. Ministro HUMBERTO MARTINS, SEGUNDATURMA, julgado em 28/04/2009.

[10] Supremo Tribunal Federal. STA 286. Despacho. Rel. Min Gilmar Mendes. Brasília: DJ 27/04/2010, p. 10.

[11] Art. 225, §1º, III: definir, em todas as unidades da Federação, espaços territoriais e seus componentes a serem especialmente protegidos, sendo a alteração e a supressão permitidas somente através de lei, vedada qualquer utilização que comprometa a integridade dos atributos que justifiquem sua proteção;

[12] STJ CC 99.294, DJ de 12.08.2009

[13] CC 80905 / RJ. Realator: Ministro OG FERNANDES, TERCEIRA SEÇÃO, DJe 24/06/2009.

[14] STF – RE 300244 / SC – SANTA CATARINA, Relator(a):  Min. MOREIRA ALVES, Primeira Turma, Julgamento:  20/11/2001 

[15] STJ, REsp 1057878/RS, Rel. Min Herman Benjamim, DJe 21/08/2009.

[16] ANTUNES, Paulo de Bessa. Op cit., g. 736

[17] DIDIER Jr., Fredie. Curso de Direito Processual Civil – processo coletivo , vol. 4 – Salvador: jus podvm, 2007, p. 122.

[18] ZANETI JR, Hermes, GARCIA, Leonardo Medeiros. Direitos Difusos e Coletivos. 3ª Edição. Salvador: Jus Podvm, 2012, pp. 21-22

[19] DIDIER Jr., Fredie. Op. cit., p. 209.


Informações Sobre o Autor

Samuel Mota de Aquino Paz

Procurador Federal, com atuação na Procuradoria Federal no Estado do Pará, núcleo Ambiental/Agrário/Indígena.
Pós-graduado em Direito Público pela Anhanguera/ UNIDERP


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