Legitimidade do ordenamento jurídico: entre Kelsen e Habermas

Resumo: O presente artigo discute os fundamentos da legitimidade do ordenamento jurídico, a partir do cotejo entre a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, e a Teoria Discursiva do Direito, de Jürgen Habermas. Para tanto, apresenta os conceitos centrais de cada teoria, e destaca os efeitos de cada uma na concepção de legitimidade. Ao final, são identificados pontos de similitude entre as teorias, apesar de comumente as mesmas serem tidas por antitéticas, demonstrando-se que a teoria de Habermas não representa uma inteira negação, mas antes uma complementação à de Kelsen.

Palavras-chave: Legitimidade. Ordenamento Jurídico. Teoria Pura do Direito. Kelsen. Validade. Efetividade. Teoria Discursiva do Direito. Habermas. Procedimento. Discurso. Diálogo. Consenso. Mundo da Vida. Democracia.

Résumée: Cet article décrit les principes de la légitimité du système juridique, à partir de la confrontation entre la Théorie Pure du Droit de Hans Kelsen et le Théorie Discursive du Droit de Jurgen Habermas. Il présente les concepts centraux de chaque théorie, et met en évidence les effets de chacune sur la notion de légitimité. En fin de compte, il identifie les points de similitude entre les théories, bien qu’elles sont prises souvent tout simplement comme antithètiques. Ce qui est démontré, c’est que la théorie d'Habermas n'est pas un déni complet, mais plutôt un complément à celle de Kelsen.

Mots-clés: Légitimité. Système Juridique. Théorie Pure du Droit. Kelsen. Validité. Efficacité. Théorie du Discours du Droit. Habermas. Procédure. Discours. Dialogue. Consensus. Monde de la Vie. Démocratie.

Sumário: 1 Introdução. 2 Teoria Pura do Direito: contexto e delineamento. 3 Teoria Discursiva do Direito: conceitos centrais. 4 Legitimidade do Ordenamento Jurídico. 4.1 A legitimidade do ordenamento em Kelsen e em Habermas. 4.2 Diálogo entre as Teorias Pura e Discursiva do Direito acerca da legitimidade do ordenamento jurídico. 5 Conclusões. Referências.

1 INTRODUÇÃO

Não é de agora que a questão da legitimidade do direito posto vem despertando a atenção dos juristas. Ao longo de séculos, várias teorias vêm tentando resolvê-la, mas o debate ainda é prolífico. A pergunta permanece em aberto: afinal, o que legitima a submissão dos homens às normas jurídicas?

Nesse contexto, este artigo pretende, longe de ousar trazer uma resposta inovadora, contribuir com tal debate a partir do cotejo entre duas das mais destacadas concepções surgidas no século XX: a Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen, e a Teoria Discursiva do Direito, cunhada por Jürgen Habermas[1]. Cada uma delas, em seu respectivo momento histórico, trouxe luzes inéditas sobre a questão – apesar de, logicamente, a ela não se limitarem.

Com este propósito, o artigo se constituirá desta introdução mais quatro partes. A primeira será centrada na abordagem da Teoria Pura do Direito, envolvendo rápida passagem por seu contexto filosófico e pelo destaque dos seus pontos tidos por essenciais para o embasamento da digressão que adiante se fará. Na segunda, terá lugar a análise da Teoria Discursiva do Direito, envolvendo a exposição de seus conceitos fundamentais e desdobramentos relevantes para o entendimento do tema. Em seguida, ingressar-se-á no estudo das projeções das referidas teorias no campo do debate sobre a legitimidade do ordenamento jurídico, incluindo-se a busca da identificação de pontos de harmonia entre Kelsen e Habermas no que se refere ao estudo vertente. Por fim, virá a conclusão, com uma síntese dos principais temas versados ao longo do texto.

2 TEORIA PURA DO DIREITO: CONTEXTO E DELINEAMENTO

O ideário iluminista, surgido nos albores do século XVII e consolidado no XVIII, lançava suas bases sobre a razão, assim definida, na lição de Marilena Chauí:

“[…] logos, ratio, ou razão significam pensar e falar ordenadamente, com medida e proporção, com clareza e de modo compreensível para outros. […] A razão é uma maneira de organizar a realidade pela qual esta se torna compreensível. É, também, a confiança de que podemos ordenar e organizar as coisas porque são organizáveis, ordenáveis, compreensíveis nelas mesmas e por elas mesmas, isto é, as próprias coisas são racionais” (CHAUÍ, 1994, p. 59).

Dentro do contexto do iluminismo, a ciência, apoiada na razão, veio para substituir os anteriores referenciais teológicos cristãos, de modo que culminou por ser entronada como campo mais “valioso” do conhecimento humano. Nesse sentido:

“tudo passa a ser concebido como Ciência, que, para receber essa qualificação, exige a presença de um método […]. Esta ânsia epistemológica e gnosiológica também se estendeu às ditas ciências humanas. Assim, a economia, sob influência de Adam Smith, Malthus, David Ricardo e Karl Marx passa a ser considerada ciência. O mesmo se diga da sociologia, pós-estudos de Augusto Comte, Durkheim e Max Weber, sempre em busca do melhor modelo, da verdade, da objetividade, da certeza, da previsibilidade, do controle da situação, em suma, da segurança” (VIANNA, 2010, on line)

O direito não ficou alheio a essas tendências, e também passou a reivindicar o status científico. Kelsen foi um divisor de águas nesse movimento, o qual escancara seu projeto cientificista logo no prefácio à primeira edição de sua Teoria Pura do Direito:

“Logo desde o começo foi meu intento elevar a Jurisprudência, que – aberta ou veladamente – se esgotava quase por completo em raciocínios de política jurídica, à altura de uma genuína ciência, de uma ciência do espírito. Importava explicar, não as suas tendências endereçadas à formação do Direito, mas as suas tendências exclusivamente dirigidas ao conhecimento do Direito, e aproximar tanto quanto possível os seus resultados do ideal de toda a ciência: objetividade e exatidão” (KELSEN, 1998, p. VII).

O normativismo kelseniano foi o ponto culminante do positivismo jurídico, importação do positivismo filosófico para o mundo do direito. Sua pretensão era criar uma ciência jurídica, na qual a busca da objetividade e neutralidade, com ênfase na realidade observável e não na especulação filosófica, tinha por meta apartar o direito da moral e dos valores transcendentes (BARROSO, 2002, on line). Esclarecedora é a lição de Marília Muricy, a respeito:

“Enquanto os filósofos racionalistas do século XVIII procuravam extrair noções jurídicas concretas de uma verdade de razão ética, como expressão máxima e superior do direito, a Teoria Pura do Direito esvazia a norma fundamental, para ela principio regulador da juridicidade de qualquer sentido moral ou legitimação material, conferindo-lhe função de simples postulado do conhecimento, que atende à exigência de plenitude do sistema” (MURICY, 2002, p. 106).

Em sucintas linhas, pode-se resumir a concepção kelseniana de ordenamento jurídico como o escalonamento hierárquico de normas que encontram na norma fundamental a base pressuposta de sua validez global, e nos níveis derivados da Constituição, patamares sucessivos de asseguramento da validez das normas hierárquicas inferiores, até o ponto último das normas individuais, que se apresentam como fundamentação pura (MURICY, 2002, p. 108).

Com Kelsen se cristalizou, nos moldes esperados para o pensamento positivista, uma identificação entre validade e legitimidade. Destaquem-se suas próprias palavras:

“O princípio de que a norma de uma ordem jurídica é válida até a sua validade terminar por um modo determinado através desta mesma ordem jurídica, ou até ser substituída pela validade de uma outra norma desta ordem jurídica, é o princípio da legitimidade” (KELSEN, 1998, p. 146).

Tal ideação é coerente com a sua linha de pensamento, que visava purificar o direito de toda influência externa. Assim, ele pregava que a legitimidade seria determinada pelo próprio funcionamento do direito, ou seja, pelo próprio procedimento previsto no ordenamento[2]. “Na definição de Kelsen, o procedimento se encontra claramente no interior da ordem jurídica, pois ele deve necessariamente ser determinado por ela própria (CELLA, 2005, p. 10-11)”.

Dando seguimento ao raciocínio, concluía-se que a validade das normas jurídicas independia de seu conteúdo, desde que retirasse seu fundamento de validade de uma norma superior, obedecendo aos procedimentos previstos no sistema (CELLA, 2005, p. 4). Tal concepção foi posta em xeque quando oficiais nazistas, em suas defesas perante o Tribunal de Nuremberg, invocaram a teoria kelseniana, com o propósito de demonstrar que as normas discriminatórias a que deram efetividade haviam sido validamente postas no ordenamento jurídico alemão, e que, caso não as houvessem cumprido, aí sim é que haveria ilicitude capaz de condená-los (CELLA, 2005, p. 4).

Em face de tal desconforto, surgiram muitas críticas à concepção da Teoria Pura, focadas na problemática da relação entre a legitimidade e a legalidade. A esse respeito, é possível encontrar em Habermas uma tentativa de solução para tal questão.

3 TEORIA DISCURSIVA DO DIREITO: CONCEITOS CENTRAIS

Em sua obra Direito e Democracia: entre Faticidade e Validade, Habermas desenvolve a chamada Teoria Discursiva do Direito, no bojo da qual tem destaque a análise da legitimidade das normas jurídicas. Apoiando-se na teoria dos atos da fala de Austin e Searle, expõe que os proferimentos linguísticos são atos por meio dos quais um falante pretende chegar a um entendimento com outro falante, sobre algo no mundo (MIRANDA, 2009, p. 100).

A linguagem, assim, teria como característica um sentido performativo, ou seja, quando alguém diz algo, informa o que faz. E esse sentido só é captado por um ouvinte potencial que assume o enfoque de uma segunda pessoa, abandona a perspectiva do observador e adota a do participante. Isso significa entrar no mundo da vida compartilhado por uma comunidade linguística e querer entender-se com alguém sobre algo no mundo, para chegar a um acordo racionalmente motivado e construído intersubjetivamente (HABERMAS, 1990, p. 67).

Nessa teoria, Habermas concebe uma força normativa inerente à linguagem que, se usada de forma comunicativa, é um meio eficaz de integração social (MIRANDA, 2009, p. 101). Trata-se do agir comunicativo, assim entendido como a disposição dos particulares para, a partir do diálogo, se entender e alcançar um consenso sobre algo do mundo. A comunicação, para Habermas, é diálogo e o agir comunicativo é o instrumento para alcançá-lo (BAPTISTA, 2011, p. 14). Em suas próprias palavras:

“Tão logo, porém, as forças ilocucionárias das ações de fala assumem um papel coordenador na ação, a própria linguagem passa a ser explorada como fonte primária da integração social. É nisso que consiste o “agir comunicativo”. Neste caso, os atores, na qualidade de falantes e ouvintes, tentam negociar interpretações comuns da situação e harmonizar entre si os seus respectivos planos através de processos de entendimento, portanto pelo caminho de uma busca incondicionada de fins ilocucionários” (HABERMAS, 1997, p. 36).

A pressuposição de uma situação ideal de diálogo, ainda que não realizável empiricamente, está presente em toda interação mediada pelo discurso. Essa situação é caracterizada pela ausência de qualquer mutilação sistemática da comunicação, onde prevalece sempre a força do melhor argumento e se assegura igualdade de condições para os participantes do discurso, numa forma de vida marcada pelos ideais de liberdade e justiça (SAMPAIO, 2010, on line).

Mas nem sempre os indivíduos buscam o franco entendimento, mas visam, no diálogo, sobrepor-lhe seus interesses e objetivos pessoais. Neste caso, fala-se em agir estratégico, no qual a linguagem é utilizada como simples meio de transmissão de informações, e não como conformadora de atos (MIRANDA, 2009, p. 101). O falante, na teoria do agir estratégico, simula a intenção para perquirir se os meios de argumentação que utiliza são hábeis para produzir os efeitos efetivamente desejados, de sucesso, poder ou influência (BAPTISTA, 2011, p. 14). É uma ação meramente instrumental, numa racionalidade desconectada do mundo da vida.

O mundo da vida, no contexto habermasiano, pode ser entendido como um horizonte de convicções comuns e indubitáveis, um conhecimento familiar dos participantes da interação linguística e de conteúdo inquestionavelmente certo (MIRANDA, 2009, p. 104). O agir comunicativo estaria inserido no mundo da vida, “responsável pela absorção dos riscos e pela proteção da retaguarda de um consenso de fundo (HABERMAS, 1990, p. 86)”. Nos termos de Maressa Miranda:

“O mundo da vida constitui um pano de fundo do agir comunicativo, um horizonte para situações de fala e uma fonte de interpretações para os atores que agem comunicativamente. E sua função primordial é estabilizar essa comunicação improvável que, ao mesmo tempo que possibilita o consenso, é aberta à constante problematização e ao grande risco de dissenso” (MIRANDA, 2009, p. 105).

Por outro lado, Habermas não ignora a existência de interações comunicativas que o mantém como mero pano de fundo, mas neutralizado em sua função de coordenação da ação (MIRANDA, 2009, p. 107). É quando tem lugar o agir estratégico, normalmente utilizado no âmbito dos sistemas.

Para o autor alemão, sistemas são esferas de ação desconectadas do mundo da vida, no bojo do qual as ações não são orientadas para o entendimento, mas possuem o objetivo de alcançar um determinado fim, usando meios próprios[3]. Trata-se de âmbitos de ação deslinguistizados, nos quais a linguagem não é fonte de integração social, mas simples instrumento para transmissão de informações de forma objetiva (MIRANDA, 2009, p. 109).

“Este cambio en la coordinación de la acción, de la que se hacen cargo ahora medios de control en lugar del lenguaje, significa una desconexión de la interacción con respecto a los contextos del mundo de la vida. Medios como el dinero y el poder arrancan de vinculaciones cuya motivación es empírica; codifican un trato “racional con arreglo a fines” con masas de valor susceptibles de cálculo y posibilitan el ejercicio de una influencia estratégica generalizada sobre las decisiones de los otros participantes en la interacción en un movimiento de elusión y rodeo de los procesos de formación lingüística del consenso.” (HABERMAS, 1987, p. 258-259).

Em sua Teoria Discursiva, Habermas enxerga o Direito como uma solução para a estabilização e integração social[4], a partir da constatação de que, com a ampliação do risco de dissenso em sociedades cada vez mais complexas e diferenciadas, nas quais o mundo da vida, por si só, não é mais capaz de oferecer o denominador comum para viabilizar o agir comunicativo (MIRANDA, 2009, p. 110-113). Nesse sentido, expõe o próprio Habermas:

“É certo que os espaços para o risco do dissenso embutido em tomadas de posição em termos de sim/não em relação a pretensões de validade criticáveis crescem no decorrer da evolução social.

Quanto maior for a complexidade da sociedade e quanto mais se ampliar a perspectiva restringida etnocentricamente, tanto maior será a pluralização de formas de vida, as quais inibem as zonas de sobreposição ou de convergência de convicções que se encontram na base do mundo da vida […] Este esboço é suficiente para levantar o problema típico de sociedades modernas: como estabilizar, na perspectiva própria dos atores, a validade de uma ordem social, na qual ações comunicativas tornam-se autônomas e claramente distintas de interações estratégicas?” (HABERMAS, 1997, p. 44-45)

É o direito, pois, que oferecerá a resposta, por ser normatizado e apresentar-se com pretensão à fundamentação sistemática, à interpretação obrigatória e à imposição, não mais por uma questão formal, mas por ser uma ordem posta; sua normatividade deve ser resultante da sua observância e vivência por parte dos atores sociais – deve, pois, ser legítimo. Retomando as palavras de Miranda, “a legitimidade do direito não mais advém de sua submissão a uma moral superior ou a fundamentos éticos, e sim pelo fato de que os afetados pelas normas jurídicas se reconhecem como coautores dessas normas (MIRANDA, 2009, p. 113)”.

Habermas propõe, assim, a substituição do mundo da vida, como estabilizador social, pelo direito legitimamente construído a partir de uma política deliberativa que observe as garantias de participação dos afetados pelas normas na sua construção. Considerando que o mundo da vida não é mais suficiente para desincumbir-se desse papel harmonizador, o direito vem, no bojo de uma sociedade democrática e plural, “permitir o dissenso, a discordância, a problematização, e regular os riscos advindos desses desacordos” (MIRANDA, 2009, p. 115), o que constitui a conhecida tensão entre faticidade e validade. Para Habermas, “no sistema jurídico, o processo de legislação constitui, pois, o lugar propriamente dito da integração social (HABERMAS, 1997, p. 52)”.

Não que com essa ideação Habermas tenha aberto mão da noção de mundo da vida e de sistemas. Na verdade, ele ainda reconhece a sua importância, apesar da insuficiência para viabilizar os consensos necessários à vida em sociedade. Contudo, tanto o mundo da vida quanto os sistemas, para serem reconhecidos como fontes normativas, devem ser traduzidos pelo direito legítimo (MIRANDA, 2009, p. 116). Em sua função integradora, o direito regulamenta ainda os excessos da economia e do poder, instrumentalizando-se para ordenar o que os mecanismos de integração sistêmica já não conseguem mais controlar: a motivação e a disposição interna dos atores em contextos políticos, sociais e cotidianos (CELLA, 2010, p. 9). São os termos de Habermas:

“O direito funciona como uma espécie de transformador, o qual impede, em primeiro lugar, que a rede geral da comunicação, socialmente integradora, se rompa. Mensagens normativas só conseguem circular em toda a amplidão da sociedade através da linguagem do direito; sem a tradução para o código do direito, que é complexo, porém aberto tanto ao mundo da vida como ao sistema, estes não encontrariam eco nos universos de ação dirigidos por meios” (HABERMAS, 1997, p. 82).

 Mundo da vida e sistemas devem, pois, ter sua linguagem traduzida para o direito, de modo a poder prover temas e argumentos para problematização em discursos de justificação. Pelo devido processo legislativo, tais temas serão vertidos em direito legítimo.

4 A LEGITIMIDADE DO ORDENAMENTO JURÍDICO

Vistos os fundamentos teóricos dos autores considerados no recorte dado por este trabalho, é hora de afirmar que, em que pese a existência de marcas distintivas, é possível identificar diversos pontos de aproximação entre eles. Dessa forma, faz-se necessário analisar a concepção de legitimidade em Kelsen e em Habermas, para, ao fim, examinar os pontos de contato e de conflito entre as respectivas teorias.

4.1 A LEGITIMIDADE DO ORDENAMENTO EM KELSEN E EM HABERMAS

Como exposto, em Kelsen, a legitimidade fica equiparada à legalidade. Todas as normas que respeitam a relação de derivação e fundamentação, ou seja, que estão em consonância com as normas superiores, até a norma fundamental, seriam legítimas.

Por outro lado, o próprio Kelsen reconhece que essa ideação tem um limite, que é o da estabilidade do ordenamento. Isto porque, em casos de movimentos revolucionários, o fundamento de validade do ordenamento jurídico é substituído por um novo. Assim ele diz:

“Este princípio, no entanto, só é aplicável a uma ordem jurídica estadual com uma limitação muito importante: no caso de revolução, não encontra aplicação alguma. Uma revolução no sentido amplo da palavra, compreendendo também o golpe de Estado, é toda modificação ilegítima da Constituição, isto é, toda modificação da Constituição, ou a sua substituição por uma outra, não operadas segundo as determinações da mesma Constituição. […] Decisivo é o fato de a Constituição vigente ser modificada ou completamente substituída por uma nova Constituição através de processos não previstos pela Constituição até ali vigente” (KELSEN, 1998, p. 146).

Assim, quando se trata de alteração constitucional por um procedimento não previsto no próprio ordenamento, bem como constatada a sobrevivência de antigas normas que tinham fundamento de validade na norma fundamental anterior mesmo depois de sua derrocada, o que levaria à coexistência entre normas com fundamentos de validade distintos, seria impossível sustentar que tal novo ordenamento seria legítimo. Por tal razão, Kelsen recorre ao conceito de efetividade para justificar a legitimidade nessa situação limite. Diz ele que, em casos tais, “o princípio da legitimidade é limitado pelo princípio da efetividade.

Kelsen faz repousar, pois, o fundamento de legitimidade do direito sobre um poder efetivo, eficaz (CELLA, 2010, p. 16). Assim, para ele, “o governo efetivo, que, com base numa Constituição eficaz, estabelece normas gerais e individuais eficazes, é o governo legítimo do Estado (KELSEN, 1998, p. 146).

Já o pensamento de Habermas, a seu turno, parece contradizer veementemente a ideação de Kelsen. Em sua Teoria da Ação Comunicativa, Habermas defende que a legitimação ordinária do direito pelo procedimento de criação de suas normas, nos moldes positivistas, não resolve a questão, mas apenas a desloca:

“La legitimidad descansa entonces “en la fe en la legalidad de los órdenes estatuidos y del poder de mando de aquellos a los que esos órdenes facultan para el ejercicio del poder”. Pero si la legalidad no significa otra cosa que concordancia con un orden jurídico fácticamente vigente, y si éste, como derecho estatuido que a su vez es, no resulta accesible a una justificación de tipo práctico-moral, entonces no queda claro de dónde extrae la fe en la legalidad su fuerza legitimadora. La fe en la legalidad sólo puede crear legitimidad si se supone ya la legitimidad del orden jurídico que determina qué es legal. No hay manera de romper este círculo” (HABERMAS, 1987, p. 343). 

Nesse diapasão, Habermas questiona a legitimidade do próprio procedimento que legitimaria o ordenamento jurídico. Em seu entender:

“La fe en la legalidad de un procedimiento no puede engendrar legitimidad per se, esto es, por la sola virtud de la corrección procedimental del propio establecimiento positivo – lo cual es algo que incluso se sigue del análisis lógico de las expresiones “legalidad” y “legitimidad” (HABERMAS, 1987, p. 343).

Habermas busca um fundamento racional para a legitimidade do direito. E ele o encontra no resgate da discussão no seio da sociedade, quando a partir desta discussão são elaboradas as normas (SIQUEIRA, 2011, p. 2). Ainda segundo o autor, a legitimidade do direito se apoia em um arranjo comunicativo, pois cada membro da sociedade participa de um procedimento discursivo, o qual os coloca em condições de igualdade e lhes dá liberdade de argumentação.

As normas resultantes do processo de argumentação são legitimadas na medida em que intersubjetivamente formadas e reciprocamente obedecidas e respeitadas. Diante do que se propõe, em termos de processo para se alcançar a democracia, quem elabora as normas é, concomitantemente, autor e destinatário: eis o conceito de autolegislação (BAPTISTA, 2011, p. 7). Nesse sentido, a lei, expressão natural da ordem normativa, precisa ser uma identidade, um reconhecimento mimético daquilo que o social desenha como importante (SITO, 2009, p. 321).

Em face da norma jurídica, as pessoas podem adotar duas posturas: uma guiada pela ação estratégica, baseada no cálculo entre o descumprimento da norma com a punição correspondente e o cumprimento com a não sanção, para decidir de que forma agir; outra é cumpri-la por anuência ao dever, ou seja, porque acredita que o seu cumprimento é necessário, independente do receio de punição (SIQUEIRA, 2011, p. 2). Nesse diapasão, a ideia de Habermas é vincular o cidadão à lei, de modo que o mesmo a veja como fruto de sua autoria, e não como um instrumento oposto e exterior à sua vontade. Somente assim, o cumprimento da norma será visto como reafirmação da liberdade, e não como submissão a um poder opressivo (SIQUEIRA, 2011, p. 2).

E esse sentimento de autor para com a lei a que se submete deve ser ensejado por um processo discursivo, voltado para o entendimento, no bojo do agir comunicativo. E nesse ponto residiria a legitimidade do ordenamento jurídico.

Somente através da discussão, do diálogo entre os afetados, pode-se legitimar uma norma jurídica (SIQUEIRA, 2011, p. 3). As normas que compõem o ordenamento seriam, pois, fruto de um consenso obtido através da ação comunicativa entre indivíduos livres e em condições de igualdade.

Instaurar a democracia seria, então, institucionalizar o princípio do discurso. O discurso, na teoria de Habermas, é, em síntese, o que permite falante e ouvinte compartilharem o saber, com fins à integração social, à interação, ao entendimento mútuo sobre algo do mundo. Nas palavras de Bárbara Baptista:

“O princípio do discurso é abordado, na teoria de Habermas, fundamentalmente, quando se trata da auto-legislação, ou seja, da efetiva participação dos cidadãos, através do discurso e do consenso, no processo legislativo. A conseqüência inalienável da auto-legislação, segundo a teoria habermasiana, é, justamente, a legitimação do Direito, uma vez que, se produzido pelos próprios cidadãos, em consenso, de comum acordo, em condições justas e de efetiva igualdade, certamente, será por eles aceito e aplicado” (BAPTISTA, 2011, p. 15-16).

Contudo, deve haver limites para o que pode ser consensuado a partir desses diálogos. O discurso deve criar e ser baseado em regras que garantam a continuidade deste próprio discurso (SIQUEIRA, 2011, p. 5).

Para Habermas, a comunicação é a busca incessante de um entendimento entre as pessoas. Nesse sentido, a comunicação consiste no instrumento para a realização do consenso, ainda que este seja, com efeito, inatingível. O que se precisa preservar é, justamente, o dissenso, a heterogeneidade. Importa perceber, nesse contexto, que o consenso não é algo que nega a individualidade dos sujeitos, mas, ao revés, constitui-se num mecanismo capaz de proporcionar uma unidade da razão na multiciplicidade de vozes. O consenso não é um acontecimento estático, mas dinâmico, provisório e político (BAPTISTA, 2011, p. 17).

Considerando a crescente diversidade existente nas sociedades contemporâneas, a busca de um consenso possibilita, paradoxalmente, um maior dissenso, pelo que o direito nem sempre refletirá um acordo de todos, mas uma inclusão de identidades passíveis de serem alteradas em um momento posterior. É justamente a possibilidade de dissenso, de atitudes contrárias às expectativas normativas institucionalizadas, que faz ser considerado normal o comportamento divergente, que é previsto pelo próprio direito e razão de ser deste (TORRES, 2011, p. 23-24).

Dessa forma, cabe ao jurista contemporâneo estar sempre questionando o procedimento racional pelo qual se dá a fundamentação e justificação das normas. Esse procedimento deve permanecer sempre aberto a uma crítica racional por meio do discurso e, portanto, estar continuamente sendo reconstruído pelos seus participantes (CELLA, 2005, p. 19). O importante, frise-se, é assegurar as condições para o permanente debate.

Junto a isso, também são necessários direitos fundamentais que andem juntos com o princípio do discurso, para a formação de uma sociedade livre e democrática. Desse modo, só é possível se falar em uma sociedade democrática, se nela houverem sido consagradas liberdade de discurso e garantia de direitos fundamentais, que deverão ser entendidos como regras para proteger a minoria vencida e permitir a problematização, por esta mesma minoria, das normas postas. Ambos devem ser garantidos para assegurar o questionamento e a crítica fundamental para uma democracia (SIQUEIRA, 2011, p. 6).

4.2 DIÁLOGO ENTRE AS TEORIAS PURA E DISCURSIVA DO DIREITO ACERCA DA LEGITIMIDADE DO ORDENAMENTO JURÍDICO

Os adendos de Habermas à teoria de Kelsen oferecem, pois, uma resposta racional aos argumentos utilizados em defesa dos suprarreferidos oficiais alemães em Nuremberg[5]. De fato, de acordo com a Teoria Pura, a legalidade da ordem estabelecida a partir da ascensão ao poder do partido nazista na Alemanha seria tida por legítima, vez que fixada regularmente, de acordo com os procedimentos formais então previstos, as regras consagradoras das posturas antissemitas. Por sua vez, Habermas jamais reconheceria a validade dessa ordem, pois ainda que tenham sido observados os procedimentos legais pertinentes, as normas aprovadas culminaram por aleijar grande parte dos interessados da possibilidade do discurso, bem como da rediscussão, por eles, das normas então aprovadas.

Veja-se que Habermas, ao discordar veementemente da noção de legitimidade abrigada na Teoria Pura, na verdade não chega a contradizer inteiramente o seus fundamentos. Até porque o edifício construído por Kelsen está de tal forma assentado no pensamento jurídico contemporâneo, por sua qualidade e densidade, que implodi-lo não seria tarefa fácil. Em todo caso, hodiernamente é bastante difundido que a Teoria Pura padece de algumas insuficiências, de modo que ela deve ser superada, jamais destruída.

A Teoria Pura do Direito ainda hoje permanece válida como uma refinada lógica formal do direito, que ainda lastreia o pensamento jurídico ocidental. E Habermas, apesar de sua crítica nuclear ao esvaziamento moral e ético do fenômeno jurídico promovida por Kelsen, apropria-se de muitos de seus fundamentos.

É importante destacar que Habermas não se desfaz da ideia do procedimento enquanto mecanismo legitimador do ordenamento jurídico, pregado por Kelsen. Contudo, ele vai além por não, simplesmente, pressupor a legitimidade desse procedimento de elaboração de normas; ele traça o conteúdo ético necessário para que esse procedimento possa ser racionalmente legitimado. E a tônica dessa legitimação reside na ampla participação dos potencialmente afetados pelas deliberações.

Observe-se que Habermas dá um grande valor à legalidade, elemento essencial no pensamento kelseniano. Ele entende que a legalidade é necessária até mesmo para se buscar a legitimidade. É através dos princípios democráticos legais que vão se estabelecer as regras de consulta popular (direta ou indireta) para a busca do consenso sobre uma norma.

Mas o que ele pretende demonstrar é que o fato de uma norma ser legal, não necessariamente implica que ela seja legítima – e aqui reside o ponto de dissenso entre os autores. A legitimidade não brota espontaneamente da legalidade e sim de um processo democrático, que, por óbvio, deve ser pautado em normas (SIQUEIRA, 2010, p. 7-8), que produzirão leis, as quais deverão ser garantidas pelo princípio da legalidade. Habermas atribui ao domínio jurídico o espaço que Kelsen excluía; não o nega, pois, mas o completa.

Ademais, ao estabelecer o princípio da continuidade do discurso, Habermas prega devam tais cláusulas ser revestidas de garantias até mesmo contra a vontade da maioria, na forma de direitos fundamentais. Se Habermas pugna que a sociedade cunhe tais normas, revestidas da qualidade especial de não poderem ser suprimidas, para garantir a continuidade do discurso, é forçoso reconhecer que ele as identifica como dotadas de uma hierarquia em relação às demais regras que podem ser produzidas pelo procedimento originador das normas. Aqui também ele se abebera da noção da pirâmide normativa de Kelsen, pondo tais garantias no seu ápice, pois é hoje pacífico que os direitos fundamentais são consagrados na Constituição, norma maior do ordenamento jurídico, cujo fundamento repousa na norma fundamental.

5 CONCLUSÕES

Considerando tudo o que foi até aqui exposto, pode-se concluir que a ideia de legitimidade do ordenamento jurídico vem sendo objeto de diversas concepções ao longo do evolver histórico. Neste artigo, tomaram-se como parâmetros a concepção de legitimidade cunhada por Kelsen, em sua Teoria Pura do Direito, e a de Habermas, no bojo de sua Teoria Discursiva do Direito.

Viu-se que em Kelsen, numa visão coerente com sua concepção de direito destituído de preocupações morais ou políticas, a análise da legitimidade identificava-se com a investigação da validade das próprias normas, ou seja, seria legítima a norma que houvesse sido introduzida no ordenamento de acordo com o procedimento previsto nesse mesmo ordenamento. Entretanto, frisou-se que Kelsen, em situações limite de movimentos revolucionários (ao que ele dá o sentido amplo de qualquer modificação da norma fundamental em desacordo com os procedimentos previstos), admite que a legitimidade passe a referir-se à efetividade, assim entendida como a estabilização social desse novo padrão de legalidade.

Tal ideação sofreu severas críticas, quando oficiais nazistas, por ocasião do julgamento de Nuremberg, invocaram-na em sua defesa, pois todos os atos de segregação antissemitas foram praticados com base em normas jurídicas regularmente postas no sistema de acordo com o procedimento então previsto no ordenamento jurídico alemão. E, com apoio na teoria kelseniana, de fato era difícil contradizer racionalmente tal argumento.

Nesse contexto, Habermas vem propor uma nova visão de legitimidade para o direito, a partir de sua Teoria Discursiva, aqui analisada. Não basta, em seu entender, o respeito ao procedimento, posto que tal concepção apenas desloca o problema. Assim, procedimento legítimo seria aquele que permitisse a todos os potenciais interessados, dentro de uma situação ideal de diálogo, atingirem racionalmente um consenso.

A legitimidade seria garantida pela participação livre e isonômica de todos os cidadãos no diálogo, que precisaria ser protegido por normas que assegurassem a perpetuidade da possibilidade de discussão, a fim de evitar a aprovação, ainda que consensuada, de regras que excluíssem qualquer interessado desse procedimento. Tal garantia viria através da consagração do princípio do discurso e dos direitos fundamentais daí decorrentes.

Por fim, demonstrou-se que Habermas, apesar do grande impacto de suas inovações, não se afastou inteiramente de pontos fundamentais da Teoria Pura, de modo que é possível identificar pontos de diálogo entre as teorias. O destaque à legalidade, a hierarquização das normas e a supremacia da Constituição são, exemplificativamente, alguns desses pontos.

 

Referências
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Notas:
 
[1] Ressalte-se que aqui não se pretende de esgotar o pensamento dos referidos autores. Ao revés, seu corte consistirá na análise de pontos centrais de cada uma das teorias, de modo a, além de marcar suas distinções, identificar os eventuais pontos de contato e diálogo, a fim de fomentar uma melhor compreensão acerca do tema.

[2] É verdade que Kelsen reconhece que tal ideação somente é pertinente a ordens jurídicas estáveis, de modo que faz uma concessão à efetividade quanto ocorrem revoluções ou golpes de estado.

[3] Para ele, são sistemas a Economia e o Estado, que têm dinheiro e poder, respectivamente, como meios.

[4] Esclareça-se que tal assertiva representa uma evolução no pensamento do autor, pois na sua anterior teoria do agir comunicativo, de 1987, ele considerava que o direito exercia um papel negativo de colonizador do mundo da vida.

[5] V. seção 2, supra.


Informações Sobre o Autor

Lucas Hayne Dantas Barreto

Procurador Federal. Professor de Direito Administrativo na Faculdade Ruy Barbosa e na Fundação Escola Superior do Ministério Público do Estado da Bahia. Especialista em Direito do Estado pela Unyahna/JusPodivm. Mestrando em Direito Público pela Universidade Federal da Bahia UFBA. Membro do Instituto de Direito Administrativo da Bahia


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