Legitimidade passiva nas ações indenizatórias fundadas na responsabilidade extracontratual do estado

Resumo: Este artigo tem como objetivo refutar os argumentos de renomados doutrinadores acerca da possibilidade de o agente público ser demandado diretamente pelo particular no bojo de ação indenizatória fundada na responsabilidade civil extracontratual do Estado, bem como, sustentar a possibilidade de a Administração Pública, quando demandada nestas condições, trazer o servidor ao processo por meio de denunciação da lide.

Palavras-chave: Responsabilidade civil extracontratual. Teoria da dupla garantia. Denunciação da lide. Litisconsórcio passivo. Legitimidade passiva.

Abstract: This article aims to refute doctrinaires' renowned arguments about the possibility of the public agent be sued directly by the individual in the midst of compensation action based on the extra-contractual liability of the state, as well as sustain the possibility of public administration, when demanded these conditions, bring the server to process through denunciation of the dispute.

Keywords: Civil tort liability. Theory of double guarantee. Denunciation of the dispute. Passive joinder. passive legitimacy.

Sumário: Introdução. 1. Responsabilidade extracontratual do estado. 1.1 Responsabilidade objetiva: teoria do risco integral. 1.2 Responsabilidade civil do estado lastreada na teoria subjetiva. 1.3 Teoria do órgão e o princípio da impessoalidade: consagração da teoria da dupla garantia. 2. Da legitimidade passiva na ação indenizatória fundada na responsabilidade civil extracontratual do estado. 2.1 Da possibilidade de formação do litisconsórcio passivo ou ajuizamento da ação em face apenas do servidor público. 2.2 Da possibilidade de denunciação da lide. Conclusão. Referências.

INTRODUÇÃO

A responsabilidade civil extracontratual do Estado, prevista em norma constitucional (artigo 37, § 6º da CF/88) e infraconstitucional (art. 43, CC/02), impõe a Administração Pública o dever de reparar o dano causado ao particular por agente público no exercício da função ou em razão dela. Todavia, a doutrina e a jurisprudência pátria comportam certo dissenso acerca da legitimidade passiva nas ações indenizatórias fundadas na responsabilidade civil extracontratual do Estado.     

Conquanto alguns defendam a possibilidade de o servidor ser demandado direta e exclusivamente pela vítima do evento danoso a que deu causa, ou ainda, em litisconsórcio passivo com a Administração Pública, outros advogam a tese de que em razão da teoria da dupla garantia, o servidor poderia ser demandado, tão somente, pela Administração Pública, por meio de ação de regresso, e, consequentemente, a vítima do evento danoso deveria ingressar com ação judicial apenas em face da pessoa jurídica de direito público.    

Ainda no que atine a legitimidade passiva, existe controvérsia também no que tange a possibilidade de denunciação da lide do servidor causador do dano por parte da Administração Pública, quando esta for demanda pela vítima do evento danoso. 

Neste estudo, tentaremos demonstrar o desacerto da corrente ampliativa da legitimidade passiva, ou seja, daquela que possibilita à vítima o manejo da ação indenizatória em face do agente causador do dano, bem como, daquela que veda a possibilidade de denunciação da lide. 

1. RESPONSABILIDADE EXTRACONTRATUAL DO ESTADO

Uma das premissas basilares do Direito é a que impõe ao causador do dano o dever de indenizar a vítima. Esse instituto jurídico, denominado responsabilidade civil, foi erigido a status constitucional e reforçado pelas normas infraconstitucionais.   

Atualmente, a regra da responsabilização civil impõe-se não apenas aos particulares, mas também ao Estado, sob o epíteto de responsabilidade extracontratual. A Constituição Federal de 1988, por meio do §6º do artigo 37, consagrou a responsabilidade civil objetiva da Administração Pública calcada na teoria do risco administrativo.

Ao discorrer sobre a responsabilidade extracontratual do Estado, Di Pietro (2010, p. 643) assevera: 

“(…) corresponde à obrigação de reparar danos causados a terceiros em decorrência de comportamentos comissivos ou omissivos, materiais ou jurídicos, lícitos ou ilícitos, imputáveis aos agentes públicos.”   

Para conceituar responsabilidade objetiva, valer-nos-emos dos ensinamentos de Bandeira de Mello (2009, p. 995), vejamos:

“Responsabilidade objetiva é a obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento lícito ou ilícito que produziu uma lesão na esfera juridicamente protegida de outrem. Para configurá-la basta, pois, a mera relação causal entre o comportamento e o dano.”  

A simples leitura do conceito acima transcrito faz-nos concluir, corretamente, diga-se de passagem, que a responsabilidade objetiva dispensa a perquirição da culpa no evento danoso. Logo, tratando-se especificamente de responsabilidade civil objetiva do Estado, torna-se prescindível a apuração da culpa do agente público no evento danoso.

Conforme já registrado, a responsabilidade objetiva do Estado funda-se no risco administrativo definido por Carvalho Filho (2010, p. 597) da seguinte forma:

“No risco administrativo, não há responsabilidade civil genérica e indiscriminada: se houver participação total ou parcial do lesado para o dano, o Estado não será responsável no primeiro caso e, no segundo, terá atenuação no que concerne à sua obrigação de indenizar. Por conseguinte, a responsabilidade civil decorrente do risco administrativo encontra limites. ”

Destrinchando seu ensinamento, Carvalho Filho (2010, p. 607) continua:

“Se o lesado em nada contribuiu para o dano que lhe causou a conduta estatal, é apenas o Estado que deve ser civilmente responsável e obrigado a reparar o dano.   

Entretanto, pode ocorrer que o lesado tenha sido o único causador de seu próprio dano, ou que ao menos tenha contribuído de alguma forma para que o dano tivesse surgido. No primeiro caso, a hipótese é de autolesão, não tendo o Estado qualquer responsabilidade civil, eis que faltantes os pressupostos do fato administrativo e a relação de causalidade. O efeito danoso, em tal situação, deve ser atribuído exclusivamente, àquele que causou o dano a si mesmo.

Se, ao contrário, o lesado, juntamente com a conduta estatal, participou do resultado danoso, não seria justo que o Poder Público arcasse sozinho a reparação dos prejuízos. Nesse caso, a indenização devida pelo Estado deverá sofrer redução proporcional à extensão da conduta do lesado que também contribuiu para o resultado danoso”.     

Depreende-se das lições acima transcritas que a responsabilidade objetiva fundada no risco administrativo comporta excludentes e atenuante, notadamente, a culpa exclusiva da vítima, a culpa de terceiros, os danos causados por força maior e a culpa concorrente, esta última prevista no artigo 945 do Código Civil de 2002.

Considerando não ser o objetivo deste trabalho esmiuçar a responsabilidade civil, tampouco as suas excludentes, nos permitiremos citá-las sem, no entanto, conceituá-las.  

Em breve síntese, significa que os danos causados aos particulares em razão das atividades estatais prescindem da perquirição dos elementos subjetivos, dolo e culpa para ensejarem reparação civil, comportando, porém, em razão do risco administrativo, excludentes e atenuante.

1.1 RESPONSABILIDADE OBJETIVA: TEORIA DO RISCO INTEGRAL

Consoante asseverado no tópico anterior, o ordenamento jurídico pátrio consagrou como regra, a responsabilidade civil do Estado fundada no risco administrativo. Tendo, todavia, adotado como exceção a responsabilidade civil do Estado fundada no risco integral.

Conforme leciona Carvalho Santos (2010, p. 597), “[…] no risco integral a responsabilidade sequer depende do nexo causal e ocorre até mesmo quando a culpa é da própria vítima”.

Para conceituar a teoria do risco integral, citaremos a doutrina clara e concisa de Mazza (2013, p. 326), vejamos:

“A teoria do risco integral é uma variação radical da responsabilidade objetiva que sustenta ser devida a indenização sempre que o Estado causar prejuízo a particulares, sem qualquer excludente. Embora seja a visão mais favorável à vítima, o caráter absoluto dessa concepção produz injustiça, especialmente diante de casos em que o dano é produzido em decorrência de ação deliberada da própria vítima.”  

Mazza (2013) cita ainda as hipóteses excepcionais nas quais a reponsabilidade objetiva fundar-se-á no risco integral, quais sejam, acidentes de trabalho, indenização coberta pelo seguro obrigatório para automóveis (DPVAT), atentados terroristas em aeronaves e dano ambiental e dano nuclear. Ressaltamos que não há consenso na doutrina acerca da aplicação da teoria do risco integral as situações adrede citadas. 

1.2 RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO LASTREADA NA TEORIA SUBJETIVA

Nos tópicos anteriores expusemos que, em regra, a responsabilidade civil extracontratual do Estado é objetiva e possui como fundamento o risco administrativo admitindo-se excludentes e atenuante. Asseveramos ainda que, excepcionalmente, admite-se a responsabilização civil do Estado com base na teoria do risco integral.

Outra exceção à regra da responsabilidade civil objetiva do Estado com base no risco administrativo é a responsabilidade civil subjetiva. Apesar de atualmente ser aplicada em casos excepcionais, em tempos passados, a responsabilidade civil subjetiva do Estado era regra.

Bandeira de Mello (2009, p. 992) assim define a responsabilidade subjetiva:

“Responsabilidade subjetiva é a obrigação de indenizar que incumbe a alguém em razão de um procedimento contrário ao Direito – culposo ou doloso – consistente em causar um dano a outrem ou em deixar de impedi-lo quando obrigado a isto.”

A possibilidade de o Estado responder civilmente com base na teoria subjetiva é exposta por Carvalho Filho (2010, p. 613) da seguinte forma:                                                                          

“A consequência, dessa maneira, reside em que a responsabilidade civil do Estado, no caso de conduta omissiva, só se desenhará quando presentes estiverem os elementos que caracterizam a culpa. A culpa origina-se, na espécie, do descumprimento do dever legal, atribuído ao Poder Público, de impedir a consumação do dano. Resulta, por conseguinte, que, nas omissões estatais, a teoria da responsabilidade objetiva não tem perfeita aplicabilidade, como ocorre nas condutas comissivas.”  

Em síntese, segundo o autor, tratando-se de conduta omissiva do Estado, sua responsabilidade pelos danos causados será subjetiva, ou seja, dependerá da comprovação da sua culpa ou dolo.

1.3 TEORIA DO ÓRGÃO E O PRINCÍPIO DA IMPESSOALIDADE: CONSAGRAÇÃO DA TEORIA DA DUPLA GARANTIA

Em razão da teoria do órgão, criada por Otho Von Kiergue, os agentes públicos, no sentido lato sensu do conceito, atuam em nome do Estado, ou até mesmo, tem em sua atuação a personificação física do Estado.

O princípio da impessoalidade corrobora essa teoria, haja vista asseverar que a Administração Pública não tem “face”, em última análise, sendo representada por qualquer um que atue em seu nome exercendo atividades estatais.

Com base na norma emanada do artigo 37, §6º da CF/88, tendo o particular sofrido dano em razão da atuação de agente público, deverá demandar a responsável pela atuação deste, ou seja, a própria Administração Pública, seja pela via administrativa, seja pela via judicial, visando o ressarcimento em razão do dano sofrido, repita-se, sendo prescindível a análise do elemento dolo ou culpa, em regra, para o sucesso do seu pleito.

Por outro lado, em caso de condenação pecuniária, a Administração Pública deverá, ante o princípio da indisponibilidade do interesse público, demandar judicialmente o agente público causador do dano por meio de ação de regresso.

Diferentemente do que ocorre em relação à Administração Pública, cuja responsabilidade é objetiva, na ação de regresso a responsabilidade é subjetiva, sendo, portanto, imprescindível a presença do elemento subjetivo, dolo ou culpa, para que o agente público seja condenado a ressarcir o erário público.

A possibilidade de a vítima do evento demandar, exclusivamente, a Administração Pública, protegendo-a contra uma eventual insolvência da pessoa do servidor público, aliada a segurança concedida ao servidor de que este apenas será demandado pela Administração Pública por meio de ação de regresso, fora denominada pela doutrina e jurisprudência como teoria da dupla garantia. O STF, guardião da Constituição, reconhece a teoria da dupla garantia em reiteradas decisões, sendo entendimento pacífico na Corte Maior que o servidor apenas será responsabilizado por meio de ação de regresso.   

2. DA LEGITIMIDADE PASSIVA NA AÇÃO INDENIZATÓRIA FUNDADA NA RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL DO ESTADO

Poder-se-ia afirmar que o mens legis foi explicitado a contento no artigo 37 §6º da CF/88, pois o dispositivo constitucional é claro ao asseverar que o servidor, com base na responsabilidade subjetiva, apenas responderá por meio de ação de regresso manejada pela Administração Pública, e esta responderá perante o particular, vítima do evento danoso, com base na responsabilidade objetiva.

Todavia, ainda há controvérsia doutrinária e jurisprudencial sobre a possibilidade de denunciação à lide do agente público quando a administração for demandada, assim como sobre a possibilidade de formação de litisconsórcio passivo inicial entre o servidor causador do dano e a Administração Pública, e também sobre a possibilidade de a vítima demandar diretamente, e tão somente, o servidor, excluindo a Administração Pública do processo.

Nos próximos tópicos discorreremos acerca das questões inerentes a legitimidade passiva.

2.1 DA POSSIBILIDADE DE FORMAÇÃO DO LITISCONSÓRCIO PASSIVO OU AJUIZAMENTO DA AÇÃO EM FACE APENAS DO SERVIDOR PÚBLICO

Segundo Didier (2011, p. 325), “litisconsórcio é a reunião de duas ou mais pessoas assumindo, simultaneamente, a posição de autor ou de réu. O litisconsórcio poderá ser ativo, passivo ou misto, quando a pluralidade de pessoas se der na posição de autor, de réu ou em ambas, respectivamente.”

O artigo 113 do Código de Processo Civil prevê as hipóteses nas quais as partes poderão litigar conjuntamente no mesmo processo, ativa ou passivamente.

Atendo-nos a proposta do estudo, necessário se faz analisarmos a possibilidade de a vítima do evento danoso demandar judicialmente tão somente o agente causador do dano ou conjuntamente a Administração Pública e o agente causador do dano em litisconsórcio passivo.

Acerca do tema, Bandeira de Mello (2009), Di Pietro (2010), Carvalho Filho (2010) admitem tanto a possibilidade de formação do litisconsórcio passivo entre a Administração Pública e o agente causador do dano como o ajuizamento da ação indenizatória apenas em face do servidor público.

Com a devida vênia, não há como comungar deste entendimento, pois o texto constitucional (art. 37, § 6º CF/88) assevera expressamente que o agente responderá por meio de ação de regresso movida pela Administração Pública. 

Apesar de não ter negado ipsi literris a possibilidade de o agente público ser demandado diretamente ou conjuntamente com a Administração Pública na condição de litisconsortes passivos, o texto de lei é cabal ao asseverar a forma pela qual o agente público responderá.

Ademais, a solidariedade não se presume, decorre de lei ou de ato de vontade entre as partes (art. 265 CC/02), sendo assim, inexistindo lei que preveja, a responsabilidade solidária entre a Administração Pública e o agente público causador do dano nos casos de dano causado ao particular, inadmissível o litisconsórcio passivo entre estes.

Ainda no que tange ao tema, os autores supracitados sustentam que ao determinar que a ação deve ser intentada em face da Administração Pública, o dispositivo constitucional visa conceder solvibilidade a execução, porém, em nenhum momento tem o intuito de vedar a escolha de contra quem a vítima quer demandar, administração pública, agente público ou ambos, conjuntamente.

Mais uma vez aqui ousamos discordar, pois a teoria da dupla garantia assegura um verdadeiro direito subjetivo ao servidor público de apenas ser demandado por meio de ação de regresso movida pela Administração Pública. Nesta linha, não se trata de direito subjetivo da vítima de escolher contra quem quer demandar, mas de um direito subjetivo do servidor público de não ser demandado diretamente pela vítima.

Nessa mesma linha de intelecção, tem-se que a impossibilidade de a vítima escolher em face de quem irá demandar não fere seu direito de ação (art. 5º, XXXV, CF/88), tampouco o limita, apenas, porém, indica aquele que possui legitimidade para fazer frente a sua pretensão.

O ajuizamento da ação indenizatória diretamente em face do agente público causador do dano ou mesmo a formação do litisconsórcio passivo com a Administração Pública não se coaduna com a teoria do órgão. A conduta do agente é imputada à Administração Pública com base na teoria do órgão, conforme asseverado em tópicos anteriores. O agente age em nome do órgão que compõe. Nesse sentido, agindo em nome e com vistas à consecução dos fins do órgão que representa, não há fundamento para que seja demandado pessoalmente pelos danos que causar nesta condição.     

Outro argumento utilizado pelos autores é no sentido de que ao possibilitar o ajuizamento da ação indenizatória em face da Administração Pública a norma visava garantir a solvibilidade da execução, pois o agente causador do dano poderia não possuir condições financeiras de arcar com o montante da condenação.

No que tange ao particular, mister se faz tecer um contraponto, pois admitindo a premissa lançada no parágrafo anterior como verdadeira, ou seja, admitindo que ao possibilitar que a vítima do evento danoso ingressasse judicialmente em face da Administração Pública a norma tinha como objetivo apenas garantir a solvibilidade de uma eventual execução, forçoso seria concluir que o legislador aquiesceu em sobrepor o interesse privado ao interesse público, na medida em que garantiria a vítima do evento danoso a solvibilidade da execução e relegaria à Administração Púbica o risco do prejuízo financeiro advindo de uma execução frustrada na ação de regresso em face do servidor.

Notadamente, não foi isso, pois se assim fosse estar-se-ia a perpetrar uma inversão principiológica do regime jurídico administrativo, mais precisamente, no princípio da supremacia do interesse público sobre o privado. Logo, o argumento não se sustenta.

Valendo-se de outro fundamento, Bandeira de Mello (2009) vaticina que aguardar a ação de regresso por parte do Estado perpetuará a impunidade funcional, pois na maioria das vezes as pessoas jurídicas de direito público dificilmente moverão ação regressiva contra o servidor causador do dano.

Nota-se nesse argumento a mesma lógica de inversão principiológica enraizada no argumento anterior, pois um dos pilares do regime jurídico administrativo é o princípio da indisponibilidade do interesse público, portanto, tendo a Administração Pública sido condenada a pagar indenização ao particular, não há margem para discricionariedade, haja vista ter o dever de ingressar com ação regressiva em face do agente público causador do dano.  

Ressalte-se ainda, por oportuno, que havendo lesão ao erário, como ocorrerá caso a Administração Pública seja condenada em ação indenizatória, a ação regressiva em face do agente público é imprescritível, conforme dispõe o artigo 37, § 5º da CF/88.

Pode-se afirmar ainda, que se há uma sensação de impunidade por parte do agente público é em razão da morosidade do Poder Judiciário, que causa a eternização do processo, ofende, consequentemente, aos princípios da duração razoável do processo, da dignidade da pessoa humana e da efetividade. Diz-se isso porque se a tramitação do processo movido pela vítima em face da Administração Pública fosse mais célere, em breve lapso temporal também seria o agente público demandado por meio de ação de regresso.

Ademais, a Administração Pública possui outros meios de punir o agente público que praticou conduta lesiva a bens ou direitos dos particulares, a exemplo das punições previstas na Lei 8112/90.

Logo, se a impunidade é perpetrada, não se deve a impossibilidade de formação do litisconsórcio passivo ou de ajuizamento da demanda diretamente em face do servidor causador do dano, mas sim em razão da ineficiência, por excelência, da Administração Pública brasileira, inclusive do Poder Judiciário. Todavia, não é desvirtuando a lei que resolveremos esse problema.   

Com outros argumentos, BANDEIRA DE MELLO (2009, p. 1030) segue na defesa da possibilidade de formação do litisconsórcio passivo:

 “[…] seja porque depois de o Estado haver assentado dada posição na ação de responsabilidade fica impedido de mover a ação de regresso, seja porque, se o fizer, topará como o que havia previamente estabelecido e que agora milita contra si próprio e em prol do funcionamento público, convertendo-se em robusta defesa deste último, de tal sorte que o Poder Público no pleito anterior prepara de antemão sua derrota na lide sucessiva.”

Com todo o respeito que merece o autor, razão não lhe assiste. Os fatos são únicos, sendo variável o enquadramento jurídico dado a esses fatos. Admitir esse argumento como legítimo importaria em reconhecer que a Administração Pública alterará a verdade dos fatos em um dos dois processos.

O STF (RE 327.904 SP) tem posição segura quanto à consagração da teoria da dupla garantia, ou seja, sustenta a impossibilidade de formação do litisconsórcio passivo entre a Administração Pública e o agente causador do dano, assim como, repele a possibilidade de acionamento exclusivamente do agente.

No entendimento do STF, o artigo 37, §6º da CF/88 consagra uma dupla garantia, qual seja: a) em favor do Estado, que poderá recuperar o valor pago à vítima; b) em favor do agente público, no sentido de ele não poder ser acionado diretamente pela vítima para ressarcimento de prejuízo causado no exercício de função pública.

Não obstante o entendimento firmado pelo STF, não raramente o STJ vem acompanhando a doutrina majoritária e admitindo a possibilidade de litisconsórcio passivo e até mesmo de acionamento direto apenas do servidor público (Resp 1325862/PR).

Tratando-se de matéria constitucional, cujo o artigo 102 da CF/88 atribui ao Supremo Tribunal Federal a competência para proceder à interpretação da Constituição Federal, cabe-nos concluir que labora em equívoco o STJ ao conceder ao artigo 37, §6º da CF/88 interpretação diversa da concedida pelo STF.

Ainda nesse esteio, por tratar-se de questão constitucional, possivelmente a matéria chegará ao STF por meio de Recurso Extraordinário ou agravo destinado a destrancá-lo, sendo assim, seria razoável aplicar o entendimento do STF sobre a matéria evitando a eternização do processo e a insegurança jurídica.

Ademais, a aplicação do entendimento consolidado no STF sobre a matéria permitiria aos relatores aplicarem os recursos o quanto disposto no artigo 932 do CPC, caput, circunstância que, certamente, homenagearia os princípios da duração razoável do processo e economia dos atos processuais, sem, contudo, ofender os princípios do contraditório, da ampla defesa e do devido processo legal.

2.2 DA POSSIBILIDADE DE DENUNCIAÇÃO DA LIDE

Theodoro (2007, p. 143) assim conceitua a denunciação da lide:

“A denunciação da lide é medida obrigatória que leva a uma sentença sobre a responsabilidade do terceiro em face do denunciante, de par com a solução normal do litígio de início deduzido em juízo, entre autor e réu. Consiste em chamar a terceiro (denunciado), que mantém um vínculo de direito com a parte (denunciante), para vir responder pela garantia do negócio jurídico, caso, o denunciante, saia vencido no processo”.

A denunciação da lide estava prevista no artigo 70 do Código de Processo Civil de 1973 e está prevista no artigo 125 do Código de Processo Civil de 2015. O Código de Processo Civil estabelece ser obrigatória a hipótese de denunciação da lide daquele que estiver obrigado, por lei ou por contrato, a indenizar em ação regressiva o prejuízo do que perder a demanda.

O servidor está obrigado por lei a indenizar a Administração Pública em ação de regresso caso esta venha a ser condenada em ação indenizatória movida pelo particular, vítima do evento (art.37, §6º da CF/88).

Em atenção à dicção legal seria cabível a denunciação da lide promovida pela Administração Pública em face do servidor causador do dano quando aquela fosse demandada por particular, vítima do evento danoso.

Apesar da disposição constante no artigo supracitado no sentido de ser obrigatória a denunciação da lide nos casos por ele elencados, trata-se em verdade de faculdade, pois não sendo exercida, permite-se que o direito seja vindicado por meio de ação de regresso.

Dito isso, pode-se concluir também que sendo a denunciação a lide indeferida pelo juiz nenhum prejuízo haverá à Administração Pública, haja vista estar resguardada pela possibilidade, na verdade pelo dever, de manejar ação própria para satisfazer sua pretensão.

Pelo teor dos dispositivos legais que disciplinam a denunciação da lide, em cotejo com o artigo 37, §6º da CF/88, a única conclusão plausível, advinda de uma interpretação sistemática, seria pela admissão da denunciação a lide do servidor público por parte da Administração Pública quando esta fosse demandada pela vítima do evento danoso causado por aquele.

Também quanto ao tema persiste dissenso doutrinário e jurisprudencial, causando insegurança jurídica, a principal e mais gravosa consequência oriunda dos dissensos jurisprudenciais.

Sobre a possibilidade de a pessoa jurídica de direito público denunciar o servidor à lide, Bandeira de Mello (2009) e Carvalho Filho (2010) defendem o descabimento dessa via de intervenção de terceiro. Para os autores, aceitar esse tipo de intervenção traria prejuízos para o lesado, pois o retardamento natural do processo com esse tipo de conflito implicaria a procrastinação do deslinde do feito, retardando o reconhecimento do direito da vítima.

Já para Di Pietro (2010), a denunciação da lide seria cabível quando a responsabilidade da Administração Pública se fundasse na teoria subjetiva, e descabida quando se fundasse na teoria objetiva, pois nestes casos a inserção da perquirição da culpa no bojo do processo demandaria um maior lapso temporal para a resolução da lide, prejudicando a vítima.    

Antes de tudo, compete-nos destacar que o fundamento dos autores citados para rechaçar a possibilidade de denunciação a lide está alicerçado na procrastinação do processo ante a necessidade de comprovação da culpa do agente, dilação probatória inexigível na ação movida pela vítima em face da Administração Pública.

Segundo estes autores, essa ofensa ao princípio da economia processual e a celeridade processual seria causada pela intromissão de fundamento jurídico novo na demanda, qual seja, a perquirição do elemento subjetivo, o que inviabilizaria o cabimento da denunciação a lide.

Primeiramente, por mais que seja óbvio, é importante frisar que nos casos de denunciação da lide não competiria ao autor, vítima do evento, comprovar que o servidor agira dolosa ou culposamente, recaindo esse ônus sobre a Administração Pública, denunciante.

Com base nos fundamentos utilizados pelos autores pode-se concluir que se tratando o processo de responsabilização civil das pessoas jurídicas de direito público calcada na omissão estatal, quando a responsabilidade do ente é subjetiva, caberia então a denunciação a lide, porque em ambos os processos se perquiriria, imprescindivelmente, o elemento subjetivo (culpa ou dolo), não havendo introdução de fundamento novo ou novo objeto de prova.

E mais, mesmo tratando-se de responsabilidade objetiva, quando a Administração Pública alegar culpa exclusiva da vítima, obviamente, atraindo para si o ônus probatório acerca do referido fato, necessariamente deverá ser perquirido o elemento subjetivo durante a instrução processual, sendo, portanto, cabível a denunciação da lide.

Como se não bastasse, a impossibilidade de denunciação da lide sob o pálio da procrastinação do processo só teria legitimidade se a responsabilidade objetiva da Administração Pública houvesse sido criada para conceder celeridade ao recebimento da indenização por parte da vítima, porém, esse não é o fundamento da responsabilidade objetiva.

A teoria da responsabilidade objetiva foi construída com base no risco administrativo, explicado por Carvalho Filho (2010, p. 597) da seguinte forma:

“Passou-se a considerar que, por ser mais poderoso, o Estado teria que arcar com um risco natural decorrente de suas numerosas atividades: à maior quantidade de poderes haveria de corresponder um risco maior. Surge então a teoria do risco administrativo, como fundamento da responsabilidade objetiva do Estado.”

Claramente, a responsabilidade objetiva não fora estruturada com o escopo de conceder celeridade à tramitação dos feitos, mas, fora uma forma de transferir para o Estado, entenda-se, pessoas jurídicas de direito público, uma maior responsabilidade sob seus atos, pois caso venha a ser demandado judicialmente, sobre si recairá o ônus probatório.   

Outrossim, não há como se alegar, precipitadamente, que o deferimento da denunciação da lide e, consequentemente, a introdução deste fundamento jurídico novo, por si só, venha a causar o retardamento do feito, mormente porque não se sabe qual comportamento será adotado pelo denunciado.

Não vislumbramos razoabilidade no indeferimento da denunciação a lide sob o argumento de interferência da celeridade processual, pois se estaria repassando para a Administração Pública, por via inadequada, o ônus pela morosidade do Poder Judiciário.

Impedindo-se a Administração Pública de denunciar o servidor causando um desserviço a economia processual, qual seria o óbice para indeferir-se a utilização de outros institutos jurídicos sob o mesmo fundamento?

Ora, concedendo-se legitimidade a esse fundamento, de rechaçar institutos previstos em lei que pudessem, sob determinada ótica, retardar o andamento do processo, atentando contra a economia processual, abrir-se-ia margem para repelir outros institutos, também previstos em lei, utilizando-se dos mesmos fundamentos.

Em uma análise perfunctória, nota-se que, para os autores supracitados, não é a inclusão de fundamento jurídico novo que inviabiliza a denunciação a lide, mas, em verdade, a consequência desta inclusão, que seria a procrastinação da dilação probatória e, consequentemente, do feito.

Entretanto, não é desvirtuando os dispositivos legais que concederemos efetividade e celeridade aos feitos em trâmite no Poder Judiciário. Nesse sentido, se a lei estabelece que é obrigatória a denunciação a lide, caberá ao juiz deferi-la, sem que isso resulte em qualquer prejuízo a vítima.

CONCLUSÃO

Procuramos enfatizar, neste trabalho, que a superação da teoria da dupla garantia atenta contra a legislação pátria, e, inclusive, contra a teoria do órgão, pois se o agente age em nome do Estado, este deve ser responsabilizado pelos atos daquele, e, posteriormente, sendo condenado, o Estado deverá ingressar com ação de regresso em face do servidor público.  

Conclui-se também que não há fundamento jurídico legítimo que corrobore ser direito subjetivo da vítima escolher em face de quem irá demandar, mormente porque a legislação é clara ao determinar que o servidor responderá em ação de regresso sem estabelecer qualquer ressalva.

Do mesmo modo, querendo o Estado antecipar a tramitação da ação de regresso, caberá à denunciação da lide em face do servidor, haja vista existir previsão legal que embase a sua pretensão.

Por fim, tem-se que a morosidade do judiciário não é fundamento jurídico válido para suprimir a utilização de instituto jurídico previsto em lei, bem como, a responsabilidade objetiva não fora instituída para conceder celeridade a tramitação do processo.

 

Referências
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THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil. Vol. I. Rio de Janeiro: Ed. Forense, 2007.

Informações Sobre o Autor

Tiago Correia da Silva

Advogado. Especialista em Direito Processual Civil. Especialista em Direito Processual e Material do Trabalho. Juiz Leigo da Comarca de Araci Bahia. Professor de Direito Constitucional e Direito Administrativo do Curso Isoladas – Preparatório para Concursos


Equipe Âmbito Jurídico

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