Recentemente, entrou em vigor a Lei 11.705/08, chamada “Lei da tolerância zero no trânsito” que, entre outras providências, altera o Código de Trânsito Brasileiro, especialmente no tocante à repressão ao consumo de bebida alcoólica pelos condutores de veículos automotores.
Explorada pela mídia como uma lei severa, que poderá “acabar” com as mortes no trânsito em nosso País, há de se fazer uma análise legal e verificar se, realmente, a Lei é mais severa ou se, na verdade, veio “beneficiar” penalmente aqueles que conduzirem sob influência de álcool, forte na modificação havida no artigo 306 do mencionado diploma legal. Vejamos.
Primeiramente, alertamos que, no presente trabalho, analisaremos a nova redação somente sob o ponto de vista do álcool, deixando de lado o estudo acerca dos efeitos da Lei quanto aos que conduzem veículos automotores sob influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência.
Rezava a redação antiga do artigo 306 do CTB que “Conduzir veículo automotor, na via pública, sob a influência de álcool ou substância de efeitos análogos, expondo a dano potencial a incolumidade de outrem: Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.” (grifo meu).
Assim, poderiam ser condenados, como incursos no supra referido artigo, aqueles que conduzissem veículo automotor SOB A INFLUÊNCIA DE ÁLCOOL OU SUBSTÂNCIA DE EFEITOS ANÁLOGOS.
Daí a primeira consideração: na Lei antiga, a materialidade (existência) do delito poderia restar confirmada por qualquer dos meios disponíveis para tal (bafômetro, exame clínico, exame de sangue, prova testemunhal).
Portanto, bastaria alguma prova de que o condutor estava SOB A INFLUÊNCIA de álcool ou substância de efeitos análogos para que se provasse a materialidade tipo penal.
Com a nova redação (introduzida pela noviça Lei 11.705/08), o artigo 306 do CTB passou a ter a seguinte redação:
“Art. 306. Conduzir veículo automotor, na via pública, estando com concentração de álcool por litro de sangue igual ou superior a 6 (seis) decigramas, ou sob a influência de qualquer outra substância psicoativa que determine dependência: (Redação dada pela Lei nº 11.705, de 2008)
Penas – detenção, de seis meses a três anos, multa e suspensão ou proibição de se obter a permissão ou a habilitação para dirigir veículo automotor.
Parágrafo único. O Poder Executivo federal estipulará a equivalência entre distintos testes de alcoolemia, para efeito de caracterização do crime tipificado neste artigo. (Incluído pela Lei nº 11.705, de 2008)”
Dessa forma, diferentemente da redação antiga, agora é preciso, para confirmar a materialidade do crime, que seja comprovada a concentração de álcool por litro de sangue (igual ou superior a 6 –seis- decigramas).
Exsurge, então, a segunda consideração: como atestar a concentração de álcool por litro de sangue?
Somente pelo etilômetro (bafômetro) ou pelo exame de sangue. Não mais presta valor probante (para fins de materialidade do artigo 306 do CTB) o exame clínico ou a prova testemunhal.
Cumpre salientar que o parágrafo único serve apenas para indicar a equivalência entre os dados obtidos pelo bafômetro e pelo exame de sangue.
Não obstante, é sabido que o direito ao silêncio é prerrogativa constitucional atribuída aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País, independentemente de estarem sendo submetidos à prisão, respondendo a processos ou a qualquer sorte de acusação.
Tal prerrogativa se exterioriza pelo teor do disposto no artigo 5º, LXIII da nossa Carta Magna:
“LXIII – o preso será informado de seus direitos, entre os quais o de permanecer calado, sendo-lhe assegurada a assistência da família e de advogado”
A regra constitucional transcrita deixa entrever a intenção de garantir, entre os direitos fundamentais, a impossibilidade de aquele que está sendo preso ser obrigado a produzir provas contra si próprio.
Nessa senda, ninguém estaria obrigado (apesar de, humildemente, discordarmos em alguns casos[1]) a realizar o “teste do bafômetro” ou o exame de sangue e, considerando que estes seriam os únicos métodos capazes de comprovar a materialidade (concentração de álcool no sangue) do crime tipificado no “novo” artigo 306 do CTB, basta o condutor negar-se que estará livre da pena como incurso neste artigo. Lembra-se que de nada adiantará o exame clínico ou a prova testemunhal, já que estes métodos não atestam a requerida concentração contida no tipo penal.
Ademais, de acordo com o artigo 227 do mesmo diploma legal, nos casos em que o condutor não realizar algum dos exames que atestam a alcoolemia, sofrerá a sanção administrativa contida no artigo 165 do CTB, qual seja, “Penalidade – multa (cinco vezes) e suspensão do direito de dirigir por 12 (doze) meses”.
Ou seja, apenas será multado!
Portanto, mesmo que exista o poder pedagógico da multa, que por sinal é bem alta, quase R$1000,00, entendemos, pelo exposto, que as alterações produzidas pela Lei 11.705/08, ao invés de agravar o tratamento penal àqueles que conduzirem veículos automotores em estado de embriaguez, abrandaram tal tratamento, já que, agora, basta não realizar o teste do etilômetro ou o exame de sangue para que o Estado não possa usar o seu direito punitivo e buscar a condenação dos que dirigem bêbados.
E mais! Não se surpreendam no caso de começar a “chover” pedidos de retroatividade da nova lei, eis que, nos casos de crimes cometidos sob a égide da redação anterior do artigo 306, com a comprovação do estado de embriaguez sem a concentração de álcool no sangue (quando a materialidade for comprovada pelo exame clínico ou prova testemunha), o novo diploma é, claramente, mais benéfico.
Ao final, paira a dúvida acerca do real espírito da lei: se a intenção foi, realmente, “fechar o cerco” contra aqueles que dirigem embriagados, sendo dado um “tiro que saiu pela culatra”, ou, mais uma vez (a nova Lei do Júri está aí) foi aprovada uma lei que, “mascarada”, e contrariando o clamor social, beneficia quem comete crimes. Além, é claro, do caráter arrecadatório. E, neste caso, a nova lei deveria se chamar “Lei da arrecadação mil”, e não “Lei da tolerância zero”.
Informações Sobre o Autor
Flávio Augusto Oliveira Karam Jr
Bacharel em Direito pela FURG, Especialista em Ciências Criminais pela Universidade Anhanguera-Uniderp, Advogado.