Lei de improbidade: prescrição é inconstitucional

Súmula: Distinção de regimes de prescrição para réus da mesma ação, fere o princípio constitucional da isonomia.

No repertório de inconstitucionalidades exibido pela Lei nº. 8429/92, tem passado despercebida a regra atinente à prescrição (ou decadência).

Com efeito, estabelece o seu art. 23 e incisos I e II que as respectivas ações de improbidade administrativa podem ser propostas (I) até cinco anos após o termino do exercício do mandato, do cargo em comissão ou da função de confiança, e (II) dentro do prazo prescricional previsto em leis disciplinares puníveis com demissão, nos casos de exercício de cargo efetivo ou emprego.

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Verifica-se que cada inciso versa sobre distintos regimes de prescrição: um para os titulares de mandato político e servidores comissionados, e outro para os servidores efetivos (administração direta) ou empregados (administração indireta).

Assim, a dualidade de regimes adotada pelo art. 23 da Lei 8429/92 vulnera frontalmente uma das mais sagradas garantias constitucionais, a da igualdade de todos perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, nos termos do art. 5º, caput, da CF/88. Este dogma constitucional obriga sobretudo o legislador.

Para clarear a afirmada inconstitucionalidade, basta comparar o trato diferenciado que o referido dispositivo legal dispensa aos réus de ação de improbidade abrangidos pelos seus incisos I e II. Este confere explícito privilégio aos servidores titulares de cargo efetivo ou de emprego público, comparativamente aos agentes públicos abrangidos pelo primeiro inciso.

De fato. Quando o inciso I indica o término do mandato político ou do exercício do cargo de confiança como o início do prazo prescricional, em vez da data do ato questionado, agride também o princípio constitucional da segurança jurídica, positivado no art. 5º, caput, da CF/88.

Observe-se que as ações fundadas no inciso II, persecutórias dos mesmos tipos de ato de improbidade administrativa, têm o prazo prescricional idêntico ao da pena de demissão, estipulado pela respectiva legislação federal, estadual ou municipal. Eis uma espécie de delegação legislativa não autorizada pelo o § 4º do art. 37 da CF/88, matriz da Lei 8429/92.  Certamente, haverá diversidade na legislação de cada ente federado, sobre a matéria, e é possível que muitos adotem prazo inferior ao qüinqüenal. É o caso do Estado do Paraná cujo estatuto dos servidores (Lei 6174/74, art. 301, I, b), fixa em 4 (quatro) anos a prescrição da falta disciplinar sujeita à pena de demissão.

Cabe realçar, ainda, que esta delegação, de discutível validez, aprofunda a desigualdade do regime de prescrição, ao distinguir também os seus marcos iniciais. Eis alguns exemplos da resultante distorção: A Lei nº. 9.873, de 23/11/1999, que regula a prescrição da ação punitiva no âmbito da Administração Pública Federal, no art. 1º, fixa o início do referido prazo na data da prática do ato. Na hipótese de servidores estaduais, são vinte e sete leis disciplinares, e de municipais são cinco mil quinhentas e sessenta e uma leis da mesma natureza, naturalmente todas fiéis à tradição do direito brasileiro, iniciando a contagem prescricional da data do evento.

Há, pois, notória vantagem comparativa em prol do servidor efetivo. Frequentemente, encontram-se agente político e servidores públicos efetivos no pólo passivo de ação destinada a punir praticantes do mesmo ato tido como ímprobo. Inobstante, os servidores podem livrar-se do processo antes do co-responsável. Exemplifica-se com o crescente número de ações geradas por irregularidades atribuídas a servidores efetivos, membros de comissão de licitação, cujo ato tenha sido homologado por Prefeito ou Governador.

Ademais, a contagem do prazo, a partir da formalização do ato, adquiriu status de valor paradigmático pela unção do tempo em que o critério se perpetua na ordem jurídica dos povos civilizados. Inspirado neste marco cultural, o notável Clóvis Bevilaqua concebe a prescrição como postulado de ordem pública, porquanto a segurança dos direitos interessa à paz da sociedade. Textualmente: “A prescrição é uma regra de ordem, de harmonia e de paz, imposta pela necessidade da certeza das relações jurídicas”. (“Código Civil dos Estados Unidos do Brasil Comentado”, Livraria Francisco Alves, 1953, v. 1, p. 351 e 358).

De outro lado, no tocante à contagem do prazo, a prescrição padece do maltrato por parte das três leis de defesa do patrimônio público, a Lei 4767/65  (ação popular), a Lei 8347/85 (ação civil pública) e a Lei 8429/92 (ação de improbidade). A primeira, no art. 21, diz laconicamente: a ação prevista nesta lei prescreve em cinco anos. A segunda, é omissa. E a terceira, agride a CF/88.

Por isso, se faz necessário buscar subsídio na legislação vigente.

O art. 110, I, do Código Penal Brasileiro, vigente desde 1940, dispõe que a prescrição, antes de transitar em julgado a sentença final, começa a correr do dia da consumação do crime. Como a ação de improbidade reveste cunho sancionatório em tudo semelhante às da lei penal, exceto no capítulo da liberdade física, ele depõe em favor da contagem do prazo a correr do dia do ilícito. Em outros departamentos, a fórmula se repete. O art. 174 do Código Tributário Nacional faz iniciar a prescrição da ação para cobrá-lo da data em que foi constituído o crédito tributário. O vetusto Decreto-Lei 20.910 de 1932, no art. 1º, estabelece a prescrição das dívidas passivas dos Poderes Públicos em cinco anos contados da data do ato ou fato do qual se originaram. E assim por diante.

Não se pode desprezar a doutrina, sem voz discordante, acolitada pela uniforme jurisprudência, construídas em torno da contagem do prazo de prescrição da ação popular da data do ato ilegal ou lesivo.

De modo que, ao preferir o critério de contagem da prescrição da ação de improbidade, a partir do término do mandato, em detrimento da data ou do fato respectivos, e a discriminou em relação aos servidores efetivos, o art. 23, I, da Lei 8.429/92, contraiu os patenteados vícios de inconstitucionalidade material.

Cumpre realçar, ad cautelam, que, uma vez reposta no seu devido lugar, a prescrição atinge a totalidade da ação cujo objeto seja o de castigar o responsável por ato de improbidade administrativa. O esclarecimento é oportuno diante de certos julgados em que se exclui, da prescrição da ação, o quesito ressarcimento do dano, sob o pretexto de que este é imprescritível ou se submete à prescrição geral do Código Civil, como se a dita ação fosse divisível ao talante do julgador.

Com todas as vênias, o referido entendimento peca por não considerar a solar evidência de que a Lei 8.429/9 inclui o ressarcimento do dano como uma das penas cominadas ao autor e co-autor de ato de improbidade. Logo, a pena de ressarcimento do dano é condicionada ao prévio reconhecimento da respectiva improbidade. Sem esta, não pode haver pena ou sanção, porque nessa circunstância toda a ação será julgada improcedente. Destarte, não há o que ressarcir.

Sendo assim, a declaração de inconstitucionalidade, com redução do texto, deve manter o caput do art. 23 da Lei 8429/92, com a supressão parcial do inciso I, mantidas as expressões “até cinco anos”, e supressão total do inciso II, resultando na seguinte redação do dispositivo:

“Art. 23. As ações destinadas a levar a efeito as sanções previstas nesta lei podem ser propostas:

I – até cinco anos”.

Esta redação iguala-se à do art. 21 da Lei 4767/65 e sua interpretação será a mesma.

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Reginaldo Fanchin

 

O autor é membro do Instituto dos Advogados do Paraná.

 


 

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