Resumo: O trabalho trata do licenciamento ambiental em seus múltiplos aspectos, tais como seu conceito, sua natureza jurídica, o processo de concessão da licença, as espécies de licença, seus respectivos prazos de validade, e a competência para a concessão. O ponto nodal, todavia, corresponde à análise das consequências da superveniência de fatores que alteram o substrato fático que ensejou a concessão da licença em confronto com os direitos do empreendedor, mormente o direito à indenização. A pesquisa utilizou o método dedutivo, e foi bibliográfica e documental. Partiu, portanto, das normas jurídicas pertinentes à matéria, bem como das obras que versaram acerca do licenciamento ambiental.
Palavras-chave: licenciamento ambiental, direito adquirido, indenização.
1. INTRODUÇÃO
O licenciamento ambiental é um dos mais importantes instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente. Sua relevância decorre de sua eficácia, e esta está associada ao fato de o Poder Público e a sociedade poderem atuar antes da realização do empreendimento efetiva ou potencialmente poluidor ou que possa causar a degradação ambiental. É dizer, trata-se de ação prévia, de controle, que tem o condão de obstar o dano ambiental antes de sua ocorrência[1]. Daí a importância de se debruçar sobre todos os seus aspectos jurídicos.
Há vários pontos controvertidos no estudo do licenciamento ambiental. Sua natureza jurídica: trata-se de licença ou de autorização? A competência para a concessão da licença: as regas da Resolução n.º 237/1997, do CONAMA, em confronto com a autonomia dos entes federativos, presente nos artigos 1º e 18 da Constituição Federal de 1988. Os prazos de validade das licenças: são passíveis de redução? Podem ser estendidos? Todos eles serão enfrentados no contexto de análise do instituto.
Além desses pontos, a questão central do trabalho consiste no estudo das consequências das alterações dos parâmetros que levaram à concessão da licença. Há direito adquirido à manutenção da licença pelo prazo em que foi originalmente concedida? Na hipótese contrária, é cabível o pagamento de indenização ao empreendedor? Caso a resposta seja afirmativa, de que maneira deve ser realizado e quem é juridicamente responsável pela indenização?
2. LICENCIAMENTO AMBIENTAL
2.1 Conceito, natureza jurídica e características
O licenciamento ambiental é um procedimento administrativo, ou seja, uma série de atos sucessivos e coordenados que tendem a um resultado final e conclusivo.
A Resolução n.º 237, de 19 de dezembro de 1997, do Conselho Nacional do Meio Ambiente – CONAMA, define o licenciamento ambiental, em seu artigo 1º, inciso I, nos seguintes termos:
“Licenciamento Ambiental: procedimento administrativo pelo qual o órgão ambiental competente licencia a localização, instalação, ampliação e a operação de empreendimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, consideradas efetiva ou potencialmente poluidoras ou daquelas que, sob qualquer forma, possam causar degradação ambiental, considerando as disposições legais e regulamentares e as normas técnicas aplicáveis ao caso.”
Um primeiro aspecto que deve ser esclarecido sobre a licença ambiental é sua natureza jurídica. No direito administrativo, a licença corresponde ao ato unilateral, vinculado e definitivo por meio do qual a Administração Pública reconhece, em benefício do administrado, um direito que tem por conteúdo o exercício de uma atividade jurídica[2].
As características da licença administrativa – mormente a sua natureza de ato vinculado e definitivo – não são compatíveis com a licença ambiental. Vejamos os motivos:
A Lei da Política Nacional do Meio Ambiente – Lei n.º 6.938, de 31 de agosto de 1981, ao dispor sobre os instrumentos da política nacional do meio ambiente, estabelece em seu art. 9º, inciso IV:
“Art 9º – São instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente: (…)
IV – o licenciamento e a revisão de atividades efetiva ou potencialmente poluidoras;”
O dispositivo transcrito é claro ao afirmar que o licenciamento ambiental é passível de revisão, ou seja, pode ser revisto mesmo após a concessão da licença. Sobre o tema, assim se manifestou o Tribunal Regional Federal da 4ª Região:
“AGRAVO DE INSTRUMENTO. EMPREENDIMENTO. LICENÇA AMBIENTAL. O licenciamento ambiental está fundado no princípio da proteção, da precaução ou da cautela, basilar do direito ambiental, que veio estampado na Declaração do Rio, de 1992 (princípio 15). O direito a um meio ambiente sadio está positivado na Lei Maior. Mesmo que se admitisse a possibilidade de direito adquirido contra a Constituição, ter-se-ia, num confronto axiológico, a prevalência da defesa ambiental. Conquanto assegure ao seu titular uma certa estabilidade, a licença não pode ser tida como direito adquirido, já que é obrigatória a sua revisão, por força do que dispõe o inciso IV, do artigo 9º, da Lei nº 6.938. O mero risco de dano ao meio ambiente é suficiente para que sejam tomadas todas as medidas necessárias a evitar a sua concretização. Isso decorre tanto da importância que o meio ambiente adquiriu no ordenamento constitucional inaugurado com a Constituição de 1988 quanto da irreversibilidade e gravidade dos danos em questão, e envolve inclusive a paralisação de empreendimentos que, pela sua magnitude, possam implicar em significativo dano ambiental, ainda que este não esteja minuciosamente comprovado pelos órgãos protetivos.” TRF4 – Terceira Turma – Relator Luiz Carlos de Castro Lugon – AG 200704000040570 – AG – AGRAVO DE INSTRUMENTO – Fonte: D.E. 20/06/2007
Essa possibilidade de revisão é incompatível com a nota de definitividade da licença administrativa. Por essa razão, há consenso entre os estudiosos do tema que a licença ambiental tem natureza jurídica de autorização, instituto que pode ser conceituado da seguinte maneira:
“Autorização é o ato administrativo pelo qual a Administração Pública consente que o particular exerça atividade ou utilize bem público no seu próprio interesse. É ato discricionário e precário, características, portanto, idênticas às da permissão”.[3]
Sobre o tema, assim se manifestou o Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo:
“O exame dessa lei [Lei n.º 6.938/81] revela que a licença em tela tem natureza jurídica de autorização, tanto que o §1º de seu art. 10 fala em pedido de renovação de licença, indicando, assim, que se trata de autorização, pois, se fosse juridicamente licença, seria ato definitivo, sem necessidade de renovação.”[4]
O professor Luís Paulo Sirvinskas também entende que a licença ambiental carece de definitividade, mas chama atenção para a estabilidade que decorre do prazo de concessão[5]:
“A licença ambiental, como vimos, não tem caráter de definitividade, mas possui prazo preestabelecido. Tal fato é importante para que o órgão ambiental possa realizar a fiscalização periódica da empresa ou da atividade potencialmente poluidora. Por outro lado, é também importante dar segurança ao empresário que investiu grande quantidade de dinheiro na construção da empresa, não podendo ficar à mercê das mudanças políticas ou da vontade da Administração Pública, que poderia revogar ou cassar a licença a qualquer momento. Portanto, a licença ambiental não pode ser considerada mera autorização ou permissão nos termos do direito administrativo. Ela é espécie de ato administrativo negocial, concedido pela Administração Pública por prazo determinado, podendo ser revogado se a empresa ou a atividade estiver causando prejuízo à saúde humana, danos ao meio ambiente ou descumprir as determinações legais ou regulamentares”[6].
Édis Milaré não critica a utilização da terminologia licença. Sem negar as características próprias da licença ambiental – necessidade de ser renovada, com possibilidade de cancelamento ou suspensão – afirma trata-se de uma licença especial:
“Não há falar, portanto, em equívoco do legislador na utilização do vocábulo licença, já que disse exatamente o que querida (lex tantum dixit quam voluit). O equívoco está em se pretender identificar na licença ambiental, regida pelos princípios formadores do Direito do Ambiente, os mesmos traços que caracterizam a licença tradicional, modelada segundo o cânon do Direito Administrativo, nem sempre compatíveis. O parentesco próximo não induz, portanto, considera-las irmãs gêmeas.
Em síntese, a licença ambiental, apesar de ter prazo de validade estipulado, goza do carácter de estabilidade, de jure; não poderá pois, ser suspensa ou revogada, por simples discricionariedade, muito menos por arbitrariedade do administrador público. Sua renovabilidade não conflita com sua estabilidade; está, porém, sujeita a revisão, podendo ser suspensa e mesmo cancelada, em caso de interesse público ou ilegalidade superveniente ou, ainda, quando houver descumprimento dos requisitos preestabelecidos no processo de licenciamento ambiental. Mais uma vez pode chamar a atenção para disposições peculiares do Direito do Ambiente, peculiaridades essas fundadas na legislação e corroboradas por práticas administrativas correntes na gestão ambiental.”[7]
O professor paulista tem razão. A questão terminológica não deve desviar o foco do debate, e tampouco ser determinante para fins de compreensão da natureza jurídica do instituto. O que temos é um ato administrativo peculiar, que sobre fortíssima influência dos princípios que regem o direito ambiental, dentre os quais se destaca a supremacia do interesse na proteção do ambiente, em detrimento dos interesses econômicos dos particulares. Por essa razão, a licença ambiental, mesmo antes do vencimento de seu prazo de validade, pode ser suspensa ou cancelada diante de hipóteses específicas, tais: interesse público ou ilegalidade supervenientes, ou mesmo quando o particular descumpre os requisitos que foram estipulados para a concessão.
2.2 As espécies de licença ambiental e seus respectivos prazos
Há três espécies de licença ambiental:
i) licença prévia: “concedida na fase preliminar do planejamento do empreendimento ou atividade aprovando sua localização e concepção, atestando sua viabilidade ambiental e estabelecendo os requisitos básicos e condicionantes a serem atendidos nas próximas fases de sua implementação” (Art. 8º, inciso I, da Resolução n.º 237/97 do CONAMA);
ii) licença de instalação: “autoriza a instalação do empreendimento ou atividade de acordo com as especificações constantes dos planos, programas e projetos aprovados, incluindo as medidas de controle ambiental e demais condicionantes, da qual constituem motivo determinante” (Art. 8º, inciso II, da Resolução n.º 237/97 do CONAMA);
iii) licença de operação: “autoriza a operação da atividade ou empreendimento, após a verificação do efetivo cumprimento do que consta das licenças anteriores, com as medidas de controle ambiental e condicionantes determinados para a operação” (Art. 8º, inciso III, da Resolução n.º 237/97 do CONAMA);
A Resolução CONAMA n.º 237/1997 fixa os prazos mínimos e máximos de duração dessas licenças[8], em seu artigo 18, assim redigido:
“Art. 18 – O órgão ambiental competente estabelecerá os prazos de validade de cada tipo de licença, especificando-os no respectivo documento, levando em consideração os seguintes aspectos:
I – O prazo de validade da Licença Prévia (LP) deverá ser, no mínimo, o estabelecido pelo cronograma de elaboração dos planos, programas e projetos relativos ao empreendimento ou atividade, não podendo ser superior a 5 (cinco) anos. [destaque não original]
II – O prazo de validade da Licença de Instalação (LI) deverá ser, no mínimo, o estabelecido pelo cronograma de instalação do empreendimento ou atividade, não podendo ser superior a 6 (seis) anos. [destaque não original]
III – O prazo de validade da Licença de Operação (LO) deverá considerar os planos de controle ambiental e será de, no mínimo, 4 (quatro) anos e, no máximo, 10 (dez) anos. [destaque não original]
§ 1º – A Licença Prévia (LP) e a Licença de Instalação (LI) poderão ter os prazos de validade prorrogados, desde que não ultrapassem os prazos máximos estabelecidos nos incisos I e II
§ 2º – O órgão ambiental competente poderá estabelecer prazos de validade específicos para a Licença de Operação (LO) de empreendimentos ou atividades que, por sua natureza e peculiaridades, estejam sujeitos a encerramento ou modificação em prazos inferiores.
§ 3º – Na renovação da Licença de Operação (LO) de uma atividade ou empreendimento, o órgão ambiental competente poderá, mediante decisão motivada, aumentar ou diminuir o seu prazo de validade, após avaliação do desempenho ambiental da atividade ou empreendimento no período de vigência anterior, respeitados os limites estabelecidos no inciso III.
§ 4º – A renovação da Licença de Operação(LO) de uma atividade ou empreendimento deverá ser requerida com antecedência mínima de 120 (cento e vinte) dias da expiração de seu prazo de validade, fixado na respectiva licença, ficando este automaticamente prorrogado até a manifestação definitiva do órgão ambiental competente.”
Os prazos referidos podem ser restringidos, conforme o tipo específico de atividade a ser licenciada[9].
2.3 Competência para o licenciamento ambiental
Como já afirmado anteriormente, o licenciamento ambiental é instrumento da Política Nacional do Meio Ambiente. O art. 10 da Lei n.º 6.931/81, com redação dada pela Lei n.º 7.804/89, dispõe:
“Art. 10. A construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadoras de recursos ambientais, considerados efetiva e potencialmente poluidores, bem como os capazes, sob qualquer forma, de causar degradação ambiental, dependerão de prévio licenciamento de órgão estadual competente, integrante do Sistema Nacional do Meio Ambiente – SISNAMA, e do Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, em caráter supletivo, sem prejuízo de outras licenças exigíveis. (…)
§4º. Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis – IBAMA o licenciamento previsto no caput deste artigo, no caso de atividades e obras com significativo impacto ambiental, de âmbito nacional ou regional.”
Da leitura dos dispositivos transcritos extrai-se que o critério definidor da competência para licenciar corresponde ao alcance do potencial impacto ambiental. Ao se referir à competência do IBAMA para realizar o licenciamento no caso de atividades e obras com significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, restou afirmada a descentralização da outorga da licença, que, via de regra, será de competência dos órgãos estaduais.
A Resolução n.º 237/1997, do CONAMA, valendo-se o critério definido pelo legislador, especifica as competências dos entes federativos da seguinte forma:
“Art. 4º – Compete ao Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis – IBAMA, órgão executor do SISNAMA, o licenciamento ambiental, a que se refere o artigo 10 da Lei nº 6.938, de 31 de agosto de 1981, de empreendimentos e atividades com significativo impacto ambiental de âmbito nacional ou regional, a saber:
I – localizadas ou desenvolvidas conjuntamente no Brasil e em país limítrofe; no mar territorial; na plataforma continental; na zona econômica exclusiva; em terras indígenas ou em unidades de conservação do domínio da União.
II – localizadas ou desenvolvidas em dois ou mais Estados;
III – cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais do País ou de um ou mais Estados;
IV – destinados a pesquisar, lavrar, produzir, beneficiar, transportar, armazenar e dispor material radioativo, em qualquer estágio, ou que utilizem energia nuclear em qualquer de suas formas e aplicações, mediante parecer da Comissão Nacional de Energia Nuclear – CNEN;
V- bases ou empreendimentos militares, quando couber, observada a legislação específica.
§ 1º – O IBAMA fará o licenciamento de que trata este artigo após considerar o exame técnico procedido pelos órgãos ambientais dos Estados e Municípios em que se localizar a atividade ou empreendimento, bem como, quando couber, o parecer dos demais órgãos competentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, envolvidos no procedimento de licenciamento.
§ 2º – O IBAMA, ressalvada sua competência supletiva, poderá delegar aos Estados o licenciamento de atividade com significativo impacto ambiental de âmbito regional, uniformizando, quando possível, as exigências.
Art. 5º – Compete ao órgão ambiental estadual ou do Distrito Federal o licenciamento ambiental dos empreendimentos e atividades:
I – localizados ou desenvolvidos em mais de um Município ou em unidades de conservação de domínio estadual ou do Distrito Federal;
II – localizados ou desenvolvidos nas florestas e demais formas de vegetação natural de preservação permanente relacionadas no artigo 2º da Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965, e em todas as que assim forem consideradas por normas federais, estaduais ou municipais;
III – cujos impactos ambientais diretos ultrapassem os limites territoriais de um ou mais Municípios;
IV – delegados pela União aos Estados ou ao Distrito Federal, por instrumento legal ou convênio.
Parágrafo único. O órgão ambiental estadual ou do Distrito Federal fará o licenciamento de que trata este artigo após considerar o exame técnico procedido pelos órgãos ambientais dos Municípios em que se localizar a atividade ou empreendimento, bem como, quando couber, o parecer dos demais órgãos competentes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios, envolvidos no procedimento de licenciamento.
Art. 6º – Compete ao órgão ambiental municipal, ouvidos os órgãos competentes da União, dos Estados e do Distrito Federal, quando couber, o licenciamento ambiental de empreendimentos e atividades de impacto ambiental local e daquelas que lhe forem delegadas pelo Estado por instrumento legal ou convênio.
Art. 7º – Os empreendimentos e atividades serão licenciados em um único nível de competência, conforme estabelecido nos artigos anteriores.”
O comando plasmado no art. 7º transcrito acima é objeto de importante controvérsia. É que a Constituição Federal proclamou a autonomia dos entes federativos (Artigos 1º e 18), de modo que todos estão habilitados não apenas a realizar o licenciamento, mas a estipular critérios próprios para os casos que pretendem licenciar. O que se está a dizer é que a autonomia, em sua acepção plena, compreende inclusive a definição dos parâmetros de atuação de cada ente – quais obras e atividades licenciar e de que maneira.
Por essa razão, a restrição prevista no art. 7º da Resolução nº 237-1997 do CONAMA – licenciamento em um único nível de competência – é inconstitucional, ne medida em que submete entes autônomos a critérios previstos por autoridade federal.
Sobre essa questão, oportuna a transcrição das lições de Édis Milaré:
“Se assim é, se a competência licenciatória dos três níveis de governo dimana diretamente da Constituição, não pode o legislador ordinário estabelecer limites ou condições para que qualquer um deles exerça sua competência implementadora da matéria.
Daí a eiva de inconstitucionalidade da Resolução CONAMA 237/1997, que, a pretexto de estabelecer critérios para o exercício da competência a que se refere o art. 10 da Lei 6.938/1981 e conferir o licenciamento em único nível de competência, acabou enveredando por seara que não lhe diz respeito, usurpando à Constituição competência que esta atribui aos entes federais”.[10]
A opinião é perfilha por Francisco Thomaz Van Acker:
“Portanto, se o Estado ou o Município, no exercício de sua competência constitucional, instituiram, por lei, um licenciamento ambiental, não pode a União reduzir ou limitar a competência administrativa que esse entes federados têm para dar cumprimento a suas próprias leis, nem definir um único nível de competência, com exclusão dos demais. A competência concorrente, por sua própria natureza, não é excludente. Não admite exclusão, de qualquer um dos entes políticos competentes. (…)
Trata-se de matéria que envolve diretamente o exercício das competências constitucionais, razão pela qual não pode ser regulada por lei ordinária e muito menos por mera resolução de órgão da administração, como o CONAMA.(…)
Por tudo isso é evidente que o CONAMA, ao arrepio das disposições expressas no art. 8.º, inc. I, e no art. 10 da Lei 6.938/81, excedeu os limites de suas atribuições legais, alterou disposições da lei federal e pretendeu, indevidamente, substituir-se à futura Lei complementar fixadora das normas de cooperação entre os três níveis de governo nas matérias de competência comum.
Pelo exposto, a resolução em questão é ilegal e inconstitucional.”[11]
A compatibilização da autonomia dos entes federativos com sua competência para licenciar conduz, invariavelmente, à múltipla disciplina do licenciamento, realizada por cada ente, e, consequentemente, à necessidade de concessão de mais de uma licença, a depender do tipo de empreendimento. Essa solução, que afastaria a inconstitucionalidade indicada linhas atrás, é amplamente aceita pela doutrina[12] e pelo STJ[13].
2.4. Modificação, suspensão e cancelamento da licença – a questão do direito à indenização
A licença ambiental pode ser compreendida como uma espécie de pacto entre o empreendedor e o poder público: de um lado, o particular se compromete a desenvolver sua atividade econômica nos estritos termos da licença, cumprindo com todas as condicionantes que lhe foram impostas; de outro, o poder público se abstém de exigir qualquer outra providência a título de proteção ambiental, desde que mantidas as circunstâncias que ensejaram a concessão da licença[14].
Nesse contexto, a questão que se impõe é: quais são as consequências jurídicas aplicáveis às hipóteses em que, antes do término do prazo de validade da licença, alteram-se as circunstâncias que levaram à sua concessão?
O art. 19 da Resolução n.º 237 do CONAMA legitima a adoção de três medidas: a modificação, a suspensão e o cancelamento da licença. São esses os seus termos:
“Art. 19 – O órgão ambiental competente, mediante decisão motivada, poderá modificar os condicionantes e as medidas de controle e adequação, suspender ou cancelar uma licença expedida, quando ocorrer:
I – Violação ou inadequação de quaisquer condicionantes ou normas legais.
II – Omissão ou falsa descrição de informações relevantes que subsidiaram a expedição da licença.
III – superveniência de graves riscos ambientais e de saúde.”
A modificação se aplica às hipóteses em que a proteção ambiental demanda a alteração das condicionantes impostas ao empreendedor.
A despeito de não haver previsão legal expressa sobre a possibilidade de modificação da licença ambiental, a doutrina defende a aplicação por analogia do art. 58, inciso I, da Lei 8.666/93, que dispõe sobre a chamada teoria da imprevisão aos contratos administrativos. De acordo com Celso Antônio Bandeira de Mello[15]: “Esforça-se em que a ocorrência de fatos imprevisíveis, anormais, alheios à ação dos contraentes, e que tornam o contrato ruinoso para uma das partes, acarreta situação que não pode ser suportada unicamente pelo prejudicado.”.
A suspensão, por sua vez, importa a sobrestamento da licença até que a atividade volte a ser exercida dentro dos quadrantes do ato administrativo de concessão. Ou seja, há uma paralização dos efeitos autorizativos da licença – e, por consequência – da obra ou atividade – até que as condicionantes impostas voltem a ser atendidas.
Por conta dos princípios da função socioambiental da propriedade e do meio ambiente como direito fundamental da pessoa humana, as despesas relacionadas às hipóteses de modificação e cancelamento da licença correm por conta do particular[16].
O cancelamento da licença, a seu turno, corresponde à própria supressão do ato administrativo. Trata-se da medida adequada para os casos em que a licença é expedida em contrariedade às normas legais, está lastreada em pressupostos de fato não verdadeiros ou mesmo quando se trata de riscos supervenientes, desde que a imposição de novas condicionantes não seja suficiente à prevenção.
O termo “cancelamento” é utilizado independentemente do motivo que levou à supressão da licença. José Afonso da Silva, apurando a dimensão semântica dessa palavra de acordo com a doutrina administrativista, tece os seguintes comentários:
“A anulação constitui controle de legalidade […]. A revogação é ato de controle de mérito. Dar-se-á quando sobrevier motivo de interesse público que desaconselhe a realização da obra licenciada, tal como: a) mudança das circunstâncias, seja por haver desaparecido as que motivaram sua outorga ou sobrevirem outras que, se existissem antes teriam justificado sua denegação; b) adoção de novos critérios de apreciação, em que a incompatibilidade da atividade licenciada deriva de uma modificação posterior que a Administração introduziu no ordenamento jurídico urbanístico, quer aprovando novo plano diretor, quer modificando o existente, quer aprovando nova lei de zoneamento ou modificando a existente, com efeitos negativos para a manutenção da licença e do direito reconhecido ao particular com sua outorga; c) erro na sua outorga: o erro que supõe a equivocada apreciação de circunstâncias reais não é um erro de fato – que em todo momento poderia ser sanado pela Administração – mas um erro de classificação, de valoração, de interpretação, quer dizer, um erro de direito. O erro, no entanto, pode gerar uma ilegalidade na outorga da licença, caso em que seu desfazimento deverá ser feito por anulação e não por revogação […]. E a cassação vincula-se ao problema da legalidade, mas não da legalidade da licença em si, mas de posterior descumprimento das exigências dela. Dá-se, pois, a cassação da licença quando ocorrer descumprimento: (a) do projeto, em partes essenciais, durante sua execução; (b) da lei ou de regulamento que rege a execução da obra; (c) das exigências do alvará de licença.”[17]
No caso de cancelamento da licença, a questão do direito à indenização é mais complexa.
Entre os administrativistas – que, como vimos anteriormente, definem a licença como ato vinculado – há consenso sobre a existência do direito à indenização.
Quando a questão é transportada para a seara do direito ambiental, todavia, as opiniões passam a divergir.
Marcelo Dawalibi defende que não há direito à indenização:
“(…) posto que, em face da irrelevância da licitude da atividade (…), ninguém adquiri direito de implantar empreendimento lesivo ao meio ambiente, além do que sempre haverá responsabilidade pelos danos ambientais causados pela obra ou empreendimento, mesmo que regularmente licenciados”.[18]
Sua opinião é partilhada por Maurício de Jesus Nunes da Silva que, com lastro nos princípios da precaução e do poluidor-pagador, preleciona:
“Nesse mesmo contexto, sob a égide dos Princípios acima mencionados, a revogação da licença ambiental não poderá originar indenização ao empreendedor por parte do Poder Público.
Ao empreendedor são imputados todos os riscos de sua atividade, tal diretriz coaduna-se até mesmo em face dos princípios do Poluidor-pagador e da Precaução. Portanto, constatada a impertinência ambiental de determinada atividade econômica regularmente licenciada, impõe-se ao Poder Púbico a análise da conveniência e oportunidade da revogação, e sendo esta a melhor forma de contemplar a proteção do meio ambiente – leia-se contemplar o interesse público¬¬ -, não se vislumbra a possibilidade de indenização por perdas e danos decorrente exclusivamente da revogação realizada pela Administração, pois o dever de proteção não é só do Poder Público, mas também de toda a coletividade incluindo o próprio empreendedor”[19].
Já Édis Milaré defende a existência do direito à indenização:
“(…) parece difícil sustentar possa a Administração aniquilar um direito do administrado, privando-o da correspondente indenização. Mesmo suspensa ou caçada a licença, é importante assinalar, remanesce o direito do administrado de algum modo vinculado ao empreendimento: se não sob a forma de atividade efetiva, ao menos sob a forma de ressarcimento dos danos (materiais e morais) que vier a sofrer pela perda dos investimentos que antes foram legítima e legalmente autorizados. Não se pode esquecer que, por vezes, os danos morais são mais graves e onerosos dos que os danos materiais”[20].
Pensamos que a situação deve ser analisada sob o prisma do comportamento do particular para a ocorrência do cancelamento da licença.
Se o particular agiu de má-fé, omitindo dados relevantes sobre a atividade exercida ou mesmo falseando informações que serviram de base à emissão da licença, não há que se falar em pagamento de indenização. A mesma solução é aplicável às hipóteses em que o cancelamento ocorre por descumprimento das condicionantes impostas para realização da obra ou atividade. No primeiro caso, temos a anulação da licença. No segundo, sua cassação.
Por outro lado, há hipóteses em que ocorre a superveniência de tecnologia e conhecimento científico que permitem dar nova interpretação ao potencial lesivo da atividade. Caso não seja oportuno, nessas situações, aguardar o término do prazo de vigência da licença para a imposição das novas exigências, a licença deve ser revogada. Nesses casos, não é lícito expor o empreendedor a revés econômico – haja vista os investimentos que foram aplicados na obra ou atividade – sem a respectiva compensação pecuniária.
Imprescindível, todavia, que haja prova do prejuízo efetivo.
Nesses casos, cremos que há direito à indenização, a ser realizado por meio de processo de desapropriação.
Sem se referir especificamente à licença ambiental, mas à qualquer revogação de ato administrativo que redunde na subtração de direitos do administrado, Celso Antônio Bandeira de Mello ensina:
“Não cabe à Administração decidir que revoga e remeter o lesado às vias judiciais para composição patrimonial dos danos. Isto corresponderia à ofensa de um direito e à prática de um ato ilegal que o judiciário deve fulminar se o interessado o requerer.
A lei prevê o instituto da expropriação quando é irredutível o choque entre um interesse público e um direito do administrado. E na desapropriação há um procedimento a observar e há, de regra, necessidade de indenização prévia, justa e em dinheiro (cf. o art. 5º, XXIV, da Lei Maior). Esta é a fórmula pela qual se compõem o interesse público e o direito do administrado se entre ambos irromper conflito insolúvel consensualmente. No Estado de Direito, o Poder Público não pode fugir das vias previstas na ordem normativa”.[21]
A solução é igualmente aplicável à revogação da licença ambiental.
Informações Sobre o Autor
Marcos Figueredo Marçal
Bacharel em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, Procurador Federal