Litispendência e coisa julgada no juízo arbitral

Sumário: 1. Da arbitragem. 1.1. Do caráter jurisdicional da arbitragem. 2. Da sentença e da coisa julgada no juízo arbitral. 2.1. Da litispendência e da coisa julgada no processo arbitral. 2.1.1. Da litispendência e da coisa julgada entre processos arbitrais. 2.2. Da litispendência e da coisa julgada entre processo estatal e arbitral. 2.2.1. Da litispendência. 2.2.2. Da coisa julgada. 3. Conclusão.

INTRODUÇÃO

Instituída pela Lei 9.307/96, que revogou os arts. 1.037 a 1.048, do Código Civil de 1916, e arts. 101, 1.072 a 1.102, do Código de Processo Civil, vem a arbitragem trazer ao direito brasileiro outra forma de acesso mais amplo à justiça.  E não é pela novidade do instituto que, como visto, já de há muito existia, mas pelas novas feições introduzidas nele pela Lei de Arbitragem.

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Um dos pontos principais foi o de ter sido dado à arbitragem a natureza jurídica de processo, o que bem se evidencia pela dispensa de homologação da decisão final do árbitro, bem como pela mudança do nomen juris desta, deixando de ser laudo para ser sentença.  E, o mais importante, a elevação da decisão arbitral a título executivo judicial (art. 584, inc. VI, do Cód. de Proc. Civil).

Assim, é importante saber até onde podemos equiparar um processo arbitral a um processo estatal, no que pertine à possibilidade de violação de litispendência e de coisa julgada.

1. Da arbitragem

A Lei 9.307/96 prevê a instituição da arbitragem através de dois contratos: a cláusula compromissória e o compromisso, ao contrário das normas revogadas, que só previam o compromisso.  A cláusula compromissória é definida no art. 4o da Lei e o compromisso, no art. 9o.  Toda a base do instituto repousa na livre vontade dos contraentes, seja antes da instauração do litígio (cláusula compromissória), seja no curso deste (compromisso), em confiar a solução de seu conflito à pessoa (ou pessoas, ou, ainda, a uma instituição) de sua escolha, ao invés de buscar a via estatal. Também podem as partes escolher o procedimento que seguirá o processo ou submeter-se a algum já previamente definido em órgão institucional de arbitragem.  Por tais motivos, não tem a convenção de arbitragem o condão de violar o princípio da inafastabilidade da jurisdição (art. 5o, inc. XXXV, da Constituição Federal), por não haver imposição legal na utilização da via arbitral pelas partes[1].  Há, por fim, um segundo contrato, vinculando partes e árbitro (ou árbitros), através do qual aqueles definem a prestação de serviços do julgador e a sua remuneração.

Tudo isto resulta do fato de que somente podem convencionar a arbitragem, ou ser árbitros, pessoas capazes.  Também somente litígios que versem sobre direitos patrimoniais disponíveis poderão dela ser objeto  (art. 1º, da Lei de Arbitragem).

Não se distanciou muito o legislador pátrio de algumas leis de arbitragem.  Em Portugal, a Lei n. 31/86, que instituiu a arbitragem voluntária, prevê, em seu art. 1º-2, que a arbitragem pode ser instituída por um compromisso arbitral ou uma cláusula compromissória.  Contudo, o compromisso arbitral decorre de um litígio afeto a um tribunal judicial, enquanto a cláusula compromissória decorre de relação jurídica contratual ou extracontratual.

Os litígios a serem objeto da arbitragem devem dizer respeito a relações de direito privado, mas o Estado e outras pessoas coletivas de direito público também podem celebrar a arbitragem, desde que sejam autorizados por lei ou a matéria tenha a ver com as referidas relações (art. 1º-4).

O Código Procesal Civil y Comercial de la Nación argentina apenas prevê o compromisso como documento instituidor da arbitragem,  mas podem ser decididas pelos árbitros todas as questões que podem ser objeto de transação, conforme o art. 737, a contrário senso.  O Cód. de Proc. Civil italiano também só admite a convenção de arbitragem, por compromisso ou cláusula compromissória, de questões que possam ser objeto de transação (art. 806).  Já a Ley de Enjuciamiento Civil espanhola permite que o convênio arbitral (que poderá adotar a forma de cláusula incorporada a um contrato ou acordo independente, conforme o art. 9º, item 1) disponha sobre matérias de livre disposição (art. 2º, item 1).

1.1. Do caráter jurisdicional do processo arbitral

Apesar da base convencional, e da ampla liberdade das partes para estabelecer o procedimento da arbitragem, ela é considerada como um processo jurisdicional de solução de conflitos, ainda que fora do âmbito estatal[2].  Sua finalidade é permitir às partes alcançar a solução de seus conflitos, sem perder algumas das garantias inerentes ao processo estatal.  E algumas dessas garantias vêm expressamente previstas no art. 21, § 2º, cujo descumprimento pode levar à nulidade da sentença arbitral, conforme o art. 32, inc. VIII, todos da Lei de Arbitragem.  São as garantias (ou princípios, segundo a lei) do contraditório, da igualdade das partes, da imparcialidade do árbitro e de seu livre convencimento.

Mais do que no processo estatal, o processo arbitral traz as partes em posição de igualdade[3].  De comum acordo instituíram a arbitragem, escolheram o árbitro e o procedimento.  Dificilmente se terá a necessidade, no processo arbitral, de suprimento de eventuais deficiências defensivas das partes, devido ao caráter convencional da arbitragem. Podem produzir as provas que desejarem (documentais, testemunhais, periciais) e o contraditório é-lhes sempre assegurado, principalmente devido ao amplo acesso que têm ao árbitro, o que não ocorre no processo estatal.

Os árbitros devem ser imparciais, de acordo com o que está estabelecido no Cód. de Proc. Civil, nos seus artigos 134 e 135, mas podem as partes abrir mão dessa garantia, uma vez que podem escolher um determinado árbitro exatamente devido ao seu parentesco com uma ou ambas as partes[4], por exemplo.  Mas espera-se dele a honestidade e a isenção suficientes, no que poderá a sentença ser argüida de nula se for comprovado que o árbitro a proferiu por prevaricação, concussão ou corrupção passiva (art. 32, inc. VI, da Lei de Arbitragem).

Como qualquer julgador, tem o árbitro a possibilidade de julgar conforme o seu livre convencimento que, como se espera do juiz estatal, será sempre motivado (art. 21, § 2º).

Reforçando o caráter jurisdicional da arbitragem, determina a Lei, no seu art. 26, inc. II, que a sentença arbitral deva ser fundamentada, obedecendo ao ditame constitucional neste sentido (art. 93, inc. IX, da Constituição Federal).  A falta deste elemento pode ser motivo de ajuizamento da ação de anulação, prevista no art. 32, inc. III, da Lei de Arbitragem.  Como todo julgador imbuído da função de compor os conflitos, deve o árbitro, ainda que julgue por eqüidade, deixar evidente às partes que sua decisão foi fruto das razões de fato e de direito apresentadas no processo.

O princípio da congruência também deve ser observado pelo árbitro ao proferir sua sentença.  Apesar de não termos, tecnicamente, um pedido feito por um autor em face de um réu, no qual deve a sentença ater-se, há uma pretensão insatisfeita e ambas as partes esperam que a sentença arbitral resolva todo o litígio e sem transbordar dos limites do mesmo.  Em assim não ocorrendo, novamente tem-se a oportunidade de ajuizamento da ação de nulidade da sentença, conforme os inc. IV e V, do art. 32, da Lei de Arbitragem.

2. Da sentença e da coisa julgada no processo arbitral

O processo arbitral extingue-se através de um ato decisório ao qual a Lei chama de sentença.  Os dispositivos legais que precedentemente regulavam a matéria, tratavam a decisão como laudo, determinando que o mesmo, para alcançar eficácia jurídica, deveria ser homologado pelo juízo competente para conhecer originariamente da causa.

Em geral, foi  bem acolhida esta modificação de nomenclatura,  por se entender a dispensa da homologação como um avanço da lei, no sentido de conferir maior poder à decisão arbitral[5].

Tanto na lei argentina, quanto na italiana, na espanhola e na francesa, a decisão arbitral recebe a designação de laudo.  Já a lei portuguesa designa-a como sentença.  Somente a lei italiana exige a homologação para que o laudo adquira eficácia de sentença (art. 829, do Cód. de Proc. Civil)[6].  Todas as leis citadas, independentemente da nomenclatura dada à decisão arbitral, conferem à mesma a força da coisa julgada, eventualmente impedindo a remessa da mesma aos tribunais estatais para fins de recurso ou revisão[7].

2.1. Da litispendência e da coisa julgada no processo arbitral

Devido à natureza processual da arbitragem, não restam dúvidas de que, da mesma forma como ocorre no processo estatal, fica qualquer das partes proibida de propor demanda rigorosamente idêntica àquela já pendente de julgamento.  A regra tem por finalidade evitar o bis in idem, impedindo-se  que dois processos instaurados alcancem o mesmo resultado prático[8].

Todavia, é interessante analisar-se a extensão de tal proibição, considerando-se as características do processo arbitral e suas peculiaridades frente ao processo estatal.

2.1.1. Da litispendência e da coisa julgada entre processos arbitrais

A alegação de litispendência entre dois processos arbitrais não é, em tese, impossível.  Instauradas duas arbitragens, ambas com idênticas partes, causa de pedir e objeto, impõe-se a solução do art. 267, inc. V, do Cód. de Proc. Civil (extinção do processo sem julgamento do mérito).  Contudo, em termos práticos, deparar-nos-íamos com um grande obstáculo intransponível.

O obstáculo diz respeito à convenção de arbitragem.  No processo estatal, o processo se inicia por ato de vontade de uma das partes: o autor que propõe a demanda. Assim, é possível que, posteriormente, uma das partes proponha demanda rigorosamente idêntica a outra pendente, no mesmo ou em outro juízo, independente do pólo em que se situava na primeira.  Citado o réu na segunda demanda, tem o mesmo a possibilidade de alegar a existência do bis in idem (conforme o art. 301, inc. V, do Cód. de Proc. Civil), para levar a segunda demanda à extinção sem julgamento do mérito (art. 267, inc. V, da lei processual civil).

Na arbitragem, o processo se inicia por convenção das partes, cláusula compromissória ou convenção, o que importa em dupla manifestação de vontade.  Destarte, uma eventual instauração de dois processos arbitrais, para ocorrer, dependeria do acordo de ambas as partes[9].  Não haveria a possibilidade de uma das partes vir a ser surpreendida pela repetição de demanda anteriormente ajuizada.

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Por tais motivos, dificilmente chegar-se-ia a uma situação de existirem duas sentenças arbitrais, uma violando a coisa julgada da outra.  Contudo, a lei processual civil italiana prevê a possibilidade de  ajuizamento de ação de nulidade do laudo na hipótese do mesmo ser contrário a outro precedente não mais impugnável, desde que a exceção relativa à litispendência tenha sido deduzida no juízo arbitral (art. 829, n. 8).

A proibição do bis in idem tem razão de ser.  Não se pode permitir que duas sentenças decidam a mesma controvérsia, ainda que ambas não tenham sido emanadas do Estado[10].  O problema pode se tornar de maior vulto, se estivermos diante de duas sentenças arbitrais condenatórias, contraditórias ou não, sendo ambas, por determinação legal, título executivo judicial (art. 584, inc. VI, do Cód. de Proc. Civil).  Não há, na lista exaustiva de motivos de ajuizamento dos Embargos do Devedor (art. 741, do Cód. de Proc. Civil), utilizáveis também contra a decisão arbitral, por força do art. 33, § 3º, da Lei de Arbitragem, qualquer um que leve à desconstituição da segunda sentença, e conseqüente extinção da execução nela fundada, por existir decisão anterior em processo rigorosamente idêntico.

2.2. Da litispendência e da coisa julgada entre processo estatal e arbitral

2.2.1. Da litispendência

A alegação de existência de convenção arbitral, quando pendente processo estatal, é causa de extinção do processo sem julgamento do mérito, desde que alegável pelo réu, uma vez que é matéria que o juiz não pode conhecer de ofício (arts. 267, inc. VII e 301, inc. IX e § 4º)[11].   Na vigência da redação anterior dos arts. 1.072 a 1.102, do Cód. de Proc. Civil, MONIZ DE ARAGÃO distinguia duas hipóteses diversas: a) a precedente existência do compromisso arbitral, com ajuizamento de processo estatal e; b) o superveniente surgimento do compromisso, após ajuizada a causa perante juízo estatal.  A primeira hipótese levava à atual conclusão, bem como a segunda, com um ponto dissonante:  como havia a possibilidade de o compromisso ser tomado por termo nos autos, o juiz poderia extinguir o processo de ofício.  Se o compromisso fosse lavrado por escrito público ou particular, havia a necessidade de provocação por qualquer das partes para se chegar à extinção do processo sem julgamento do mérito[12].

Já a instauração de processo estatal, quando pendente processo arbitral, não tem previsão no ordenamento jurídico brasileiro, no que se deveria fazer uso da mesma solução acima, ou seja, extinção do processo estatal sem julgamento de mérito.

O art. 736 do Cód. de Proc. Civil da Argentina permite a instauração da arbitragem depois de deduzida em juízo a questão, não importando qual o estado do processo estatal, o que é do mesmo modo permitido pelo Cód. de Proc. Civil francês (art. 1.450).  Também a lei de arbitragem portuguesa (Lei n. 31/86) prevê a possibilidade de se buscar a decisão arbitral para solucionar causas já ajuizadas perante tribunal judicial (art. 1º, item 2)[13].  O Cód. de Proc. Civil francês, no seu art. 1.458, proíbe que um tribunal estatal conheça de questão que esteja sendo submetida à arbitragem, devendo declarar-se incompetente, desde que a parte alegue o fato e o convênio arbitral não seja manifestamente nulo.   Por seu turno, a lei de arbitragem espanhola (Lei n. 60/2003), dispõe que o convênio arbitral impede os tribunais de conhecer das controvérsias submetidas à arbitragem, desde que a parte a quem interesse o invoque mediante a declinatória (art. 11, item 1).  Nota-se uma aparente preocupação em permitir às partes uma solução não-estatal, mais célere, o mais próximo possível de uma decisão emanada da vontade de ambas, e não imposta por uma autoridade acima delas.

2.2.2. Da coisa julgada

A sentença arbitral faz coisa julgada.  Reveste-se, seu conteúdo, da imutabilidade e da indiscutibilidade inerentes às decisões finais que julgam o mérito, extinguindo um processo.  O que a diferencia da sentença estatal é sua origem, decorrente de dois contratos privados (a convenção de arbitragem e o contrato firmado entre as partes e o árbitro).

Esta qualidade dos efeitos da sentença não a confere a lei brasileira, nem a argentina e a italiana.   Já as leis portuguesa (Cód. de Proc. Civil, art. 26º, item 1), espanhola (Ley de Arbitraje, art. 43) e francesa (Cód. de Proc. Civil, art. 1.476) expressamente informam que a decisão arbitral fará coisa julgada.  Todavia, apesar da omissão do legislador dos países supracitados, não há porque, pelo menos em termos de lei brasileira, entender que a sentença arbitral não seja recoberta pela coisa julgada, nos mesmos moldes que a sentença estatal.

Entre as partes aquela decisão será indiscutível e imutável, notadamente se as partes tiverem aberto mão de eventuais recursos passíveis de serem interpostos contra a sentença[14][15].  Não se vislumbra qualquer ponto de divergência entre a coisa julgada alcançada por uma sentença estatal e aquela da sentença arbitral.  Nem caberia o argumento do momento em que a decisão se torna imutável e indiscutível, por ser da tradição do direito brasileiro a permissão de interposição de recursos de qualquer sentença, haja ou não julgado o mérito, haja efetiva decisão do juiz ou mera homologação. O momento de ocorrência da coisa julgada é questão de política legislativa (bem como a própria existência do fenômeno), e tal se verifica pela opção do legislador nos Juizados Especiais Cíveis, que determinou que a sentença homologatória de conciliação, fosse irrecorrível, por força da obediência aos critérios orientadores do processo previstos no art. 2º da Lei n.  9.099/95.

De qualquer modo,  não podem coexistir duas decisões, ainda que idênticas, sobre o mesmo caso concreto.  Proferida sentença arbitral e transitada esta em julgado, não pode uma das partes, inconformada com a decisão, buscar a via estatal.  Parece-nos que a hipótese é a mesma cuja solução se encontra no Cód. de Proc. Civil, que dá ao réu a oportunidade de alegar, em preliminar de contestação, a coisa julgada, por já ter sido a questão, ora objeto de demanda, sido solucionada com decisão de mérito transitada em julgado (art. 301, inc. VI).  Como a questão é de ordem pública, sua alegação não precluiria, devendo o juiz, de ofício, verificá-la, em qualquer tempo e grau de jurisdição, podendo, inclusive, ser motivo para o ajuizamento de eventual ação rescisória (art. 301, § 4º e 485, inc. IV, do Cód. de Proc. Civil)[16].  Outro argumento, seria o da não subsistência do interesse processual, o que levaria à mesma solução prática: extinção do processo sem julgamento de mérito (art. 267, inc. VI, da lei processual civil)[17].

Por seu turno, proferida sentença estatal, também não podem as partes, inconformadas, procurarem a via arbitral para que seja proferida nova sentença.  O Cód. de Proc. Civil italiano vê aí situação de nulidade do laudo, mas apenas se ele for contrário a uma precedente sentença transitada em julgado, e desde que a exceção tenha sido deduzida previamente no juízo arbitral (art. 829, n. 8); porém,  a Lei de Arbitragem brasileira não prevê tal hipótese como ensejadora de ação de nulidade (o que também não ocorre nas leis espanhola, argentina e francesa).

A proibição do bis in idem não permite que a parte leve a juízo arbitral questões que já foram definitivamente decididas no juízo estatal[18].  Nada impede, contudo, que, inconformadas com a decisão, as partes transijam sobre os pontos decididos pela sentença, com os quais não concordem (ou sobre a sentença inteira), sendo esta matéria argüível em Embargos do Devedor (conforme art. 33, § 3º, da Lei de Arbitragem), caso se resolva executar, integralmente, a sentença condenatória.

Com o que não se pode concordar é que, sob este argumento (possibilidade de superveniente transação sobre pontos da sentença transitada em julgado), se aceite que as partes procurem o juízo arbitral para dirimir pontos conflituosos já decididos por sentença estatal transitada em julgado[19].

3. Conclusão

A arbitragem é um processo jurisdicional de solução de conflitos.  Apesar de sua decisão não emanar de órgão estatal, foi legalmente equiparada a uma decisão judicial, mesmo não tendo os árbitros imperium (coertio e executio).

Neste sentido, processo e sentença arbitrais conservam, dentro do possível, os princípios e garantias do processo estatal.   Apesar de a lei de arbitragem somente fazer menção a alguns deles, outros, inerentes ao processo como um todo, também devem ser observados na arbitragem, no que lhe for pertinente, nunca esquecendo da liberdade da manifestação de vontade das partes para organizarem praticamente tudo no processo arbitral.

Esta liberdade, contudo, não chega ao ponto de sobrepujar o caráter jurisdicional do processo arbitral.  Neste sentido, a proibição do bis in idem não pode ser relevada no juízo arbitral, não importa as razões que se ofereçam para tanto.

A sentença arbitral merece tanto respeito quanto a sentença estatal, principalmente porque, lá mais do que aqui, ela foi obra de um trabalho conjunto entre as partes e o árbitro e foi fruto da confiança de ex-contendores que buscaram uma via alternativa de solução de conflitos, consentânea com as ondas renovatórias do processo, do qual sempre nos falou CAPPELLETTI, desde a segunda metade do século passado.

 

Referências bibliográficas
ALVIM, J. E. Carreira. Comentários à Lei de Arbitragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
ARAGÃO, E. D. Moniz. Comentários ao Código de Processo Civil, v. II. 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004.
CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002.
CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004.
DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. II. 3. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.
FORNACIARI, Mario Alberto. Modos anormales de terminación del proceso. Tomo II. Buenos Aires: Depalma, 1998.
LIMA, Cláudio Vianna de. Curso de Introdução à Arbitragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999.
MATTOS NETO, Antonio José. Direitos Patrimoniais Disponíveis e Indisponíveis à Luz da Lei de Arbitragem. Revista de Processo, ano 27, n. 106, p. 221-236, abr./jun. 2002.
MOREIRA, José Carlos Barbosa. La nuova legge brasiliana sull’arbitrato. Temas de Direito Processual: sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997.
NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999.
PASSOS, J. J. Calmon. Comentários ao Código de Processo Civil, vol. III. 8. ed. Rio de Janeiro: Forense, 1998.
ROCHA, José de Albuquerque. A Lei de Arbitragem (uma avaliação crítica). São Paulo: Malheiros, 1998.
ROCCO, Ugo. Tratado de Derecho Procesal Civil. v. 1. Buenos Aires: Depalma, 1983.
Notas:
[1] No direito português, há a previsão da arbitragem necessária, “quando o julgamento arbitral for prescrito por lei especial” (arts. 1525o a 1528o do Cód. de Proc. Civil).  Contudo, aplica-se o disposto na lei de arbitragem voluntária, no que não conflitar com a arbitragem necessária.  Nos dá notícia FORNACIARI, Mario Alberto. Modos anormales de terminación del proceso. Tomo II. Buenos Aires: Depalma, 1998, p. 159, da existência, também na Argentina, de arbitragem obrigatória, imposta pela lei, nas hipóteses do art. 1.627 do Cód. Civil ou do art. 491 do Cód. Comercial.
[2] Quanto à natureza de processo, não se encontram divergências na doutrina, tanto nacional quanto estrangeira.   Contudo, há quem não admita o caráter jurisdicional da arbitragem: CÂMARA, Alexandre Freitas. Arbitragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 12-3, entende que, apesar da função pública, a arbitragem não tem função jurisdicional, por não ser estatal. Contudo, não é este o pensamento dominante, como pode se ver, por exemplo, em NERY JUNIOR, Nelson. Princípios do Processo Civil na Constituição Federal. 5. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 1999, p. 79 (citando farta doutrina, nacional e estrangeira, a corroborar seu posicionamento); ROCHA, José de Albuquerque. A Lei de Arbitragem (uma avaliação crítica). São Paulo: Malheiros, 1998, p. 29; FORNACIARI, ob. cit., p. 193; ALVIM, J. E. Carreira. Comentários à Lei de Arbitragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2002, p. 31; CARMONA, Carlos Alberto. Arbitragem e Processo: um comentário à Lei n. 9.307/96. 2. ed. São Paulo: Atlas, 2004, p. 45.
[3] Afirma ROCHA, ob. cit., p. 81, que a igualdade das partes no processo arbitral é protegida pelo princípio da isonomia de maneira meramente formal.
[4] CARMONA, ob. cit., p. 215 e CÂMARA, ob. cit., p. 55.
[5] LIMA, Cláudio Vianna de. Curso de Introdução à Arbitragem. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 1999, p. 163, vê uma equiparação do laudo a uma sentença judicial, nada mais.  Assim sendo, o laudo deveria ser considerado como título extrajudicial, “pois advindo de fora do Judiciário”.  No mesmo sentido, CÂMARA, que, coerente com o seu entendimento de que a arbitragem é processo, mas não judicial, não aceita que a decisão seja chamada de sentença, o que também caracterizaria um desprestígio ao Poder Judiciário (ob. cit., p. 106).
[6] Para ROCCO, Ugo, Tratado de Derecho Procesal Civil. v. 1. Buenos Aires: Depalma, 1983, p. 162, apesar de o laudo ser verdadeira sentença, todavia é emitida por órgãos que pertençam à jurisdição normal, de maneira que parece oportuno que alguns elementos extrínsecos da atuação dos árbitros sofram controle por parte de autoridade judicial.
[7] Em regra, as leis que regem a arbitragem preferem deixar às partes a oportunidade de escolher ou não instituir órgãos revisores dentro do âmbito do próprio tribunal arbitral, evitando levar à causa ao Poder Judiciário (razão, aliás, que as teriam levado a procurar esta via alternativa de solução de conflitos).
[8] DINAMARCO, Cândido Rangel. Instituições de Direito Processual Civil. v. II. 3. ed. São Paulo: Malheiros, p. 62.
[9] O Cód. de Proc. Civil francês permite que a arbitragem seja iniciada por ambas as partes, ou a mais diligente delas (art. 1.445).
[10] Por tal motivo, ROCHA, entende que, em havendo litispendência, deve-se fazer uso da regra do art. 219 do Cód. de Proc. Civil e extinguir-se o segundo processo arbitral, entendendo como prevento o juízo arbitral que primeiro tiver instaurado a arbitragem, podendo a extinção se dar de ofício, com base nos arts. 267, § 3º e 301, § 4º, da lei processual civil (ob. cit, p. 111/112).
[11] Há uma controvérsia sobre a redação do § 4º do art. 301, do Cód. de Proc. Civil, que se chocaria com a dos demais dispositivos, por citar o primeiro apenas o compromisso e, os outros, a convenção arbitral.  Desta forma, a existência de cláusula compromissória poderia levar à extinção do processo sem julgamento de mérito de ofício, somente necessitando o juiz de provocação na hipótese de haver um compromisso.  Contudo, tal tema refoge aos limites do presente trabalho, razão pela qual não será melhor desenvolvido.
[12] ARAGÃO, E. D. Moniz de.  Comentários ao Código de Processo Civil, vol. II, 10. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2004, p. 449.
[13] Aqui a lei portuguesa traça a diferença entre compromisso arbitral e cláusula compromissória.  O compromisso é a convenção de arbitragem específica para questões anteriormente deduzidas em juízo, restando a cláusula compromissória para questões jurídicas contratuais ou extracontratuais.
[14] A dicção do art. 18 da Lei de Arbitragem, ao informar que a sentença arbitral não fica sujeita a recurso, está proibindo a utilização das vias estatais para fins de impugnação das decisões arbitrais.  Nada impede que as partes, na convenção arbitral, estipulem meios de impugnação, a serem oferecidos a um tribunal arbitral, ou escolhida a arbitragem institucional, tenha o órgão, em seus estatutos, previsão de vias impugnativas possíveis de serem utilizadas pela parte sucumbente.
[15] Note-se, também, que a proibição de impugnações da sentença arbitral não impede a utilização da ação de nulidade (também encontrável nas leis alienígenas) prevista no art. 32 da Lei de Arbitragem  que, conforme já foi observado por alguém, tem paralelos com a Ação Rescisória, prevista nos arts. 485 e segs. do Cód. de Proc. Civil.
[16] Não nos parece caber, aqui, o argumento de que a existência de convenção arbitral, conforme o Cód. de Proc. Civil, só possa ser conhecido pelo juiz após alegação do réu (ver nota 11).  Diante do trânsito em julgado da sentença arbitral, já não há mais que se falar em contrato entre as partes, mas em decisão privada à qual o legislador deu a força de decisão estatal (não apenas o nomen juris) e que deve ser respeitada como sentença que é, com todos os seus efeitos e qualidade.
[17] Esta é a visão de NERY JUNIOR. ob. cit. p. 84.
[18] Neste sentido: MOREIRA, José Carlos Barbosa, La nuova legge brasiliana sull’arbitrato, in Temas de Direito Processual: sexta série. São Paulo: Saraiva, 1997, p. 284; CARMONA, ob. cit., p. 69 e MATTOS NETTO, Antonio José. Direitos Patrimoniais Disponíveis e Indisponíveis à Luz da Lei de Arbitragem, in Revista de Processo, ano 27, n. 106, abr./jun. 2002, p. 235.
[19] Este é o ponto de vista de CÂMARA, ob. cit., p. 19/20.  A transação é meio de autocomposição dos conflitos, enquanto a arbitragem é meio de heterocomposição.  Efetivamente, como nos diz MOREIRA, José Carlos Barbosa, ob. cit.,p. 284: “De jeito nenhum se impede, ao contrário, que as partes adotem, ad futurum, por mútuo consentimento, uma nova e diversa disciplina de suas relações: nem mesmo o próprio e verdadeiro julgado excluiria, desta forma, a possibilidade de uma transação superveniente” (tradução livre).

 


 

Informações Sobre o Autor

 

Marcia Cristina Xavier de Souza

 

Professora de Direito Processual Civil da Universidade Candido Mendes-Centro. Mestre e Doutoranda em Direito pela Universidade Gama Filho.

 


 

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