Magistrados de outros tempos


Não se trata de aprisionamento ao passado, mal que atinge, com freqüência, as pessoas que já não são tão jovens.  Mas o passado deve guiar o presente.


Ao escrever esta página, penso sobretudo nos meus alunos que hoje integram a magistratura.  Precisam de guias esses jovens, para lhes indicar o caminho, para lhes estimular as renúncias.


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Mas os guias a que vou me referir não são exemplo apenas para juízes e juristas em geral.  São estrelas para o povo.  As virtudes que destacamos não integram somente o código de ética dos magistrados.  Servem de inspiração para o cotidiano das pessoas.


Seleciono quatro juízes como paradigmas.  Escolha tão restrita não fecha o círculo dos magistrados dignos de servirem como exemplo.  Mas o leitor verá porque escolho quatro.  Não são apenas quatro juízes.  São quatro modelos de exercício da magistratura, quatro formas de nobremente ser juiz, quatro maneiras de dignificar e tornar profícua a existência.


Começo por Carlos Teixeira de Campos.  A inteireza moral é atributo inerente à função de juiz.  Juiz que não seja íntegro não é juiz.  Degrada a toga, da qual deveria ser desvestido.  Merece a condenação fulminante do Profeta Isaías:


“Ai daqueles juízes que lavram sentenças opressivas e denegam Justiça aos fracos”.


Mas a inteireza moral alcança às vezes as culminâncias da sublimidade, do heroísmo, da entrega pessoal absoluta.  Este é o caso de Carlos Teixeira de Campos.


Basta o registro de um episódio para lhe destacar a grandeza.  Juiz de início de carreira, o Tribunal de Justiça cogitou de promovê-lo.  Com firmeza e serenidade afirmou aos desembargadores que colegas mais antigos e de maior mérito faziam jus à deferência.  Com esse fundamento ético, recusou a promoção.  Para quem é estranho ao mundo do Direito, esse fato pode não impressionar muito.  Mas a magistratura é uma carreira.  Sobretudo quando se é jovem absorvemos, sem muita análise, esse princípio que integra a “cultura” da magistratura: “é preciso fazer carreira”.  Depois, quando a gente vai ficando mais velho e menos tolo, relativiza a “ideologia” inculcada e conclui, sabiamente, que lutar, só vale a pena, por uma cadeira no Céu, de preferência bem junto do Pai.


O segundo magistrado que desejo destacar foi Homero Mafra.  Homero soube unir a Justiça e a Misericórdia.  Deu à magistratura o toque de humanismo, aquele toque de humanismo, de compreensão, de empatia que transforma o ofício de juiz em arte, em mergulho na alma, em rompimento das fórmulas, na busca do eterno, esse eterno que ele cultuou, com santidade, mesmo sem expressar essa crença. 


Graças ao voto e à posição inquebrantável de Homero Mafra livrei-me, sem punição, do processo que foi aberto contra mim, na Justiça, em plena ditadura, pelo fato de ter implantado, com outros companheiros, e ter presidido – magistrado da ativa – a Comissão “Just iça e Paz” da Arquidiocese de Vitória.


Nosso terceiro juiz é Renato José Costa Pacheco.  Talvez tenha sido o primeiro magistrado brasileiro a perceber, em toda a sua amplitude, o caráter multidisciplinar do Direito.  Sua paixão pela História, pela Sociologia, pela Educação e pela Literatura, em certo momento de sua carreira, foi considerada pelos superiores hierárquicos um senão, uma reserva, um deslustre.  Juiz, segundo essa visão, tinha que conhecer Direito, e não se aventurar por essas áreas tão pouco “jurídicas”.  Dedicar-se ao ensino, assessorar com brilho, como o fez, o Conselho Estadual de Educação (sem remuneração, diga-se, de passagem) foram consideradas con dutas que desmereciam o magistrado.  Esqueceram seus julgadores que o juiz é melhor juiz quando tem do mundo uma visão panorâmica.  Esqueceram que a tarefa do juiz é, em si mesma, uma tarefa pedagógica.


Nosso quarto e último juiz é Mário da Silva Nunes.  Muito antes do “Estatuto da Criança e do Adolescente”, Mário Nunes já advogava as teses que o Estatuto veio consagrar.  Mário foi desembargador, mas, a meu ver, Mário foi sobretudo o grande Juiz de Menores.  Surpreendi uma cena que lhe define o zelo pela criança.  Perto da antiga Rodoviária de Vitória, um incauto policial reprimia um menor com brutalidade. Mário Nunes deixou de lado a doçura que o caracterizava e assumiu a ira santa a que a Bíblia se refere.  Tomou a defesa da criança, declinou sua condição de Juiz de Menores, repreendeu o policial e aproveitou para dar a ele uma bela lição a respeito dos motivos pelos quais a lei protege o menor.


Nestes tempos de hedonismo sem limites, de busca do dinheiro ainda que com sacrifício da honra, é necessário contrapor o perene ao transitório. Se hoje, neste escrito, exalto quatro magistrados falecidos é porque a dignidade é eterna. Mais vale a imortalidade que se concede ao Juiz justo do que os ilusórios tesouros que a traça consome.



Informações Sobre o Autor

João Baptista Herkenhoff

Livre-docente da Universidade Federal do Espírito Santo e escritor


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