É lugar-comum culpar a polícia e
o judiciário pela deficiência no combate ao crime. E, ultimamente, as críticas
também voltaram-se contra os advogados criminalistas que são confundidos com os
seus próprios clientes, uma vez que se apregoa o “justiciamento” para
certos tipo de crime, por meio de um julgamento sumário sem direito ao
contraditório e a ampla assistência jurídica. Sobe a audiência de programas
sensacionalistas, denuncistas e não se ouve nenhuma proposta sistemática para
eliminar as causas da violência. Portanto, submetemos a opinião pública aos
cronistas da tragédia.
A despeito das críticas e das inúmeras
teorias populistas sobre a criminalidade, mormente a dos comentaristas
oficiosos da mídia, a violência cresce e assusta os guetos das classes média e
alta, ameaçando potencialmente os nichos de pretensa segurança em que se
encastelaram as classes de maior poder aquisitovo. A violência não é, como se
pensava, exclusivadade da pobreza e não afeta apenas uma das muitas classes que
temos, muito embora seja notabilizada a violência contra ilústres membros da
sociedade. O que nos deixa perplexos é a indignação contra crimes que afetam
personalidades conhecidas e a omissão obsequiosa aos delitos que não se
noticiam.
Mais cômodo é julgar o
judiciário, os defensores e a polícia. Mais cômodo é responsabilizar a
impunidade pela morosidade, pela ineficiência e, mais grave, pelo direito à
ampla defesa. Os prazos processuais foram duramente conquistados e são,
hoje, os culpados pela suposta morosidade; recursos configuram-se como
direitos inalienáveis e são, diante desse prisma, responsáveis pelos
processos que não se findam.
Assim, estamos há 50 anos
tratando os efeitos da pobreza, da exclusão social, do descaso público, da
desestruturação das famílias e da degradação de princípios religiosos, como
causas. A violência é efeito, um reflexo pura e simplesmente. Contudo,
inverteram-se os valores: deve-se matar o paciente para que morra
junto o câncer: não se cuidam das causas dos males sociais, cuja violência é
somente um dos sintomas.
Um judiciário e polícia de
parcos recursos e o direito de defesa cerceado, são as verdadeiras
causas imediatas da sensação de impunidade que graça. A demora
deve-se ao sucateamento e não à preguiça; a impunidade liga-se à
completa falta de meios de policiamento repressivo e preventivo. É
mais fácil apontar os efeitos e confundi-los com causas.
Surfando na onda do terrorismo
estatal, advindo dos norte-americanos, francamente indiferentes à conquistas
seculares dos direitos humanos, no Brasil foi instituído formalmente o
pensamento de que penas longas, cruéis, prisões perpétuas ou mesmo a pena de
morte, seriam “soluções finais” para a criminalidade crescente. Ora,
foram anos e rios de sangue para conquistar o garantismo penal que se vê ameaçado
pelas bravatas dos que querem holofotes. Os norte-americanos, dominados por uma
visão belicista e moralista querem reproduzir os padrões de tratamento com
criminosos para todos os países, indiferentemente aos padrões sociais de cada
nação.
Ignorando os princípios
constitucionais da ampla defesa, individualização da pena, juiz natural e
contraditório, legisladores pressionados pelo poder da mídia parcial, e
formadores de opinião, vêm constantemente à público afirmar que o “poder
repressivo” do Estado seria a solução para o enfrentamento direto e aberto
ao crime organizado. É fácil apontar soluções de emergência, como a Lei de
Crimes Hediondas, onde temos sérias deformações no sistema jurídico vigente,
que sempre se pautou pelo respeito ao acusado, tratando-o como inocente até
sentença penal condenatória.
Queremos reafirmar que:
1) todos os acusados têm direito
pleno à defesa, independentemente de quem sejam e do que fizeram. Anti-ético é
negar a ampla defesa a um acusado;
2) o direito à liberdade é regra
no ordenamento processual penal vigente, sendo a segregação medida cautelar
extrema, devendo ser evitada. O ordenamento deve se pautar por oferecer
alternativas à prisão e à convivência prolongada do cidadão que cometeu um
delito dos que os praticam com frequência;
3) os tipos de crime devem,
necessariamente, ser tratados de forma diversa pelos operadores do direito, de
modo a não gerar distorções entre os de maior e de menor potencial ofensivo.
Não há crime hediondo: todos conflitam com valores sociais e devem ser
mensurados em seu grau de reprobabilidade pelo magistrado, caso a caso, e não
pela letra da Lei;
4) a luta contra a criminalidade
não será resolvida com medidas paliativas repressivas como a vedação da
progressão de regime, ou da liberdade provisória, mas por um amplo e honesto
programa de ressocialização do criminoso e prevenção social;
5) não aceitamos perseguições ou
policiamentos ideológicos por afirmarmos e defendermos o direito ao processo
judicial imparcial, justo e independente. É comum a reação violenta e confusa
dos operadores do Direito que pensam ser a punição exemplar a única forma de
constranger o criminoso a não cometer delitos;
6) o direito à defesa não se
confunde com a impunidade. Não fazemos a apologia do criminoso, ou tentamos
vitimizá-lo, mas apenas chamar a atenção da sociedade para a inversão de
valores de pilares democráticos seculares. O criminoso deve ser punido,
recuperado e ressocializado, mas dentro dos estritos ditames constitucionais;
7) a única forma de obter-se uma
resposta rápida à questão do crime organizado é a conscientização da
necessidade imediata pelo aparelhamento do Judiciário, Polícias e
Ministério Público, por meio de maciços investimentos.
Os tanques que hoje são
requisitados pelos mais afoitos já nos causaram males enormes durante vinte
anos; as escutas clandestinas já maltrataram nosso povo pelo mesmo período e
ainda assombram o direito à intimidade; as câmeras escondidas, os juízes
anônimos, as torturas, as execuções sumárias, as penas de morte, os degredos,
todos esses instrumentos de terror já estão presentes nos livros de História.
Esperamos nós, juízes, procuradores, promotores,
advogados, professores e acadêmicos de Direito que continuem
apenas na História, como símbolo de como a busca pela segurança pode nos
tornar cada vez mais inseguros, se abrirmos mão da consciência de que os
valores mais essenciais da sociedade são a vida e a liberdade.
Ora, há mais de 2.000 anos o
próprio Cristo veio ao mundo para pregar a virtude da tolerância. Não será demais
instituir programas como o Tolerância Zero? Antes que sejamos interpretados
como cabotinos, lembramos a própria máxima do presidente Lincoln: “uma
nação que abdica a liberdade pela segurança, não terá nem liberdade, nem
segurança”.
Informações Sobre o Autor
Eduardo Mahon