Resumo: O presente trabalho visa abordar o instituto da Mediação como novo paradigma de acesso à justiça e as narrativas de viagens na descoberta do Novo Mundo. Para tanto, partiu-se de um breve relato do conceito de mediação como forma alternativa de solução de conflitos, sua finalidade, princípios fundamentais, objetivos, o papel do mediador, bem como algumas de suas características para seu bom desempenho durante o processo de mediação. Passou-se à análise dos textos de Stephen Greenblatt e Michel de Montaigne (as narrativas dos próprios viajantes, circulação mimética, a idéia de obstrução). Conclui-se com a convergência de alguns pontos entre a mediação e as narrativas de viajantes, tendo como ponto principal a alteridade.
Palavras chave: Mediação de conflitos, alteridade, narrativas de viajantes.
Abstract: This work intends to talk about the mediation as a new paradigm to access the Justice and the narratives of the discovering travels of the new world. Aiming that, it was started from a short explanation of the concept of mediation as an alternative solution for conflicts, its finality, its fundamental principles, its aims, the mediator role, as well as some important characteristics for the good performance of the mediator during the mediation process. Further, it was analyzed the texts of Stephen Greenblat and Michel de Montaigne (the own travelers narratives, mimetic circulation, the obstruction Idea). The paper was concluded focusing the convergence between same points of mediation and de narratives of travelers, having as a principle aspect the otherness.
Key-words: Mediation of conflicts, otherness, travelers narratives.
Sumário: 1. Introdução. 2. Mediação. 2.1 O Papel do Mediador. 3. A Narrativa de Viagens. 4. Conclusão. Referências.
1.INTRODUÇÃO
O panorama judiciário brasileiro tem se tornado uma preocupação não só do Poder Público, mas, de toda a sociedade, incluindo os meios acadêmicos. O grande número de demandas, a morosidade dos processos, o número reduzido de juízes e de funcionários, a insuficiência de recursos, a burocratização da justiça, a inadequação da legislação processual, são problemas que impedem um efetivo acesso à justiça gerando, conseqüentemente, a ausência de efetivação dos direitos individuais.
Em resposta à chamada “crise do poder judiciário”, a atual fase instrumentalista de evolução metodológica do direito propõe uma abertura para os valores políticos e sociais do sistema processual, pois este deixa de ser um fim em si mesmo passando a ser meio. Também conhecida como fase da efetividade ou do acesso à justiça, tem como um dos pontos sensíveis dessa efetividade do processo o chamado garantismo processual, que busca facilitar o acesso à justiça, mas impedir que haja desrespeito às garantias processuais, tais como o contraditório, ampla defesa, juiz natural, etc.
Essa fase do “processo de resultados” passa a ser estudada e compreendida através de um novo método de pensamento. Passa a ser o acesso a uma ordem jurídica justa e adequada e não um mero acesso ao Judiciário. Destarte, preocupa-se com uma justiça que seja efetiva propondo-se, para tanto, a reestruturação da própria leitura do Direito.
Propõe-se um amplo e moderno programa de reformas no ordenamento processual, para que se estude o direito como um todo. Neste programa, encontram-se as reformas pontuais no sistema processual tornando-o mais ágil, eficiente e efetivo, tutelas jurisdicionais diferenciadas e a criação de meios alternativos de solução de conflitos – “equivalentes jurisdicionais” – tais como a Arbitragem, Conciliação, Negociação e a Mediação.
O presente trabalho tem como escopo abordar o instituto da Mediação, analisando seus princípios fundamentais, suas características, fazendo um breve paralelo com a narrativa de viagens e a experiência da diferença na cultura ocidental, que envolvem relações e comunicações interculturais. Deparamo-nos, assim, em ambos os pontos abordados, com a incorporação da alteridade.
2. Mediação.
O uso da mediação como forma de solucionar conflitos não é recente, tendo sido amplamente utilizado antes do monopólio da Jurisdição pelo Estado. Em busca de saídas para a ‘crise do Judiciário’, o instituto da mediação surge como uma mudança de paradigma, retornando às técnicas alternativas de solução de conflitos como forma de pacificação social, prevenção e uma solução efetiva dos conflitos.
Walsir Edson Rodrigues Júnior define a mediação da seguinte forma:
“A mediação é um processo informal de resolução de conflitos, em que um terceiro, imparcial e neutro, sem o poder de decisão, assiste às partes, para que a comunicação seja estabelecida e os interesses preservados, visando ao estabelecimento de um acordo. Na verdade, na mediação, as partes são guiadas por um terceiro (mediador) que não influenciará no resultado final. O mediador, sem decidir ou influenciar na decisão das partes, ajuda na identificação e articulação das questões essenciais que devem ser resolvidas durante o processo”. (JUNIOR, 2006, pag.85-93)[1]
O instituto da mediação consiste numa forma alternativa de solução de conflitos por meio do qual uma terceira pessoa neutra e imparcial – o mediador – auxilia as partes envolvidas a chegarem voluntariamente a um acordo criado e aceitável por ambos. Assim, os envolvidos no conflito são os responsáveis pela decisão que melhor os satisfaça.
Por meio da mediação, buscam-se as convergências entre os envolvidos no conflito minimizando a discórdia e facilitando a comunicação de forma pacífica. O mediador tenta restabelecer o diálogo entre as partes, fazendo com que estes resgatem objetivos comuns, buscando reconstruir a relação que se desgastou ao longo do tempo por diferenças de opiniões, mágoas, frustrações etc.. Por suas particularidades, o procedimento da mediação é indicado, principalmente, para a solução de conflitos nas relações continuadas.
Destarte, a mediação é um procedimento não-adversarial, voluntário, onde as partes decidem os termos do acordo, encontrando uma solução ponderada e eficaz, sendo o mediador o terceiro imparcial que facilitará o diálogo, estimulando a cooperação entre os envolvidos, sem lhes impor uma solução.
Segundo Walsir Rodrigues (2006), são princípios básicos da mediação: o caráter voluntário, a não-adversariedade, a flexibilidade e informalidade do processo, confidencialidade do processo.
a) Caráter voluntário
A mediação busca a restauração das relações entre as partes, tendo como objetivo principal a manutenção do bom relacionamento entre os mesmos. É importante que as partes queiram se submeter ao procedimento da mediação para resolverem o conflito.
De forma geral, os procedimentos que integram a mediação são precedidos pelo contato do mediador com os envolvidos, que são esclarecidos acerca do que seja a mediação, qual o procedimento utilizado e quais os objetivos. As partes possuem autônomia para decidirem se querem, ou não, a mediação como instrumento de solução de seus conflitos. Só após a aceitação, têm início as sessões para tentativa de um acordo.
A voluntariedade deve estar presente no momento em que as partes são esclarecidas sobre o procedimento da mediação, no momento em que optam por iniciá-lo, durante o período em que esteja sendo efetuado, bem como após a sua finalização.
b) Não-adversariedade
“Na mediação, não há um ganhador e um perdedor, como ocorre no modelo tradicional de Jurisdição. A sua finalidade maior é solucionar o conflito de forma consensual, surgindo, ao final, ganhadores. As partes não utilizam o processo de mediação para ganhar ou perder, mas para solucionar as questões em disputa, elas não se colocam em posição de competição. Esse sentimento de não-adversariedade deve conduzir todo o processo. Assim, será muito expressiva a probabilidade de se resolverem as controvérsias existentes e, acima de tudo, de se manter o bom relacionamento entre as partes”. (JUNIOR, 2006, p.86) [2]
c) Credibilidade, imparcialidade e neutralidade do mediador
A credibilidade, a imparcialidade e a neutralidade são características essenciais para que as partes se sintam à vontade para relatar o conflito (conflito aparente) e os acontecimentos que o permeiam (conflito real).
Imparcialidade e neutralidade do mediador – o mediador é um terceiro imparcial, pois não defende, não representa ou aconselha nenhuma das partes, nem tem qualquer interesse próprio nas questões envolvidas no conflito. É papel do mediador, garantir a igualdade dos envolvidos, tentando preservar o equilíbrio entre os interesses de ambos, sem assumir a posição de nenhuma das partes. É importante que o mediador compreenda a realidade vivida pelas partes, despindo-se, a cada sessão, de seus preconceitos e valores pessoais.
Credibilidade – a confiabilidade/credibilidade do mediador é obtida quando este atua de forma imparcial e neutra frente os mediados. “O mediador deve construir e manter a confiança das partes, sendo independente, franco e coerente.” [3]
d) Flexibilidade e informalidade do processo
Diferentemente do Judiciário, o processo de mediação é informal e flexível, permitindo ao mediador a utilização de técnicas que visa apurar as situações que permeiam e envolvem o conflito apontado (conflito aparente), detectando o conflito real (apuração dos dados e fatos que estão, verdadeiramente, causando a angústia, a insatisfação).
Os mediados têm ampla liberdade para estabelecer as regras, para formular as cláusulas do acordo, permitindo, inclusive, a utilização da criatividade para soluções mutuamente satisfatórias do conflito.
Segundo Roberto Portugal Bacellar,
“Não basta resolver apenas a “lide processual”, ou seja, aquilo que foi trazido pelos advogados ao processo, é preciso ir além, buscar a satisfação dos verdadeiros interesses do jurisdicionado, buscar a resolução integral do conflito – “da lide sociológica.” (BACELLAR, 2006, p.91)[4]
e) Confidencialidade do processo
A confidencialidade é um princípio essencial ao processo de mediação para que as partes se sintam seguras para relatar todos os fatos que norteiam o conflito e expor suas vontades, possibilitando trabalhar o conflito na sua integralidade.
As informações prestadas pelas partes sobre o conflito são trabalhadas sem que saiam do âmbito da mediação. Assim, caso os mediados já estejam com uma ação proposta no Judiciário ou isto venha a ocorrer, nenhuma das informações prestadas no processo de mediação será levado para os autos (processo judicial). O mediador não poderá ser testemunha em nenhum processo judicial que envolva os mediados em questão.
Entendemos que o instituto da mediação tem por finalidade primeira não o acordo entre as partes, mas sim, a restauração das relações entre os envolvidos no conflito.
Assevera Bolzon de Morais (2008) que “não se pode considerar exitoso o processo de mediação em que as partes acordarem um simples termo de indenizações, mas que não consigam reatar as relações entre elas.” [5]
No mesmo sentido, Lília Morais,
“Ressalte-se que, ao se alcançar a comunicação entre as partes, já se pode considerar uma mediação exitosa, tendo em vista que o restabelecimento do diálogo permite, se não no momento imediato, a solução de conflito em momento posterior.” (MORAIS, Lilia, 2010, p.5.) [6]
Para Jean-François Six (2001), existe uma via da mediação advinda da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão (1789) em que há “o outro homem, o além de nós, é um homem como nós, em igualdade; e, portanto, as semelhanças são mais importantes que as diferenças.” Nesse contexto, a mediação é um instituto utilizado para a regulação constante das relações entre uns e outros.
“Trata-se, então, na mediação, de estabelecer constantemente novas ligações entre uns e outros, numa verdadeira criatividade; ou ainda de reparar os laços que se distenderam ou foram submetidos a qualquer dano; ou ainda gerenciar rupturas de ligações, desavenças”. (SIX, 2001, p. 258)[7]
Enquanto método alternativo de solução de conflitos, a mediação possui muitos objetivos, dentre os quais se destacam:
a) A pacificação social
A mediação é um instrumento de ampliação, promoção e democratização do acesso à justiça, verificando-se como uma forma de efetivação de um dos fundamentos do Estado Democrático de Direito, qual seja a dignidade da pessoa humana (art. 1º, III da Constituição Federal).
Segundo Lília de Morais,
“O caminho da pacificação remete, necessariamente, à valorização do ser humano, concedendo-lhe formas e oportunidades de dialogar e participar da transformação de sua vida e de sua comunidade, o que, por conseguinte, gera nas pessoas o sentimento de inclusão e responsabilidade social”. (MORAIS, Lilia, 2010, p.9) [8]
O instituto da mediação é, também, um instrumento de humanização do sistema judiciário, tendo o ser humano em seu aspecto global e os resultados obtidos têm maior abrangência. Assim, enquanto no modelo tradicional os conflitos são resolvidos no aspecto legal e financeiro, através da mediação, os conflitos são solucionados nos seus aspectos emocionais, psicológicos, legais, financeiros, econômicos e sociais.
Destarte, a mediação pode ser utilizada nas mais diversas áreas para dirimir um conflito apresentando-se como instrumento de pacificação social, pois, no âmbito familiar, promove a paz e os comportamentos familiares refletem os comportamentos sociais. A mediação no direito penal tem sido exposta e defendida como “a atividade mais adaptada para servir como reação penal alternativa e atingir as finalidades político-criminais propostas.” (SICA, 2007. p.30) [9]. Muito empregada, também, em questões de vizinhança, onde se busca a melhoria da convivência na comunidade.
b) Inclusão social
O instituto da mediação apresenta-se como veículo da ampliação, promoção e democratização do acesso a justiça tendo em vista que as pessoas passam a compreender a si mesmas e a se relacionar com as outras através do marco do conflito.
As partes envolvidas no conflito são autoras das soluções de suas controvérsias, tornando-se mais comprometidas no cumprimento do acordo firmado. Nesse plano, é oferecida aos cidadãos a sua participação na solução de seus conflitos ou dos conflitos da comunidade, promovendo o exercício da cidadania e da inclusão social.
c) Solução de conflitos e prevenção da má administração dos conflitos
A mediação visa precipuamente encurtar a distância entre os envolvidos através de um diálogo pacífico. É uma alternativa extrajudicial de solução de conflitos que tenta restaurar a comunicação entre os indivíduos que estão contrapostos, procurando levá-los à superação do conflito. A partir desse momento, as pessoas tendem a reaprender (ou aprender) a negociar as diferenças diretamente com o outro quando novos conflitos individuais ou da comunidade surgirem.
A mediação coloca-se em um terceiro plano, aproximando as culturas sem confundi-las, distinguindo-as, sem separá-las. Assim, a mediação, impulsionada por um terceiro (mediador), faz com que
“(…) deste diálogo-confrontação em presença de um terceiro, nasça qualquer coisa que não será nem a solução unilateral do primeiro, nem a solução unilateral do segundo, mas uma saída original realizada por um e outro juntos, uma saída que não pertence a nenhum dos dois propriamente, mas aos dois”. (SIX,2001,p.07)[10]
d) Aliviar o congestionamento do Judiciário
A utilização da mediação como forma de solucionar conflitos não tem a finalidade de negar a tutela jurisdicional por parte do Estado, mas, demonstrar que existem outros meios de pacificação social, que auxiliam o órgão jurisdicional e criam alternativas mais econômicas, dinâmicas e céleres na resolução dos conflitos.
2.1 O PAPEL DO MEDIADOR
Para que a mediação tenha bons resultados, é imprescindível que os envolvidos queiram se submeter ao processo (voluntariedade), bem como, um bom desenvolvimento do papel de mediador.
Este, como facilitador do processo, é o terceiro, neutro e imparcial, que irá intermediar as relações entre os envolvidos no conflito diminuindo a hostilidade e tentando restabelecer a comunicação pacífica entre eles, para que estes alcancem uma solução mutuamente satisfatória para o problema.
O mediador tem que criar um ambiente de respeito e credibilidade para que os mediados possam falar de suas fragilidades, dores, valores, crenças etc.. Desta forma, para atuar como mediador, este precisa possuir algumas habilidades e desenvolver outras.
A escuta é uma valiosa característica, sem a qual o mediador não conseguirá atuar.
“Estudando o conflito de interesses ousamos afirmar que as agressões verbais e físicas quase sempre são dores que transbordam. Nem sempre o que é dito através de palavras ou gestos é manifesto de sentimentos reais. Fica evidente a necessidade de compreender o que realmente existe por detrás das palavras. Assim fica definido o poder da “escutatória”. Quando as pessoas se sentem ouvidas, sentem-se mais confiantes para expor o real motivo de suas angústias. Nesta hora já estamos drenando a dor e abrindo caminho para a solução do conflito”. (PINTO, 2007, p.59)[11]
São características do mediador dentre outras: imparcialidade, neutralidade, saber escutar e se expressar, sensibilidade, paciência, habilidade na comunicação, sinceridade, discrição etc.
Maria de Nazareth Serpa (1999), de forma ilustrativa, retrata, ainda, que no perfil de mediador devem estar presentes:
“1. A percepção de um felino; 2. A memória da escrita; 3. A serenidade das águas de um lago; 4. A firmeza de uma montanha; 5. A determinação de uma bússola.
Ainda tem que ser mestre em alternativa, na medida em que deve fomentar a criação de caminhos novos, quando dois caminhos se cruzam e se obstruem.” (SERPA, 1999, p 218-219) [12]
3. A NARRATIVA DE VIAGENS
Nas narrativas de viagem, os relatos dos narradores-viajantes, no encontro com o ‘estrangeiro’, potencializa a atitude comparativa estimulando uma reflexão nas semelhanças e diferenças, analisando o outro (ser humano) e a geografia local tendo como ponto de partida a sua nação. Muitas vezes, essas narrativas são representações que se constituem a descrição do conhecimento que a pessoa faz de si mesma, bem como uma hetero-imagem. São descrições decorrentes do olhar sobre o outro fixado tanto na alteridade quanto na própria identidade.
No livro “Possessões Maravilhosas”, o autor Stephen Greenblatt relata as mudanças na forma como o Ocidente trata o Outro através do imaginário europeu e das transformações na era do descobrimento de novas terras através de relatos de viagens de Mandeville, Montaigne e outros, não se preocupando em diferenciar a representação falsa da verdadeira, mas sim, observando na narrativa a descrição do que os europeus viam. Como descreve Greenblatt em ‘Possessões Maravilhosas: ‘O deslumbramento do novo mundo’,
“onde quer que se dê o contato entre o Velho e o Novo Mundo – nas viagens de protestantes e católicos, nas praças das cidades astecas e nos palácios europeus –, observamos um imenso desdobramento de representações, (…). O contato europeu com o Novo Mundo é continuamente mediado por representações; em verdade, o contato em si, pelo menos quando não consiste inteiramente em atos de agressão e assassinato, revela-se quase sempre um contato entre representantes munidos de representações. (…) Ao longo de todo o discurso de viagem, nota-se pouquíssima distância entre a representação e um representante: Colombo, com suas bandeiras e cruzes, toma o lugar de algo que transcende a ele próprio, como a seu ver fazem os nativos que tem diante de si”. (GREENBLAT , 1996, p. 159-160) [13]
No capítulo “Possessões Maravilhosas”, Greenblatt fala do viajante que tem um espírito de posse, discute a viagem de Colombo, fala-se da narrativa deste ao chegar à América. Ao longo deste capítulo, comenta-se sobre a Carta escrita por Colombo à Coroa Portuguesa. Através de atos discursivos, há uma encenação da posse ao invés de, simplesmente, exterminar o “outro”. Nas excursões imperialistas, esperava-se uma reação frente à dominação e à Colombo. Entretanto, na carta, Colombo relata que não houve contradição, descrevendo o Novo Mundo como ‘Maravilhoso’. Essa maravilha está relacionada à idéia de despossessão (despossuir-se). Portanto, a ‘nova terra’ poderia ser alienada/possuída. Colombo, em sua narrativa, se utiliza da estratégica retórica.
No capítulo “O Intermediário”, o autor discorre sobre o imperialismo, a importância da escravização, que representava o sonho europeu da posse. Nesse contexto, Greenblatt fala das estruturas jurídicas do Estado burocrático, que se vale do ritual de tomada de posse. A tradição jurídica européia exigia a tomada de posse como assentimento/reconhecimento da derrota (dos possuídos) ou que acontecesse o ‘ritual’ de tomada de posse. Quando Colombo nomeia as ilhas (a cada ilha vista, Colombo lhe dava um nome), tem-se a tomada de posse daquelas terras.
Nessa perspectiva, o imperialismo cristão de Colombo torna o processo legítimo, pois, para os europeus, os índios eram selvagens. E quando estes se opõem à colonização, são transformados em escravos. Essa escravização era considerada a salvação dos selvagens porque, a partir desse momento, saíam da condição de selvagem para serem considerados humanos. Todas essas estruturas serviram de mediador entre o conquistador e a parte vencida.
Para Greenblatt, a circulação mimética, seja esta interna (integração de outra cultura dentro da sua própria cultura) ou externa, nem sempre são compatíveis, embora “qualquer representação pode circular”. Em algumas circunstâncias, como por exemplo, a ferocidade religiosa e militar dos astecas, há o elemento da obstrução quando nenhuma cultura pode admitir uma circulação mimética a ponto de dissolver toda a sua cultura.
Mas, a mímeses se estabelece no momento do contato com o ‘outro’.
“Se, para os espanhóis, ocorre uma obstrução cultural absoluta em torno das imagens do canibalismo e da idolatria, então tem de haver ainda algum ponto de contato onde a compreensão possa se dar, alguma base para a comunicação e a negociação.(…) Não podem se dispensar completamente da circulação mimética, uma consciência da subjacente interseção estratégica das formas representacionais, enquanto, ao mesmo tempo, são impelidos a uma obstrução mimética, uma diferenciação radical que é traço constitutivo da empresa destrutiva e do texto que registra e defende essa empresa. (…) Outra conseqüência, e mais importante, é que a circulação, condição do conhecimento em Heródoto, agora só pode ocorrer através da mediação de outra pessoa”. (GREENBLATT , 1996. p. 180-181) [14]
E, a partir desse momento, os espanhóis passam a procurar mediadores, cuja importância “é mais que instrumental; no relato de Bernal Díaz, é o agente principal da circulação das representações culturais bloqueadas na percepção espanhola de sua experiência.” [15] Embora a existência desses intérpretes/mediadores, os espanhóis são considerados intermediários na entrega do Novo Mundo ao Velho.
Na leitura de Montaigne (Ensaios. Livro I, Cap. XXXI: Dos Canibais), em meio à circulação mimética, encontra-se também a figura do ‘maravilhoso’ e do ‘mediador’. Como aponta Greenblatt (1996) em análise à referida leitura, “Esperando encontrar dois termos em Montaigne – sujeito e objeto –, encontramos um terceiro: sujeito, objeto e intermediário.” [16]
Montaigne se utiliza de um criado (fictício ou não) para dar veracidade à narrativa sobre sua expedição às terras brasileiras. Para o autor, a simplicidade e grosseria de espírito do seu informante valorizavam seu testemunho e, para ele, os fidalgos, por serem mais observadores, não eram fieis em seus relatos e usavam da imaginação para inventar e justificar suas interpretações. Quando descreve os povos do Novo Mundo, caracterizando-os por selvagens e não-selvagens, utiliza-se como ponto de referência o país em que vivia. “Podemos portanto qualificar esses povos como bárbaros em dando apenas ouvidos à inteligência, mas nunca se o compararmos a nós mesmos, que os excedemos em toda sorte de barbaridades.”[17]
Na análise feita por Greenblatt,
“O ensaio de Montaigne implica uma outra ligação entre criado e índio: é como se a alteridade de classe do serviçal rude e simples (e, portanto, sua pobreza, vulnerabilidade e distanciamento das tradições literárias e filosóficas de que Montaigne está impregnado) espelhasse a alteridade cultural dos brasileiros”. ( Greenblatt , 1996, p. 191)[18]
Enfim, as narrativas das viagens européias, que em determinados momentos eram feitas com o impulso imperialista (o europeu tinha o sonho de posse de terras novas), basearam-se na alteridade, no testemunho do narrador-viajante ou de seus intermediários. Em muitas ocasiões, estes passaram a ser o mediador entre o Velho e Novo Mundo, entre os conquistadores e os conquistados.
4. CONCLUSÃO
Assim como a “linguagem e fatos políticos e sociais aparecem de formas diferentes para o historiador e para os atores da história” [19], cada mediado tem uma perspectiva do conflito e o mediador se coloca na posição de ‘estrangeiro’ para escutar, perceber, sentir e expor novamente o problema em questão.
“Não vejo nada de bárbaro ou selvagem no que dizem daqueles povos; e, na verdade, cada qual considera bárbaro o que não se pratica em sua terra. E é natural, porque só podemos julgar da verdade e da razão de ser das coisas pelo exemplo e pela idéia dos usos e costumes do país em que vivemos. Neste a religião é sempre melhor, a administração excelente, e tudo o mais perfeito. A essa gente chamamos selvagens como denominamos selvagens os frutos que a natureza produz sem intervenção do homem. No entanto aos outros, àqueles que alteramos por processos de cultura e cujo desenvolvimento natural modificamos, é que deveríamos aplicar o epíteto. As qualidades e propriedades dos primeiros são vivas, vigorosas, autênticas, úteis e naturais; não fazemos senão abastardá-las nos outros a fim de melhor as adaptar a nosso gosto corrompido. Entretanto, em certas espécies de frutos dessas regiões, achamos um sabor e uma delicadeza sem par e que os torna dignos de rivalizar com os nossos”. (MONTAIGNE , 1972, p.261)[20]
Assim acontece no conflito: o “país” em que vivemos, ou seja, as nossas verdades, os nossos costumes, são sempre os melhores e, conseqüentemente, os “corretos”. Mas, se ampliarmos a visão, aprendermos escutar o outro, a olhá-lo como alguém que também possui costumes, vontades, direitos etc., conseguiremos descobrir os ‘frutos saborosos, delicados’ na verdade do outro e, então, saberemos que um não exclui o outro.
As narrativas sobre as viagens ao Novo Mundo podem não ter tido a finalidade imediata de troca de informações entre ‘terras’ diferentes ou ainda uma interação das diversas culturas. Mas, não se pode negar que para a emissão de informações é necessário um processo de comunicação. Esta comunicação ocorreu de forma verbal e, muitas vezes, de forma simbólica. A comunicação, assim como elemento de interação dos viajantes, é elemento essencial no processo de mediação.
Dentre as várias técnicas utilizadas na mediação, encontra-se a escuta ativa, quando, então, o mediador irá escutar atentamente a exposição dos fatos pelos envolvidos. Essas informações serão passadas através da comunicação verbal e não verbal (gestos, formas de olhar etc.). A partir de então, o mediador deverá estimular a comunicação pacífica através da escuta ativa e das várias formas de comunicação (verbal, simbólica, não verbal).
O viajante, ao narrar suas ‘aventuras às terras do Novo Mundo’, em muitas ocasiões, se colocou no lugar do outro para entender sua cultura. Assim, é o papel do mediador, pois, este não conseguirá ser imparcial se não se colocar no lugar dos mediados, procurando entendê-los, verificando suas verdades, inclusive através da cultura de cada um.
O mediador é o ‘viajante-narrador’ que observa, escuta, sente o ‘mundo’ do outro, para então, narrar o conflito existente.
A maioria dos conflitos tende a se agravar devido às chamadas ‘inferências’ feitas pelos envolvidos. Estes narram o conflito, suas causas, as atitudes do outro que magoam, justificam suas atitudes interpretando a ação do outro, relatam o pensamento da outra parte etc., tudo isso através de suas próprias representações sobre o problema. Essas representações decorrem, assim como algumas narrativas do viajante-narrador, do olhar sobre o outro firmado na própria identidade e não na alteridade. Nesses momentos, importante se faz o papel do mediador, pois este, “apoiado em estratégias que envolvem a percepção do que está na essência da linguagem dos mediados (fala, gestos, expressão corporal e facial) detecta o conflito aparente para, enfim, chegar ao conflito real.” [21] O mediador deve mostrar, às partes, que seus conceitos não são absolutos e que suas verdades não deixam de existir ao compreender a verdade do outro.
Após extrair as inferências dos problemas e usando da alteridade com a finalidade de compreender a verdade, o sentimento e as razões da outra parte, ter-se-á a efetividade do exercício da cidadania, estabelecendo, na relação interpessoal, a comunicação pacífica, pois, à medida que se coloca no lugar do outro o valorizando, aprende-se a respeitá-lo, compreendê-lo. O processo de mediação de conflitos busca, antes de firmar um acordo, a alteridade, pois só a partir do momento que um se coloca no lugar do outro na relação com sinceridade, tem-se a chance de chegar às finalidades deste instituto, como por exemplo, a paz social.
Advogada. Mediadora de Conflitos. Professora de Direito Penal. Membro da Comissão de Mediação e Arbitragem da OAB/MG. Mestranda no Programa DDMRC – Master em Resolución de Conflictos y Mediación. Universidad de Léon/Espanha. Aluna no Mestrado Interdisciplinar do Programa de Pós Graduação em Sociologia e Direito da Universidade Federal Fluminense (UFF/Rio de Janeiro). Especialista em Direito Penal e Processual Penal pela Universidade de Itaúna – MG. Graduada em Direito pela Universidade FUMEC/FCH
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